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Title: Triste Fim de Polycarpo Quaresma
Author: Barreto, Lima
Language: Portuguese
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QUARESMA ***


LIMA BARRETO

Autor de "ISAIAS CAMINHA"



TRISTE FIM DE

POLYCARPO QUARESMA



Typ. "Revista dos Tribunaes"

RUA DO CARMO, 55

RIO DE JANEIRO

1915



A

João Luiz Ferreira

Engenheiro Civil


Le grand inconvénient de la vie
réelle et ce qui la rend insupportable
à l'homme supérieur, c'est que, si l'on
y transporte les principes de l'idéal,
les qualités deviennent des défauts, si
bien que fort souvent l'homme accompli
y réussit moins bien que celui qui
a pour mobiles l'égoisme ou la routine
vulgaire.

=Renan=, Marc-Auréle



INDICE
Primeira Parte
Capitulo
I. A LIÇÃO DE VIOLÃO
II. REFORMAS RADICAES
III. A NOTICIA DO GENELICIO
IV. DESASTROSAS CONSEQUENCIAS
DE UM REQUERIMENTO
V. O BIBELOT
Segunda Parte
I. NO «SOCEGO»
II. ESPINHOS E FLORES
III. GOLIAS
IV. «PEÇO ENERGIA, SIGO JÁ»
V. O TROVADOR
Terceira Parte
I. PATRIOTAS
II. VOCÊ, QUARESMA, É UM VISIONARIO
III. ...E TORNARAM LOGO SILENCIOSOS...
IV. O BOQUEIRÃO
V. A AFILHADA



PRIMEIRA PARTE



I

A LIÇÃO DE VIOLÃO

Como de habito, Polycarpo Quaresma, mais conhecido por major Quaresma,
bateu em casa ás 4 e 15 da tarde. Havia mais de vinte annos que isso
acontecia. Sahindo do Arsenal de Guerra, onde era sub-secretario,
bongava pelas confeitarias algumas fructas, comprava um queijo, ás
vezes, e sempre o pão da padaria franceza.

Não gastava nesses passos nem mesmo uma hora, de fórma que, ás 3 e
40, por ahi assim, tomava o bonde, sem erro de um minuto, ia pizar a
soleira da porta de sua casa, numa rua afastada de S. Januario, bem
exactamente ás 4 e 15, como se fosse a apparição de um astro, um
eclypse, emfim um phenomeno mathematicamente determinado, previsto e
predito.

A vizinhança já lhe conhecia os habitos e tanto que, na casa do
Capitão Claudio, onde era costume jantar-se ahi pelas quatro e meia,
logo que o viam passar, a dona, gritava á criada: «Alice, olha que
são horas; o Major Quaresma já passou».

E era assim todos os dias, ha quasi trinta annos. Vivendo em casa
propria e tendo outros rendimentos além do seu ordenado, o major
Quaresma podia levar um trem de vida superior aos seus recursos
burocraticos, gozando, por parte da vizinhança, da consideração e
respeito de homem abastado.

Não recebia ninguem, vivia num isolamento monacal, embora fosse cortez
com os vizinhos que o julgavam esquisito e misanthropo. Se não tinha
amigos na redondeza, não tinha inimigos, e a unica desaffeição que
merecera, fôra a do Dr. Segadas, um clinico afamado no lugar, que não
podia admittir que Quaresma tivesse livros: «se não era formado, para
que? Pedantismo»!

O sub-secretario não mostrava os livros a ninguem, mas acontecia que,
quando se abriam as janellas da sala de sua livraria, da rua
poder-se-iam ver as estantes pejadas de cima a baixo.

Eram esses os seus habitos; ultimamente, porém, mudara um pouco; e isso
provocava commentarios no bairro. Além do compadre e da filha, as
unicas pessoas que o visitavam até então, nos ultimos dias, era visto
entrar em sua casa, tres vezes por semana e em dias certos, um senhor
baixo, magro, pallido, com um violão agasalhado numa bolsa de camurça.
Logo pela primeira vez o caso intrigou a vizinhança. Um violão em casa
tão respeitavel! que seria?

E, na mesma tarde, uma das mais lindas vizinhas do major convidou uma
amiga, e ambas levaram um tempo perdido, de cá p'ra lá, a palmilhar o
passeio, esticando a cabeça, quando passavam diante da janella aberta
do exquisito sub-secretario.

Não foi inutil a espionagem. Sentado no sofá, tendo ao lado o tal
sujeito, empunhando o _pinho_ na posição de tocar, o major,
attentamente, ouvia: «Olhe, major, assim». E as cordas vibravam
vagarosamente a nota ferida; em seguida, o mestre adduzia: «é _ré_,
aprendeu».

Mais não foi precizo pôr na carta; a vizinhança concluiu logo que o
major aprendia a tocar violão. Mas que cousa? Um homem tão sério
mettido nessas malandragens!

Uma tarde de sol--sol de Março, forte e implacavel--ahi pelas cercanias
das quatro horas, as janellas de uma erma rua de S. Januario povoaram-se
rapida e repentinamente, de um e de outro lado. Até da casa do General
vieram moças á janella! Que era? Um batalhão? Um incendio? Nada
disto: o Major Quaresma, de cabeça, baixa, com pequenos passos de boi
de carro, subia a rua, tendo debaixo do braço um violão impudico.

É verdade que a guitarra vinha decentemente embrulhada em papel, mas o
vestuario não lhe escondia inteiramente as formas. Á vista de tão
escandaloso facto, a consideração e o respeito que o major Polycarpo
Quresma merecia nos arredores de sua casa, diminuiram um pouco. Estava
perdido, maluco, diziam. Elle, porém, continuou serenamente nos seus
estudos, mesmo porque não percebeu essa diminuição.

Quaresma era um homem pequeno, magro, que usava _pince-nez_, olhava
sempre baixo, mas, quando fixava alguem ou alguma cousa, os seus olhos
tomavam, por detraz das lentes, um forte brilho de penetração, e era
como se elle quizesse ir á alma da pessoa ou da cousa que fixava.

Comtudo, sempre os trazia baixo, como se guiasse pela ponta do
cavaignac que lhe enfeitava o queixo. Vestia-se sempre de fraque, preto,
azul, ou de cinza, de panno listrado, mas sempre de fraque, e era raro
que não se cobrisse com uma cartola de abas curtas e muito alta, feita,
segundo um figurino antigo de que elle sabia com precisão a epocha.

Quando entrou em casa, naquelle dia, foi a irmã quem lhe abriu a porta,
perguntando:

--Janta já?

--Ainda não. Espere um pouco o Ricardo que vem jantar hoje comnosco.

--Polycarpo, você precisa tomar juizo. Um homem de idade, com
posição, respeitavel, como você é, andar mettido com esse
seresteiro, um quasi capadocio--não é bonito!

O major descançou o chapéo de sól--um antigo chapéo de sól, com a
haste inteiramente de madeira, e um cabo de volta, incrustado de
pequenos losangos de madreperola--e respondeu:

--Mas você está muito enganada, mana. É preconceito suppor-se que
todo o homem que toca violão é um desclassificado. A modinha é a mais
genuina expressão da poesia nacional e o violão é o instrumento que
ella pede. Nós é que temos abandonado o genero, mas elle já esteve em
honra, em Lisboa, no seculo passado, com o padre Caldas, que teve um
auditorio de fidalgas. Beckford, um inglez notavel, muito o elogia.

--Mas isso foi em outro tempo,--agora...

--Que tem isso, Adelaide? Convém que nós não deixemos morrer as
nossas tradições, os usos genuinamente nacionaes...

--Bem, Polycarpo, eu não quero contrariar você; continue lá com as
suas manias.

O major entrou para um aposento proximo, emquanto sua irmã seguia em
direitura ao interior da casa. Quaresma despiu-se, lavou-se, enfiou a
roupa de casa, veiu para a bibliotheca, sentou-se a uma cadeira de
balanço, descançando.

Estava num aposento vasto, com janellas para uma rua lateral, e todo
elle era forrado de estantes de ferro.

Havia perto de dez, com quatro prateleiras, fora as pequenas com os
livros de maior tomo. Quem examinasse vagarosamente aquella grande
collecção de livros havia de espantar-se ao perceber o espirito que
presidia a sua reunião.

Na ficção, havia unicamente autores nacionaes ou tidos como taes: o
Bento Teixeira, da Prosopopéa; o Gregorio de Mattos, o Basilio da Gama,
o Santa Rita de Durão, o José de Alencar (todo), o Macedo, o
Gonçalves Dias (todo), além de muitos outros. Podia-se afiançar que
nem um dos autores nacionaes ou nacionalizados de oitenta p'ra lá
faltava nas estantes do Major.

De Historia do Brasil, era farta a messe: os chronistas, Gabriel Soares,
Gandavo; e Rocha Pitta, Frei Vicente Salvador, Armitage, Ayres Casal,
Pereira da Silva, Handelmann (Geschitchte von Brasilien), Mello Moraes,
Capistrano de Abreu, Southey, Warnhagen, além de outros mais raros ou
menos famosos. Então no tocante a viagens e explorações, que riqueza!
Lá estavam Hans Stade, o Jean de Lery, o Saint-Hilaire, o Martius, o
principe de Neuwied, o John Mawe, o von Eschwege, o Agassis, Couto
Magalhães e se encontravam tambem Darwin, Freycinet, Cook,
Boungainville e até o famoso Pigafetta, chronista da viagem de
Magalhães, é porque todos esses ultimos viajantes tocavam no Brasil,
resumida ou amplamente.

Alem destes, havia livros subsidiarios: diccionarios, manuaes,
encyclopedias, compendios, em varios idiomas.

Vê-se assim que a sua predilecção pela poetica de Porto Alegre e
Magalhães não lhe vinha de uma irremediavel ignorancia das linguas
literarias da Europa; ao contrario o major conhecia bem soffrivelmente
francez, inglez e allemão; e se não falava taes idiomas, lia-os e
traduzia-os correntemente. A razão tinha que ser encontrada numa
disposição particular de seu espirito, no forte sentimento que guiava
sua vida. Polycarpo era patriota. Desde moço, ahi pelos vinte annos, o
amor da patria tomou-o todo inteiro. Não fôra o amor commum, palrador
e vasio; fora um sentimento sério, grave e absorvente. Nada de
ambições politicas ou administrativas; o que Quaresma pensou, ou
melhor: o que o patriotismo o fez pensar, foi num conhecimento inteiro
do Brasil, levando-o a meditações sobre os seus recursos, para depois
então apontar os remedios, as medidas progressivas, com pleno
conhecimento de causa.

Não se sabia bem onde nascera, mas não fôra de certo em S. Paulo, nem
no Rio Grande do Sul, nem no Pará. Errava quem quizesse encontrar nelle
qualquer regionalismo; Quaresma era antes de tudo brasileiro. Não tinha
predilecção por esta ou aquella parte de seu pai tanto assim que aquillo
que o fazia vibrar de paixão não eram só os Pampas do Sul com o seu
gado, não era o café de S. Paulo, não eram o ouro e os diamantes de
Minas, não era a belleza da Guanabara, não era a altura da Paulo
Affonso, não era o estro de Gonçalves Dias ou o impeto de Andrade
Neves--era tudo isso junto, fundido, reunido, sob a bandeira estrellada
do Cruzeiro.

Logo aos dezoito annos quiz fazer-se militar; mas a junta de saude
julgou-o incapaz. Desgostou-se, soffreu, mas não maldisse a Patria. O
Ministerio era liberal, elle se fez conservador e continuou mais do que
nunca a amar a _terra que o viu nascer_. Impossibilitado de evoluir-se
sob os dourados do Exercito, procurou a administração e dos seus ramos
escolheu o militar.

Era onde estava bem. No meio de soldados, de canhões, de veteranos, de
papelada inçada de kilos de polvora, de nomes de fuzis e termos
technicos de artilharia, aspirava diariamente aquelle halito de guerra,
de bravura, de victoria, de triumpho, que é bem o halito da Patria.

Durante os lazeres burocraticos, estudou, mas estudou a Patria, nas suas
riquezas naturaes, na sua historia, na sua geographia, na sua literatura
e na sua politica. Quaresma sabia as especies de mineraes, vegetaes e
animaes, que o Brasil continha; sabia, o valor do ouro, dos diamantes
exportados por Minas, as guerras hollandezas, as batalhas do Paraguay,
as nascentes e o curso de todos os rios. Defendia com azedume e paixão
a proeminencia do Amazonas sobre todos os demais rios do mundo. Para
isso ia até ao crime de amputar alguns kilometros ao Nilo e era com
este rival do _seu_ rio que elle mais implicava. Ai de quem o citasse na
sua frente! Em geral, calmo e delicado, o major ficava agitado e
malcriado, quando se discutia a extensão do Amazonas em face da do
Nilo.

Havia um anno a esta parte que se dedicava ao tupy-guarany. Todas as
manhãs, antes que a «Aurora, com seus dedos rosados abrisse caminho ao
louro Phebo», elle se atracava até ao almoço com o Montoya, _Arte y
diccionario de la lengua guarany ó mâs bien tupy_, e estudava o jargão
caboclo com afinco e paixão. Na repartição, os pequenos empregados,
amanuenses e escreventes, tendo noticia desse seu estudo do idioma
tupiniquim, deram não sei sabe porque em chamal-o--Ubirajára. Certa
vez, o escrevente Azevedo, ao assignar o ponto, distrahido, sem reparar
quem lhe estava ás costas, disse em tom chocareiro: «você já vio que
hoje o Ubirajára esta tardando».

Quaresma era considerado no Arsenal: a sua idade, a sua illustração, a
modestia e honestidade de seu viver impunham-no ao respeito de todos.
Sentindo que o alcunha lhe era dirigido, não perdeu a dignidade, não
prorompeu em doestos e insultos. Endireitou-se, concertou o _pince-nez_,
levantou o dedo indicador no ar e respondeu:

--Sr. Azevedo, não seja leviano. Não queira levar ao ridiculo aquelles
que trabalham em silencio, para a grandeza e a emancipação da Patria.

Nesse dia, o major pouco conversou. Era costume seu, assim pela hora do
café, quando os empregados deixavam as bancas, transmittir aos
companheiros o fructo de seus estados, as descobertas que fazia, no seu
gabinete de trabalho, de riquezas nacionaes. Um dia era o petroleo que
lera em qualquer parte, como sendo encontrado na Bahia; outra vez, era
um novo exemplar de arvore de borracha que crescia no rio Pardo, em
Matto-Grosso; outra, era um sabio, uma notabilidade, cuja bisavó era
brasileira; e quando não tinha descoberta a trazer, entrava pela
chorographia, contava o curso dos rios, a sua extensão navegavel, os
melhoramentos insignificantes de que careciam para se prestarem a um
franco percurso da foz ás nascentes. Elle amava sobremodo os rios; as
montanhas lhe eram indifferentes. Pequenas talvez...

Os collegas ouviam-no respeitosos e ninguem, a não ser esse tal
Azevedo, se animava na sua frente a lhe fazer a menor objecção, a
avançar uma pilheria, um dito. Ao voltar as costas, porém, vingavam-se
da cacetada, cobrindo-o de troças: «Este Quaresma! que cacete! Pensa
que somos meninos de tico-tico... Arre! Não tem outra conversa».

E desse modo elle ia levando a vida, metade na repartição, sem ser
comprehendido, e a outra metade em casa, tambem sem ser comprehendido.
No dia em que o chamaram de Ubirajára, Quaresma ficou reservado,
taciturno, mudo, e só veiu a falar porque, quando lavavam, as mãos num
aposento proximo á secretaria e se preparavam para sahir, alguem
suspirando, disse: «Ah! Meu Deus! Quando poderei ir á Europa»! O
major não se conteve: levantou o olhar, concertou o _pince-nez_ e falou
fraternal e persuasivo: «Ingrato! Tens uma terra tão bella, tão rica,
e queres visitar a dos outros! Eu, se algum dia puder, hei de percorrer
a minha de principio ao fim!

O outro objectou-lhe que por aqui só havia febres e mosquitos; o major
contestou-lhe com estatisticas e até provou exuberantemente que o
Amazonas tinha um dos melhores climas da terra. Era um clima calumniado
pelos viciosos que de lá vinham doentes...

Era assim o major Polycarpo Quaresma que acabava de chegar á sua
residencia, ás 4 e 15 da tarde, sem erro de um minuto, como todas as
tardes, excepto aos domingos, exactamente, ao geito da apparição de um
astro ou de um eclypse.

No mais, era um homem como todos os outros, a não ser aquelles que têm
ambições politicas ou de fortuna, porque Quaresma, não as tinha no
minimo grau.

Sentado na cadeira de balanço, bem ao centro de sua bibliotheca, o
major abriu um livro e pôz-se a lel-o á espera do conviva. Era o velho
Rocha Pitta, o enthusiastico e gongorico Rocha Pitta da Historia da
America Portugueza. Quaresma estava lendo aquelle famoso periodo: «Em
nenhuma outra região se mostra o céo mais sereno, nem madruga mais
bella a aurora; o sol em nenhum outro hemispherio tem os raios mais
dourados...» mas não pôde ir ao fim. Batiam á porta. Foi abril-a em
pessoa.

--Tardei, major? perguntou o visitante.

--Não. Chegaste á hora.

Acabava de entrar em casa do major Quaresma o Sr. Ricardo Coração dos
Outros, homem celebre pela sua habilidade em cantar modinhas e tocar
violão. Em começo, a sua fama estivera limitada a um pequeno suburbio
da cidade, em cujos _saráos_ elle e seu violão figuravam como Paganini
e a sua rabeca em festas de Duques; mas, aos poucos, com o tempo, foi
tomando toda a extensão dos suburbios, crescendo, solidificando-se,
até ser considerada como cousa propria a elles. Não se julgue,
entretanto, que Ricardo fosse um cantor de modinhas ahi qualquer, um
capadocio. Não; Ricardo Coração dos Outros era um artista a
frequentar e a honrar as melhores familias do Meyer, Piedade e
Riachuelo. Rara era a noite em que não recebesse um convite. Fosse na
casa do Tenente Marques, do Dr. Bulhões ou do _seu_ Castro, a sua
presença era sempre requerida, instada e apreciada. O Dr. Bulhões,
até, tinha, pelo Ricardo uma admiração especial, um delirio, um
frenesi e, quando o trovador cantava, ficava em extase. Gosto muito de
canto, dizia o doutor no trem certa vez, mas só duas pessoas me enchem
as medidas: o Tamagno e o Ricardo. Esse doutor tinha uma grande
reputação nos suburbios, não como medico, pois que nem oleo de ricino
receitava, mas como entendido em legislação telegraphica, por ser
chefe de secção da Secretaria dos Telegraphos.

Dessa maneira, Ricardo Coração dos Outros gozava da estima geral da
alta sociedade suburbana. É uma alta sociedade muito especial o que só
é alta nos suburbios. Compõe-se em geral de funccionarios publicos, de
pequenos negociantes, de medicos com alguma clinica, de tenentes de
differentes milicias, nata essa que impa pelas ruas esburacadas
daquellas distantes regiões, assim como nas festas e nos bailes, com
mais força que a burguezia de Petropolis e Botafogo. Isto é só lá,
nos bailes, nas festas e nas ruas, onde se algum dos seus representantes
vê um typo mais ou menos, olha-o da cabeça aos pés, demoradamente,
assim como quem diz: apparece lá em casa que te dou um prato de comida.
Porque o orgulho da aristocracia suburbana está em ter todo o dia
jantar e almoço, muito feijão, muita carne secca, muito ensopado--ahi,
julga ella, e que está a pedra de toque da nobreza, da alta linha, da
distincção.

Fóra dos suburbios, na rua do Ouvidor, nos theatros, nas grandes festas
centraes, essa gente mingua, apaga-se, desapparece, chegando até as
suas mulheres e filhas a perder a belleza com que deslumbram, quasi
diariamente, os lindos cavalheiros dos interminaveis bailes diarios
daquellas redondezas.

Ricardo, depois de ser poeta e o cantor dessa curiosa aristocracia,
extravasou e passou á cidade, propriamente. A sua fama já chegava a S.
Christovão e em breve (elle o esperava) Botafogo convidal-o-ia, pois os
jornaes já falavam no seu nome e discutiam o alcance de sua obra e da
sua poetica...

Mas que vinha elle fazer ali, na casa de pessoa de propositos tão altos
e tão severos habitos? Não é difficil atinar. De certo, não vinha
auxiliar o major nos seus estudos de geologia, de poetica, de
mineralogia e historia brasileiras.

Como bem suppoz a vizinhança, o Coração dos Outros vinha ali tão
sómente ensinar o Major a cantar modinhas e a tocar violão. Nada mais,
e é simples.

De accôrdo com a sua paixão dominante, Quaresma estivera muito tempo a
meditar qual seria a expressão poetico-musical caracteristica da alma
nacional. Consultou historiadores, chronistas e philosophos e adquiriu
certeza que era a modinha acompanhada pelo violão. Seguro dessa
verdade, não teve duvidas: tratou de aprender o instrumento
genuinamente brasileiro: e entrar nos segredos da modinha. Estava nisso
tudo _a quo_, mas procurou saber quem era o primeiro executor e cantor
da cidade e tomou lições com elle. O seu fim era disciplinar a
modinha, e tirar della um forte motivo original de arte.

Ricardo vinha justamente dar-lhe lição, mas, antes disso, por convite
especial do discipulo, ia compartilhar o seu jantar; e fôra por isso
que o famoso trovador chegou mais cedo á casa do sub-secretario.

--Já sabe dar o _ré_ sustenido, major? perguntou Ricardo logo ao
sentar-se.

--Já.

--Vamos ver.

Dizendo isto, foi desencapotar o seu sagrado violão; mas não houve
tempo, D. Adelaide, a irmã de Quaresma, entrou e convidou-os a irem
jantar. A sopa já esfriava na mesa, que fossem!

--O Sr. Ricardo ha de nos desculpar, disse a velha senhora, a pobreza do
nosso jantar. Eu lhe quiz fazer um frango com _petit-pois_, mas
Polycarpo não deixou. Disse-me que esse tal _petit-pois_ é estrangeiro
e que eu o substituisse por guando. Onde é que se viu frango com
guando?

Coração dos Outros aventou que talvez fosse bom, seria uma novidade e
não fazia mal experimentar.

--É uma mania de seu amigo, Sr. Ricardo, esta de só querer cousas
nacionaes, e a gente tem que ingerir cada droga, chi!

--Qual, Adelaide, você tem certas ogerizas! A nossa terra, que tem todos
os climas do mundo, é capaz de produzir tudo que é necessario para o
estomago mais exigente. Você é que deu para implicar.

--Exemplo: a manteiga que fica logo rançosa.

--É porque é de leite, se fosse como essas estrangeiras ahi,
fabricadas com gorduras de esgotos, talvez não se estragasse... É
isto, Ricardo! Não querem nada da nossa terra...

--Em geral é assim, disse Ricardo.

--Mas é um erro... Não protegem as industrias nacionaes... Commigo
não ha disso: de tudo que ha nacional, eu não uso estrangeiro.
Visto-me com panno nacional, calço botas nacionaes e assim por diante.

Sentaram-se á mesa. Quaresma agarrou uma pequena garrafa de crystal e
serviu dous calices de paraty.

--É do programma nacional, fez a irmã, sorrindo.

--De certo, e é um magnifico aperitivo. Esses vermutes por ahi, drogas!
Isto é alcool puro, bom, de canna, não é de batatas ou milho...

Ricardo agarrou o calice com delicadeza e respeito, levou-o aos labios e
foi como se todo elle bebesse o licor nacional.

--Está bom, hein? indagou o major.

--Magnifico, fez Ricardo, estalando os labios.

--É de Angra. Agora tu vais ver que magnifico vinho do Rio Grande
temos... Qual Borgonha! Qual Bordeaux? Temos no Sul muito melhores...

E o jantar correu assim, nesse tom. Quaresma exaltando os productos
nacionaes: a banha, o toucinho e o arroz; a irmã fazia pequenas
objecções e Ricardo dizia: «é, é, não, ha duvida»--rolando nas
orbitas os olhos pequenos, franzindo a testa diminuta que se sumia no
cabello aspero, forçando muito a sua physionomia meuda e dura a
adquirir uma expressão sincera de delicadeza e satisfação.

Acabado o jantar foram ver o jardim. Era uma maravilha; não tinha nem
uma flôr... Certamente não se podia tomar por tal miseros beijos de
frade, palmas de Santa Rita, quaresmas luctulentas, manacás
melancolicos e outros bellos exemplares dos nossos campos e prados. Como
em tudo o mais, o Major era em jardinagem essencialmente nacional. Nada
de rosas, de chrysanthemos, de magnolias--flôres exoticas; ás nossas
terras tinham outras mais bellas, mais expressivas, mais olentes, como
aquellas que elle tinha ali.

Ricardo ainda uma vez concordou e os dous entraram na sala, quando o
crepusculo vinha de vagar, muito vagaroso e lento, como si fosse um
longo adeus saudoso do sol ao deixar a terra, pondo nas cousas a sua
poesia dolente e a sua deliquescencia.

Mal foi accesso o gaz, o mestre de violão empunhou o instrumento,
apertou as cravelhas, correu a escala, abaixando-se sobre elle como se o
quizesse beijar. Tirou alguns accordes, para experimentar; e dirigiu-se
ao discipulo, que já tinha o seu em posição:

--Vamos ver. Tire a escala, major.

Quaresma preparou os dedos, afinou a viola, mas não havia na sua
execução nem a firmeza, nem o dengue com que o mestre fazia a mesma
operação.

--Ohe, major, é assim.

E mostrava a posição do instrumento, indo do collo ao braço esquerdo
extendido, seguro levemente pelo direito; e em seguida accrescentou:

--Major, o violão é o instrumento da paixão. Preciza de peito para
falar... É preciso encostal-o, mas encostal-o com macieza e amor, como
se fosse a amada, a noiva, para que diga o que sentimos...

Diante do violão, Ricardo ficava loquaz, cheio de sentenças, todo elle
fremindo de paixão pelo instrumento desprezado.

A lição durou uns cincoenta minutos. O major sentiu-se cansado e pediu
que o mestre cantasse. Era a primeira vez que Quaresma lhe fazia esse
pedido; embora lisongeado, quiz a vaidade profissional que elle, a
principio, se negasse.

--Oh! Não tenho nada novo, uma composição minha.

D. Adelaide obtemperou então:

--Cante uma de outro.

--Oh! por Deus, minha senhora! Eu só canto as minhas. O
Bilac--conhecem?--quiz fazer-me uma modinha, eu não aceitei;
você não entende de violão, seu Bilac. A questão não está em
escrever uns versos certos que digam cousas bonitas; o essencial
é achar-se as palavras que o violão pede e deseja. Por exemplo:
se eu dissesse, como em começo quiz, n'_O Pé_, uma modinha minha:
_o teu pé é uma folha de trevo_--não ia com o violão. Querem
ver? E ensaiou em voz baixa, acompanhando pelo instrumento:
_o--teu--pé--é--uma--folha--de--tre--vo_.

--Vejam, continuou elle, como não dá. Agora reparem:
_o--teu--pé--é--uma--uma--ro--sa--de--myr--rha_. É outra cousa, não
acham?

--Não ha duvida, disse a irmã de Quaresma.

--Cante esta, convidou o major.

--Não, objectou Ricardo. Está velha, vou cantar a _Promessa_,
conhecem?

--Não, disseram os dous irmãos.

--Oh! Anda por ahi como as _Pombas_ do Raymundo.

--Cante lá, Sr. Ricardo, pediu D. Adelaide.

Ricardo Coração dos Outros por fim afinou ainda uma vez o violão e
começou em voz fraca:


     _Prometto pelo Santissimo Sacramento
     Que serei tua paixão_...


--Vão vendo, disse elle num intervallo, quanta imagem, quanta imagem!

E continuou. As janellas estavam abertas. Moças e rapazes começaram a
se amontoar na calçada para ouvir o menestrel. Sentindo que a rua se
interessava Coração dos Outros foi apurando a dicção, tomando um ar
feroz que elle suppunha ser de ternura e enthusiasmo; e, quando acabou,
as palmas soaram do lado de fora e uma moça entrou procurando D.
Adelaide.

--Senta-te Ismenia, disse ella.

--A demora é pouca.

Ricardo aprumou-se na cadeira, olhou um pouco moça e continuou a
dissertar sobre a modinha. Aproveitando uma pausa, a irmã de Quaresma
perguntou á moça:

--Então quando te casas?

Era a pergunta que se lhe fazia sempre. Ella então curvava do lado
direito a sua triste cabecinha, coroada de magnificos cabellos
castanhos, com tons de ouro, e respondia.

--Não sei... Cavalcanti forma-se no fim do anno e então marcaremos.

Isto era dito arrastado, com uma preguiça de impressionar.

Não era feia a menina, a filha do General, vizinho de Quaresma. Era
até bem sympathica, com a sua physionomia de pequenos traços mal
desenhados e cobertos de umas tintas de bondade.

Aquelle seu noivado durava ha annos; o noivo, o tal Cavalcanti, estudava
para dentista, um curso de dous annos, mas que elle arrastava ha quatro,
e Ismenia tinha sempre que responder á famosa pergunta:--«Então
quando se casa»?--«Não sei... Cavalcanti forma-se para o anno e...»

Intimamente ella não se incommodava. Na vida, para ella, só havia uma
cousa importante: casar-se; mas pressa não tinha, nada nella a pedia.
Já agarrara um noivo, o resto era questão de tempo...

Após responder a D. Adelaide, explicou o motivo da visita.

Viera, em nome do pai, convidar Ricardo Coração dos Outros a cantar em
casa della.

--Papai, disse D. Ismenia, gosta muito de modinhas... do Norte; a
senhora sabe, D. Adelaide, que gente do Norte aprecia muito. Venham.

E para lá foram.



II

REFORMAS RADICAES


Havia bem dez dias que o major Quaresma não sahia do casa. Na sua
meiga, e socegada casa de S. Christovão, enchia os dias da fórma mais
util e agradavel ás necessidades do seu espirito, e do seu
temperamento. De manhã, depois da _toilette_, e do café, sentava-se no
divan da sala principal e lia os jornaes. Lia diversos, porque sempre
esperava encontrar num ou noutro uma noticia curiosa, a suggestão de
uma idéa util á sua cara patria. Os seus habitos burocraticos
faziam-no almoçar cedo; e, embora estivesse de férias, para os não
perder, continuava a tomar a primeira refeição de garfo ás nove e
meia da manhã.

Acabado o almoço, dava umas voltas pela chacara, chacara em que
predominavam as fruteiras nacionaes, recebendo a pitanga e o camboim os
mais cuidadosos tratamentos aconselhados pela pomologia, como se fossem
bem cerejas ou figos.

O passeio era demorado e philosophico. Conversando com o preto
Anastacio, que lhe servia ha trinta annos, sobre cousas antigas--o
casamento das princezas, a quebra do Souto e outras--o Major continuava
com o pensamento preso nas problemas que o preoccupavam ultimamente.
Após uma hora ou menos, voltara á bibliotheca e mergulhava nas
revistas do Instituto Historico, no Fernão Cardim, nas cartas de
Nobrega, nos annaes da Bibliotheca, no von den Stein e tomava notas
sobre notas, guardando-as numa pequena pasta ao lado. Estudava os
indios. Não fica bem dizer estudava, porque já o fizera ha tempos,
não só no tocante á lingua, que já quasi falara, como tambem nos
simples aspectos ethnographicos e anthropologicos. Recordava (é melhor
dizer assim), affirmava certas noções dos seus estudos anteriores,
visto estar organizando um systema de ceremonias e festas que se
baseasse nos costumes dos nossos selvicolas e abrangesse todas as
relações sociaes.

Para bem se comprehender o motivo disso, é precizo não esquecer que o
Major, depois de trinta armas de meditação patriotica, de estudos e
reflexões, chegava agora ao periodo da fructificação. A convicção
que sempre tivera de ser o Brasil o primeiro paiz do mundo e o seu
grande amor á patria, eram agora activos e impelliram-no a grandes
commettimemtos. Elle sentia dentro de si impulsos imperiosos de agir, de
obrar e de concretizar suas idéas. Eram pequenos melhoramentos, simples
toques, porque em si mesma (era a sua opinião), a grande patria do
Cruzeiro só precizava de tempo para ser superior á Inglaterra.

Tinha todos os climas, todos os fructos, todos os mineraes e animaes
uteis, as melhores terras de cultura, a gente mais valente, mais
hospitaleira, mais intelligente e mais doce do mundo--o que precizava
mais? Tempo e um pouco de originalidade. Portanto, duvidas não
fluctuavam mais no seu espirito, mas no que se referia á originalidade
de costumes e usanças, não se tinham ellas dissipado, antes se
transformaram em certeza após tomar parte na folia do _Tangolomango_,
numa festa que o general dera em casa.

Caso foi que a visita do Ricardo e do seu violão ao bravo militar veiu
despertar no general e na familia um gosto pelas festanças, cantigas e
habitos genuinamente nacionaes como se diz por ahi. Houve em todos um
desejo de sentir, de sonhar, de poetar á maneira popular dos velhos
tempos. Albernaz, o general, lembrava-se de ter visto taes cerimonias na
sua infancia: D. Maricota, sua mulher, até ainda se lembrava de uns
versos de Reis; e os seus filhos, cinco moças e um rapaz, viram na
cousa um pretexto de festas e, portanto, applaudiram o enthusiasmo dos
progenitores. A modinha era pouco; os seus espiritos pediam cousa mais
plebea, mais caracteristica e extravagante.

Quaresma ficou encantado, quando Albernaz falou em organizar uma
chegança, á moda do Norte, por occasião do anniversario de sua
praça. Em casa do general era assim: qualquer anniversario tinha a sua
festa, de fórma que havia bem umas trinta por anno, não contando
domingos, dias feriados e santificados em que se dansava tambem.

O major pensara até ali pouco nessas cousas de festas e dansas
tradicionaes, entretanto viu logo a significação altamente patriotica
do intento. Approvou e animou o vizinho. Mas quem havia de ensaiar, de
dar os versos e a musica? Alguem lembrou a tia Maria Rita, uma preta
velha, que morava em Bemfica, antiga lavadeira da familia Albernaz. Lá
foram os dous, o general Albernaz e o major Quaresma, alegres,
apressados, por uma linda e crystallina tarde de Abril.

O general nada tinha de marcial, nem mesmo o uniforme que talvez não
posuisse. Durante toda a sua carreira militar, não viu uma unica
batalha, não tivera um commando, nada fizera que tivesse relação com
a sua profissão e o seu curso de artilheiro. Fôra sempre ajudante de
ordens, assistente, encarregado disso ou daquillo, escripturario,
almoxarife, e era secretario do Conselho Supremo Militar, quando, se
reformou em general. Os seus habitos eram de um bom chefe de secção e
a sua intelligencia não era muito differente dos seus habitos. Nada
entendia de guerras, de estrategia, de tactica ou de historia militar; a
sua sabedoria a tal respeito estava reduzida ás batalhas do Paraguay,
para elle a maior e a mais extraordinaria guerra de todos os tempos.

O altisonante titulo de general, que lembrava cousas sobrehumanas dos
Cesares, dos Tuxennes e dos Gustavos Adolphos, ficava mal naquelle homem
placido, mediocre, bonachão, cuja unica preoccupação era casar as
cinco filhas e arranjar _pistolões_ para fazer passar o filho nos
exames do Collegio Militar. Comtudo, não era conveniente que se
duvidasse das suas aptidões guerreiras. Elle mesmo, percebendo o seu ar
muito civil, de onde em onde, contava um episodio de guerra, uma
anedocta militar. «Foi em Lommas Valentinas, dizia elle»... Se alguem
perguntava: «O general assistiu a batalha»? Elle respondia logo:
«Não pude. Adoeci e vim para o Brasil, nas vesperas. Mas soube pelo
Camisão, pelo Venancio que a cousa esteve preta».

O bonde que os levava até á velha Maria Rita, percorria um dos trechos
mais interessantes da cidade. Ia pelo Pedregulho, uma velha porta da
cidade, antigo termino de um picadão que ia ter a Minas, se esgalhava
para S. Paulo e abria communicações com o Curato de Santa Cruz.

Por ahi em costas de bestas vieram ter ao Rio o ouro e o diamante de
Minas e ainda ultimamente os chamados generos do paiz. Não havia ainda
cem annos que as carruagens d'El Rey D. João VI, pesadas como naus, a
balouçarem-se sobre as quatro rodas muito separadas, passavam por ali
para irem ter ao longiquo Santa Cruz. Não se póde crer que a cousa
fosse lá muito imponente; a Côrte andava em apuros de dinheiro e o rei
era relaxado. Não obstante os soldados remendados, tristemente montados
em _pangarés_ desanimados, o prestito devia ter a sua grandeza, não
por elle mesmo, mas pelas humilhantes marcas de respeito que todos
tinham que dar á sua lamentavel majestade.

Entre nós tudo é inconsistente, provisorio, não dura. Não havia ali
nada que lembrasse esse passado. As casas velhas, com grandes janellas,
quasi quadradas, e vidraças de pequenos vidros eram de ha bem poucos
annos, menos de cincoenta.

Quaresma e Albernaz atravessaram tudo aquillo sem reminiscencias e foram
até ao ponto. Antes perlustraram a zona do turfe, uma pequena porção
da cidade onde se amontoam cocheiras e coudelarias de animaes e
corridas, tendo grandes ferraduras, cabeças de cavallos, panoplias de
chicotes e outros emblemas hippicos, nos pilares dos portões, nas
almofadas das portas, por toda parte onde taes distinctivos fiquem bem e
dêm na vista.

A casa da velha preta ficava além do ponto, para as bandas da estação
da estrada de ferro Leopoldina. Lá foram ter. Passaram pela estação.
Sobre um largo terreiro, negro de moinha de carvão de pedra, médas de
lenha e immensas tulhas de saccos de carvão vegetal se accumulavam;
mais adiante um deposito de locomotivas e sobre os trilhos algumas
manobravam e outras arfavam sob pressão.

Apanharam afinal o carreiro onde ficava a casa da Maria Rita. O tempo
estivera secco e por isso se podia andar por elle. Para além do
caminho, extendia-se a vasta região de mangues, uma zona immensa,
triste e feia, que vai até ao fundo da bahia e, no horizonte, morre ao
sopé das montanhas azues de Petropolis. Chegaram á casa da velha. Era
baixa, caiada e coberta com as pesadas telhas portuguezas. Ficava um
pouco afastada da estrada. Á direita havia um monturo: restos de
cozinha, trapos, conchas de mariscos, pedaços de louça caseira--um
sambaqui a fazer-se para gaudio de um archeologo de futuro remoto: á
esquerda, crescia um mamoeiro e bem junto á cerca, no mesmo lado, havia
um pé de arruda. Bateram. Uma pretinha moça appareceu na janella
aberta.

--Que desejam?

Disseram o que queriam e approximaram-se. A moça gritou para o interior
da casa:

--Vovó estão ahi dous _moços_ que querem falar com a senhora. Entrem,
façam o favor--disse ella depois, dirigindo-se ao General e ao seu
companheiro.

A sala era pequena e de telha vã. Pelas paredes, velhos chromos de
folinhas, registros de Santos, recortes de illustrações de jornaes
baralhavam-se e subiam por ellas acima até dous terços da altura. Ao
lado de uma Nossa Senhora da Penha, havia um retrato de Victor Emmanuel
com enormes bigodes em desordem; um chromo sentimental de folhinha--uma
cabeça de mulher em posição de sonho--parecia olhar um S. João
Baptista ao lado. No alto da porta que levava ao interior da casa, uma
lamparina, numa cantoneira, enchia de fuligem a Conceição de louça.

Não tardou vir a velha. Entrou em camisa de bicos de rendas, mostrando
o peito descamado, enfeitado com um collar de missangas de duas voltas.
Capengava de um pé e parecia querer ajudar a marcha, com a mão
esquerda pousada na perna correspondente.

--Boas tardes, tia Maria Rita disse o General.

Ella respondeu, mas não deu mostras de ter reconhecido quem lhe falava.
O General atalhou:

--Não me conhece mais? Sou o General, o Coronel Albernaz.

--Ah! É sô coroné!... Ha quanto tempo! Como está nhã Maricota?

--Vai bem.

--Minha velha, nós queriamos que você nos ensinasse umas cantigas.

--Quem sou eu, yôyô!

--Ora! Vamos, tia Maria Rita... você não perde nada... você não sabe
o _Bumba meu boi_?

--Quá, yôyô, já mi esqueceu.

--E o _Boi espacio_?

--Cousa véia, do tempo do captiveiro--p'ra que sô coroné qué sabê
isso?

Ella fallava arrastando as syllabas, com um doce sorriso e um olhar
vago.

--É para uma festa... Qual é a que você sabe?

A neta que até ali ouvia calada a conversa animou-se a dizer alguma
cousa, deixando perceber rapidamente a fiada reluzente de seus dentes
immaculados:

--Vovó já não se lembra.

O General, que a velha chamava Coronel, por tel-o conhecido nesse posto,
não attendeu a observação da moça e insistiu:

--Qual esquecida, o que! Deve saber ainda alguma cousa, não é, titia?

--Só sei o bicho «Tutu», disse a velha.

--Cante lá!

--Yôyô sabe! Não sabe? quá, sabe!

--Não sei, cante. Se eu soubesse não vinha aqui. Pergunte aqui ao meu
amigo, o Major Polycarpo, se sei.

Quaresma fez com a cabeça signal affirmativo e a preta velha, talvez
com grandes saudades do tempo em que era escrava e ama de alguma grande
casa, farta e rica, ergueu a cabeça, como para melhor recordar-se, e
entôou:


     «É vêm tutu'
      Por detrás do murundu
      P'ra cumê sinhosinho
      C'um bucado de angu'».


--Ora! fez o General com enfado, isso é cousa antiga de emballar
crianças. Você não sabe outra?

--Não, sinhô. Já mi esqueceu.

Os dous sahiram tristes. Quaresma vinha desanimado. Como é que o povo
não guardava as tradições de trinta annos passados? Com que rapidez
morriam assim na sua lembrança os seus folgares e as suas canções?
Era bem um signal de fraqueza, uma demonstração de inferioridade
diante daquelles povos tenazes que os guardam durante seculos!
Tornava-se preciso reagir, desenvolver o culto das tradições,
mantel-as sempre vivazes nas memorias e nos costumes...

Albernaz vinha contrariado. Contava arranjar um numero bom para a festa
que ia dar, e escapava-lhe. Era quasi a esperança de casamento de uma
das quatro filhas que se ia, das quatro, porque uma dellas já estava
garantida, graças a Deus!

O crepusculo chegava e elles entraram em casa mergulhados na melancolia
da hora.

A decepção, porém, demorou dias. Cavalcanti, o noivo de Ismenia,
informou que nas immediações morava um literato, teimoso cultivador
dos contos e canções populares do Brasil. Foram a elle. Era um velho
poeta que teve sua fama ahi pelos setenta e tantos, homem doce e ingenuo
que se deixara esquecer em vida, como poeta, e agora se entretinha em
publicar collecções que ninguem lia, de contos, canções, adagios e
dictados populares.

Foi grande a sua alegria quando soube o objecta da visita daquelles
senhores. Quaresma estava animado e falou com calor; e Albernaz tambem,
porque via na sua festa,--com um numero de _folk-lore_, meio de chamar a
attenção sobre sua casa, attrahir gente e... casar as filhas.

A sala em que foram recebidos, era ampla; mas estava tão cheia de
mesas, estantes, pejadas de livros, pastas, latas, que mal se podia
mover nella. Numa lata lia-se: Santa Anna dos Tócos; numa pasta: S.
Bonifácio do Cabresto.

--Os Srs. não sabem, disse o velho poeta, que riqueza é a nossa poesia
popular! que surprezas ella reserva!... Ainda ha dias recebi uma carta
de Urubu, de Baixo com uma linda canção. Querem ver?

O colleccionador revolveu pastas e afinal trouxe de lá um papel onde
leu:


     _Se Deus enxergasse pobre
      Não me deixaria assim:
      Dava no coração della
      Um logarsinho p'ra mim._

     _O amor que tenho por ella
      Já não cabe no meu peito;
      Sae-me pelos olhos afóra
      Vôa ás nuvens direito._


--Não é bonito?... Muito! Se os Srs. conhecessem então o cyclo do
macaco, a collecção de historias que o povo tem sobre o simio?... Oh!
Uma verdadeira epopéa comica!

Quaresma olhava para o velho poeta com o espanto satisfeito de algum que
encontrou um semelhante no deserto; e Albernaz, um momento contagiado
pela paixão do foklorista, tinha mais intelligencia no olhar com que o
encarava.

O velho poeta guardou, a canção de Urubu de Baixo, numa pasta; e foi
logo á outra, donde tirou varias folhas de papel. Veio até junto aos
dous visitantes e disse-lhes:

--Vou ler aos senhores uma pequena historia do macaco, das muitas que o
nosso povo conta... Só eu já tenho perto de quarenta e pretendo
publical-as, sob o titulo _Historias do Mestre Simão_.

E, sem perguntar se os incommodava ou se estavam dispostos a ouvir,
começou:

«_O macaco perante o juiz de direito_. Andava um bando de macacos em
troça, pulando de arvore em arvore, nas bordas de uma gróta. Eis
senão quando, um delles vê no fundo uma onça que lá caira. Os
macacos se enternecem e resolvem salval-a. Para isso, arrancaram cipós,
emendaram-nos bem, amarraram a corda assim feita á cintura de cada um
delles e atiraram uma das pontas á onça. Com o esforço reunido de
todos, conseguiram içal-a e logo se desamarraram, fugindo. Um delles,
porém, não o pôde fazer a tempo e a onça segurou-o immediatamente.

--Compadre Macaco, disse ella, tenha paciencia. Estou com fome e você
vai fazer-me o favor de deixar-se comer.

O macaco rogou, instou, chorou; mas a onça parecia inflexivel. Simão
então lembrou que a demanda fosse resolvida pelo juiz de direito. Foram
a elle; o macaco sempre agarrado pela onça. É juiz de direito entre os
animaes, o jaboty, cujas audiencias, são dadas á borda dos rios,
collocando-se elle em cima de uma pedra. Os dous chegaram e o macaco
expôz as suas razões.

O jaboty ouviu-os e no fim ordenou;

--Bata palmas.

Apezar de seguro pela onça, o macaco pôde assim mesmo bater palmas.
Chegou a vez da onça, que tambem expôz as suas razões e motivos. O
juiz, como da primeira vez, determinou ao felino:

--Bata palmas.

A onça não teve remedio senão largar o macaco, que se escapou, e
tambem o juiz, atirando-se n'agua».

Acabando a leitura, o velho dirigiu-se aos dous:

--Não acham interessante? Muito! Ha no nosso povo muita invenção,
muita creação, verdadeiro material para _fabliaux_ interessantes... No
dia em que apparecer um literato de genio que o fixe numa forma
immortal... Ah! Então!

Dizendo isto, brincava nas suas faces um demorado sorriso de
satisfação e nos seus olhos abrolhavam duas lagrimas furtivas.

--Agora, continuou elle, depois de passada a emoção--vamos ao que
serve. _O boi espacio_ ou o _Bumba meu boi_ ainda é muita cousa para
vocês... É melhor irmos de vagar, começar pelo mais facil... Está
ahi o _Tangolomango_, conhecem?

--Não, disseram os dous.

--É divertido. Arranjem dez crianças, uma mascara de velho, uma roupa
estrambolica para um dos Srs. que eu ensaio.

O dia chegou. A casa do General estava cheia. Cavalcanti viera; e elle e
a noiva, á parte, no vão de uma janella, pareciam ser os unicos que
não tinham interesse pela folia. Elle, falando muito, cheio de
trejeitos no olhar; ella, meio fria, deitando de quando em quando, para
o noivo, um olhar de gratidão.

Quaresma, foz o _Tangolomango_, isto é, vestiu uma velha sobrecasaca do
General, pôz uma immensa mascara de velho, agarrou-se a um bordão
curvo, em forma de baculo, e entrou na sala. As dez crianças cantaram
em côro:


    _Uma mãe teve dez filhos
     Todos os dez dentro de um pote:
     Deu o Tangolomango nelle
     Não ficaram senão nove._


Por ahi, o major avançava, batia com o baculo no assoalho, fazia: hu!
hu! hu! as crianças fugiam, afinal elle agarrava uma e levava para
dentro. Assim ia executando com grande alegria da sala, quando, pela
quinta estrophe, lhe faltou o ar, lhe ficou a vista, escura e cahiu.
Tiraram-lhe a mascara, deram-lhe algumas sacudidelas e Quaresma voltou a
si.

O accidente, entretanto, não lhe deu nenhum desgosto pelo _folk-lore_.
Comprou livros, leu todas as publicações a respeito, mas a decepção
lhe veiu ao fim de algumas semanas de estudo.

Quasi todas as tradições e canções eram estrangeiras; o proprio
_Tangolomango_ o era tambem. Tornava-se, portanto, precizo arranjar
alguma cousa propria, original, uma creação da nossa terra e dos
nossos ares.

Essa idéa levou-o a estudar os costumes tupinambás; e, como uma idéa
traz outra, logo ampliou o seu proposito e eis a razão porque estava
organizando um codigo de relações, de cumprimentos, de cerimonias
domesticas e festas, calcado nos preceitos tupys.

Desde dez dias que se entregava a essa ardua tarefa, quando (era
domingo) lhe bateram á porta, em meio de seu trabalho. Abriu, mas não
apertou a mão. Desandou a chorar, a berrar, a arrancar os cabellos,
como se tivesse perdido a mulher ou um filho. A irmã correu lá de
dentro, o Anastacio tambem, e o compadre e a filha, pois eram elles,
ficaram estupefactos no limiar da porta.

--Mas que é isso, compadre?

--Que é isso, Polycarpo?

--Mas, meu padrinho...

Elle ainda chorou um pouco. Enxugou as lagrimas e, depois, explicou com
a maior naturalidade:

--Eis ahi! Vocês não têm a minima noção das cousas da nossa terra.
Queriam que eu apertasse a mão... Isto não é nosso! Nosso cumprimento
é chorar quando encontramos os amigos, era assim que faziam os
tupinambás.

O seu compadre Vicente, a filha e D. Adelaide entreolharam-se, sem saber
o que dizer. O homem estaria doido? Que extravagancia!

--Mas, Sr. Polycarpo, disse-lhe o compadre, é possivel que isto seja
muito brasileiro, mas é bem triste, compadre.

--De certo, padrinho, accrescentou a moça com vivacidade; parece até
agouro...

Este seu compadre era italiano de nascimento. A historia das suas
relações vale a pena contar. Quitandeiro ambulante, fôra fornecedor
da casa de Quaresma ha vinte e tantos annos. O Major já tinha as suas
idéas patrioticas, mas não desdenhava conversar com o quitandeiro e
até gostava de vel-o suado, curvado ao peso dos cestos, com duas rosas
vermelhas nas faces muito brancas de europeu recem-chegado. Mas um bello
dia, ia Quaresma pelo largo do Paço, muito distrahido, a pensar nas
maravilhas architectonicas do chafariz do mestre Valentim, quando veio a
encontrar-se com o mercador ambulante. Falou-lhe com aquella
simplicidade d'alma que era bem sua, e notou que o rapaz tinha alguma
preoccupação séria. Não só de onde em onde, soltava exclamações
sem ligação com a conversa actual, como tambem, cerrava os labios,
rilhava os dentes e crispava raivosamente os punhos. Interrogou-o e veio
a saber que tivera uma questão de dinheiro com um seu collega, estando
disposto a matal-o, pois perdera o credito e em breve estaria na
miseria. Havia na sua affirmação uma tal energia e um grande e
extranho accento de ferocidade, que fizeram empregar o Major toda a sua
doçura e persuasão para dissuadil-o do proposito. E não ficou nisto
só: emprestou-lhe tambem dinheiro. Vicente Coleoni poz uma quitanda,
ganhou uns contos de réis, fez-se logo empreiteiro, enriqueceu, casou,
veiu a ter aquella filha, que foi levada á pia pelo seu bemfeitor.
Inutil é dizer que Quaresma não notou a contradicção entre as suas
idéas patrioticas e o seu acto.

É verdade que elle não as tinha ainda muito firmes, mas já fluctuavam
na sua cabeça e reagiam sobre a sua consciencia como tenues desejos,
veleidades de rapaz de pouco mais de vinte annos, veleidades que não
tardariam tomar consistencia, e só esperavam os annos para desabrochar
em actos.

Fora, pois, ao seu compadre Vicente e á sua afilhada Olga que elle
recebera com o mais legitimo ceremonial guaytacaz, e, se não envergara
o traje de rigor de tão interessante povo, motivo não foi o não
tel-o. Estava até á mão, mas faltava-lhe tempo para despir-se.

--Lê-se muito, padrinho? perguntou-lhe a afilhada, deitando sobre elle
os seus olhos muito luminosos.

Havia entre os dous uma grande affeição. Quaresma era um tanto
reservado e o vexame de mostrar os seus sentimentos faziam-no economico
nas demonstrações affectuosas. Adivinhava-se, entretanto, que a moça
occupava-lhe no coração o logar dos filhos que não tivera nem teria
jamais. A menina vivaz, habituada a falar alto e desembaraçadamente,
não escondia a sua affeição tanto mais que sentia confusamente nelle
alguma cousa da superior, uma ancia de idéal, uma tenacidade em seguir
um sonho, uma idéa, um vôo emfim para as altas regiões do espirito
que ella não estava habituada a ver em ninguem do mundo que
frequentava. Essa admiração não lhe vinha da educação. Recebera a
commum ás moças de seu nascimento. Vinha de um pendôr proprio, talvez
das proximidades européas do seu nascimento, que a fizeram um pouco
differente das nossas moças.

Fora com um olhar luminoso e prescrutador que ella perguntara ao
padrinho.

--Então padrinho, lê-se muito?

--Muito, minha filha. Imagina que medito grandes obras, uma reforma, a
emancipação de um povo.

Vicente fôra com D. Adelaide para o interior da casa e os dous
conversavam a sós na sala dos livros. A afilhada notou que Quaresma
tinha alguma cousa de mais. Falava agora com tanta segurança, elle que
antigamente era tão modesto, hesitante mesmo no falar--que diabo! Não,
não era possivel... Mas, quem sabe? E que singular alegria havia nos
seus olhos--uma alegria de mathematico que resolveu um problema, de
inventor feliz!

--Não se vá metter em alguma conspiração, disse a moça gracejando.

--Não te assustes por isso. A cousa vai naturalmente, não é preciso
violencias...

Nisto Ricardo Coração dos Outros entrou com o seu longo e rabudo
fraque de sarja e o seu violão encapotado em camurça. O Major fez as
apresentações.

--Já o conhecia de nome, Sr. Ricardo, disse Olga.

Coração dos Outros encheu-se de um alviçareiro contentamento. A sua
physionomia minguada dilatou-se ao brilho do seu olhar satisfeito; e a
sua cutis que era reseccada e de um tom de velho marmore, como que ficou
macia e joven. Aquella moça parecia rica, era fina e bonita,
conhecia-o--que satisfação! Elle que era sempre um tanto parvo e
atrapalhado, quando se encontrava diante das moças, fossem de que
condição fossem, animava-se, soltava a lingua, amaciava a voz e ficava
numeroso e eloquente.

--Leu então os meus versos, não é, minha senhora?

--Não tive esse prazer, mas li, ha mezes, uma apreciação sobre um
trabalho seu.

--No «Tempo», não foi?

--Foi.

--Muito injusta! accrescentou Ricardo. Todos os criticos se atêm a essa
questão de metrificação. Dizem que os meus versos não são versos...
São, sim; mas são versos para violão. V. Ex. sabe que os versos para
musica têm alguma cousa de differente dos communs, não é? Não ha,
portanto, nada a admirar que os meus versos, feitos para violão, sigam
outra metrica e outro systema, não acha?

--De certo, disse a moça. Mas parece-me que o Sr. faz versos para a
musica e não musica para os versos.

E ella sorriu devagar, enigmaticamente, deixando parado o seu olhar
luminoso, emquanto Ricardo, desconfiado, lhe sondava a intenção com os
seus olhinhos vivos e meudos de camondongo.

Quaresma, que até ali se conservava calado, interveio:

--O Ricardo, Olga, é um artista... Tenta e trabalha para levantar o
violão.

--Eu sei, padrinho. Eu sei...

--Entre nós, minha senhora, falou Coração dos Outros, não se levam a
serio essas tentativas nacionaes mas, na Europa, todos respeitam e
auxiliam... Como é que se chama, major, aquelle poeta que escreveu em
francez popular?

--Mistral, acudiu Quaresma, mas não é francez popular; é o
provençal, uma verdadeira lingua.

--Sim, é isso, confirmou Ricardo. Pois o Mistral não é considerado,
respeitado? Eu, no tocante ao violão, estou fazendo o mesmo.

Olhou triumphante para um e outro circumstante: e Olga dirigindo-se a
elle, disse:

--Continue na tentativa, Sr. Ricardo, que é digno de louvor.

--Obrigado. Fique certa, minha senhora, que o violão é um bello
instrumento e tem grandes difficuldades. Por exemplo...

--Qual! interrompeu Quaresma abruptamente. Ha outros mais difficeis.

--O piano? perguntou Ricardo.

--Que piano! O maracá, a inubia.

--Não conheço.

--Não conheces? É boa! Os instrumentos mais nacionaes possiveis, os
unicos que o são verdadeiramente; instrumentos dos nossos antepassados,
daquella gente valente que se bateu e ainda se bate pela posse desta
linda terra. Os caboclos!

--Instrumento de caboclo, ora! disse Ricardo.

--De caboclo! Que é que tem? O Lery diz que são muito sonoros e
agradaveis de ouvir... Se é por ser de caboclo, o violão tambem não
vale nada--é um instrumento do capadocio.

--De capadocio, major! Não diga isso...

E os dous ainda discutiram acaloradamente diante da moça, surpreza,
espantada, sem atinar, som explicação para aquella inopinada
transformação de genio do seu padrinho, até ali tão socegado e tão
calmo.



III

A NOTICIA DO GENELICIO


--Então quando se casa, D. Ismenia?

--Em Março. Cavalcanti já está formado e...

Afinal a filha do General pôde responder com segurança á pergunta que
se lhe vinha fazendo ha quasi cinco annos. O noivo finalmente encontrara
o fim do curso de dentista e marcara o casamento para dahi a tres mezes.
A alegria foi grande na familia; e, como em tal caso, uma alegria não
podia passar sem um baile, uma festa foi annunciada para o sabbado que
se seguia ao pedido da pragmatica.

As irmãs da noiva, Quinota, Zizi, Lalá e Vivi, estavam mais contentes
que a irmã nubente. Parecia que ella lhes ia deixar o caminho
desembaraçada, e fôra a irmã quem até ali tinha impedido que se
casassem.

Noiva havia quasi cinco annos, Ismenia já se sentia meio casada. Esse
sentimento junto á sua natureza pobre fel-a não sentir um pouco mais
de alegria. Ficou no mesmo. Casar, para ella, pão era negocio de
paixão, nem se inseria no sentimento ou nos sentidos: era uma idéa,
uma pura idéa. Aquella sua intelligencia rudimentar tinha separado da
idéa de casar o amor, o prazer dos sentidos, uma tal ou qual liberdade,
a maternidade, até o noivo. Desde menina, ouvia a mamãe dizer:
«Aprenda a fazer isso, porque quando você se casar»... Ou senão:
«Você preciza aprender a pregar botões, porque quando você se
casar...»

A todo instante e a toda hora, lá vinha aquelle--«porque, quando você
se casar...»--e a menina foi se convencendo de que toda a existencia
só tendia para o casamento. A instrucção, as satisfações intimas, a
alegria, tudo isso era inutil; a vida se resumia numa cousa: casar.

De resto, não era só dentro do sua familia que ella encontrava aquella
preoccupação. No collegio, na rua, em casa das familias conhecidas,
só se falava em casar. «Sabe, D. Maricota, a Lili casou-se; não fez
grande negocio, pois parece que o noivo não é lá grande cousa»; ou
então: «A Zezé está doida para arranjar casamento mas é tão feia,
meu Deus!...»

A vida, o mundo, a variedade intensa dos sentimentos, das idéas, o
nosso proprio direito á felicidade, foram parecendo ninharias para
aquelle cerebrozimho; e, de tal forma casar-se se lhe representou cousa
importante, uma especie de dever, que não se casar, ficar solteira,
_tia_, parecia-lhe um crime, uma vergonha.

De natureza muito pobre, sem capacidade para sentir qualquer cousa
profunda e intensamente, sem quantidade emocional para a paixão ou para
um grande afecto, na sua intelligencia a idéa de casar-se incrustou-se
teimosamente como uma obsessão.

Ella não era feia; amorenada, com os seus traços acanhados, o
narizinho mal feito, mas galante, não muito baixa nem muito magra e a
sua apparencia de bondade passiva, de indolencia de corpo, de idéas e de
sentidos era até um bom typo das meninas a que os namorados
chamam--_bonitinhas_. O seu traço de belleza dominante, porém, eram os
seus cabellos: uns bastos cabellos castanhos, com tons de ouro, sedosos
até ao olhar.

Aos dezenove annos arranjou namoro com o Cavalcanti, e á fraqueza de
sua vontade e ao temor de não encontrar marido não foi estranha a
facilidade com que o futuro dentista a conquistou.

O pai fez má cara. Elle andava sempre ao par dos namoros das filhas:
«Diga-me sempre, Maricota--dizia elle--quem são. Olho vivo!...» É
melhor prevenir que curar... Póde ser um valdevinos e...» Sabendo que
o pretendente á Ismenia era um dentista, não gostou muito. Que é um
dentista? perguntava elle de si para si. Um cidadão semi-formado, uma
especie de barbeiro. Preferia um official, tinha montepio e meio soldo;
mas a mulher convenceu-o de que os dentistas ganham muito, e elle
accedeu.

Começou então Cavalcanti a frequentar a casa na qualidade de noivo
_paisano_ isto é, que não pediu, não é ainda _official_.

No fim do primeiro anno, tendo noticia das difficuldades com que o
futuro genro lutava para acabar os estudos, o General foi generosamente
em seu soccorro. Pagou-lhe taxas de matriculas, livros e outras cousas.
Não era raro que após uma longa conversa com a filha, D. Maricota
viesse ao marido e dissesse: «Chico, arranja-me vinte mil réis que o
Cavalcanti precisa comprar uma Anatomia».

O General era leal, bom e generoso; a não ser a sua pretenção
marcial, não havia no seu caracter a minima falha. Demais, aquella
necessidade de casar as filhas ainda o faziam melhor quando se tratava
dos interesses dellas.

Elle ouvia a mulher, coçava a cabeça e dava o dinheiro; e até para
evitar despezas ao futuro genro, convidou-o a jantar em casa todo o dia;
e assim o namoro foi correndo até ali.

Enfim--dizia Albernaz á mulher, na noite do pedido, quando já
recolhidos--a cousa vai acabar. Felizmente, respondia-lhe D. Maricota,
vamos descontar esta lettra.

A satisfação resignada do General era porém, falsa; ao contrario:
elle estava radiante. Na rua, se encontrava um camarada, no primeiro
momento azado, lá dizia elle:

--É um inferno, esta vida! imagina tu, Castro, que ainda por cima tenho
que casar uma filha!

Ao que Castro interrogava:

--Qual dellas?

--A Ismenia, a segunda, respondia Albernaz e logo accrescentava: tu é
que és feliz: só tiveste filhos.

--Ah! meu amigo! falava o outro cheio de malicia, aprendi a receita.
Porque não fizeste o mesmo?

Despedindo-se, o velho Albernaz corria aos armazens, ás lojas de
louça, comprava mais pratos, mais compoteiras, um centro de mesa,
porque a festa devia ser imponente e ter um ar de abundancia e riqueza
que traduzisse o seu grande contentamento.

Na manhã do dia da festa commemorativa do pedido, D. Maricota amanheceu
cantando. Era raro que o fizesse: mas nos dias de grande alegria, ella
cantarolava uma velha aria, uma cousa do seu tempo de moça e as filhas
que sentiam nisto signal certo de alegria corriam a ella, pedindo-lhe
isto ou aquillo.

Muito activa, muito diligente, não havia dona de casa mais economica,
mais poupada e que fizesse render mais o dinheiro do marido e o serviço
das criadas. Logo que despertou, pôz tudo em actividade, as criadas e
as filhas. Vivi e Quinota fôram para os doces; Lalá e Zizi auxiliaram
as raparigas na arrumação das salas e dos quartos, emquanto ella e
Ismenia iam arrumar a mesa, dispol-a com muito gosto e esplendor. O
movel ficaria assim galhardo desde as primeiras horas do dia. A alegria
de D. Maricota era grande; ella não comprehendia que uma mulher pudesse
viver sem estar casada. Não eram só os perigos a que se achava
exposta, a falta de arrimo; parecia-lhe feio e deshonroso para a
familia. A sua satisfação não vinha do simples facto de ter
descontado uma letra, como ella dizia. Vinha mais profundamente dos seus
sentimentos maternos e de familia.

Ella arrumava a mesa, nervosa e alegre; e a filha fria e indifferente.

--Mas, minha filha, dizia ella, até parece que não é você quem se
vai casar! Que cara! Você parece ahi uma mosca morta.

--Mamãe, que quer que eu faça?

--Não é bonito rir-se muito, andar ahi como uma serigaita, mas tambem
assim como você está! Eu nunca vi noiva assim.

Durante uma hora, a moça esforçou-se por parecer muito alegre, mas
logo lhe tomava toda a pobreza de sua natureza, incapaz de vibração
sentimental, e o natural do seu temperamento vencia-a e não tardava em
cahir naquelle doentia lassidão que lhe era propria.

Veiu muita gente. Além das moças e as respeitaveis mães, acudiram ao
convite do General, o Contra-Almirante Caldas, o Dr. Florencio,
engenheiro das Aguas, o Major honorario Innocencio Bustamante, o Sr.
Bastos, guarda-livros, ainda parente de D. Maricota, e outras pessoas
importantes. Ricardo não fôra convidado porque o General temia a
opinião publica sobre a presença delle em festa seria; Quaresma o
fôra, mas não viéra; e Cavalcanti jantara com os futuros sogros.

Ás seis horas, a casa já estava cheia. As moças cercavam Ismenia,
cumprimentado-a, não sem um pouco de inveja no olhar.

Irene, uma alourada e alta, aconselhava:

--Eu, se fosse você, comprava tudo no Parque.

Tratava-se do enxoval. Todas ellas, embora solteiras, davam conselhos,
sabiam as casas barateiras, as peças mais importantes e as que podiam
ser dispensadas. Estavam ao par.

A Armanda indicava com um requebro feiticeiro nos olhos:

--Eu, hontem, vi na rua da Constituição um dormitorio de casal, muito
bonito, você porque não vai ver, Ismenia? Parece barato.

A Ismenia era a menos enthusiasmada, quasi não respondia ás perguntas;
e, se as respondia, ora por monosyllabos. Houve um momento em que sorriu
quasi com alegria e abandono. Estephania, a doutora, a normalista, que
tinha nos dedos um annel, com tantas pedras que nem uma joalheria, num
dado momento, chegou a boca carnuda aos ouvidos da noiva e fez uma
confidencia. Quando deixou de segredar-lhe, assim como se quizesse
confirmar o dito, dilatou muito os seus olhos maliciosos e quentes, e
disse alto:

--Eu quero ver isso... Todas dizem que não... Eu sei...

Ella alludia á resposta que, á sua confidencia, Ismenia tinha dado com
parcimonia: qual o que!

Todas ellas, conversando, tinham os olhos no piano. Os rapazes e uma
parte dos velhos rodeavam Cavalcanti, muito solenne, dentro de um grande
fraque preto.

--Então, Dr. acabou, heim? dizia este a geito de um cumprimento.

--É verdade! Trabalhei. Os senhores não imaginam os tropeços, os
embargos--fui de um heroismo!...

--Conhece o Chavantes? perguntava um outro.

--Conheço. Um chronico, um pandego...

--Foi seu collega?

--Foi, isto é, elle é do curso de medicina. Matriculamo-nos no mesmo
anno.

Cavalcanti ainda não tinha tido tempo de attender a este e já era
obrigado a ouvir a observação de outro.

--É muito bonito ser formado. Se eu tivesse ouvido meu pai, não estava
agora a quebrar a cabeça no _Dever_ e _Haver_. Hoje, torço a orelha e
não sai sangue.

--Actualmente, não vale nada, meu caro senhor, dizia modestamente
Cavalcanti. Com essas academias livres... Imaginem que já se fala numa
Academia Livre de Odontologia! É o cumulo! Um curso difficil e caro,
que exige cadaveres, apparelhos, bons professores, como é que
particulares poderão mantel-o? Se o Governo mantem mal...

--Pois doutor, acudia um outro, dou-lhe meus parabens. Digo-lhe o que
disse ao meu sobrinho, quando se formou: vá furando!

--Ah! Seu sobrinho é formado? inquiria delicadamente Cavalcanti.

--Em engenharia. Está no Maranhão, na Estrada de Caxias.

--Boa carreira.

Nos intervallos da conversa, todos elles olhavam o novel dentista como
se fosse um ente sobrenatural.

Para aquella gente toda, Cavalcanti não era mais um simples homem, era
homem e mais alguma cousa sagrada e de essencia superior; e não
juntavam á imagem que tinham delle actualmente, as cousas que
porventura elle pudesse saber ou tivesse aprendido. Isto não entrava
nella de modo algum; e aquelle typo, para alguns, continuava a ser
vulgar, commum, na apparencia, mas a sua substancia tinha mudado, era
outra differente da delles e fora ungido de não sei que cousa vagamente
fóra da natureza terrestre, quasi divina.

Para o lado de Cavalcanti, que se achava na sala de visitas, vieram os
menos importantes. O General ficara na sala de jantar, fumando, cercado
dos mais titulados e dos mais velhos. Estavam com elle o
Contra-Almirante Caldas, o Major Innocencio, o Dr. Florencio e o
Capitão de Bombeiros Segismundo.

Innocencio aproveitou a occasião para fazer uma consulta a Caldas sobre
assumpto de legislação militar. O Contra-Almirante era
interessantissimo. Na marinha, por pouco que não fazia _pendant_ com
Albernaz no Exercito. Nunca embarcara a não ser na guerra do Paraguay,
mas assim mesmo por muito pouco tempo. A culpa, porém, não era delle.
Logo que se viu 1° Tenente, Caldas foi aos poucos se mettendo comsigo,
abandonando a roda dos camaradas, de forma que, sem empenhos e sem
amigos nos altos logares, se esqueciam delle e não lhe davam
commissões de embarque. É curiosa essa cousa das administrações
militares: as commissões são merecimento, mas só se as dá aos
protegidos.

Certa vez, quando era já Capitão Tenente, deram-lhe um embarque em
Matto Grosso. Nomearam-no para commandar o couraçado «Lima Barros».
Elle lá foi, mas, quando se apresentou ao commandante da flotilha, teve
noticia que não existia no rio Paraguay semelhante navio. Indagou daqui
e dali e houve quem aventurasse que podia ser que o tal «Lima Barros»
fizesse parte da esquadrilha do Alto-Uruguay. Consultou o commandante.

--Eu, no seu caso, disse-lhe o superior, partia immediatamente para a
flotilha do Rio Grande.

Eil-o a fazer malas para o Alto-Uruguay, onde chegou emfim, depois de
uma penosa e fatigante viagem. Mas ahi tambem não estava o tal «Lima
Barros». Onde estaria então? Quiz telegraphar para o Rio de Janeiro,
mas teve medo de ser censurado, tanto mais, que não andava em cheiro de
santidade. Esteve assim um mez em Itaqui, hesitante, sem receber soldo e
sem saber que destino tomar. Um dia lhe veiu a idéa de que o navio bem
poderia estar no Amazonas. Embarcou na intenção de ir ao extremo norte
e quando passou pelo Rio, conforme a praxe, apresentou-se ás altas
autoridades da Marinha. Foi preso e submettido a conselho.

O «Lima Barros» tinha ido a pique, durante a guerra do Paraguay.

Embora absolvido, nunca mais entrou em graça dos ministros e dos seus
generaes. Todos o tinham na conta de parvo, de um commandante de opereta
que andava á cata do seu navio pelos quatro pontos cardeaes.
Deixaram-n'o _encostado_, como se diz na gyria militar, e elle levou
quasi quarenta annos para chegar de Guarda-Marinha a Capitão de
Fragata. Reformado no posto immediato, com graduação do seguinte, todo
o seu azedume contra a Marinha se concentrou num longo trabalho de
estudar leis, decretos, alvarás, avisos, consultas, que se referissem a
promoções de officiaes. Comprava repertorios de legislação,
armazenava collecções de leis, relatorios, e encheu a casa de toda
essa enfadonha e fatigante literatura administrativa. Os requerimentos,
pedindo a modificação da sua reforma, choviam sobre os ministros da
Marinha. Corriam mezes o infinito rosario de repartições e eram sempre
indeferidos, sobre consultas do Conselho Naval ou do Supremo Tribunal
Militar. Ultimamente constituira advogado junto á justiça federal e
lá andava elle de cartorio em cartorio, acotovelando-se com meirinhos,
escrivães, juizes e advogados--esse poviléo rebarbativo do fôro que
parece ter contrahido todas as miserias que lhe passam pelas mãos e
pelos olhos.

Innocencio Bustamante tambem tinha a mesma mania demandista. Era
renitente, teimoso, mas servil e humilde. Antigo voluntario da patria,
possuindo honras de Major, não havia dia em que não fosse ao quartel
general ver o andamento do seu requerimento e de outros. Num pedia
inclusão no Asylo dos Invalidos, noutro honras de Tenente-Coronel,
noutro tal ou qual medalha; e, quando não tinha nenhum, ia ver o dos
outros.

Não se prezou mesmo de tratar do pedido de um maniaco que, por ser
tenente honorario e tambem da Guarda Nacional, requereu lhe fosse
passada a patente de major, visto que dous galões mais outros dous
fazem quatro--o que quer dizer: Major.

Conhecedor dos estudos meticulosos do Almirante, Bustamante fez a sua
consulta.

--Assim de prompto, não sei. Não é a minha especialidade o Exercito,
mas vou ver. Isto tambem anda tão atrapalhado!

Acabando de responder coçava um dos seus favoritos brancos que lhe
davam um ar de _commodoro_ ou de chacareiro portuguez, pois era forte
nelle o typo luzitano.

--Ah! meu tempo, observou Albernaz. Quanta ordem! Quanta disciplina!

--Não ha mais gente que preste, disse Bustamante.

Segismundo por ahi aventurou tambem a sua opinião dizendo:

--Eu não sou militar, mas...

--Como não é militar? fez Albernaz com impeto. Os Srs. é que são os
verdadeiros: estão sempre com o inimigo na frente, não acha Caldas?

--De certo, de certo, fez o Almirante cofiando os favoritos.

--Como ia dizendo, continuou Segismundo, apezar de não ser militar, eu
me animo, a dizer que a nossa força está muito por baixo. Onde está
um Porto Alegre, um Caxias?

--Não ha mais, meu caro, confirmou com voz tenue o Dr. Florencio.

--Não sei porque, pois tudo hoje não vai pela sciencia?

Fôra Caldas quem falara, tentando a ironia. Albernaz indignou-se e
retrucou-lhe com certo calor:

--Eu queria ver esses meninos bonitos, cheios de _xx_ e _yy_, em
Curupaity, hein Caldas? hein Innocencio?

O Dr. Florencio era o unico paisano da roda. Engenheiro e empregado
publico, os annos e o socego da vida lhe tinham feito perder todo o
saber que porventura pudesse ter tido ao sahir da escola. Era mais um
guarda de encanamentos do que mesmo um engenheiro. Morando perto de
Albernaz, era raro que não viesse roda a tarde jogar o sólo com o
General. O Dr. Florencio perguntou:

--O Sr. assistiu, não foi, General?

O General não se deteve, não, se atrapalhou, não gaguejou e disse com
a maxima naturalidade:

--Não assisti. Adoeci e vim para o Brasil nas vesperas. Mas tive muitos
amigos lá: o Camisão, o Venancio...

Todos se calaram e olharam a noite que chegava. Da janella da sala onde
estavam, não se via nem um monte. O horizonte estava circumscripto aos
fundos dos quintaes das casas vizinhas com as suas cordas de roupa a
lavar, suas chaminés e o piar de pintos. Um tamarineiro sem folhas
lembrava tristemente o ar livre, as grandes vistas sem fim. O sol já
tinha desapparecido do horizonte e as tenues luzes dos bicos de gaz e
dos lampeões familiares começavam a accender-se por detraz das
vidraças.

Bustamante quebrou o silencio:

--Este paiz pão vale mais nada. Imaginem que o meu requerimento,
pedindo honras de Tenente Coronel, está no ministerio ha seis mezes!

--Uma desordem, exclamaram todos.

Era noite. D. Maricota chegou até onde elles estavam, muito activa,
muito diligente e com o rosto aberto de alegria.

--Estão rezando? E logo ajuntou: dão licença que diga uma cousa ao
Chico, sim?

Albernaz sahiu fóra da róda dos amigos e foi até a um canto da sala,
onde a mulher lhe disse alguma cousa em voz baixa. Ouviu a mulher,
depois voltou aos amigos e, no meio do caminho, falou alto, nestes
termos:

--Se não dançam é porque não querem. Estou pegando algum?

D. Maricota approximou-se dos amigos do marido e explicou:

--Os senhores sabem: se a gente não animar, ninguem tira par, ninguem,
tóca. Estão lá tantas moças, tantos rapazes, é uma pena!

--Bem; eu vou lá, disse Albernaz.

Deixou os amigos e foi á sala de visitas dar começo ao baile.

--Vamos, meninas! Então o que é isso? Zizi, uma valsa!

E elle mesmo em pessoa ia juntando os pares: «Não General, já tenho
par, dizia uma moça. Não faz mal, retrucava elle, danse com o
Raymundinho; o outro espera». Depois de ter dado inicio ao baile, veio
para a roda dos amigos, suado, mas contente.

--Isto de familia! Qual! A gente até parece bôbo, dizia. Você é que
fez bem, Caldas; não se quiz casar!

--Mas tenho mais filhos que você. Só sobrinhos, oito; e os primos?

--Vamos jogar o sólo, convidou Albernaz.

--Somos cinco, como ha de ser? observou Florencio.

--Não, eu não jogo, disse Bustamante.

--Então jogamos os quatro de garancho? lembrou Albernaz.

As cartas vieram e tambem uma pequena mesa de tripeça. Os parceiros
sentaram-se e tiraram a sorte para ver quem dava. Coube a Florencio dar.
Começaram, Albernaz tinha um ar attento quando jogava: a cabeça lhe
cahia sobre as costas e os seus olhos tomavam uma grande expressão de
reflexão. Caldas aprumava o busto na cadeira e jogava com a serenidade
de um Lord Almirante numa partida de «whist». Segismundo jogava com
todo o cuidado, com o cigarro no canto da boca e a cabeça do lado para
fugir á fumaça. Bustamante fôra á sala ver as dansas.

Tinham começado a partida, quando dona Quinota, uma das filhas do
General, atravessou a sala e foi beber agua. Caldas, coçando um dos
favoritos, perguntou á moça:

--Então, D. Quinota, que dê o Genelicio?

A moça virou o rosto com faceirice, deu um pequeno muchocho e respondeu
com falso máu humor:

--Ué! Sei lá! Ando atrás delle?

--Não precisa zangar-se, D. Quinota; é uma simples pergunta, advertiu
Caldas.

O General que examinava attentamente as cartas recebidas, interrompeu a
conversa com voz grave:

--Eu passo.

D. Quinota retirou-se. Este Genelicio ora o seu namorado. Parente ainda
de Caldas, tinha-se como certo o seu casamento na familia. A sua
candidatura era favorecida por todos. D. Maricota e o marido enchiam-n'o
de festas. Empregado do Thesouro, já no meio da carreira, moço de
menos de trinta annos, ameaçava ter um grande futuro. Não havia
ninguem mais bajulador e submisso do que elle. Nenhum pudor, nenhuma
vergonha! Enchia os chefes e os superiores de todo o incenso que podia.
Quando sahia, remancheava, lavava tres ou quatro vezes as mãos, até
poder apanhar o director na porta. Acompanhava-o, conversava com elle
sobre o serviço, dava pareceres e opiniões, criticava este ou aquelle
collega, e deixava-o no bonde, se o homem ia para casa. Quando entrava
um ministro, fazia-se escolher como interprete dos companheiros e
deitava um discurso; nos anniversarios de nascimento, era um soneto que
começava sempre por--salve--e acabava tambem por--Salve! Tres vezes
Salve!

O modelo era sempre o mesmo; elle só mudava o nome do ministro e punha
a data.

No dia seguinte, os jornaes falavam do seu nome, e publicavam o soneto.

Em quatro annos, tinha tido duas promoções e agora trabalhava para ser
aproveitado no Tribunal de Contas, a se fundar, num posto acima.

Na bajulação e nas manobras para subir, tinha verdadeiramente genio.
Não se limitava ao soneto, ao discurso; buscava outros meios, outros
processos. Um dos que se servia, eram as publicações nas folhas
diarias. No intuito de annunciar nos ministros e directores que tinha
uma erudição superior, de quando em quando desovava nos jornaes longos
artigos sobre contabilidade publica. Eram meras compilações de
bolorentos decretos, salpicadas aqui e ali com citações de autores
francezes ou portuguezes.

Interessante é que os companheiros o respeitavam, tinham em grande
conta o seu saber e elle vivia na secção cercado do respeito de um
genio, um genio do papelorio e das informações. Accresce que Genelicio
juntava á sua segura posição administrativa, um curso de direito a
acabar; e tantos titulos juntos não podiam deixar de impressionar
favoravelmente ás preoccupações casamenteiras do casal Albernaz.

Fóra da repartição, tinha um empertigamento que o seu pobre physico
fazia comico, mas que a convicção do alto auxilio que prestava ao
Estado, mantinha e sustentava. Um empregado modelo!...

O jogo continuava silenciosamente e a noite avançava. No fim das
_mãos_ fazia-se um breve commentario ou outro, e no começo ouviam-se
unicamente as falas sacramentaes do jogo; _sólo, bólo, melhoro,
passo_. Feitas ellas jogava-se em silencio; da sala, porém, vinha o
ruido festivo das dansas e das conversas.

--Olhem quem está ahi!

--O Genelicio, fez Caldas. Onde estiveste, rapaz?

Deixou o chapéo e a bengala numa cadeira e fez os cumprimentos.
Pequeno, já um tanto curvado, chupado de rosto, com um pince-nez
azulado, todo elle trahia a profissão, os seus gostos e habitos. Era um
escripturario.

--Nada, meus amigos! Estou tratando dos meus negocios.

--Vão bem? perguntou Florencio.

--Quasi garantido. O Ministro prometteu... Não ha nada, estou bem
cunhado!

--Estimo muito, disse o General.

--Obrigado. Sabe de uma cousa, General?

--O que é?

--O Quaresma está doido.

--Mas... o que? quem foi que te disse?

--Aquelle homem do violão. Já está na casa de saude...

--Eu logo vi, disse Albernaz, aquelle requerimento era de doido.

--Mas não é só, General, accrescentou Genelicio, Fez um officio em
tupy e mandou ao ministro.

--É o que eu dizia, fez Albernaz.

--Quem é? perguntou Florencio.

--Aquelle vizinho, empregado do Arsenal, não conhece?

--Um baixo, de pince-nez?

--Este mesmo, confirmou Caldas?

--Nem se podia esperar outra cousa, disse o Dr. Florencio. Aquelles
livros, aquella mania de leitura...

--P'ra que elle lia tanto? indagou Caldas.

--Telha de menos, disse Florencio.

Genelicio atalhou com autoridade:

--Elle não era formado, para que metter-se em livros?

--É verdade, fez Florencio.

--Isto de livros é bom para os sabios, para os doutores, observou
Segismundo.

--Devia até ser prohibido, disse Genelicio, a quem não possuisse um
titulo _academico_ ter livros. Evitavam-se assim essas desgraças. Não
acham?

--De certo, disse Albernaz.

--De certo, fez Caldas.

--De certo, disse tambem Segismundo.

Calaram-se um instante, e as attenções convergiram para o jogo.

--Já sahiram todos os trunfos?

--Contasse, meu amigo.

Albernaz perdeu e lá na sala fez-se silencio. Cavalcanti ia recitar.
Atravessou a sala triumphantemente, com um largo sorriso na face e foi
postar-se ao lado do piano, Zizi acompanhava. Tossiu e, com a sua voz
metallica, apurando muito os finaes em _s_, começou:


     A vida é uma comedia sem sentido
     Uma historia de sangue e de poeira
         Um deserto sem luz...


E o piano gemia.



IV

DESASTROSAS CONSEQUENCIAS
DE UM REQUERIMENTO


Os acontecimentos a que alludiam os graves personagens reunidos em tomo
da mesa de sólo, na tarde memoravel da festa commemorativa do pedido de
casamento de Ismenia, se tinham desenrolado com rapidez fulminante. A
força de idéas e sentimentos contidos em Quaresma se havia revelado em
actos imprevistos com uma sequencia brusca e uma velocidade de
turbilhão. O primeiro facto surprehendeu, mas vieram outros e outros,
de forma que o que pareceu no começo uma extravagancia, uma pequena
mania, se apresentou logo em insania declarada.

Justamente algumas semanas antes do pedido de casamento, ao abrir-se a
sessão da Camara, o Secretario teve que proceder á leitura de um
requerimento singular e que veiu a ter uma fortuna de publicidade e
commentario pouco usual em documentos de tal natureza.

O borborinho e a desordem que caracterizam o recolhimento indispensavel
ao elevado trabalho de legislar, não permittiram que os deputados o
ouvissem; os jornalistas, porém, que estavam proximo á mesa, ao
ouvil-o, proromperam em gargalhadas, certamente inconvenientes á
magestade do logar. O riso é contagioso. O Secretario, no meio da
leitura, ria-se, discretamente; pelo fim, já ria-se o Presidente, ria
se o official da acta, ria-se o continuo--toda a mesa e aquella
população que a cerca, riram-se da petição, largamente, querendo
sempre conter o riso, havendo em alguns tão franca alegria que as
lagrimas vieram.

Quem soubesse o que uma tal folha de papel representava de esforço, de
trabalho, de sonho generoso e desinteressado, havia de sentir uma penosa
tristeza, ouvindo aquelle rir inoffensivo diante della. Merecia raiva,
odio, um deboche de inimigo talvez, o documento que chegava á mesa da
Camara, mas não aquelle recebimento hilarico, de uma hilaridade
innocente, sem fundo algum, assim como se estivesse a rir de uma
palhaçada, de uma sorte de circo de cavallinhos ou de uma careta de
_clown_.

Os que riam, porém, não lhe sabiam a causa e só viam nelle um motivo
para riso franco e sem maldade. A sessão daquelle dia fôra fria; e,
por ser assim, as secções dos jornaes referentes á Camara, no dia
seguinte, publicaram o seguinte requerimento e glosaram-no em todos os
tons.

Era assim concebida a petição:


«Polycarpo Quaresma, cidadão brasileiro, funccionario publico, certo
de que a lingua portugueza é emprestada ao Brasil; certo tambem de que,
por esse facto, o falar e o escrever em geral, sobretudo no campo das
lettras, se vêm na humilhante contigencia de soffrer continuamente
censuras asperas dos proprietarios da lingua; sabendo, além, que,
dentro do nosso paiz, os autores os escriptores, com especialidade os
grammaticos, não se entendem no tocante á correcção grammatical,
vendo-se, diariamente, surgir azedas polemicas entre os mais profundos
estudiosos do nosso idioma--usando do direito que lhe confere a
Constituição, vem pedir que o Congresso Nacional decrete o
tupy-guarany, como lingua official e nacional do povo brasileiro.

O supplicante, deixando de parte os armamentos historicos que militam em
favor de sua idéa, pede venia para lembrar que a lingua é o mais alta
manifestação da intelligencia de um povo, é a sua creação mais viva
e original; e, portanto, a emancipação política do paiz requer como
complemento e consequencia a sua emancipação idiomatica.

Demais, Srs. Congressistas, o tupy-guarany, lingua originalissima,
agglutinante, é verdade, mas que o polysynthetismo dá multiplas
feições de riqueza, é a unica capaz de traduzir as nossas bellezas,
de pôr-nos em relação com a nossa natureza e adaptar-se perfeitamente
aos nossos orgãos vocaes e cerebraes, por ser creação de povos que
aqui viveram e ainda vivem, portanto possuidores da organização
physiologica e psychologica para que tendemos, evitando-se dessa fórma
as estereis controversias grammaticaes, oriundas de uma difficil
adaptação de uma lingua de outra região á nossa organização
cerebral e ao nosso apparelho vocal--controversias que tanto impecem o
progresso da nossa cultura literaria, scientifica e philosophica.

Seguro de que a sabedoria dos legisladores saberá encontrar meios para
realizar semelhante medida e conscio de que a Camara e o Senado pezarão
o seu alcance e utilidade P. e E. deferimento».


Assignado e devidamente estampilhado, este requerimento do Major foi
durante dias assumpto de todas as palestras. Publicado em todos os
jornaes, com commentarios facetos, não havia quem não fizesse uma
pilheria sobre elle, quem não ensaiasse um espirito á custa da
lembrança de Quaresma. Não ficaram nisso; a curiosidade malsã quiz
mais. Indagou-se quem era, de que vivia, se era casado, se era solteiro.
Uma illustração semanal publicou-lhe a caricatura e o Major foi
apontado na rua.

Os pequenos jornaes alegres, esses semanarios de espirito e troça,
então! eram «de um encarniçamento atroz com o pobre Major. Como uma
abundancia que marcava a felicidade dos redactores em terem encontrado
um assumpto facil, o texto vinha cheio delle: o Major Quaresma disse
isso; o Major Quaresma fez aquillo.

Um delles, além de outras referencias, occupou uma pagina inteira com o
assumpto da semana. Intitulava-se a illustração: «O matadouro de
Santa Cruz, segundo o Major Quaresma», e o desenho representava uma
fila de homens e mulheres a marchar para o choupo que se via á
esquerda. Um outro referia-se ao caso pintando um açougue, «O açougue
Quaresma»; legenda: a cozinheira perguntava ao açougueiro:

--O Sr. tem lingua de vacca? O açougueiro respondia: Não, só temos
lingua de moça, quer?

Com mais, ou menos espirito, os commentarios não cessavam e a ausencia
de relações de Quaresma no meio de que sahiam, fazia com que fossem de
uma constancia pouco habitual. Levaram duas semanas com o nome do
sub-secretario.

Tudo isto irritava profundamente Quaresma. Vivendo ha trinta annos quasi
só, sem se chocar com o mundo, adquirira urna sensibilidade muito viva
e capaz de soffrer profundamente com a menor cousa. Nunca soffrera
criticas, nunca se atirou, á publicidade, vivia immerso no seu sonho,
incubado e mantido vivo pelo calor dos seus livros. Fóra delles, elle
não conhecia ninguem; e, com as pessoas com quem falava, trocava
pequenas banalidades, ditos de todo o dia, cousas com que a sua alma e o
seu coração nada tinham que ver.

Nem mesmo a afilhada o tirava dessa reserva, embora a estimasse mais que
a todos.

Esse encerramento em si mesmo deu-lhe não sei que ar de extranho a
tudo, ás competições, ás ambições, pois nada dessas cousas que
fazem os odios e as lutas tinha entrado no seu temperamento.

Desinteressado de dinheiro, de gloria e posição, vivendo numa reserva
de sonho, adquirira a candura e a pureza d'alma que vão habitar esses
homens de uma idéa fixa, os grandes estudiosos, os sabios, e os
inventores, gente que fica mais terna, mais ingenua, mais innocence que
as donzellas das poesias de outras épocas.

É raro encontrar homens assim, mas os ha e, quando se os encontra,
mesmo tocados de um grão de loucura, a gente sente mais sympathia pela
nossa especie, orgulho de ser homem e mais esperança na felicidade da
raça.

A continuidade das troças feitas nos jornaes, a maneira com que o
olhavam na rua, exasperavam-no e mais forte se enraizava nelle a sua
idéa. Á medida que engulia uma troça, uma pilheria, vinha-lhe meditar
sobre a sua lembrança, pezar-lhe todos os aspectos, examinal-a
detidamente, comparal-a a cousas semelhantes, recordar os autores e
autoridades; e, á proporção que fazia isso, a sua propria convicção
mostrava a inanidade da critica, a ligeireza da pilheria, e a idéa o
tomava, o avassalava, o absorvia cada vez mais.

Se os jornaes tinham recebido o requerimento com facecias de fundo
inofensivo e sem odio, a repartição ficou furiosa. Nos meios
burocraticos, uma superioridade que nasce fora delles, que é feita e
organizada com outros materiaes que não os officios, a sabença de
textos de regulamentos e a boa calligrafia, é recebida com a
hostilidade de uma pequena inveja.

É como se visse no portador da superioridade um traidor á
mediocridade, ao anonimato papeleiro. Não ha só uma questão de
promoção, de interesse pecuniario; ha uma questão de amor proprio, de
sentimentos feridos, vendo aquelle collega, aquelle galé como elles,
sujeito aos regulamentos, aos caprichos dos chefes, ás olhadelas
superiores dos ministros, com mais titulos á consideração, com algum
direito a infringir as regras e os preceitos.

Olha-se para elle com o odio dissimulado com que assassino plebeu olha
para o assassino marquez que matou a mulher e o amante. Ambos são
assassinos, mas, mesmo na prisão, ainda o nobre e o burguez trazem o ar
do seu mundo, um resto da sua delicadeza e uma inadaptação que ferem o
seu humilde collega de desgraça.

Assim, quando surge numa secretaria alguem cujo nome não lembra sempre
o titulo de sua nomeação, apparecem as pequeninas perfidias, as
maledicencias ditas ao ouvido, as indirectas, todo o arsenal do ciume
invejoso de uma mulher que se convenceu de que a vizinha se veste melhor
do que ella.

Amam-se ou antes supportam-se melhor aquelles que se fazem celebres nas
informações, na redacção, na assiduidade ao trabalho, mesmo os
doutores, os bachareis, do que os que têm nomeada e fama. Em geral, a
incomprehensão da obra ou do merito do collega é total e nenhum delles
se póde capacitar que aquelle typo, aquelle amanuense, como elles,
faça qualquer cousa que interesse 06 extranhos e dê que falar a uma
cidade inteira.

A brusca popularidade de Quaresma, o seu successo e nomeada ephemera
irritaram os seus collegas e superiores. Já se viu! dizia o Secretario.
Este tolo dirigir-se ao Congresso e propor alguma cousa! Pretencioso! O
director, ao passar pela secretaria, olhava-o de soslaio e sentia que o
regulamento não cogitasse do caso para lhe infringir uma censura. O
collega archivista era o menos terrivel, mas chamou-o logo de doido.

O Major sentia bem aquelle ambiente falso, aquellas allusões e isso
mais augmentava o seu desespero e a teimosia na sua idéa. Não
comprehendia que o seu requerimento suscitasse tantas tempestades, essa
má vontade geral; era uma cousa innocente, uma lembrança patriotica
que merecia e devia ter o assentimento de todo o mundo; e meditava,
voltava á idéa, e a examinava com mais attenção.

A extensa publicidade, que o facto tomou, attingiu o palacete de Real
Grandeza, onde morava o seu compadre Coleoni. Rico com os lucros das
empreitadas de construcções de predios, viuvo, o antigo quitandeiro
retirara-se dos negocios e vivia socegado na ampla casa que elle mesmo
edificara e tinha todos os seus remates architectonicos do seu gosto
predilecto: compoteiras na cimalha, um immenso monogramma sobre a porta
da entrada, dous cães de louça, nos pilares do portão da entrada e
outros detalhes equivalentes.

A casa ficava ao centro do terreno, elevava-se sobre um porão alto,
tinha um razoavel jardim na frente, que avançava pelos lados,
pontilhado de bolas multicores; varanda, um viveiro, onde pelo calor os
passaros morriam tristemente. Era uma installação burgueza, no gosto
nacional, vistosa, cara, pouco de accordo com o clima e sem conforto.

No interior o capricho dominava, tudo obedecia a a uma fantasia baroca,
a um ecletismo desesperador. Os moveis se amontoavam, os tapetes, as
sanefas, os bibelots e, a fantasia da filha, irregular e indisciplinada,
ainda trazia mais desordem áquella collecção de cousas caras.

Viuvo, havia já alguns annos, era uma velha cunhada quem dirigia a casa
e a filha, quem o encaminhava nas distracções e nas festas. Coleoni
aceitava de bom coração esta doce tyrannia. Queria casar a filha, bem
e ao gosto della, não punha, portanto nenhum obstaculo ao programma de
Olga.

Em começo, pensou em dal-a a seu ajudante ou contra-mestre, uma especie
de architecto que não desenhava, mas projectava casas e grandes
edificios. Primeiro sondou a filha. Não encontrou resistencia, mas não
encontrou tambem assentimento. Convenceu-se de que aquella vaporosidade
da menina, aquelle seu ar distante de heroina, a sua intelligencia, o
seu fantastico, não se dariam bem com as rudezas e a simplicidade
camponias de seu auxiliar.

Ella quer um doutor--pensava elle--que arranje! Com certeza, não terá
ceitil, mas eu tenho e as cousas se accommodam.

Elle se havia habituado a ver no doutor nacional, o marquez ou o barão
de sua terra natal. Cada terra tem a sua nobreza; lá, é visconde;
aqui, é doutor, bacharel ou dentista; e julgou muito acceitavel comprar
a satisfação de ennobrecer a filha com umas meias duzias de contos de
réis.

Havia momentos que se aborrecia um tanto com os propositos da menina.
Gostando de dormir cedo, tinha que perder noites e noites no Lyrico, nos
bailes; amando estar sentado em chinellas a fumar cachimbo, era obrigado
a andar horas e horas pelas ruas, saltitando de casa em casa de modas,
atraz da filha, para no fim do dia ter comprado meio metro de fita, uns
grampos e um frasco de perfume.

Era engraçado vel-o nas lojas de fazendas cheio de complacencia de pai
que quer ennobrecer o filho, a dar opinião sobre o tecido, achar este
mais bonito, comparar um com outro, com uma falta de sentimento
daquellas cousas que se adivinhava até no pagal-as. Mas elle ia,
demorava-se e esforçava-se por entrar no segredo, no mysterio, cheio de
tenacidade e candura perfeitamente paternaes.

Até ahi elle ia bem e calcava a contrariedade. Só o contrariavam
bastante, as visitas, as collegas da filha, suas mães, suas irmães,
com seus modos de falsa nobreza, os seus desdens dissimulados, deixando
perceber ao velho empreiteiro o quanto estava elle distante da sociedade
das amigas e das collegas de Olga.

Não se aborrecia, porém, muito profundamente; elle assim o quizera e a
fizera, tinha que se conformar. Quasi sempre, quando chegavam taes
visitas, Coleoni afastava-se, ia para o interior da casa. Entretanto,
não lhe era sempre possivel fazer isso; nas grandes festas e
recepções tinha que estar presente e era quando mais sentia, o velado
pouco caso da alta nobreza da terra que o frequentava. Elle ficara
sempre empreiteiro, com poucas idéas além do seu officio, hão sabendo
fingir, de modo que não se interessava por aquellas tagarelices de
casamentos, de bailes, de festas e passeios caros.

Uma vez ou outra um mais delicado propunha-lhe jogar o poker, aceitava e
sempre perdia. Chegou mesmo a formar uma roda em casa, de que fazia
parte o conhecido advogado Pacheco. Perdeu e muito, mas não foi isso
que o fez suspender o jogo. Que perdia? Uns contos--uma ninharia! A
questão, porém, é que Pacheco jogava com seis cartas. A primeira vez
que Coleoni deu com isso, pareceu-lhe simples distracção do distincto
jornalista e do famoso advogado. Um homem honesto não ia fazer aquillo!
E na segunda, seria tambem? e na terceira?

Não era possivel tanta distracção. Adquiriu a certeza da
trampolinagem, calou-se, conteve-se com uma dignidade não esperada em
um antigo quitandeiro, e esperou. Quando vieram a jogar outra vez e o
passe foi posto em pratica, Vicente accendeu o charuto e observou com a
maior naturalidade deste mundo:

--Os Srs. sabem que ha agora, na Europa, um novo systema de jogar o
poker?

--Qual é? perguntou alguém.

--A differença é pequena: joga-se com seis cartas, isto é, um dos
parceiros, sómente.

Pacheco deu-se por desentendido, continuou a jogar e a ganhar,
despediu-se á meia-noite cheio de delicadeza, fez alguns commentarios
sobre a partida e não voltou mais.

Conforme o seu velho habito, Coleoni lia de manhã os jornaes, com o
vagar e a lentidão de homem pouco habituado á leitura, quando se lhe
deparou o requerimento do seu compadre do Arsenal.

Elle não comprehendeu bem o requerimento, mas os jornaes faziam tanta
troça, cahiam tão a fundo sobre a cousa, que imaginou o seu antigo
bemfeitor enleiado numa meiada criminosa, tendo praticado, por
inadvertencia, alguma falta grave.

Sempre o tivera na conta do homem mais honesto deste mundo e ainda
tinha, mais dahi quem sabe? Na ultima vez que o visitou elle não veiu
com aquelles modos extranhos? Podia ser uma pilheria...

Apezar de ter enriquecido, Coleoni tinha em grande conta o seu obscuro
compadre. Havia nelle não só a gratidão de camponez que recebeu um
grande beneficio, como um duplo respeito pelo major, oriundo da sua
qualidade de funccionario e de sabio.

Europeu, de origem humilde e aldeã, guardava no fundo de si aquelle
sagrado respeito dos camponezes pelos homens que recebem a investidura
do Estado; e, como, apezar dos bastos annos de Brasil, ainda não sabia
juntar saber aos titulos, tinha em grande consideração a erudição do
compadre.

Não é, pois, de extranhar que elle visse com magna o nome de Quaresma
envolvido em factos que os jornaes reprovavam. Leu de novo o
requerimento, mas não entendeu o que elle queria dizer. Chamou a filha.

--Olga!

Elle pronunciava o nome da filha quasi sem sotaque; mas, quando fallava
portuguez, punha nas palavras uma rouquidão singular, e salpicava as
phrases de exclamações e pequenas expressões italianas.

--Olga, que quer dizer isto? _Non capisco_...

A moça sentou-se a uma cadeira proxima e leu no jornal, o requerimento
e os commentarios.

--_Che_! Então?

--O padrinho quer substituir o portuguez pela lingua tupy, entende o
senhor?

--Como?

--Hoje, nós não falamos portuguez? Pois bem: elle quer que daqui em
diante falemos tupy.

--_Tutti_?

--Todos os brasileiros, todos.

--_Ma che_ cousa! Não é possivel?

--Póde ser. Os tcheques tem uma lingua propria, e foram obrigados a
falar allemão, depois de conquistados pelos austriacos; os lorenos,
francezes...

--_Per la madona_! Allemão é lingua, agora esse acugêlê, _ecco_!

--Acugêlê é da Africa, papai; tupy é daqui.

--_Per Baccho_! É o mesmo... Está doido!

--Mas não ha loucura alguma, papai.

--Como? Então é cousa de um homem _bene_?

--De juizo, talvez não seja; mas de doido, tambem não.

--_Non capisco_.

--É uma idéa, meu pai, é um plano, talvez á primeira vista absurdo,
fóra dos moldes, mas não de todo doido. É ousado, talvez, mas...

Por mais que quizesse, ella não podia julgar o acto do padrinho sob o
criterio de seu pai. Neste falava o bom senso e nella o amor ás grandes
cousas, aos arrojos e commettimentos ousados. Lembrou-se de que Quaresma
lhe falara em emancipação; e se houve no fundo de si um sentimento que
não fosse de admiração pelo atrevimento do Major, não foi de certo o
de reprovação ou lastima; foi de piedade sympathica por ver mal
comprehendido o acto daquelle homem que ella conhecia ha tantos annos,
seguindo o seu sonho, isolado, obscuro e tenaz.

--Isto vai causar-lhe transtorno, observou Coleoni.

E elle tinha razão. A sentença do archivista foi vencedora nas
discussões dos corredores e a suspeita de que Quaresma estivesse doido
foi tomando fóros do certeza. Em principio, o sub-secretario supportou
bem a tempestade; mas tendo adivinhado que o suppunham insciente no
tupy, irritou-se, encheu-se, de uma raiva surda, que se continha
difficilmente. Como eram cegos! Elle que ha trinta annos estudava o
Brasil minuciosamente; elle que em virtude desses estudos, fôra
obrigado a aprender o rebarbativo allemão, não saber tupy, a lingua
brasileira, a unica que o era--que suspeita miseravel!

Que o julgassem doido--vá! Mas que desconfiassem da sinceridade de suas
affirmações, não! E elle pensava, procurava meios de se rehabilitar,
cahia em distracções, mesmo escrevendo e fazendo a tarefa quotidiana.
Vivia dividido em dous: uma parte nas obrigações de todo dia, e a
outra, na preoccupação de provar que sabia o tupy.

O Secretario veiu a faltar um dia e o Major lhe ficou fazendo as vezes.
O expediente fôra grande e elle mesmo redigira e copiara uma parte.
Tinha começado a passar a limpo um officio sobre cousas de Mato-Grosso,
onde se falava em Aquidauana e Ponta-Porã, quando o Carmo disse lá do
fundo da sala, com acccento escarninho:

--Homero, isto de saber é uma cousa, dizer é outra.

Quaresma nem levantou os olhos do papel. Fosse pelas palavras em tupy
que se encontravam na minuta, fosse pela allusão do funccionario Carmo,
o certo é que elle insensivelmente foi traduzindo a peça official para
o idioma indigena.

Ao acabar, deu com a districção, mas logo vieram outros empregados com
o trabalho que fizeram, para que elle examinasse. Novas preoccupações
afastaram a primeira, esqueceu-se e o officio em tupy seguiu com os
companheiros. O Director não reparou, assignou e o tupinambá foi dar
ao ministerio.

Não se imagina o reboliço que tal cousa foi causar lá. Que lingua
era? Consultou-se o Dr. Rocha, o homem mais habil da secretaria, a
respeito do assumpto. O funccionario limpou o pince-nez, agarrou o
papel, voltou-o de traz para diante, pôl-o de pernas para o ar e
concluiu que era grego, por causa dos _yy_.

O doutor Rocha tinha na Secretaria a fama de sabio, porque era bacharel
em direito e não dizia cousa alguma.

--Mas, indagou o chefe, officialmente as autoridades se podem communicar
em linguas estrangeiras? Creio que ha um aviso de 84... Veja, Sr. Dr.
Rocha...

Consultaram-se todos os regulamentos e repertorios de legislação,
andou-se de meza em meza pedindo auxilio á memoria de cada um e nada se
encontrara a respeito. Enfim, o Dr. Rocha, após tres dias de
meditação, foi ao chefe e disse com emphase e segurança:

--O aviso de 84 trata de orthographia.

Ü Director olhou o subalterno com admiração e mais ficou considerando
as suas qualidades de empregado zeloso, intelligente e... assiduo. Foi
informado que a legislação era omissa no tocante á lingua em que
deviam ser escriptos os documentos officiaes; entretanto não parecia
regular usar uma que não fosse a do paiz.

O Ministro, tendo em vista esta informação e varias outras consultas,
devolveu o officio e censurou o Arsenal.

Que manhã foi essa no Arsenal! Os tympanos soavam furiosamente, os
continuos andavam numa doubadoura terrivel e a toda a hora perguntavam
pelo secretario que tardava em chegar.

Censurado! monologava o Director. Ia-se por agua a baixo o seu
generalato. Viver tantos annos a sonhar com aquellas estrellas e ellas
se escapavam assim, talvez por causa da molecagem de um escripturario!

Ainda se a situação mudasse... Mas qual!

O Secretario chegou, foi ao gabinete do Director. Inteirado do motivo,
examinou o officio e pela lettra conheceu que fora Quaresma quem o
escrevera. Mande-o cá, disse o Coronel. O Major encaminhou-se pensando
nuns versos tupys que lera de manhã.

--Então o Sr. leva a divertir-se commigo, não é?

--Como? fez Quaresma espantado.

--Quem escreveu isso?

O Major nem quiz examinar o papel. Viu a letra, lembrou-se da
distracção e confessou com firmeza:

--Fui eu.

--Então confessa?

--Pois não. Mas V. Ex. não sabe...

--Não sabe! que diz?

O Director levantou-se da cadeira, com os labios brancos e a mão
levantada á altura da cabeça. Tinha sido offendido tres vezes: na sua
honra individual, na honra de sua casta e na do estabelecimento de
ensino que frequentara, a escola da Praia Vermelha, o primeiro
estabelecimento scientifico do mundo. Além disso escrevera no
«Prytaneu», a revista da escola, um conto--«A Saudade»--producção
muito elogiada pelos collegas. Dessa forma, lendo em todos os exames
plenamente e distincção, uma dupla corôa de sabio e artista
cingia-lbe a fronte. Tantos titulos valiosos e raros de se encontrarem
reunidos mesmo em Descartes ou Shakspeare, transformavam aquelle--não
sabe--de um amanuense em offensa profunda, em injuria.

--Não sabe! Como é que o senhor ousa dizer-me isto! Tem o senhor
porventura o curso de Benjamin Constant? Sabe o senhor mathematica,
astronomia, physica, chimica, sociologia e moral? Como ousa então? Pois
o senhor pensa que por ter lido uns romances e saber um francezinho ahi,
póde hombrear-se com quem tirou gráu 9 em Calculo, 10 em Mecanica, 8
em Astronomia, 10 em Hydraulica, 9 em Descriptiva? Então?!

E o homem sacudia furiosamente a mão e olhava ferozmente para Quaresma
que já se julgava fuzilado.

--Mas, Sr. Coronel...

--Não tem mas, não tem nada! Considere-se suspenso, até segunda
ordem.

Quaresma era doce, bom e modesto. Nunca fôra seu proposito duvidar da
sabedoria do seu director. Elle não tinha nenhuma pretenção a sabio e
pronunciara a phrase para começar a desculpa; mas, quando viu aquella
enxurrada de saber, de titulos, a sobrenadar em aguas tão furiosas,
perdeu o fio do pensamento, a fala, as idéas e nada mais sôbe nem
pôde dizer.

Sahiu abatido, como um criminoso, do gabinete do Coronel, que não
deixava de olhal-o furiosamente, indignadamente, ferozmente, como quem
foi ferido em todas as fibras do seu ser. Sahiu afinal. Chegando á sala
do trabalho nada disse; pegou no chapéo, na bengala e atirou-se pela
porta afóra, cambaleando como um bebedo. Deu umas voltas, foi ao
livreiro buscar uns livros. Quando ia tomar o bonde encontrou o Ricardo
Coração dos Outros.

--Cedo, hein Major?

--É verdade.

E calaram-se ficando um diante do outro num mutismo contrafeito. Ricardo
avançou algumas palavras:

--O Major, hoje, parece que tem uma idéa, um pensamento muito forte.

--Tenho, filho, não de hoje, mas de ha muito tempo.

--É bom pensar, sonhar consola.

--Consola, talvez; mas faz-nos tambem differentes dos outros, cava
abysmos entre os homens...

--E os dous separaram-se. O Major tomou o bonde e Ricardo desceu
descuidado a rua do Ouvidor, com o seu passo acanhado e as calças
dobradas nas canellas, sobraçando o violão na sua armadura de
camurça.



V

O BIBELOT


Não era a primeira vez que ella vinha ali. Mais de uma dezena já
subira aquella larga escada de pedra, com grupos de marmores de Lisboa
de um lado e do outro, a Caridade e N. S. da Piedade; penetrara por
aquelle portico de columnas doricas, atravessara o atrio ladrilhado,
deixando á esquerda e á direita, Pinel e Esquirol, meditando sobre o
angustioso mysterio da loucura; subira outra escada encerada
cuidadosamente e fôra ter com o padrinho lá em cima, triste e
absorvido no seu sonho e na sua mania. Seu pai a trazia ás vezes, aos
domingos, quando vinha cumprir o piedoso dever de amizade, visitando
Quaresma. Ha quanto tempo estava elle ali? Ella não se lembrava ao
certo; uns tres ou quatro mezes, se tanto.

Só o nome da casa mettia medo. O Hospicio! É assim como uma sepultura
em vida, um semi-enterramento, enterramento do espirito, da razão
conductora, de cuja ausencia os corpos raramente se resentem, A saude
não depende della e ha muitos que parecem até adquirir mais força de
vida, prolongar a existencia, quando ella se evola não se sabe por que
orificio do corpo e para onde.

Com que terror, uma especie de pavor de cousa sobrenatural, espanto de
inimigo invisivel e omnipresente, não ouvia a gente pobre referir-se ao
estabelecimento da praia das Saudades! Antes uma boa morte, diziam.

No primeiro aspecto, não se comprehendia bem esse pasmo, esse espanto,
esse terror do povo por aquella casa immensa, severa e grave, meio
hospital, meio prisão, com seu alto gradil, suas janellas gradeadas, a
se extender por uns centos de metros, em face do mar immenso e verde,
lá na entrada da bahia, na praia das Saudades. Entrava-se, viam-se uns
homens calmos, pensativos, meditabundos, como monges em recolhimento e
prece.

De resto, com aquella entrada silenciosa! clara e respeitavel, perdia-se
logo a idéa popular da loucura; o escarcéo, os trejeitos, as furias, o
entrechoque de tolices ditas aqui e ali.

Não havia nada disso; era uma calma, um silencio, uma ordem
perfeitamente naturaes. No fim, porém, quando se examinavam bem, na
sala das visitas, aquellas faces transtornadas, aquelles ares
aparvalhados, alguns idiotas e sem expressão, outros como alheiados e
mergulhados em um sonho intimo sem fim, e via-se tambem a excitação de
uns, mais viva em face á atonia de outros, é que se sentia o horror da
loucura, o angustioso mysterio que encerra, feito não sei de que
inexplicavel fuga do espirito daquillo que se suppõe o real, para se
apossar e viver das apparencias das cousas ou de outras apparencias das
mesmas.

Quem uma vez esteve diante deste enigma indecifravel da nossa propria
natureza, fica amedrontado, sentindo que o germen daquillo está
depositado em nós e que por qualquer cousa elle nos invade, nos toma,
nos esmaga e nos sepulta numa desesperadora comprehensão inversa e
absurda, de nós mesmos, dos outros e do mundo. Cada louco traz em si o
seu mundo e para ele não ha mais semelhantes: o que foi antes da
loucura é outro muito outro do que elle vem a ser após.

E essa mudança não começa, não se sente quando começa e quasi nunca
acaba. Com o seu padrinho, como fôra? A principio, aquelle
requerimento... Mas que era aquillo? Um capricho, uma fantasia, cousa
sem importancia, uma idéa de velho sem consequencia. Depois, aquelle
officio? Não tinha importancia, uma simples distracção, cousa que
acontece a cada passo... E emfim? A loucura declarada, a tôrva e
ironica loucura que nos tira a nossa alma e põe uma outra, que nos
rebaixa... Emfim, a loucura declarada, a exaltação do eu, a mania de
não sahir, de se dizer perseguido, de imaginar como inimigos, os
amigos, os melhores. Como fôra doloroso aquillo? A primeira phase do
seu delirio, aquella agitação desordenada, aquelle falar sem nexo, sem
accordo com que se realizava fóra delle e com os actos passados, um
falar que não se sabia donde vinha, donde sahia, de que ponto do seu
ser tomava nascimento! E o pavor do doce Quaresma? Um pavor de quem viu
um cataclysma, que o fazia tremer todo, desde os pés á cabeça, e
enchia-o de indifferença para tudo mais que não fosse o seu proprio
delirio.

A casa, os livros e os seus interesses de dinheiro andavam á matroca.
Para elle, nada disso valia, nada disso tinha existencia e importancia.
Eram sombras, apparencias; o real eram os inimigos, os inimigos
terriveis cujos nomes o seu delirio não chegava a criar. A velha
irmã, atarantada, atordoada, sem direcção, sem saber que alvitre
tomar. Educada em casa sempre com um homem ao lado, o pai, depois o
irmão, ella não sabia lidar com o mundo, com negocios, com as
autoridades e pessoas influentes. Ao mesmo tempo, na sua inexperiencia e
ternura de irmã, oscillava entre a crença de que aquillo fosse verdade
e a suspeita do que fosse loucura pura e simples.

Se não fosse seu pai (e Olga amava mais por isso o seu rude pai) que se
interessava, chamando a si interesses da familia e evitando a demissão
de que estava ameaçado, transformando-a em aposentadoria, que seria
delle? Como é facil na vida tudo ruir! Aquelle homem pautado, regrado,
honesto, com emprego seguro, tinha uma apparencia inabalavel;
entretanto bastou um grãosinho de sandice...

Estava ha uns mezes no Hospicio, o seu padrinho, e a irmã não o podia
visitar. Era tal o seu abalo de nervos, era tal a emoção ao vel-o ali
naquella meia-prisão, decaindo delle mesmo que um ataque se seguia e
não podia ser evitado.

Vinham ella e o pai, ás vezes o pai só, algumas vezes Ricardo, e eram
só os tres a visital-o.

Aquelle domingo estava particularmente lindo, principalmente em
Botafogo, nas proximidades do mar e das montanhas altas que se
recortavam num céo de seda. O ar era macio e docemente o sol faiscava
nas calçadas.

O pai vinha lendo os jornaes e ella, pensando, de quando em quando
folheando as revistas illustradas que trazia para alegrar e distrahir o
padrinho.

Elle estava como pensionista; mas, embora assim, no começo, ella teve
um certo pudor em se misturar com os visitantes.

Parecia-lhe que a sua fortuna a punha acima de presenciar miserias;
recalcou porém, dentro de si esse pensamento egoista, o seu orgulho de
classe, e agora entrava naturalmente, pondo em mais destaque a sua
elegancia natural. Amava esses sacrificios, essas abnegações, tinha o
sentimento da grandeza delles, e ficou contente comsigo mesma.

No bonde vinham outros visitantes e todos não tardaram em saltar no
portão do manicomio. Como em todas as portas dos nossos infernos
sociaes, havia de toda a gente, de varias condições, nascimentos e
fortunas. Não é só a morte que nivela; a loucura, o crime e a
molestia passam tambem a sua razoura pelas distincções que inventamos.

Os bem vestidos e os mal vestidos, os elegantes e os pobres, os feios e
os bonitos, os intelligentes e os nescios, entravam com respeito, com
concentração, com uma ponta de pavor nos olhos como se penetrassem
noutro mundo.

Chegavam aos parentes e os embrulhos se desfaziam; eram guloseimas,
fumo, meias, chinellas, ás vezes livros e jornaes. Dos doentes uns
conversavam com os parentes; outros mantinham-se calados, num mutismo
feroz e inexplicavel; outros indifferentes; e era tal a variedade de
aspectos dessas recepções que se chegava a esquecer o imperio da
doença sobre todos aquelles infelizes, tanto ella variava neste ou
naquelle, para se pensar em caprichos pessoaes, em dictames das vontades
livres de cada um.

E ella pensava como esta nossa vida é variada e diversa, como ella é
mais rica de aspectos tristes que de alegres, e como na variedade da
vida a tristeza póde mais variar que a alegria c como que dá o proprio
movimento da vida.

Verificando isso, quasi teve satisfação, pois a sua natureza
intelligente e curiosa se comprazia nas mais simples descobertas que seu
espirito fazia.

Quaresma estava melhor. A exaltação passara e o delirio parecia querer
desapparecer completamente. Chocando-se com aquelle meio, houve logo
nelle uma reacção salutar e necessaria. Estava doido, pois se o punham
ali...

Quando veio a ter com o compadre e a afilhada até trazia um sorriso de
satisfação por baixo do bigode já grisalho. Tinha emmagrecido um
pouco, os cabellos pretos estavam um pouco brancos, mas o aspecto geral
era o mesmo. Não perdera totalmente a mansuetude e a ternura no falar,
mas quando a mania lhe tomava ficava um tanto secco e desconfiado. Ao
vel-os disse amavelmente:

--Então vieram sempre... Estava a espera...

Cumprimentaram-se e elle deu mesmo um largo abraço na afilhada.

--Como está Adelaide?

--Bem. Mandou lembranças e não veiu porque... adiantou Coleoni.

--Coitada! disse elle, e pendeu a cabeça como se quizesse afastar uma
recordação triste; em seguida, perguntou:

--E o Ricardo?

A afilhada apressou-se em responder ao padrinho, com alvoroço e
alegria. Via-o já escapo á semi-sepultura da insania.

--Está bom, padrinho. Procurou papai ha dias e disse que a sua
aposentadoria já está quasi acabada.

Coleoni tinha-se sentado. Quaresma tambem e a moça estava de pé, para
melhor olhar o padrinho com os seus olhos muito luminosos e firmes no
encarar. Guardas, internos e medicos passavam pelas portas com a
indifferença profissional. Os visitantes, não se olhavam, pareciam que
não queriam conhecer-se na rua. Lá fóra, era o dia lindo, os ares
macios, o mar infinito e melancolico, as montanhas a se recortar num
céo de seda--a belleza da natureza imponente e indecifravel. Coleoni,
embora mais assiduo nas visitas, notava as melhoras do compadre com
satisfação que errava na sua physionomia, num ligeiro sorriso. Num
dado momento aventurou:

--O Major já está muito melhor; quer sahir?

Quaresma não respondeu logo; pensou um pouco e respondeu firme e
vagarosamente:

--É melhor esperar um pouco. Vou melhor... Sinto incommodar-te tanto,
mas vocês que têm sido tão bons, hão de levar tudo isso para conta
da propria bondade. Quem tem inimigos deve ter tambem bons amigos...

O pai e a filha entreolharam-se; o Major levantou a cabeça e parecia
que as lagrimas queriam rebentar. A moça interveio de prompto:

--Sabe, padrinho, vou casar-me.

--É verdade, confirmou o pai. A Olga vai casar-se e nós vínhamos
prevenil-o.

--Quem é teu noivo? perguntou Quaresma.

--É um rapaz...

--De certo, interrompeu o padrinho sorrindo.

E os dous acompanharam-n'o com familiaridade e contentamento. Era um bom
signal.

--É o Sr. Armando Borges, doutorando. Está satisfeito, padrinho? fez
Olga gentilmente.

--Então é para depois do fim do anno.

--Esperamos que seja por ahi, disse o italiano.

--Gostas muito delle? indagou o padrinho.

Ella não sabia responder aquella pergunta. Queria sentir que gostava,
mas estava que não. E porque casava? Não sabia... Um impulso do seu
meio, uma cousa que não vinha della--não sabia... Gostava de outro?
Tambem não. Todos os rapazes que ella conhecia, não possuiam relevo
que a ferisse, não tinham o _que_, ainda indeterminado na sua emoção
e na sua intelligencia, que a fascinasse ou subjugasse. Ella não sabia
bem o que era, não chegava a extremar na percepção das suas
inclinações a qualidade que ella queria ver dominante no homem. Era o
heroico, era o fóra do commum, era a força de projecção para as
grandes cousas; mas nessa confusão mental dos nossos primeiros annos,
quando as idéas e os desejos se entrelaçam e se embaralham, Olga não
podia colher e registrar esse anhelo, esse modo de se representar e de
amar o individuo masculino.

E tinha razão em se casar sem obedecer á sua concepção. É tão
difficil ver nitidamente num homem, de 20 a 30 annos, o que ella sonhara
que era bem possivel tomasse a nuvem por Juno... Casava por habito de
sociedade, um pouco por curiosidade e para alargar o campo de sua vida e
aguçar a sensibilidade. Lembrou-se disso tudo rapidamente e respondeu
sem convicção ao padrinho:

--Gosto.

A visita não se demorou muito mais. Era conveniente que fosse rapida,
não convinha fatigar a attenção do convalescente. Os dous sahiram sem
esconder que iam esperançados e satisfeitos.

Na porta ja havia alguns visitantes á espera do bonde. Como não
estivesse o vehiculo no ponto, foram indo ao longo da fachada do
manicomio até lá. Em meio do caminho, encontraram, encostada ao
gradil, uma velha preta a chorar. Coleoni, sempre bom, chegou-se a ella:

--Que tem, minha velha?

A pobre mulher deitou sobre elle um demorado olhar, humido e doce, cheio
de uma irremediavel tristeza, e respondeu:

--Ah! meu sinhô!... É triste... Um filho, tão bom, coitado!

E continuou a chorar. Coleoni começou a commover-se; a filha olhou-a
com interesse e perguntou no fim de um instante:

--Morreu?

--Antes fosse sinhasinha.

E por entre lagrimas e soluços contou que o filho não a conhecia mais,
não lhe respondia ás perguntas; era como um extranho. Enxugou as
lagrimas e concluiu:

--_Foi cousa feita._

Os dous afastaram-se tristes, levando n'alma um pouco daquella humilde
dôr.

O dia estava fresco e a viração, que começava a soprar, enrugava a
face do mar em pequenas ondas brancas. O Pão de Assucar erguia-se
negro, hirto, solemne, das ondas espumejantes, e como que punha uma
sombra no dia muito claro.

No Instituto dos Cégos, tocavam violino: e a voz plangente e demorada
do instrumento parecia sahir daquellas cousas todas, da sua tristeza e
da sua solemnidade.

O bonde tardou um pouco. Chegou. Tomaram. Desceram no largo da Carioca.
É bom ver-se a cidade nos dias de descanço, com as suas lojas
fechadas, as suas estreitas ruas desertas, onde os passos resoam como em
claustros silenciosos. A cidade é como um esqueleto, faltam-lhes as
carnes, que são a agitação, o movimento de carros, de carroças e
gente. Na porta de uma loja ou outra, os filhos do negociante brincam em
velocipedes, atiram bolas e ainda mais se sente a differença da cidade
do dia anterior.

Não havia ainda o habito de procurar os arrabaldes pittorescos e só
encontravam, por vezes, casaes que iam apressadamente a visitas, como
elles agora. O largo de S. Francisco estava silencioso e a estatua, no
centro daquelle pequeno jardim que desappareceu, parecia um simples
enfeite. Os bondes chegavam preguiçosamente ao largo com poucos
passageiros. Coleoni e sua filha tomaram um que os levasse á casa de
Quaresma. Lá foram. A tarde se approximava e as _toilettes_
domingueiras já appareciam nas janellas. Pretos com roupas claras e
grandes charutos ou cigarros; grupos de caixeiros com flores
estardalhantes; meninas em cassas bem engomadas; cartolas
anti-deluvianas ao lado de vestidos pesados de setim negro, envergados
em corpos fartos de matronas sedentarias; e o domingo apparecia assim
decorado com a simplicidade dos humildes, com a riqueza dos pobres e a
ostentação dos tolos.

D. Adelaide não estava só. Ricardo viera visital-a e conversavam.
Quando o compadre de seu irmão bateu no portão, elle contava á velha
senhora o seu ultimo triumpho:

--Não sei como ha de ser, D. Adelaide. Eu não guardo as minhas
musicas, não escrevo--é um inferno!

O caso era de pôr um autor em maus lençóes. O Sr. Paysandon, de
Cordova (Republica Argentina), autor muito conhecido na mesma cidade,
lhe tinha escripto, pedindo exemplares de suas musicas e canções.
Ricardo estava atrapalhado. Tinha os versos escriptos, mas a musica
não. É verdade que as sabia de cór, porém, escrevel-as de uma hora
para outra era trabalho acima de sua força.

--É o diabo! continuou elle. Não é por mim; a questão é que se
perde uma occasião de fazer o Brasil conhecido no estrangeiro.

A velha irmã de Quaresma não tinha grande interesse pelo violão. A
sua educação que se fizera, vendo semelhante instrumento entregue a
escravos ou gente parecida, não podia admittir que elle preoccupasse a
attenção de pessoas de certa ordem. Delicada, entretanto, supportava
a mania de Ricardo, mesmo porque já começava a ter uma ponta de estima
pelo famoso trovador dos suburbanos. Nasceu-lhe essa estima pela
dedicação com que elle se houve no seu drama familiar. Os pequenos
serviços e trabalhos, os passos para ali e para aqui, ficaram a cargo
de Ricardo, que os desempenhara com boa vontade e diligencia.

Actualmente era elle o encarregado de tratar da aposentadoria do seu
antigo discipulo. É um trabalho arduo, esse de liquidar uma
aposentadoria, como se diz na gyria burocratica. Aposentado o sujeito,
solemnemente por um decreto, a cousa corre uma dezena de repartições e
funccionarios para ser ultimada. Nada ha mais grave do que a gravidade
com que o empregado nos diz: ainda estou fazendo o calculo; e a cousa
demora um mez, mais até, como se tratasse de mecanica celeste.

Coleoni era o procurador do Major, mas não sendo entendido em cousas
officiaes, entregou ao Coração dos Outros aquella parte do seu
mandato.

Graças á popularidade de Ricardo, e da sua lhaneza, vencera a
resistencia da machina burocratica e a liquidação estava annunciada
para breve.

Foi isso que elle annunciou a Coleoni, quando este entrou seguido da
filha. Pediram, tanto elle como D. Adelaide, noticias do amigo e do
irmão.

A irmã nunca entendera direito o irmão, com a crise não o ficou
comprehendendo melhor; mas a sentira profundamente com o sentimento
simples de irmã e desejava ardentemente a sua cura.

Ricardo Coração dos Outros gostava do Major, encontrara nelle certo
apoio moral e intellectual de que precisava. Os outros gostavam de ouvir
o seu canto, apreciavam como simples dilletantes: mas o Major era o
unico que ia ao fundo da sua tentativa e comprehendia o alcance
patriotico do sua obra.

De resto, elle agora soffria particularmente--soffria na sua gloria,
producto de um lenço e seguido trabalho de annos. É que apparecera um
creoulo a cantar modinhas e cujo nome começava a tomar força e já era
citado ao lado do seu.

Aborrecia-se com o rival, por dous fatos: primeiro: pelo sujeito ser
preto; e segundo: por causa das suas theorias.

Não é que elle tivesse ogeriza particular aos pretos. O que elle via
no facto de haver um preto famoso tocar violão, era que tal cousa ia
diminuir ainda mais o prestigio do instrumento. Se o seu rival tocasse
piano e por isso ficasse celebre, não havia mal algum; ao contrario: o
talento do rapaz levantava a sua pessoa, por intermedio do instrumento
considerado; mas, tocando violão, era o inverso: o preconceito que lhe
cercava a pessoa, desmoralisava o mysterioso violão que elle tanto
estimava. E além disso com aquellas theorias! Ora! querer que a modinha
diga alguma cousa e tenha versos certos! Que tolice!

E Ricardo levava a pensar nesse rival inesperado que se punha assim
diante delle como um obstaculo imprevisto na subida maravilhosa para a
sua gloria. Precisava afastal-o, esmagal-o, mostrar a sua superioridade
indiscutivel; mas como?

A _reclame_ já não bastava; o rival a empregava tambem. Se elle
tivesse um homem notavel, um grande literato, que escrevesse um artigo
sobre elle e a sua obra, a victoria estava certa. Era difficil
encontrar. Esses nossos literatos eram tão tolos e viviam tão
absorvidos em cousas francezas... Pensou num jornal, «O Violão», em
que elle desafiasse o rival e o esmagasse numa polemica.

Era isso que precisava obter e a esperança estava em Quaresma,
actualmente recolhido ao Hospicio, mas felizmente em via de cura. A sua
alegria foi justamente grande quando soube que o amigo estava melhor.

--Não pude ir hoje, disse elle, mas irei domingo. Está mais gordo?

--Pouca cousa, disse a moça.

--Conversou bem, accrescentou Coleoni. Até ficou contente quando soube
que Olga ia casar-se.

--Vai casar-se, D. Olga? Parabens.

--Obrigada, fez ella.

--Quando é Olga? perguntou D. Adelaide.

--Lá para o fim do anno... Tem tempo...

E logo choveram perguntas sobre o noivo e afloraram as considerações
sobre o casamento.

E ella se sentia vexada; julgava, tanto as perguntas como as
considerações, impudentes e irritantes; queria fugir á conversa, mas
voltavam ao mesmo assumpto, não só Ricardo, mas a velha Adelaide, mais
loquaz e curiosa que commumente. Esse supplicio que se repetia em todas
as visitas, quasi a fazia arrepender-se de ter acceitado o pedido. Por
fim achou um subterfugio, perguntando:

--Como vai o General?

--Não o tenho visto, mas a filha sempre vem aqui. Elle deve andar bem,
a Ismenia é que anda triste, desolada coitadinha!

D. Adelaide contou então o drama que agitava a pequenina alma da filha
do General. Cavalcanti, aquelle Jacob de cinco annos, embarcara para o
interior, ha tres ou quatro mezes e não mandara nem uma carta nem um
cartão. A menina tinha aquillo como um rompimento; e ella, tão incapaz
de um sentimento mais profundo, de uma applicação mais seria de
energia mental e physica, sentia-o muito, como cousa irremediavel que
absorvia toda a sua attenção.

Para Ismenia, era como se todos os rapazes casadoiros tivessem deixado
de existir. Arranjar outro era problema insoluvel, era trabalho acima de
suas forças. Cousa difficil! Namorar, escrever cartinhas, fazer acenos,
dançar, ir a passeios--ella não podia mais com isso. Decididamente,
estava condemnada a não se casar, a ser tia, a supportar durante toda a
existencia esse estado de solteira que a apavorava. Quasi não se
lembrava das feições do noivo, dos seus olhos esgazeados, do seu nariz
duro e fortemente osseo; independente da memoria delle, vinha-lhe sempre
á consciencia, quando, de manhã, o estafeta não lhe entregava carta,
essa outra idéa: não casar. Era um castigo... A Quinota ia casar-se, o
Genelicio já estava tratando dos papeis; e ella que esperam tanto, e
fôra a primeira a noivar-se ia ficar maldita, rebaixada diante de
todas. Parecia até que ambos estavam contentes com aquella fuga
inexplicavel de Cavalcanti. Como elles se riam durante o Carnaval! Como
elles atiraram aos seus olhos aquella sua viuvez prematura, durante os
folguedos carnavalescos! Punham tanta furia no jogo de confetes e
bisnagas, de modo a deixar bem claro a felicidade de ambos, aquella
marcha gloriosa e invejava para o casamento, em face do seu abandono.

Ella disfarçava bem a impressão da alegria delles que lhe parecia
indecente e hostil; mas o escarneo da irmã que lhe dizia
constantemente: «Brinca, Ismenia! Elle está longe, vai
aproveitando»--metia-lhe raiva, a raiva terrivel de gente fraca, que
corróe interiormente, por não poder arrebentar de qualquer forma.

Então, para espantar os máus pensamentos, ella se punha a olhar o
aspecto pueril da rua, marchetada de papeluchos multicores, e as
serpentinas irisadas pendentes nas sacadas; mas o que fazia bem á sua
natureza pobre, comprimida, eram os cordões, aquelle ruido de
atabaques, e adufes, de tambores e pratos. Mergulhando nessa barulheira,
o seu pensamento repousava e como que a idéa que a perseguia desde
tanto tempo ficava impedida de lhe entrar na cabeça.

De resto, aquelles vestuarios extravagantes de indios, aquelles adornos
de uma mythologia francamente selvagem, jacarés, cobras, jabotys,
vivos, bem vivos, traziam á pobreza de sua imaginação imagens
risonhas de rios claros, florestas immensas, logares de socego e pureza
que a reconfortavam.

Tambem aquellas cantigas gritadas, berradas, num rytmo duro e de uma
grande indigencia melodica, vinham como reprimir a magua que ia nella,
abafada, comprimida, contida, que pedia uma explosão de gritos, mas
para o que não lhe sobrava força bastante e sufficiente.

O noivo partira um mez antes do Carnaval e depois do grande festejo
carioca a sua tortura foi maior. Sem habito de leitura e de conversa,
sem actividade domestica qualquer, ella passava os dias deitada,
sentada, a girar em torno de um mesmo pensamento: não casar. Era-lhe
doce chorar.

Nas horas da entrega da correspondencia, tinha ainda uma alegre
esperança. Talvez? Mas a carta não vinha, e, voltava ao seu
pensamento: não casar.

D. Adelaide, acabando de contar o desastre da triste Ismenia, commentou:

--Merecia um castigo isso, não acham?

Coleoni interveio com brandura e boa vontade.

--Não ha razão para desesperar. Ha muita gente que tem preguiça de
escrever...

--Qual! fez D. Adelaide. Ha tres mezes, sr. Vicente!

--Não volta, disse Ricardo sentenciosamente.

--E ella ainda o espera, D. ADelaide? perguntou Olga.

--Não sei, minha filha. Ninguem entende essa moça. Fala pouco, se fala
diz meias-palavras... É mesmo uma natureza que parece sem sangue nem
nervos. Sente-se a sua tristeza, mas não fala.

--É orgulho? perguntou ainda Olga.

--Não, não... Se fosse orgulho, ella não se referia de vez em quando
ao noivo. É antes molleza, preguiça... Parece que ella tem medo de
falar para que as cousas não venham acontecer.

--E os paes que dizem a isso? indagou Coleoni.

Não sei bem. Mas pelo que pude perceber, o incommodo do General não é
grande e D. Maricota julga que ella deve arranjar _outro_.

--Era o melhor, disse Ricardo.

--Eu creio que ella não tem mais pratica, disse sorrindo D. Adelaide.
Levou tanto tempo noiva...

E a conversa já tinha virado para outros assumptos, quando a Ismenia
veiu fazer a sua visita diaria á irmã de Quaresma.

Cumprimentou todos e todos sentiram que ella penava. O soffrimento
dava-lhe mais actividade á physionomia.

As palpebras estavam roxas e até os seus pequenos olhos pardos tinham
mais brilho e expansão. Indagou da saude de Quaresma e depois
calaram-se um instante. Por fim D. Adelaide lhe perguntou:

--Recebeste carta, Ismenia?

--Ainda não, respondeu ella com grande economia de voz.

Ricardo moveu-se na cadeira. Batendo com o braço num _dunkerque_, veiu
atirar ao chão uma figurinha de _biscuit_, que se esphacelou em
innumeros fragmentos, quasi sem ruido.



SEGUNDA PARTE



I

NO «SOCEGO»


Não era feio o logar, mas não era bello. Tinha, entretanto, o aspecto
tranquillo e satisfeito de quem se julga bem com a sua sorte.

A casa erguia-se sobre um socalco, uma especie de degrau, formando a
subida para, a maior altura de uma pequena collina que lhe corria nos
fundos. Em frente, por entre os bambús da cerca, olhava uma planicie a
morrer nas montanhas que se viam ao longe; um regalo de aguas paradas e
sujas cortava-a parallemente á testada da casa; mais adeante, o trem
passava vincando a planicie com a fita clara de sua linha capinada; um
carreiro, com casas, de um e do outro lado, sahia da esquerda e ia ter
á estação, atravessando o regato e serpeando pelo plaino. A
habitação de Quaresma tinha assim um amplo horizonte, olhando para o
levante, a _noruega_, e era tambem risonha e graciosa nos seus muros
caiados. Edificada com a desoladora indigencia architectonica das nossas
casas de campo, possuia, porém, vastas salas, amplos quartos, todos com
janella, e uma varanda com uma columnata heterodoxa. Além desta
principal, o sitio do «Socego», como se chamava, tinha outras
construcções: a velha casa da farinha, que ainda tinha o forno intacto
e a roda desmontada, e uma estrebaria coberta de sapê.

Não havia tres mezes que viera habitar aquella casa, naquelle ermo
logar, a duas horas do Rio, por estrada de ferro, após ter passado seis
mezes no Hospicio da praia das Saudades. Sahira curado? Quem sabe lá?
Parecia: não delirava e os seus gestos e propositos eram do homem
commum embora, sob tal apparencia, se pudesse sempre crer que não se
lhe despedira de todo, já não se dirá a loucura, mas o sonho que
cevara durante tantos annos. Foram mais seis mezes de repouzo e util
sequestração que mesmo de uso de uma therapeutica psychiatrica.

Quaresma viveu lá, no manicomio, resignadamente, conversando com os
seus companheiros, onde via ricos que se diziam pobres, pobres que se
queriam ricos, sabios a mal dizer da sabedoria, ignorantes a se
proclamarem sabios; mas, delles todos, daquelle que mais se admirou,
foi de um velho e placido negociante da rua dos Pescadores que se
suppunha Attila. Eu, dizia o pacato velho, sou Attila, sabe? Sou Attila.
Tinha fracas noticias da personagem, sabia o nome e nada mais. Sou
Attila, matei muita gente--e era só.

Sahiu o Major mais triste ainda do que vivera toda a vida. De todas as
cousas tristes de ver, no mundo, a mais triste é a loucura; é a mais
depressora e pungente.

Aquella continuação da nossa vida tal e qual, com um desarranjo
imperceptivel, mas profundo e quasi sempre insondavel, que a inutiliza
inteiramente, faz pensar em alguma cousa mais forte que nós, que nos
guia, que nos impelle e em cujas mãos somos simples joguetes. Em varios
tempos e lugares, a loucura foi considerada sagrada, e deve haver razão
nisso no sentimento que se apodera de nós quando, ao vermos um louco
desarrazoar, pensamos logo que já não é elle quem fala, é alguém,
alguém que vê por elle, interpreta as cousas por elle, está atraz
delle, invisivel!...

Quaresma sahiu envolvido, penetrado da tristeza do manicomio. Voltou á
sua casa, mas a vista das suas cousas familiares não lhe tirou a forte
impressão de que vinha impregnado. Embora nunca tivesse sido alegre, a
sua physionomia apresentara mais desgosto que antes, muito abatimento
moral, e foi para levantar o animo que se recolheu áquella risonha casa
de roça, onde se dedicava a modestas culturas.

Não fora elle, porém, quem se lembrara; fora a afilhada que lhe trouxe
á idéa aquelle doce acabar para a sua vida. Vendo-o naquelle estado de
abatimento, triste e taciturno, sem coragem de sahir, enclausurado em sua
casa de São Cristovam, Olga dirigiu-se um dia ao padrinho meiga e
filialmente:

--O padrinho porque não compra um sitio? Seria tão bom fazer as suas
culturas, ter o seu pomar, a sua horta... não acha?

Tão taciturno que elle estivesse, não pôde deixar de modificar
immediatamente a sua physionomia á lembrança da moça. Era um velho
desejo seu, esse de tirar da terra o alimento, a alegria e a fortuna; e
foi lembrando dos seus antigos projectos que respondeu á afilhada:

--É verdade, minha filha. Que magnifica idéa, tens tu! Ha por ahi
tantas terras ferteis sem emprego... A nossa terra tem os terrenos mais
ferteis do mundo... O milho póde dar até duas colheitas e quatrocentos
por um...

A moça esteve quasi arrependida da sua lembrança. Pareceu-lhe que ia
atêar no espirito do padrinho manias já extinctas.

--Em toda a parte--não acha, meu padrinho?--ha terras ferteis.

--Mas como no Brasil, apressou-se elle em dizer, ha poucos paizes que as
tenham. Vou fazer o que tu dizes: plantar, criar, cultivar o milho, o
feijão, a batata ingleza... Tu irás ver as minhas culturas, a minha
horta, o meu pomar--então é que te convencerás como são fecundas as
nossas terras!

A idéa cahiu-lhe na cabeça e germinou logo. O terreno estava amanhado
e só estirava uma bôa semente. Não lhe voltou a alegria que jamais
teve, mas a taciturnidade foi-se com o abatimento moral, e veiu-lhe a
actividade mental cerebrina, por assim dizer, de outros tempos. Indagou
dos preços correntes das fructas, dos legumes, das batatas, dos aipins;
calculou que cincoenta laranjeiras, trinta abacateiras, oitenta
pecegueiros, outras arvores fruticferas, além dos abacaxis (que mina!)
das aboboras e outros productos menos importantes, podiam dar o
rendimento annual de mais de quatro contos, tirando as despezas. Seria
ocioso trazer para aqui os detalhes dos seus calculos, baseados em tudo
no que vem estabelecido nos boletins da Associação de Agricultura
Nacional. Levou em linha de conta a producção média de cada pé de
fructeira, de hectare cultivado, e tambem os salarios, as perdia
inevitaveis; e, quanto aos preços, elle foi em pessoa no mercado
buscal-os.

Planejou a sua vida agricola com a exactidão e meticulosidade que punha
em todos os seus projectos. Encarou-a por todas as faces, pezou as
vantagens e onus; e muito contente ficou em vel-a monetariamente
attrahente, não por ambição de fazer fortuna, mas por haver nisso
mais uma demonstração das excellencias do Brasil.

E foi obedecendo a essa ordem de idéas que comprou aquelle sitio, cujo
nome--«Socego»--cabia tão bem á nova vida que adoptara, após a
tempestade que o sacudira durante quasi um anno. Não ficava longe do
Rio e elle o escolhera assim mesmo maltratado, abandonado, para melhor
demonstrar a força e o poder da tenacidade, do carinho, no trabalho
agricola. Esperava grandes colheitas de fructas, de grãos, de legumes;
e do seu exemplo, nasceriam mil outros cultivadores, estando em breve a
grande capital cercada de um verdadeiro celleiro, virente e abundante a
dispensar os argentinos e europeus.

Com que alegria elle foi para lá! Quasi não teve saudades de sua velha
casa de S. Januario, agora propriedade de outras mãos, talvez destinada
ao mercenario mister de lar de aluguel... Não sentiu que aquella vasta
sala, abrigo calmo dos seus livros durante tantos annos, fosse servir
para salão de baile futil, fosse testemunhar talvez rixas de casaes
desentendidos, odios de familia--ella tão boa, tão doce, tão
sympathica, com o seu tecto alto e as suas paredes lisas, em que se
tinham encrustado os desejos de sua alma e toda ella penetrada da
exhalação dos seus sonhos!...

Elle foi contente. Como era tão simples viver na nossa terra! Quatro
contos de réis por anno, tirados da terra, facilmente, docemente,
alegremente! Oh! terra abençoada! Como é que toda a gente queria ser
empregado publico, apodrecer numa banca, soffrer na sua independencia e
no seu orgulho? Como é que se preferia viver em casas apertadas, sem
ar, sem luz, respirar um ambiente epidemico, sustentar-se de maus
alimentos, quando se podia tão facilmente obter uma vida feliz, farta,
livre, alegre e saudavel?

E era agora que elle chegava a essa conclusão, depois de ter soffrido a
miseria da cidade e o emasculamento da repartição publica, durante
tanto tempo! Chegara tarde, mas não a ponto de que não pudesse antes
da morte travar conhecimento com a doce vida campestre e a feracidade
das terras brasileiras. Então pensou que foram vãos aquelles seus
desejos de reformas capitaes nas instituições e costumes: o que era
principal á grandeza da patria estremecida, era uma forte base
agricola, um culto pelo seu solo uberrimo, para alicerçar fortemente
todos os outros destinos que ella tinha de preencher.

Demais, com terras tão ferteis, climas variados, a permittir uma
agricultura facil e rendosa, este caminho estava naturalmente indicado.

E ele viu então diante dos seus olhos as laranjeiras, em flôr,
olentes, muito brancas, a se enfileirar pelas encostas das collinas,
como theorias de noivas; os abacateiros, de troncos rugosos, a sopesar
com esforço os grandes pomos verdes; as jabuticabas negras a estalar
dos caules rijos; os abacaxis coroados que nem reis, recebendo a
uncção quente do sol; as abobreiras a se arrastarem com flores
carnudas cheias de pollen; as melancias de um verde tão fixo que
parecia pintado; os pecegos veludosos, as jacas monstruosas, os jambos,
as mangas capitosas; e dentre tudo aquillo surgia uma linda mulher, com
o regaço cheio de fructos e um dos hombros nu, a lhe sorrir agradecida,
com um imaterial sorriso demorado de deusa--era Pomona, a deusa dos
vergeis e dos jardins!...

As primeiras semanas que passou no «Socego», Quaresma as empregou numa
exploração em regra da sua nova propriedade. Havia nella terra
bastante, velhas arvores fructiferas, um capoeirão grosso com camarás,
bacurubús, tinguacibas, tibibuyas, munjólos, e outros specimens.
Anastacio que o acompanhara, appelava para as suas recordações de
antigo escravo de fazenda, e era quem ensinava os nomes dos individuos
da mata a Quaresma muito lido e sabido em cousas brasileiras.

O Major logo organizou um museu dos productos naturaes do «Socego». As
especies florestaes e campezinas foram etiquetadas com os seus nomes
vulgares, e quando era possivel com os scientificos. Os arbustos, em
herbario e as madeiras, em pequenos tocos, seccionados longitudinal e
transversalmente.

Os azares de leituras tinham-no levado a estudar as sciencias naturaes e
o furor auto-didacta dera a Quaresma solidas noções de botanica,
zoologia, mineralogia e geologia.

Não foram só os vegetaes que mereceram as honras de um inventario; os
animaes tambem, mas como elle não tinha espaço sufficiente e a
conservação dos exemplares exigia mais cuidado, Quaresma limitou-se a
fazer o seu museu no papel, por onde sabia que as terras eram povoadas
de tatús, cotias, preás, cobras variadas, saracuras, sanãs,
avinhados, colleiros, tyês, etc. A parte mineral era pobre, argillas,
arêa e, aqui e ali, uns blocos de granito exfoliando-se.

Acabado esse inventario, passou duas semanas a organizar a sua
bibliotheca agricola e uma relação de instrumentos metereologicos para
auxiliar os trabalhos da lavoura.

Encommendou livros nacionaes, francezes, portuguezes; comprou
thermometros, barometros, pluviometros, hygrometros, anemometros. Vieram
estes e foram arrumados e collocados convenientemente.

Anastacio assistia a todos esses preparativos com assombro. Para que
tanta cousa, tanto livro, tanto vidro? Estaria o seu amigo patrão dando
para pharmaceutico? A duvida do preto velho não durou muito. Estando
certa vez Quaresma a ler o pluviometro, Anastacio, ao lado, olhava-o
espantado, como quem assiste a um passe de feitiçaria. O patrão notou
o espanto do criado, e disse:

--Sabes o que estou fazendo, Anastacio?

--Não _sinhô_.

--Estou vendo se choveu muito.

--Para que isso, patrão? A gente sabe logo _de olho_ quando chove muito
ou pouco... Isso de plantar é capim; pôr a semente na terra, deixar
crescer e apanhar...

Elle falava com a sua voz molle de africano, sem _rr_ fortes, com
lentidão e convicção.

Quaresma, sem abandonar o instrumento, tomou em consideração o
conselho de seu empregado. O capim e o matto cobriam as suas terras. As
larangeiras, os abacateiros, as mangueiras estavam sujos, cheios de
galhos mortos, e cobertos de uma medusina cabelleira de herva de
passarinho; mas, como não fosse época propria á póda e ao corte dos
galhos, Quaresma limitou-se a capinar por entre os pés das fruteiras.
De manhã, logo ao amanhecer, elle mais o Anastacio, lá iam, de enxada
ao hombro, para o trabalho do campo. O sol era forte e rijo; o verão,
estava no auge, mas Quaresma era inflexível e corajoso. Lá ia.

Era de vel-o, coberto com um chapéo de palha de côco, atracado a um
grande enxadão de cabo nodoso, elle, muito pequeno, myope, a dar golpes
sobre golpes para arrancar um teimoso pé de guaximba. A sua enxada mais
parecia uma draga, um escavador, que um pequeno instrumento agricola.
Anastacio, junto ao patrão, olhava-o com piedade e espanto. Por gosto
andar naquelle sól a capinar sem saber?... Ha cada cousa neste mundo!

E os dous iam continuando. O velho preto, ligeiro, rapido, raspando o
matto rasteiro, com a mão habituada, a cujo impulso a enxada resvalava
sem obstaculo pelo solo, destruindo a herva má; Quaresma, furioso, a
arrancar torrões de terra daqui, dali, demorando-se muito em cada
arbusto; e, ás vezes, quando o golpe falhava e a lamina do instrumento
roçava a terra, a força era tanta que se erguia uma poeira infernal,
fazendo suppor que por aquellas paragens passara um pelotão de
cavallaria. Anastacio, então, intervinha humildemente, mas em tom
professoral:

--Não é assim, _seu majó_. Não se mette a enxada pela terra a
dentro. É de leve, assim.

E ensinava ao Cincinato inexperiente o geito de servir-se do velho
instrumento de trabalho.

Quaresma agarrava-o, punha-se em posição e procurava com toda a boa
vontade usal-o da maneira ensinada. Era em vão. O _flange_ batia na
herva, a enxada saltava e ouvia-se um passaro ao alto soltar uma piada
ironica: Bemtevi! O Major enfurecia-se, tentava outra vez, fatigava-se,
suava, enchia-se de raiva e batia com toda a força; e houve varias
vezes que a enxada, batendo em falso, escapando do chão, fel-o perder o
equilibrio, cahir, e beijar a terra, mãe dos fructos e dos homens. O
pince-nez saltava, partia-se de encontro a um seixo.

O Major ficava todo enfurecido e voltava com mais rigor e energia á
tarefa que se impuzera; mas, tanto é em nossos musclos firme a memoria
ancestral desse sagrado trabalho de tirar da terra o sustento de nossa
vida, que não foi impossivel a Quaresma acordar nos seus o geito, a
maneira de empregar a enxada vetusta.

Ao fim de um mez, elle capinava razoavelmente, não seguido, de sol a
sol, mas com grandes repousos de hora em hora que a sua idade e falta de
habito requeriam.

Ás vezes, o fiel Anastacio seguia-o no descanço e ambos, lado a lado,
á sombra de uma fructeira mais copada, ficavam a ver o ar pesado
daquelles dias de verão que enrodilhava as folhas das arvores e punha
nas cousas um forte accento de resignação morbida. Então, ahi por
depois do meio dia, quando o calor parecia narcotizar tudo e mergulhar
em silencio a vida inteira, é que o velho Major percebia bem a alma
dos tropicos, feita de desencontros como aquelle que se via agora, de um
sol alto, claro, olympico a brilhar sobre um torpor de morte, que elle
mesmo provocava.

Almoçavam mesmo no eito, comidas do dia anterior, aquecidas rapidamente
sobre um improvisado fogão de calháos, e o trabalho ia assim ate á
hora do jantar. Havia em Quaresma um enthusiasmo sincero, enthusiasmo de
ideologo que quer pôr em pratica a sua idéa. Não se agastou com as
primeiras ingratidões da terra, aquelle seu morbido amor pelas hervas
damninhas e o incomprehensivel odio pela enxada fecundante. Capinava, e
capinava sempre até vir jantar.

Esta refeição elle fazia mais demorada. Conversava um pouco com a
irmã, contava-lhe a tarefa do dia, consistindo sempre em avaliar a area
já limpa.

--Sabes, Adelaide, amanhã estarão as laranjeiras limpas, não ficará
nem mais uma touceira de matto.

A irmã, mais velha que elle, não partilhava aquelle seu enthusiasmo
pelas cousas da roça. Considerava-o silenciosa, e, se viera viver com
elle, não foi senão pelo habito de acompanhal-o. De certo, ella o
estimava, mas não o comprehendia. Não chegava a entender nem os seus
gestos nem a sua agitação interna. Porque não seguira elle o caminho
dos outros? Não se formara e se fizera deputado? Era tão bonito...
Andar com livros, annos e annos, para não ser nada, que doideira!
Scguira-o ao «Socego» e, para entreter-se, criava gallinhas, com
grande alegria do irmão cultivador.

--Está direito, dizia ella, quando o irmão lhe contava as cousas do
seu trabalho. Não vá ficares doente... Neste sol todo o dia...

--Qual, doente, Adelaide! Não estas vendo como essa gente tem tanta
saude por ahi... Se adoecem, é porque não trabalham.

Acabado o jantar. Quaresma chegava á janella que dava para o
gallinheiro e atirava migalhas de pão ás aves.

Elle gostava desse espectaculo, daquella luta encarniçada entre patos,
ganços, gallinhas, pequenos e grandes. Dava-lhe uma imagem reduzida da
vida e dos premios que ella comporta. Depois, fazia indagações sobre
a vida do gallinheiro:

--Já, nasceram os patos, Adelaide?

--Ainda não. Faltam oito dias ainda.

E logo a irmã accrescentava:

--Tua afilhada deve casar-se sabbado, tu não vaes?

--Não. Não posso... Vou encommodar-me, luxo... Mando um leitão e um
perú.

--Ora, tu! Que presente!

--Que é que tem? É da tradição.

Justamente estavam nesse dia assim a conversar os dous irmãos na sala
de jantar da velha casa roceira, quando Anastacio veiu avisar-lhes que
se achava um cavalheiro na porteira.

Desde que ali se installara, nenhuma visita batera á porta de Quaresma,
a não ser a gente pobre do logar, a pedir isso ou aquillo, esmolando
disfarçadamente. Elle mesmo não travara conhecimento com ninguem, de
modo que foi com surpreza que recebeu o aviso do velho preto.

Apressou-se em ir receber o visitante na sala principal. Elle já subia
a pequena escada da frente e penetrava pela varanda a dentro.

--Boas tardes, Major.

--Boas tardes. Faça o favor de entrar.

O desconhecido entrou e sentou-se. Era um typo commum, mas o que havia
nelle de extranho, era a gordura. Não era desmedida ou grotesca, mas
tinha um aspecto deshonesto. Parecia que a fizera de repente e comia, a
mais não poder, com medo de a perder de um dia para outro. Era assim
como a de um lagarto que enthezoura enxundia para o inverno ingrato.
Atravez da gordura de suas bochechas, via-se perfeitamente a sua
magreza natural, normal, e se devia ser gordo não era naquella idade,
com pouco mais de trinta annos, sem dar tempo que todo elle engordasse;
porque, se as suas faces eram gordas, as suas mãos continuavam magras
com longos dedos fusiformes e ageis. O visitante falou:

--Eu sou o Tenente Antonino Dutra escrivão da collectoria.

--Alguma formalidade? indagou medroso Quaresma.

--Nenhuma, Major. Já sabemos quem o senhor é; não ha novidade nem
nenhuma exigencia legal.

O escrivão tossiu, tirou um cigarro, offereceu outro a Quaresma e
continuou:

--Sabendo que o Major vem estabelecer-se aqui, tomei a iniciativa de vir
incommodal-o... Não é cousa de importancia... Creio que o Major...

--Oh! Por Deus, Tenente!

--Venho pedir-lhe um pequeno auxilio, um obulo, para a festa da
Conceição, a nossa padroeira, de cuja irmandade sou thesoureiro.

--Perfeitamente. É muito justo. Apezar de não ser religioso, estou...

--Uma cousa nada tem com a outra. É uma tradição do logar que devemos
manter.

--É justo.

--O senhor sabe, continuou o escrivão, a gente daqui é muito pobre e a
irmandade tambem, de forma que somos obrigados a appellar para a boa
vontade dos moradores mais remediados. Desde já, portanto, Major...

--Não. Espere um pouco...

--Oh! Major, não se incommode. Não é p'ra já.

Enxugou o suor, guardou o lenço, olhou um pouco lá fóra e
accrescentou:

--Que calor! Um verão como este nunca vi aqui. Tem-se dado bem, Major?

--Muito bem.

--Pretende dedicar-se á agricultura?

--Pretendo, e foi mesmo por isso que vim para a roça.

--Isto hoje não presta, mas noutro tempo!... Este sitio já foi uma
lindeza, Major! Quanta fructa! Quanta farinha! As terras estão
cançadas e...

--Que cançadas, seu Antonino! Não ha terras cançadas.... A Europa é
cultivada ha milhares de annos, entretanto...

--Mas lá se trabalha.

--Porque não se ha de trabalhar aqui tambem?

--Lá isso é verdade; mas ha tantas contrariedades na nossa terra
que...

--Qual, meu caro Tenente! Não ha nada que não se vença.

--O Sr. verá com o tempo, Major. Na nossa terra não se vive senão de
politica, fóra disso, ba-báo! Agora mesmo anda tudo brigado por causa
da questão da eleição de deputados...

Ao dizer isto, o escrivão lançou por baixo das suas palpebras gordas
um olhar pesquizador sobre a ingenua physionomia de Quaresma.

--Que questão é? indagou Quaresma.

O Tenente parecia que esperava a pergunta e logo fez com alegria:

--Então não sabe?

--Não.

--Eu lhe explico: o candidato do Governo é o Dr. Castrioto, moço
honesto, bom orador; mas entenderam aqui certos presidentes de Camaras
Municipaes do Districto que se hão de sobrepor ao Governo, só porque
o Senador Guaryba rompeu com o Governador: e--zás--apresentaram um tal
Neves que não tem serviço algum ao partido e nenhuma influencia... Que
pensa o Senhor?

--Eu... Nada!

O serventuario do fisco ficou espantado. Havia no mundo um homem que,
sabendo e morando no Municipio de Curuzú, não se incommodasse com a
briga ao Senador Guaryba com o Governador do Estado! Não era possivel!
Pensou e sorriu levemente. Com certeza, disse elle consigo, este
malandro quer ficar bem com os dous, para depois arranjar-se sem
difficuldade. Estava tirando sardinha com mão de gato... Aquillo devia
ser um ambicioso matreiro; era preciso cortar as azas daquelle
_estrangeiro_, que vinha não se sabe donde!

--O Major é um philosopho, disse elle com malicia.

--Quem me dera? fez com ingenuidade Quaresma.

Antonino ainda fez rodar um pouco a conversa sobre a grave questão,
mas, desanimado de penetrar nas tenções occultas do Major, apagou a
physionomia e disse em ar de despedida:

--Então o Major não se recusa a concorrer para a nossa festa, não é?

--De certo.

Os dous se despediram. Debruçado na varanda, Quaresma ficou a vel-o
montar no seu pequeno castanho, luzidio de suor, gordo e vivo. O
escrivão afastou-se, desappareceu na estrada, e o Major ficou a pensar
no interesse extranho que essa gente punha nas lutas politicas, nessas
tricas eleitoraes, como se nellas houvesse qualquer cousa de vital e
importante. Não atinara porque uma resinga entre dous figurões
importantes vinha pôr desharmonia entre tanta gente, cuja vida estava
tão fóra da esphera daquelles. Não estava ali a terra boa para
cultivar e criar: Não exigia ella uma ardua luta diaria? Porque não se
empregava o esforço que se punha naquelles barulhos de votos, de actas,
no trabalho de fecundal-a, de tirar della seres, vidas--trabalho igual
ao de Deus e dos artistas? Era tolo estar a pensar em governadores e
guarybas, quando a nossa vida pede tudo à terra e ella quer carinho,
luta, trabalho e amor...

O suffrageo universal pareceu-lhe um flagello.

O trem apitou e elle demorou-se a vel-o chegar. É uma emoção especial
de quem mora longe, essa de ver chegar os meios de transporte que nos
põem em communicação com o resto do mundo. Ha uma mescla de medo e
de alegria. Ao mesmo tempo que se pensa em boas novas, pensam-se tambem
más. A alternativa angustia...

O trem ou o vapor como que vem do indeterminado, do Mysterio, e traz,
além de noticias geraes, bôas ou más tambem o gosto, um sorriso, a
voz das pessoas que amamos e estão longe.

Quaresma esperou o trem. Elle chegou arfando e se extirando como um
reptil pela estação afóra á luz forte do sol no poente. Não se
demorou muito. Apitou de novo e sahiu a levar noticias, amigos,
riquezas, tristezas por outras estações além. O Major pensou ainda um
pouco como aquillo era bruto e feio, e como as invenções do nosso
tempo se afastam tanto da linha imaginaria da belleza que os nossos
educadores de dous mil annos atrás nos legaram. Olhou a estrada que
levava á estação. Vinha um sujeito... Dirigia-se para a sua casa...
Quem podia ser? Limpou o pince-nez e assestou-o para o homem que
caminhava com pressa... Quem era? Aquelle chapéo dobrado, como um
morrião... Aquelle fraque comprido... Passo miudo... Um violão! Era
elle!

--Adelaide está ahi o Ricardo.



II

ESPINHOS E FLORES


Os suburbios do Rio de Janeiro são a mais curiosa cousa em materia de
edificação de cidade. A topographia do local, caprichosamente
montuosa, influiu de certo para tal aspecto, mais influiram, porém, os
azares das construcções.

Nada mais irregular, mais caprichoso, mais sem plano qualquer, pode ser
imaginado. As casas surgiram como se fossem semeadas ao vento e,
conforme as casas, as ruas se fizeram. Ha algumas dellas que começam
largas como «boulevards» e acabam estreitas que nem viellas; dão
voltas, circuitos inuteis e parecem fugir ao alinhamento recto com um
odio tenaz e sagrado.

Ás vezes se succedem na mesma direcção com uma frequencia irritante,
outras se afastam, e deixam de permeio um longo intervallo coheso e
fechado de casas. Num trecho, ha casas amontoadas umas sobre outras numa
angustia de espaço desoladora, logo adiante um vasto campo abre ao
nosso olhar uma ampla perspectiva.

Marcham assim ao acaso as edificações e conseguintemente o arruamento.
Ha casas de todos os gostos e construidas de todas as formas.

Vai-se por uma rua a ver um correr de «chalets», de porta e janella,
parede de frontal, humildes e acanhados, de repente se nos depara uma
casa burgueza, dessas de compoteiras na cimalha rendilhada, a se erguer
sobre um porão alto com mezzaninos gradeados. Passada essa surpreza,
olha-se acolá e dá-se com uma choupana de pau a pique, coberta de
zinco ou mesmo palha, em torno da qual formiga uma população; adiante,
é uma velha casa de roça, com varanda e columnas de estylo pouco
classificavel, que parece vexada e querer occultar-se, diante daquella
onda de edificios disparatados e novos.

Não ha nos nossos suburbios cousa alguma que nos lembre os famosos das
grandes cidades européas, com as suas villas de ar repousado e
satisfeito, as suas estradas e ruas macadamisadas e cuidadas, nem mesmo
se encontram aquelles jardins, cuidadinhos, aparadinhos, penteados,
porque os nossos, se os ha, são em geral pobres, feios e desleixados.

Os cuidados municipaes tambem são variaveis e caprichosos. Ás vezes,
nas ruas, ha passeios, em certas partes e outras não; algumas vias de
communicação são calçadas e outras da mesma importancia estão ainda
em estado de natureza. Encontra-se aqui um pontilhão bem cuidado sobre
um rio secco e passos além temos que atravessar um ribeirão sobre uma
pinguella de trilhos mal juntos.

Ha pelas ruas damas elegantes, com sedas e brocados, evitando a custo
que a lama ou o pó lhes empanem o brilho do vestido; ha operarios de
tamancos; ha peralvilhos á ultima moda: ha mulheres de chita; e assim
pela tarde, quando essa gente volta do trabalho ou do passeio, a mescla
se faz numa mesma rua, num quarteirão, e quasi sempre o mais bem posto
não é que entra na melhor casa.

Alem disto, os suburbios têm mais aspectos interessantes, sem falar no
namoro epidemico e no espiritismo endemico; as casas de commodos (quem
as supporia lá!) constituem um delles bem inedito. Casas que mal dariam
para uma pequena familia, são divididas, subdivididas, e os minusculos
aposentos assim obtidos, alugados á população miseravel da cidade.
Ahi, nesses caixotins humanos, é que se encontra a fauna menos
observada da nossa vida, sobre a qual a miseria paira com um rigor
londrino.

Não se podem imaginar profissões mais tristes e mais inopinadas da
gente que habita taes caixinhas. Além dos serventes de repartições,
continuos de escriptorios, podemos deparar velhas fabricantes de rendas
de bilros, compradores de garrafas vasias, castradores de gatos, cães e
gallos, mandingueiros, catadores de hervas medicinaes, emfim, uma
variedade de profissões miseraveis que as nossas pequena e grande
burguezias não podem adivinhar. Ás vezes num cubiculo desses se
amontoa uma familia, e ha occasiões que os seus chefes vão a pé para
a cidade por falta da nickel do trem.

Ricardo Coração dos Outros morava em uma pobre casa de commodos de um
dos suburbios. Não era das sordidas, mas era uma casa de commodos dos
suburbios.

Desde annos que elle a habitava e gostava da casa que ficava trepada
sobre uma collina, olhando a janella do seu quarto para uma ampla
extensão edificada que ia da Piedade a Todos os Santos. Vistos assim do
alto, os suburbios têm a sua graça. As casas pequeninas, pintadas de
azul, de branco, de óca, engastadas nas comas verde-negras das
mangueiras, tendo de permeio, aqui e ali, um coqueiro ou uma palmeira,
alta e soberba, fazem a vista boa e a falta de percepção do desenho
das ruas põe no panorama um sabor do confusão democratica, de
solidariedade perfeita entre as gentes que as habitam; e o trem
minusculo, rapido, atravessa tudo aquillo, dobrando d esquerda,
inclinando-se para a direita, muito flexivel nas suas grandes vertebras
de carros, como uma cobra entre pedrouços.

Era daquella janella que Ricardo, espraiava as suas alegrias, as suas
satisfações, os seus triumphos e tambem os seus soffrimentos e maguas.

Ainda agora estava elle lá, debruçado no peitoril, com a mão em
concha no queixo, colhendo com a vista uma grande parte daquella bella,
grande e original cidade, capital de um grande paiz de que elle a modos
que era e se sentia ser, a alma, consubstanciando os seus tenues sonhos
e desejos em versos discutiveis, mas que a plangencia do violão, se
não lhes dava sentido, dava um que de balbucio, de queixume dorido da
patria criança ainda, ainda na sua formação...

Em que pensava elle? Não pensava só, soffria tambem. Aquelle tal preto
continuava na sua mania de querer fazer a modinha dizer alguma cousa, e
tinha adeptos. Alguns já o citavam como rival delle, Ricardo; outros
já affirmavam que o tal rapaz deixava longe o Coração dos Outros, e
alguns mais--ingratos!--já esqueciam os trabalhos, o tenaz trabalhar de
Ricardo Coração dos Outros em pról do levantamento da modinha e do
violão, e nem nomeavam o abnegado obreiro.

Com o olhar perdido, Ricardo lembrava-se de sua infancia, daquella sua
aldeia sertaneja, da casinha dos seus pais, com seu curral e o mugido
dos vitellos. E o queijo? Aquelle queijo tão substancial, tão forte,
feio como aquella terra, mas feraz como ella tanto que bastava comer
delle uma pequena fatia para se sentir almoçado... E as festas?
Saudades... E o violão, como aprendeu? O seu mestre, o Maneco Borges,
não lhe predissera o futuro: «Irás longe, Ricardo. A viola quer teu
coração».

Por que então aquelle encarniçamento, aquelle odio contra elle--elle
que trouxera para esta terra de estrangeiros a alma, o suco, a
substancia do paiz!

E as lagrimas lhe saltaram quentes dos olhos afóra. Olhou um pouco as
montanhas, farejou o mar lá longe... Era bella a terra, era linda, era
magestosa, mas parecia ingrata e aspera no seu granito omnipresente que
se fazia negro e mau quando não era amaciado pela verdura das arvores.

E elle estava ali só, só com a sua gloria e o seu tormento, sem amor,
sem confidente, sem amigo, só como um deus ou como um apostolo em terra
ingrata que não lhe quer ouvir a boa nova.

Soffria em não ter um peito amado, amigo em que derramasse aquellas
lagrimas que iam cahir no solo indifferente. Por ahi, lembrou-se dos
famosos versos: _Se choro... bebe o pranto a areia ardente_...

Com a lembrança, elle baixou um pouco o olhar á terra e viu que no
tanque da casa, um tanto escondida delle, uma rapariga preta lavava.
Ella abaixava o corpo sobre a roupa, carregava todo o seu peso,
ensaboava-a ligeira, batia-a de encontro á pedra, e recomeçava. Teve
pena daquella pobre mulher, duas vezes triste na sua condição e na sua
côr. Veiu-lhe um afflux de ternura e, depois, poz-se a pensar no mundo,
nas desgraças, ficando um instante enleiado no enigma do nosso
miseravel destino humano.

A rapariga não o viu, distrahida com o trabalho; e se pôz a cantar:


    _Da doçura dos teus olhos
     A brisa inveja já vem_


Era delle. Ricardo sorriu satisfeito e teve vontade de ir beijar aquella
pobre mulher, abraçal-a...

E como eram as cousas? Elle recebia lenitivo daquella rapariga; era a
sua humilde e dorida voz que vinha afagar o seu tormento! Vieram-lhe
então á memoria aquelles versos do padre Caldas, esse seu antecessor
feliz que teve um auditorio de fidalgas:


    _Lereno alegrou os outros
     E nunca teve alegria_...


Enfim era uma missão!... A rapariga acabou de cantar e Ricardo não se
pôde conter:

--Vai bem, D. Alice, vai bem! Se não fosse porque eu lhe pedia _bis_.

A rapariga estendeu a cabeça, reconheceu quem falava e disse:

--Não sabia que o senhor estava ahi, senão não cantava na vista do
senhor.

--Qual o que! Posso garantir-lhe que está bom, muito bom. Cante.

--Deus me livre! Para o senhor me _criticar_...

Embora insistisse muito, a rapariga não quiz continuar. As maguas
pareciam ter passado do pensamento de Ricardo. Veiu ao interior do
quarto e pôz-se á meza na tenção de escrever.

O seu quarto tinha o mobiliario mais reduzido possivel. Havia uma rede
com franjas de rendas, uma mesa de pinho, sobre ella objectos de
escrever; uma cadeira, uma estante com livros, e, pendurado a uma parede
o violão na sua armadura de camurça. Havia tambem uma machina para
fazer café.

Sentou-se e quiz começar uma modinha sobre a Gloria, essa cousa fugace,
que se tem e se pensa que não se tem, alguma cousa impalpavel,
incolhivel como um sopro, que nos alancêa, queima, inquieta e abraza
como o Amor.

Tentou começar, dispoz o papel, mas não pôde. A emoção tinha sido
forte, toda a sua natureza tinha sido lavrada, baralhada, com a idéa
daquelle furto que se queria fazer ao seu merito. Não conseguiu
assentar o pensamento, apanhar as palavras no ar, sentir a musica zumbir
no ouvido.

A manhã ia alta. As ciganas defronte chilreavam no tamarineiro
desfolhado; começava a esquentar e o céo estava de um azul ligeiro,
tenue, fino. Quiz sahir, procurar um amigo, espairecer com elle, mas
quem? Ainda, se o Quaresma... Ah! O Quaresma! Esse, sim, trazia-lhe
conforto e consolo.

É verdade que ultimamente esse seu amigo achava-se pouco interessado
pela modinha; mas assim mesmo comprehendia o seu proposito, os fins e o
alcance da obra a que elle, Ricardo, se propunha. Ainda se o Major
estivesse perto, mas tão longe! Consultou as algibeiras. Não chegava
a dous mil réis a sua fortuna. Como ir? Arranjaria um passe e iria.
Bateram á porta. Traziam-lhe uma carta. Não reconheceu a letra; rasgou
o envelope com emoção. Que seria? Leu:

«Meu caro Ricardo--Saude--Minha filha Quinota casa-se depois de
amanhã, quinta-feira. Ella e o noivo fazem muito gosto que V.
appareça. Se o amigo não estiver compromettido com alguem, agarre o
violão e venha até cá tomar uma chavena de chá comnosco--Seu amigo
Albernaz».

O trovador, á proporção que lia, ia mudando de physionomia. Até
então estava carregada e dura: quando acabou de ler o bilhete, um
sorriso brincava por toda ella, descia e subia, ia de uma face a outra.
O General não o abandonara; para o respeitavel milhar, Ricardo
Coração dos Outros ainda era o rei do violão. Iria e arranjaria
passagem com o antigo vizinho de Quaresma. Contemplou um pouco o
violão, demoradamente, ternamente, agradecidamente como se fosse um
idolo bemfazejo.

Quando Ricardo penetrou em casa do General Albernaz, o ultimo brinde
havia sido levantado e todos se dirigiam para a sala de visitas em
pequenos grupos. D. Maricota vestia seda malva e o seu busto curto
parecia ainda mais abafado, mais socado, naquelle tecido caro que parece
requerer corpos elegantes e flexiveis. Quinota estava radiante no
vestido de noiva. Ella era alta, de feições mais regulares que a irmã
Ismenia, mas menos interessante e mais commum de temperamento e alma,
embora faceira. Lalá a terceira filha do General, que já se ageitava a
moça, tinha muito pó de arroz, estava sempre a concertar o penteado e
a sorrir para o Tenente Fontes. Um casamento bem cotado e esperado.
Genelicio dava o braço á noiva, encasacado numa casaca mal talhada,
que punha bem á mostra a sua gibosidade, e caminhava todo atrapalhado
nos apertados sapatos de verniz.

Ricardo não os viu passar, pois ao entrar, a fila estava no General,
mettido num segundo uniforme dos grandes dias, que lhe ia mal como a
farda de um guarda nacional endomingado; mas, quem tinha um ar
importante, marcial e navegado, ao mesmo tempo palaciano, era o
Contra-Almirante Caldas. Fôra padrinho e estava irreprehensivel na sua
casaca do uniforme. As ancoras reluziam como metaes de bordo em hora de
revista e os seus favoritos, muito penteados, alargavam a sua face e
pareciam desejar com ardôr os grandes ventos do vasto oceano sem fim.
Ismenia estava de rosa e andava pelas salas com o seu ar dolente, com o
seu vagar, com os seus gestos lentos, dando providencias. O Lulú, o
unico filho do General, impava no seu uniforme do Collegio Militar,
cheio de dourados e cabellos, tanto mais que passara de anno, graças
aos empenhos do pai.

O General não tardou em vir falar com Ricardo; e os noivos, quando o
trovador os cumprimentou, agradeceram-lhe muito, e até Quinota disse
um--_sou muito feliz_...--deitando a cabeça de lado e sorrindo para o
chão, sorriso que encheu de immenso transporte a candida alma do
menestrel.

Deram começo as dansas e o General, o Almirante, o Major Innocencio
Bustamante, que tambem viera de uniforme, com a sua banda roxa de
honorario, o Dr. Florencio, Ricardo e dous convidados outros foram para
a sala de jantar palestrar um pouco.

O General estava satisfeito. Sonhava ha tantos annos uma cerimonia
daquellas em sua casa e emfim pela primeira vez via realizado esse
anceio.

A Ismenia foi aquella desgraça... O ingrato?... Mas para que recordar?

Os cumprimentos se repetiram.

--É um rapagão, o seu novo genro, disse um dos convidados novos.

O General tirou o pince-nez que era preso por um trancelim de ouro, e
emquanto o limpava, respondeu, olhando com aquelle geito dos myopes:

--Estou muito contente.

Por ahi pôz o pince-nez, endireitou o truncelim e continuou:

Creio que casei bem minha filha: rapaz formado bem encaminhando e
intelligente.

O Almirante acudiu:

--E que carreira! Não é por ser meu parente, mas com trinta e dous
annos escripturario do Thezouro, é cousa nunca vista.

--O Genelicio não está no Tribunal de Contas, não passou? perguntou
Florencio.

--Passou, mas é a mesma cousa, replicou o outro convidado novo, que era
da amizade do recem-casado.

De facto, Genelicio tinha arranjado a transferencia e não fôra só
isso que o decidira a casar-se. Tendo escripto uma--«Synthese de
Contabilidade Publica Scientifica»--viu-se, sem saber como, cumulado de
elogios pela _imprensa desta capital_. O Ministro, attendendo ao merito
excepcional da obra, mandou-lhe dar dous contos de premio, tendo sido a
edição feita á custa do Estado, na Imprensa Nacional. Era um grosso
volume de 400 paginas, typo dôze, escripto em estylo de officio, com
uma basta documentação de decretos, e portarias, occupando dous
terços do livro.

A primeira phrase da primeira parte, o quinhão do livro verdadeiramente
synthetico e scientifico, fôra até muito notada e gabada pelos
criticos, não só pela novidade da idéa, conto tambem pela belleza da
expressão.

Dizia assim: «A Contabilidade Publica é a arte ou sciencia de
escripturar convenientemente a despeza e receita do Estado».

Além do premio e da transferencia, elle já tinha promessa de ser
sub-director na primeira vaga.

Ouvindo tudo isso que tinham dito o Almirante, o General e os convidados
novos, o Major não pôde deixar de observar:

--Depois da militar, a melhor carreira é a de Fazenda, não acham?

--Sim... Bem entendido, fez o Dr. Florencio.

--Eu não quero falar dos formados, apressou-se o Major. Esses...

Ricardo sentia-se na obrigação de dizer qualquer cousa e foi soltando
a primeira phrase que lhe veiu aos labios:

--Quando se prospera, todas as profissões são boas.

--Não é assim tanto, obtemperou o Almirante, alisando um dos
favoritos. Não é para desfazer nas outras, mas a nossa, hein Albernaz?
hein Innocencio?

Albernaz levantou a cabeça como se quizesse apanhar no ar uma
lembrança e depois replicou:

--É, mas tem os seus percalços. Quando se está numa trapalhada, fogo
daqui, tiro dali, morre um, grita outro como em Curupaity, então...

--O Sr. esteve lá, General? perguntou o convidado amigo de Genelicio.

--Não estive. Adoeci e vim para o Brasil. Mas o Camisão... Não
imaginam o que foi--Você sabe, não é Innocencio?

--Se estive lá...

--Polydoro tinha ordem de atacar Sauce, Flores a esquerda e _nós_
cahimos sobre os Paraguayos. Mas os malandros estavam bem
entrincheirados, tinham aproveitado o tempo...

--Foi _seu_ Mitre, disse Innocencio.

--Foi. Atacamos com furia. Era um ribombar de canhões que mettia medo,
bala por todo o canto, os homens morriam como moscas... Um inferno!

--Quem venceu? perguntou um dos convidados novos.

Todos se entreolharam admirados, excepto o General que julgava a
sabedoria do Paraguay excepcional.

--Foram os paraguayos, isto é, repeliram o nosso ataque. É por isso
que eu digo que a nossa profissão é bella, mas tem as suas _cousas_...

--Isso não quer dizer nada. Tambem na passagem de Humaytá... ia
dizendo o Almirante.

--O senhor estava a bordo?

--Não, eu fui mais tarde. Perseguições fizeram com que eu não fosse
designado, porque o embarque equivalia a uma promoção... Mas, na
passagem de Humaytá...

Na sala de visitas as dansas continuavam com animação. Era raro que
alguém viesse lá de dentro até onde elles estavam. Os risos, a
musica, e o mais que se adivinhava não distrahiam aquelles homens das
suas preoccupações bellicosas.

O General, o Almirante e o Major enchiam de pasmo aquelles burguezes
pacificos, contando batalhas em que não estiveram e pugnas valorosas
que não pelejaram.

Não ha como um cidadão pacato, bem comido, tendo tomado alguns vinhos
generosos, para apreciar as narrações de guerra. Elle só vê a parte
pittoresca, a parte por assim dizer espiritual das batalhas, dos
encontros; os tiros são os de salva e se matam é cousa de sómenos. A
Morte mesmo, nas narrações feitas assim, perde a sua importancia
tragica: 3.000 mortos, só!!!

De resto, contadas pelo General Albernaz, que nunca tinha visto a
guerra, a cousa ficava edulcorada, uma guerra «bibliothèque rose»,
guerra de estampa popular, em que não apparecem a carniçaria, a
brutalidade e a ferocidade normaes.

Estavam Ricardo, o Dr. Florencio, o exacto empregado como engenheiro das
Aguas, aquelles dous recentes conhecimentos de Albernaz, embevecidos,
boquiabertos e invejosos diante das proezas imaginarias daquelles tres
militares, um honorario, talvez o menos pacifico dos tres, o unico que
tivesse mesmo tomado parte em alguma cousa guerreira--quando D. Maricota
chegou, sempre diligente, activa, dando movimento e vida á festa. Era
mais moça que o marido, tinha ainda inteiramente pretos os cabellos na
sua cabeça pequena, que contrastava tanto com o seu corpo enorme. Ella
vinha offegante e dirigiu-se ao marido:

--Então, Chico, que é isso? Ficam ahi e eu que faça sala, que anime
as moças... P'ra sala todos!

--Já vamos D. Maricota, disse alguém.

--Não, fez com rapidez a dona da casa, é já. Vamos, seu Caldas, seu
Ricardo, os senhores!

E foi empurrando um a um pelo hombro.

--Depressa, depressa, que a filha do Lemos vai cantar; e depois é o
senhor... Está ouvindo, _seu_ Ricardo!

--Pois não, minha senhora. É uma ordem...

E foram. No caminho o General parou um pouco, chegou-se a Coração dos
Outros e perguntou:

--Diga-me uma cousa: como vai o nosso amigo Quaresma?

--Vai bem.

--Tem-lhe escripto?

--Ás vezes. Eu queria, General...

O General suspendeu a cabeça, levantou um pouco o pince-nez que
começava a cahir, e perguntou:

--O que?

Ricardo ficou intimidado com o ar marcial com que Albernaz lhe fez a
pergunta. Depois de uma ligeira, hesitação, respondeu de um jacto, com
medo de perder a s palavras:

--Eu queria que o senhor me arranjasse uma passagem, um passe, para ir
vel-o.

O General esteve uns instantes de cabeça baixa, coçou o cabello e
disse:

--Isso é difficil, mas você appareça lá, na repartição, amanhã.

E continuaram a andar. Ainda andando, Coração dos Outros accrescentou:

--Estou com saudades delle, depois tenho certos desgostos... O senhor
sabe: um homem que tem nome...

--Vá lá amanhã.

D. Maricota appareceu na frente e falou agastada:

--Vocês não vêm!

--Já vamos, fez o General.

E depois, dirigindo-se a Ricardo, ajuntou:

--Aquelle Quaresma podia estar bem, mas foi metter-se com livros... É
isto! Eu, ha bem quarenta annos, que não pego em livro...

Chegaram á sala. Era vasta. Tinha dous grandes retratos em pesadas
molduras douradas, furiosos retratos a oleo de Albernaz e da mulher; um
espelho oval e alguns quadrinhos, e a decoração estava completa. Da
mobilia não se podia julgar, tinha sido retirada, para dar mais espaço
aos dansantes. A noiva e o noivo estavam no sofá sentados a presidir a
festa. Havia um ou outro decote, poucas casacas, algumas sobrecasacas e
muitos fraques. Por entre as cortinas de uma janella, Ricardo pôde ver
a rua. A calçada defronte estava cheia. A casa era alta e tinha jardim;
só de lá os curiosos, os _serenos_, podiam ver alguma cousa da festa.
Lalá, no vão de uma sacada, conversava com o Tenente Fontes. O General
contemplou-os e abençoou-os com um olhar aprovador...

A moça, a famosa filha do Lemos, dispoz-se a cantar. Foi ao piano,
collocou a partitura e começou. Era uma romanza italiana que ella
cantou com a perfeição e o mau gosto de uma moça bem educada. Acabou.
Palmas geraes, mas frias, soaram.

O Dr. Florencio que ficara atraz do General, commentou:

--Tem uma bella voz esta moça. Quem é?

--É a filha do Lemos, do Dr. Lemos da Hygiene, respondeu o General.

--Canta muito bem.

--Está no ultimo anno do Conservatorio, observou ainda Albernaz.

Chegou a vez de Ricardo. Elle occupou um canto da sala, agarrou o
violão, afinou-o, correu a escala; em seguida, tomou o ar tragico de
quem vai representar o Oedipo-Rei e falou com voz grossa: «Senhoritas,
senhores e senhoras». Parou. Concertou a voz e continuou: «Vou cantar
«Os teus braços», modinha de minha composição, musica e versos. É
uma composição terna, decente e de uma poesia exaltada». Seus olhos,
por ahi, quasi lhe sabiam das orbitas. Emendou: «Espero que nenhum
ruido se ouça, porque senão a inspiração se evola. É o violão
instrumento muito... mui...to _dê li ca do_. Bem».

A attenção era geral. Deu começo. Principiou brando, gemebuado, macio
e longo, como um soluço de onda; depois, houve uma parte rapida,
saltitante, em que o violão estalava. Alternando um andamento e outro,
a modinha acabou.

Aquillo tinha ido ao fundo de todos, tinha acudido ao sonho das moças e
aos desejos dos homens. As palmas foram ininterruptas. O General
abraçou-o, Genelicio levantou-se e deu-lhe a mão, Quinota, no seu
immaculado vestido de noiva, tambem.

Para fugir aos cumprimentos, Ricardo correu á sala de jantar. No
corredor chamaram-n'o: Sr. Ricardo, Sr. Ricardo! Voltou-se. Que ordena
minha senhora? Era uma moca que lhe pedia uma copia da modinha.

--Não se esqueça, dizia ella com meiguice, não se esqueça. Gosto
tanto das suas modinhas... São tão ternas tão delicadas... Olhe: dê
aqui a Ismenia para me entregar.

A noiva de Cavalcanti approximava-se e, ouvindo falar em seu nome,
perguntou:

--Que é, Dulce?

A outra explicou-lhe. Ella aceitou a incumbencia: e, por sua vez,
perguntou a Ricardo com a sua voz dolente:

--_Seu_ Ricardo, quando é que o Sr. pretende estar com D. Adelaide.

--Depois de amanhã, espero eu.

--Vai lá.

--Vou.

--Pois então diga-lhe que me escreva. Eu queria tanto receber uma
carta...

E limpou os olhos furtivamente, com o seu pequenino lenço rendado.



III

GOLIAS


No sabbado da semana seguinte áquella em que a filha do General
recebera como marido o grave e giboso Genelicio, gloria e orgulho do
nosso funccionalismo publico, Olga casara-se. A cerimonia correra com a
pompa e a riqueza acostumadas em pessoas de sua camada. Houve uns
arremedos parisienses de _corbeille_ de noiva e outros pequenos detalhes
chics, que não a aborreceram, mas que não a encheram lá de
satisfação maior que as noivas communs. Talvez nem mesmo essa ella
tivesse.

Não foi para a igreja em virtude de uma determinação certa de sua
vontade. Continuava a não encontrar dentro de si motivo para aquelle
acto, mas, apparentemente, nenhuma vontade extranha á sua influira para
isso. O marido é que estava contente. Não seria muito com a noiva,
mas com a volta que a sua vida ia tomar. Ficando rico e sendo medico,
cheio de talento nas notas e recompensas escolares, via diante de si uma
larga estrada de triumphos nas posições e na industria clinica. Não
tinha fortuna alguma, mas julgava o seu banal titulo um fóral de
nobreza, equivalente áquelles com que os authenticos fidalgos da Europa
brunem o nascimento das filhas dos salchicheiros _yankees_. Apezar de
ser seu pai um importante fazendeiro por ahi, em algum logar deste
Brasil, o sogro lhe dera tudo e tudo elle aceitara sem pejo, com o
desprezo de um duque, duque de plenamentes e medalhas, a receber
homenagens de um villão que não _roçou os bancos de uma Academia_.

Julgava que a noiva o aceitara pelo seu maravilhoso titulo, o
pergaminho; é verdade que foi, não tanto pelo titulo, mas pela sua
simulação de intelligencia, de amor á sciencia, de desmedidos sonhos
de sabio. Tal imagem que delle fizera, durara instantes em Olga; depois
foi a inercia da sociedade, a sua tyrannia e a timidez natural da moça
em romper que a levaram ao casamento. Tanto mais que ella, de si para
si, pensava que se não fosse este, seria outro a elle igual, e o melhor
era não adiar.

Era por isso que ella não ia para a igreja, em virtude de uma
determinação certa de sua vontade, embora sem perceber o
constrangimento de um commando fora della.

Apezar da pompa, esteve longe de ser uma noiva magestosa. Não obstante
as origens puramente européas, era pequena, muito mesmo, ao lado do
noivo, alto, erecto, com uma physionomia irradiante de felicidade; e,
desse modo, ella desapparecia dentro do vestido, dos véos e daquelles
atavios obsoletos com que se arreiam as moças que se vão casar, De
resto, a tua belleza não era a grande belleza--aquella que nós
exigimos das noivas ricas, segundo o modelo das estampas classicas.

No seu rosto, nada de grego, desse grego authentico on de pacotilha, ou
tambem dessa magestade de opera lyrica. Havia nos seus traços muita
irregularidade, mas a sua physionomia era profunda e propria. Não só a
luz dos seus grandes olhos negros, que quasi cobriam toda a cavidade
orbitaria, fazia fulgurar o seu rosto mobil, como a sua pequena boca, de
um desenho fino, exprimia bondade, malicia e o seu ar geral era de
reflexão e curiosidade.

Ao contrario do costume, não sahiram da cidade e foram morar em casa do
antigo empreiteiro.

Quaresma não fora á festa, mandara o leitão e o perú da tradição e
escrevera uma longa carta. O sitio empolgara-o, o calor ia passar, vinha
a época das chuvas, das semeaduras, e não queria afastar-se de suas
terras. A viagem seria breve, mas mesmo assim, perdendo um dia ou dous,
era como se começasse a desertar da batalha.

O pomar estava todo limpo e já estavam preparados os canteiros da
horta. A visita de Ricardo veiu distrail-o um pouco, sem desvial-o
comtudo, de seus afazeres agricolas.

Passou um mez com o Major, e foi um triumpho. A fama do seu nome
precedia-o, de forma que todo o municipio o disputava e festejava.

O seu primeiro trabalho foi ir á villa. Ficava a quatro kilometros
adiante da casa de Quaresma e a estrada de ferro tinha uma estação
lá. Ricardo dispensou a estrada e foi a pé, pela estrada de rodagem,
se assim se póde chamar um trilho, cheio de caldeirões, que subia e
descia morros, cortava planicies e rios em toscas pontes. A villa!...
Tinha duas ruas principaes: a antiga, determinada pelo velho caminho de
tropas, e a nova, cuja origem veiu da ligação da velha com a estrada
de ferro. Ellas se encontravam em _T_, sendo o braço vertical o caminho
da estação. As outras partiam dellas, as casas juntavam-se urbanamente
no começo, depois iam espaçando, espaçando, até acabar em mato, em
campo. A antiga chamava-se Marechal Deodoro, ex-Imperador; e a nova,
Marechal Floriano, ex-Imperatriz. De uma das extremidades da rua
Marechal Deodoro, partia a da Matriz, ia ter á igreja, ao alto de uma
collina, feia e pobre no seu estylo jesuitico. Á esquerda da estação,
num campo, a praça da Republica, a que ia dar uma rua mal esboçada por
espaçadas casas, ficava a Camara Municipal.

Em um grande parallepipeto de tijolo, cimalha, janella com sacadas de
grade de ferro, puro estylo mestre de obras. Compungia essa pobreza de
gosto a quem se lembrasse dos edificios da mesma natureza das pequenas
communas francezas e belgas da idade média.

Ricardo entrou num barbeiro da rua Marechal Deodoro, salão Rio de
Janeiro, e fez a barba. O figaro deu-lhe informações a villa e elle se
deu a conhecer. Havia certos circumstantes, um delles tomou-o a seu
cargo e dahi em pouco estava relacionado.

Quando voltou para a casa do Major já tinha convite para o baile do Dr.
Campos, presidente da Camara, festa que teria logar na quarta-feira
proxima.

Chegara sabbado e fora passeiar á villa domingo.

Tinha havido missa e o trovador assistiu a sahida. A concurrencia nunca
é grande na roça, mas Ricardo pôde ver algumas daquellas moças do
interior, lymphaticas e tristes, ataviadinhas, cheias de laços,
descendo silenciosas a collina em que se erguia a igreja, espalhando-se
pela rua e logo entrando para as casas, onde iriam passar uma semana de
reclusão e tedio. Foi na sahida da missa que lhe apresentaram o Dr.
Campos.

Era o medico do lugar, morava, porém, fora, na sua fazenda, e viera de
«aranha» com a sua filha, Nair, assistir o officio religioso.

O trovador e o medico estiveram um instante conversando, emquanto a
filha, muito magra, pallida, com uns longos braços descarnados, olhava
com um vexame fingido o solo poeirento da rua. Quando elles partiram,
ainda Ricardo considerou um pouco aquelle rebento dos ares livres do
Brasil.

Á festa do Dr. Campos, seguiram-se outras a que Ricardo deu a honra de
sua presença e a alegria da sua voz. Quaresma não o acompanhava, mas
gozava a sua victoria. Se bem que o Major tivesse abandonado o violão,
ainda continuava a prezar aquelle instrumento essencialmente nacional.
As consequencias desastrosas do seu requerimento em nada tinham abalado
as suas convicções patrioticas. Continuavam as suas idéas
profundamente arraigadas, tão sómente elle as escondia, para não
soffrer com a incomprehensão e maldade dos homens.

Gozava, portanto, a fulminante victoria de Ricardo, que indicava bem
naquella população a existencia de um residuo forte da nossa
nacionalidade a resistir ás invasões das modas e gostos estrangeiros.

Ricardo recebia todas as honras, todos os favores, por parte de todos os
partidos. O Dr. Campos, presidente da Camara, era quem mais o cumulava
de homenagens. Naquella manhã até esperava um dos cavallos do edil,
para dar um passeio ao Carico; e, esperando, foi dizendo a Quaresma, que
ainda não tinha partido para o eito:

--Major, foi uma boa idéa vir para a roça. Vive-se bem e pode-se
subir...

--Não tenho nenhum desejo disso. Você sabe como me são extranhas
todas essas cousas.

--Sei... É... Não digo que se peça, mas, quando nos offerecem, não
devemos rejeitar, não acha?

--Conforme, meu caro Ricardo. Eu não podia aceitar encargo de commandar
uma esquadra.

--Até ahi não vou. Olhe, Major: eu gosto muito de violão, mesmo
dedico a minha vida ao seu levantamento moral a intellectual,
entretanto, se amanhã o Presidente dissesse: «Seu Ricardo, Você vai
ser deputado», o senhor pensa que eu não aceitava, sabendo
perfeitamente que não podia mais desferir os threnos do instrumento?
Ora, se não! Não se deve perder vasa, Major.

--Cada um tem as suas theorias.

--De certo. Outra cousa. Major: conhece o Dr. Campos?

--De nome.

--Sabe que elle é presidente da Camara.

Quaresma olhou um instante para Ricardo com uma ligeira desconfiança, O
menestrél não notou o gesto do amigo e emendou.

--Móra daqui a uma legua. Já lhe toquei em casa e hoje vou a cavallo
passeiar com elle.

--Fazes bem.

--Elle quer conhecel-o. Posso trazel-o aqui?

--Pódes.

Um camarada do Dr. Campos, neste instante, entrava pela porteira
trazendo o cavallo promettido. Ricardo montou e Quaresma seguiu para a
roça ao encontro dos seus dous empregados. Eram agora dous, pois, além
do Anastacio, que não era bem um empregado, mas aggregado, admittira o
Felizardo.

Era manhã de verão, mas as chuvas continuadas dos dias anteriores
tinham attenuado a temperatura.

Havia uma grande profusão de luz e os ares estavam doces. Quaresma foi
caminhando por entre aquelle rumor de vida, rumor que vinha do farfalhar
do mato e do piar das aves e passaros. Esvoaçavam tyês vermelhos,
bandos de colleiros; anuns voavam e punham pequenas manchas negras no
verdor das arvores. Até as flores, essas tristes flores dos nossos
campos, no momento, parece que tinham sahindo á luz, não sómente para
a fecundação vegetal mas tambem para a belleza.

Quaresma e seus empregados trabalhavam agora longe, faziam um roçado, e
fôra para auxiliar esse serviço que contratou o Felizardo. Era este um
camarada magro, alto, de longos braços, longas pernas, como um simio.
Tinha a face cor de cobre, a barba rala e, sob uma apparencia de
fraqueza muscular, não havia ninguem mais valente que elle a roçar.
Com isto era um tagarella incansavel. De manhã, quando chegava, ahi
pelas seis horas, já sabia todas as intriguinhas do municipio.

O roçado tinha por fim ganhar terreno ao mato, no lado do norte do
sitio, que o capão invadira. Obtido elle, o Major plantaria obra de
meio alqueire ou pouco mais de milho, e nos intervallos batatas
inglezas, cultura nova em que depositava grandes esperanças. Já se
fizera a derrubada e o aceiro estava aberto; Quaresma, porém, não lhe
quizera atear fogo. Evitava assim calcinar o terreno, eliminando delle
os principios volateis ao fogo. Agora o seu trabalho era separar os paus
mais grossos, para aproveitar como lenha; os galhos miudos e folhas,
elle removia para longe, onde então queimaria em coiváras pequenas.

Isso levava tempo, custava tombos ao seu corpo mal habituado aos cipós
e tocos; mas promettia dar um rendimento maior ao plantio.

Durante o trabalho, Felizardo ia contando as suas novidades para se
distrahir. Ha quem cante, elle falava e pouco se incommodava que lhe
dessem ou não attençâo.

--Essa gente anda accesa por ahi, disse Felizardo logo que o Major
chegou.

Certas vezes Quaresma fazia-lhe perguntas, attendia-lhe a conversa,
raras não. Anastacio era silencioso e grave. Nada dizia: trabalhava e,
de quando em quando, parava, considerava, numa postura hieratica de uma
pintura mural thebana. O Major perguntou ao Felizardo:

--Que é que ha, Felizardo?

O camarada descançou o grosso tronco de camará no monte, limpou o
suor com os dedos e respondeu com a sua fala branda e chiante:

--Negocio de politica... Seu Tenente Antonino quasi briga hontem com
_seu dotô Campo_.

--Onde?

--Na estação.

--Porque?

--Negocio de partido. Pelo que ouvi: seu Tenente-Antonino é pelo
_governadô_ e _seu dodô Campo_ é pelo _senadô_... Um sarcêro,
patrão!

--E você, por quem é?

Felizardo não respondeu logo. Apanhou a foice e acabou de cortar um
galho que enleiava o tronco a remover. Anastacio estava de pé e
considerou um instante a figura do companheiro palrador. Respondeu
afinal:

--Eu! sei lá... Urubu pellado não se mette no meio dos coroados. Isso
é bom p'r'o _sinhô_.

--Eu sou como você, Felizardo.

--Quem me dera, meu _sinhô_. Inda _traz-antonte_ ouvi _dizê_ que o
patrão é amigo do _marechá_...

Afastou-se com o pau; e, quando voltou Quaresma indagou assustado:

--Quem disse?

--Não sei, não _sinhô_. Ouvi a modo de _dizê_ lá na venda do
hespanhol, tanto assim que _doutô Campo tá_ inchado que nem sapo com a
sua amizade.

--Mas é falso, Felizardo. Eu não sou amigo cousa alguma...
Conheci-o... E nunca disse isso aqui a ninguem... Qual amigo!

--_Quá_! fez Felizardo com um riso largo e duro. O patrão _tá_ é
varrendo a testada.

Apezar de todo o esforço de Quaresma, não houve meio de tirar daquella
cabeça infantil a idéa de que elle fosse amigo do Marechal Floriano.
«Conheci-o no meu emprego»--dizia o Major: Felizardo sorria grosso e
por uma vez dizia: «_Quá_! o patrão é fino que nem cobra».

Tal teimosia não deixou de impressionar Quaresma. Que queria dizer
aquillo? Demais, as palavras de Ricardo, as suas insinuações pela
manhã... Elle tinha o trovador em conta de homem leal e amigo fiel,
incapaz de lhe estar armando laços para passar máos momentos; os
enthusiasmos delle, entretanto, junto á vontade de ser bom amigo,
podiam illudil-o e fazel-o instrumento de algum perverso. Quaresma ficou
um instante pensativo, deixando de remover os galhos cortados; em breve,
porém, esqueceu-se e a preoccupação dissipou-se. Á tarde, quando foi
jantar, já nem mais se lembrava da conversa e a refeição correu
natural, nem muito alegre, nem muito triste, mas sem sombra alguma de
cogitações por parte delle.

D. Adelaide, sempre com a sua _matinée_ creme e saia preta, sentava-se
á cabeceira; Quaresma á direita e á esquerda, Ricardo. Era a velha
quem sempre puxava a lingua do trovador.

--Gostou muito do passeio, Sr. Ricardo?

Não havia meio della dizer _seu_. A sua educacão de _senhora_ de
outros tempos, não lhe permittia usar esse plebeismo generalizado. Vira
os pais, gente ainda fortemente portugueza, dizer _senhor_ e continuava
a dizer, sem fingimento, naturalmente.

--Muito. Que logar! Uma catadupa... Que maravilha! Aqui, na roça, é
que se tem inspiração.

--E elle tomava aquella altitude de arroubo: uma physionomia de mascara
de tragico grego e uma voz cavernosa que rolava como uma trovoada
abafada.

--Tens composto muito, Ricardo? indagou Quaresma.

--Hoje acabei uma modinha.

--Como se chama? indagou D. Adelaide.

--«Os labios da Carola».

--Bonito! Já fez a musica?

Era ainda a irmã da Quaresma a perguntar. Ricardo levava agora o garfo
a boca; deixou-o suspenso entre os lábios e o prato e respondeu com
toda a convicção:

--A musica, minha senhora, é a primeira coesa que faço.

--Has de nol-a cantar logo.

--Pois não, Major.

Após o jantar, Quaresma e Coração dos Outros sahiram a passeiar no
sitio. Fôra essa a unica concessão que ao amigo fizera Polycarpo, no
tocante ao regimen de seus trabalhos agricolas. Levava sempre o pedaço
de pão, esfarelava em migalhas no gallinheiro, para ver a atroz disputa
entre as aves. Acabando, ficava um instante a considerar aquellas vidas,
criadas, mantidas e protegidas para sustento da sua. Sorria para os
frangos, agarrava os pintinhos, ainda implumes, muito vivos e avidos, e
demorava-se a apreciar a estupidez do perú, imponente, fazendo roda, a
dar estouros presumpçosos. Em seguida, ia ao chiqueiro; assistia
Anastacio dar a ração, despejando-a nos cochos. O enorme cevado de
grandes orelhas pendentes levantava-se difficilmente e solemnemente
vinha mergulhar a cabeça na caldeira; noutro compartimento os
bacurinhos grunhiam e grunhindo vinham com a mãe charfurdar-se na
comida.

A avidez daquelles animaes era deveras repugnante mas os seus olhos
tinham uma longa doçura bem humana que os fazia sympathicos.

Ricardo apreciava pouco aquellas formas inferiores de vida, mas Quaresma
ficava minutos esquecido a contemplal-as numa demorada interrogação
muda. Sentavam-se a um tronco de arvore; e Quaresma olhava o céo alto
emquanto Coração dos Outros contava qualquer historia.

A tarde ia adiantada, A terra já começava a amollecer, pelo fim
daquelle beijo ardente e demorado do sol. Os bambús suspiravam; as
cigarras ciciavam; as rolas gemiam amorosamente. Ouvindo passos o Major
voltou-se. Padrinho! Olga!

Mal se viram, abraçaram-se, e quando se separaram ficaram ainda a olhar
um para o outro, com as mãos presas. E vieram aquellas estupidas e
tocantes phrases dos encontros satisfeitos: quando chegaste? Não
esperava... É longe... Ricardo olhava embevecido com a ternura dos
dous; Anastacio tirara o chapéo e olhava a «sinhasinha», com o o seu
terno e vasio olhar de africano.

Passada a emoção, a moça se debruçou sobre o chiqueiro, depois
passeou a vista pelos quatro pontos e Quaresma perguntou:

--Que dê teu marido?

--O doutor?... Está lá dentro.

O marido tinha resistido muito em acompanhal-a até ali. Não lhe
parecia bem aquella intimidade com um sujeito sem titulo, sem posição
brilhante e sem fortuna. Elle não comprehendia como o seu sogro, apezar
de tudo um homem rico, de outra esphera, tinha podido manter e estreitar
relações com um pequeno empregado de uma repartição secundaria, e
até fazel-o seu compadre! Que o contrario se desse, era justo; mas como
estava a cousa parecia que abalava toda a hierarquia da sociedade
nacional. Mas, em definitivo, quando D. Adelaide o recebeu cheia de um
immenso respeito, de uma particular consideração, ele ficou desarmado e
todas as suas pequenas vaidades foram tocadas e satisfeitas.

D. Adelaide, mulher velha, do tempo em que o imperio armava essa nobreza
escolar, possuia em si uma particular reverencia, um culto pelo
doutorado; e não lhe foi, pois, difficil demonstral-o quando se viu
diante do Dr. Armando Borges, de cujas notas e premios ella tinha exacta
noticia.

Quaresma mesmo recebeu-o com as maiores marcas de admiração e o
doutor, gozando aquelle seu sobrehumano prestigio, ia conversando
pausadamente, sentenciosamente, dogmaticamente; e, á proporção que
conversava, talvez para que o effeito não se dissipasse, virava com a
mão direita o grande annelão _symbolico_, o talisman, que cobria a
phalange do dedo indicador esquerdo, ao geito de _marquise_.

Conversaram muito. O joven par contou a agitação politica do Rio, a
revolta da fortaleza de Santa Cruz; D. Adelaide a epopéa da mudança,
moveis quebrados, objectos partidos. Pela meia noite todos foram dormir
com uma alegria particular, emquanto os sapos levantavam no riacho
defronte o seu grave hymno á transcendente belleza do céo negro,
profundo e estrellado.

Acordaram cedo. Quaresma não foi logo para o trabalho. Tomou café e
esteve conversando com o doutor. O correio chegou e trouxe-lhe um
jornal. Rasgou a cinta e leu o titulo. Era o «O Municipio», orgão
local, hebdomadario, filiado ao partido situacionista. O doutor se havia
afastado; elle aproveitou a occasião para ler o jornaleco. Pôz o
pince-nez, recostou-se na cadeira de balanço e desdobrou o jornal.
Estava na varanda; o terral soprava nos bambus que se inclinavam
mollemente. Começou a leitura. O artigo de fundo intitulava-se
«Intrusos» e consistia em uma tremenda descompostura aos não nascidos
no logar que moravam nelle--verdadeiros _estrangeiros que se vinham
intrometter na vida particular e politica da familia curuzuense,
perturbando-lhe a paz e a tranquillidade_.

Que diabo queria dizer aquillo? Ia deitar fóra o jornaleco, quando lhe
pareceu ler seu nome entre versos. Procurou o logar e deu com estas
quadrinhas:


             _POLITICA de CURUZU_

     _Quaresma, meu bem, Quaresma!
      Quaresma do coração!
      Deixa as batatas em paz
      Deixa em paz o feijão._

     _Geito não tens para isso
      Quaresma, meu cocumby!
      Volta á mania antiga
      De redigir em tupy._

                              _Olho Vivo._


O Major ficou estuporado. Que vinha ser aquillo? Porque? Quem era? Não
atinava, não achava o motivo o fundo de semelhante ataque. A irmã
approximara-se acompanhada da afilhada. Quaresma estendeu-lhe o jornal
com o braço tremendo: «Lê isto, Adelaide».

A velha senhora viu logo a perturbação do irmão e leu com pressa c
solicitude. Ella tinha aquella ampla maternidade das solteironas; pois
parece que a falta de filhos reforça e alarga o interesse da mulher
pelas dores do outros. Emquanto ella lia, Quaresma dizia: mas que fiz
eu? que tenho com politica? E coçava os cabellos já tanto encanecidos.

D. Adelaide disse então docemente:

--Socega, Polycarpo. Por isso só?... Ora!

A afilhada leu tambem os versos e perguntou ao padrinho:

--O Sr. se metteu algum dia nessa politica daqui?

--Eu nunca!... Vou até declarar que...

--Está doido! exclamaram as duas mulheres a um tempo, ajuntando a
irmã:

--Isto seria uma covardia... Uma satisfação... Nunca!

O doutor e Ricardo chegavam de fóra e encontraram os tres nessas
considerações. Notaram a alteração de Quaresma. Estava pallido,
tinha os olhos humidos e coçava successivamente a cabeça.

--Que ha, Major? indagou o troveiro.

As senhoras explicaram o caso e deram-lhe as quadrinhas a ler. Ricardo
depois contou o que ouvira na villa. Acreditavam todos que o Major viera
para ali no intuito de fazer politica, tanto assim que dava esmolas,
deixava o povo fazer lenha no seu mato, distribuia remedios
homeopathicos... O Antonino affirmara que havia de desmascarar
semelhante tartufo.

--E não desmentiste? perguntou Quaresma.

Ricardo affirmou que sim, mas o escrivão não quizera acreditar nelle e
reiterara os seus propositos de ataque.

O Major ficou profundamente impressionado com tudo; mas, de accordo com
seu genio, incubou nos primeiros tempos a impressão, e, emquanto
estiveram com elle os seus amigos, não demonstrou preoccupação.

Olga e o marido passaram no «Socego» cerca de quinze dias. O marido,
ao fim de uma semana, já parecia cançado. Os passeios não eram
muitos. Em geral, os nossos logarejos são de uma grande pobreza do
pittoresco; ha um ou dous logares celebres, assim como na Europa cada
aldeia tem a sua curiosidade historica.

Em Curuzú, o passeio afamado era o Carico, uma cachoeira distante duas
leguas da casa de Quaresma, para as bandas das montanhas que lhe
barravam o horizonte fronteiro. O Dr. Campos já travara relações com
o Major e, graças a elle, houve cavallos e silhão que tambem
permitisse á moça ir á cachoeira.

Foram de manhã, o Presidente da Camara, o doutor, sua mulher e a filha
de Campos. O logar não era feio. Uma pequena cachoeira, de uns quinze
metros de altura, despenhava-se em tres partes, pelo flanco da montanha
abaixo. A agua estremecia na quéda, como que se enrodilhava e vinha
pulverizar-se numa grande bacia de pedra, mugindo e roncando. Havia
muita verdura e como que toda a cascata vivia sob uma aboboda de
arvores. O sol coava-se difficilmente e vinha faiscar sobre a agua ou
sobre as pedras em pequenas manchas, redondas ou oblongas. Os
periquitos, de um verde mais claro, pousados nos galhos eram como as
incrustações daquelle salão fantastico.

Olga pôde ver tudo isso bem á vontade, andando de um para outro lado,
porque a filha do presidente era de um silencio de tumulo e o pae desta
tomava com o sou marido informações sobre novidades medicinaes: Como
se cura hoje erysipela? Ainda se usa muito o tartaro emetico?

O que mais a impressionou no passeio foi a miseria geral, a falta de
cultivo, a pobreza das casas, o ar triste, abatido da gente pobre.
Educada na cidade, ella tinha dos roceiros idéa de que eram felizes
saudaveis e alegres. Havendo tanto barro, tanta agua, porque as casas
não eram de tijolos e não tinham telhas? Era sempre aquelle sapê
sinistro e aquelle «sopapo» que deixava ver a trama de varas, como o
esqueleto de um doente. Porque ao redor dessas casas, não havia
culturas, uma horta, um pomar? Não seria tão facil, trabalho de horas.
E não havia gado, nem grande nem pequeno. Era raro uma cabra, um
carneiro. Porque? Mesmo nas fazendas, o espectaculo não era mais
animador. Todas soturnas, baixas, quasi sem o pomar olente e a horta
succulenta. A não ser o café e um milharal, aqui e ali, ella não
pôde ver outra lavoura, outra industria agricola. Não podia ser
preguiça só ou indolencia. Para o seu gasto, para uso proprio, o homem
tem sempre energia para trabalhar. As populações mais accusadas de
preguiça, trabalham relativamente. Na Africa, na India, na Cochinchina,
em toda parte, os casaes, as familias, as tribos, plantam um pouco,
algumas cousas para elles. Seria a terra? Que seria? E todas essas
questões desafiavam a sua curiosidade, o seu desejo de saber, e tambem
a sua piedade e sympathia por aquelles parias, maltrapilhos, mal
alojados, talvez com fome, sorumbaticos!...

Pensou em ser homem. Se o fosse passaria ali e em outras localidades
mezes e annos, indagaria, observaria e com certeza havia de encontrar o
motivo e o remedio. Aquillo era uma situação do camponez da idade
média e começo da nossa; era o famoso animal de La Bruyére que tinha
face humana e voz articulada...

Como no dia seguinte fosse passeiar ao roçado do padrinho, aproveitou a
occasião para interrogar a respeito o tagarella Felizardo. A faina do
roçado ia quasi no fim; o grande trato da terra estava quasi
inteiramente limpo e subia um pouco em ladeira a collina que formava a
lombada do sitio.

Olga encontrou o camarada cá em baixo, cortando a machado as madeiras
mais grossas; Anastacio estava no alto, na orla do mato, juntando, a
ancinho, as folhas caidas. Ella lhe falou.

--Bons dias, _sá dona_.

--Então trabalha-se muito, Felizardo?

--O que se póde.

--Estive hontem no Carico, bonito logar... Onde é que você mora,
Felizardo?

--É d'outra banda, na estrada da villa.

--É grande o sitio de você?

--Tem alguma terra, sim, senhora, _sá dona_.

--Você porque não planta para você?

--_Quá sá dona_! O que é que a gente come?

--O que plantar ou aquillo que a plantação der em dinheiro.

--_Sá dona tá_ pensando uma cousa e a cousa é outra. Emquanto planta
cresce, e então? _Quá, sá dona_, não é assim...

Deu uma machadada; o tronco escapou: collocou-o melhor no picador e,
antes de desferir o machado, ainda disse:

--Terra não é nossa... E _frumiga_?... Nós não _tem_ ferramenta...
isso é bom para italiano ou _allamão_, que Governo dá tudo... Governo
não gosta de nós...

Desferiu o machado, firme, seguro; e o rugoso tronco se abriu em duas
partes, quasi iguaes, de um claro amarellado, onde o cérne escuro
começava a apparecer.

Ella voltou querendo afastar do espirito aquelle desacordo que o
camarada indicara, mas não pôde. Era certo. Pela primeira vez notava
que o _self-help_ do Governo era só para os nacionaes; para os outros
todos os auxilios e facilidades, não contando com a sua anterior
educação e apoio dos patricios.

E a terra não era delle? Mas de quem era então, tanta terra abandonada
que se encontrava por ahi? Ella vira até fazendas fechadas, com as
casas em ruinas... Porque esse acaparamento, esses latifundios inuteis e
improductivos?

A fraqueza de attenção não lhe permittiu pensar mais no problema. Foi
vindo para casa, tanto mais que era hora de jantar e a fome lhe chegava.

Encontrou o marido e o padrinho a conversar. Aquelle perdera um pouco da
sua _morgue_; havia mesmo occasião em que era até natural. Quando ella
chegou, o padrinho exclamava:

--Adubos! É lá possivel que um brasileiro tenha tal idéa! Pois se
temos as terras mais ferteis do mundo!

--Mas se esgotam, Major, observou o doutor

D. Adelaide, calada, seguia com attenção o _crochet_ que estava
fazendo; Ricardo ouvia, com os olhos arregalados; e Olga intrometteu-se
na conversa:

--Que zanga é essa, padrinho?

--É teu marido que quer convencer-me que as nossas terras precisam de
adubos... Isto é até uma injuria!

--Pois fique certo, Major, se eu fosse o senhor, adduziu o doutor,
ensaiava uns phosphatos...

--De certo, Major, obtemperou Ricardo. Eu, quando comecei a tocar
violão não queria aprender musica... Qual musica! Qual nada! A
inspiração basta!... Hoje veio que é preciso... É assim, resumia
elle.

Todos se entreolharam, excepto Quaresma que logo disse com toda a força
d'alma:

--Sr. doutor, o Brasil é o paiz mais fertil do mundo, é o mais bem
dotado e as suas terras não precisam _emprestimos_ para dar sustento ao
homem. Fique certo!

--Ha mais ferteis, Major, avançou o doutor.

--Onde?

--Na Europa.

--Na Europa!

--Sim, na Europa. As terras negras da Russia, por exemplo.

O Major considerou o rapaz durante algum tempo e exclamou triumphante:

--O Sr. não é patriota! Esses moços...

O jantar correu mais calmo. Ricardo fez ainda algumas considerações
sobre o violão. Á noite, o menestrel cantou a sua ultima producção:
«Os labios da Carola». Suspeitava-se que Carola fosse uma criada do
Dr. Campos; mas ninguem alludiu a isso. Ouviram-mo com interesse e elle
foi muito acclamado. Olga tocou no velho piano de D. Adelaide; e, antes
das onze horas, estavam todos recolhidos.

Quaresma chegou a seu quarto, despiu-se, enfiou a camisa de dormir e,
deitado, poz-se a ler um velho elogio das riquezas e opulencias do
Brasil.

A casa estava em silencio; do lado de fora, não havia a minima bulha.
Os sapos tinham suspendido um instante a sua orchestra nocturna.
Quaresma lia; e lembrava-se que Darwin escutava com prazer esse concerto
dos charcos. Tudo na nossa terra é extraordinario! pensou. Da despensa,
que ficava junto a seu aposento, vinha um ruido extranho. Apurou o
ouvido e prestou attenção. Os sapos recomeçaram o seu hymno. Havia
vozes baixas, outras mais altas e estridentes; uma se seguia á outra,
num dado instante todas se juntaram num _unisono_ sustentado.
Suspenderam um instante a musica. O Major apurou o ouvido; o ruido
continuava. Que era? Eram uns estalos tenues; pareciam que quebravam
gravetos, que deixavam outros cahir ao chão... Os sapos recomeçaram; o
regente deu uma martellada e logo vieram os baixos e os tenores.
Demoraram muito; Quaresma pôde ler umas cinco paginas. Os batrachios
pararam; a bulha continuava. O Major levantou-se, agarrou o castiçal e
foi á dependencia da casa donde partia o ruido, assim mesmo como
estava, em camisa de dormir.

Abriu a porta; nada viu. Ia procurar nos cantos, quando sentiu uma
ferroada no peito do pé. Quasi gritou. Abaixou a vela para ver melhor e
deu com uma enorme sauva agarrada com toda a furia á sua pelle magra.
Descobriu a origem da bulha. Eram formigas que, por um buraco no
assoalho, lhe tinham invadido a despensa e carregavam as suas reservas
de milho e feijão, cujos recipientes tinham sido deixados abertos por
inadvertencia. O chão estava negro, e carregadas com os grãos, ellas,
em pelotões cerrados, mergulhavam no solo em busca da sua cidade
subterranea.

Quiz afugental-as. Matou uma, duas, dez, vinte, cem; mas eram milhares e
cada vez mais o exercito augmentava. Veiu uma mordeu-o, depois outra, e
o foram mordendo pelas pernas, pelos pés, subindo pelo seu corpo. Não
poude aguentar, gritou, sapateou e deixou a vela cahir.

Estava no escuro. Debatia-se para encontrar a porta; achou e correu
daquelle infimo inimigo que, talvez, nem mesmo á luz radiante do sól,
o visse distinctamente...



IV

«PEÇO ENERGIA, SIGO JÁ»


D. Adelaide, a irmã de Quaresma, tinha uns quatro annos mais que elle.
Era uma bella velha, com um corpo médio, uma tez que começava a
adquirir aquella patina da grande velhice, uma espessa cabelleira já
inteiramente amarellada e um olhar tranquillo, calmo e doce. Fria, sem
imaginação, de intelligencia lucida e positiva, em tudo formava um
grande contraste com o irmão; comtudo, nunca houve entre elles uma
separação profunda nem tampouco uma penetração perfeita. Ella não
entendia nem procurava entender a substancia do irmão, e sobre elle em
nada reagia aquelle ser methodico, ordenado e organizado, de idéas
simples, medias e claras.

Ella já attingira aos cincoenta e elle para lá marchava; mas ambos
tinham ar saudavel, poucos achaques, e promettiam ainda muita vida. A
existencia calma, doce e regrada que tinham levado até ali, concorrera
muito para a boa saude de ambos. Quaresma incubou as suas manias até
depois dos quarenta e ella nunca tivera qualquer.

Para D. Adelaide, a vida era cousa simples, era viver, isto é, ter uma
casa, jantar e almoço, vestuario, tudo modesto, medio. Não tinha
ambições, paixões, desejos. Moça, não sonhara principes, bellezas,
triumphos, nem mesmo um marido. Se não casou foi porque não sentiu
necessidade disso; o sexo não lhe pesava e de alma e corpo ella sempre
se sentiu completa.

O seu aspecto tranquillo e o socego dos seus olhos verdes, de um brilho
lunar de esmeralda, emolduravam e realçavam naquelle interior familiar
a agitação e a inquietude, o alanceado do irmão.

Não se vá suppor que Quaresma andasse transtornado como um doido.
Felizmente não. Na apparencia até poder-se-ia imaginar que nada
conturbava sua alma; porém, se mais vagarosamente se examinassem os
seus habitos, gestos e attitudes logo se havia de ver que o socego e a
placidez não moravam no seu pensamento.

Occasiões havia em que ficava a olhar, durante minutos seguidos, ao
longe o horizonte, perdido em scisma; outras, isso quando no trabalho da
roça, em que suspendia todos os movimentos, fincava o olhar no chão,
demorava-se assim um instante, coçando uma mão com a outra, dava
depois um muchocho, continuava o trabalho; e mesmo momentos surgiam em
que não reprimia uma exclamação ou uma phrase.

Anastacio em taes instantes, olhava por baixo dos olhos o patrão. O
antigo escravo não os sabia mais fixar, e nada dizia; Felizardo
continuava a contar a fuga da filha do Custodio com o Manduca da venda;
e o trabalho marchava.

Inutil é dizer que a irmã não fazia reparo nisso, mesmo porque, a
não ser no jantar e nas primeiras horas do dia elles viviam separados.
Quaresma na roça, nas plantações, e ella superintendendo o serviço
domestico.

As outras pessoas de suas relações não podiam tambem notar as
preoccupações absorventes do Major, pelo simples motivo de que estavam
longe.

Ricardo havia seis mezes que não lhe visitava e da afilhada e do
compadre as ultimas cartas que recebera, datavam de uma semana, não
vendo aquella ha tanto tempo, quanto ao trovador e aquelle desde quasi
um anno, isto é, o tempo em que estava no «Socego».

Durante esse tempo, Quaresma não cessou de se interessar pelo
approveitamento de suas terras. Os seus habitos não foram mudados e a
sua actividade continuava sempre a mesma. É verdade que deixara de
parte os instrumentos de meteorologia.

O hygrometro, o barometro e os outros companheiros não eram mais
consultados e as observações registradas num caderno. Dera-se mal com
elles. Fosse inexperiencia e ignorancia das bases theoricas delles,
fosse porque fosse, o certo é que toda a previsão que Quaresma fazia
baseado em combinações dos seus dados, sahiam erradas. Se esperava
tempo seguro, lá vinha chuva; se esperava chuva, lá vinha secca.

Assim perdeu muita semente e Felizardo mesmo sorria dos seus apparelhos,
com aquelle grosso e cavernoso sorriso de troglodyta:

--_Quá_ patrão! Isso de chuva vem quando Deus _qué_.

O barometro aneroide continuava a um canto a dansar o seu ponteiro sem
ser percebido; o thermometro de maxima e minima, legitimo Casella, jazia
dependurado na varanda sem receber um olhar amigo; a caçamba do
pluviometro estava no gallinheiro e servia de bebedouro ás aves; só o
anemometro continuava teimosamente a rodar, a rodar, já sem fio, no
alto do mastro, como se protestasse contra aquelle desprezo pela
sciencia que Quaresma representava.

Quaresma vivia assim, sentindo que a campanha que lhe tinham movido,
embora tendo deixado de ser publica, lavrava occultamente. Havia no seu
espirito e no seu caracter uma vontade de acabal-a de vez, mas como? Se
não o accusavam, se não articulavam nada contra elle directamente? Era
um combate com sombras, com apparencias, que seria ridiculo acceitar.

De resto, a situação geral que o cercava, aquella miseria da
população campestre que nunca suspeitara, aquelle abandono de terras
á improductividade, encaminhavam sua alma de patriota meditativo a
preoccupações angustiosas.

Via o Major com tristeza não existir naquella gente humilde sentimento
de solidariedade, de apoio mutuo. Não se associavam para cousa alguma e
viviam separados, isolados, em familias geralmente irregulares, sem
sentir a necessidade de união para o trabalho da terra. Entretanto,
tinham bem perto o exemplo dos portuguezes que, unidos aos seis e mais,
conseguiam em sociedade cultivar a arado roças de certa importancia,
lucrar e viver. Mesmo o velho costume do _moitirão_ já se havia
apagado.

Como remediar isso?

Quaresma desesperava...

A tal affirmação de falta de braços pareceu-lhe uma affirmação de
má fé ou estupida, e estupido ou de má fé era o Governo que os
andava importando aos milhares, sem se preoccupar com os que já
existiam. Era como se no campo em que pastavam mal meia duzia de
cabeças de gado, fossem introduzidas mais tres, para augmenter o
estrume!...

Pelo seu caso, elle via bem as difficuldades, os obices de toda a sorte
que havia para fazer a terra productiva e remunerada. Um facto veiu
mostrar-lhe com eloquencia um dos aspectos da questão. Vencendo a herva
de passarinho, os maus tratos e o abandono de tantos annos, os
abacateiros de suas terras conseguiram fructificar, fracamente é
verdade, mas de forma superior ás necessidades de sua casa.

A sua alegria foi grande. Pela primeira vez, ia passar-lhe pelas mãos
dinheiro que lhe dava a terra, sempre mãe e sempre virgem. Tratou de
vender, mas como? a quem? No lugar havia um ou outro que os queria
comprar por preços infimos. Com decisão foi ao Rio procurar comprador.
Andou de porta em porta. Não queriam, eram muitos. Ensinaram-lhe que
procurasse um tal Sr. Azevedo no Mercado, o rei das fructas. Lá foi.

--Abacates! Ora! Tenho muitos... Estão muito baratos!

--Entretanto, disse Quaresma, ainda hoje indaguei em uma confeitaria e
pediram-me pela duzia cinco mil réis.

--Em porção, o Sr. sabe que...

--É isso... Emfim, se quer mande-os...

Depois, tilintou a pesada corrente de ouro, pôz uma das mãos na cava
do collete e quasi de costas para o Major:

--É preciso vel-os... O tamanho influe...

Quaresma os mandou e, quando lhe veiu o dinheiro, teve a satisfação
orgulhosa, de quem acaba de ganhar uma grande batalha immortal.
Acariciou uma por uma aquellas notas encardidas, leu-lhes bem o numero e
a estampa, arrumou-as todas uma ao lado da outra sobre uma meza e muito
tempo levou sem animo de trocal-as.

Para avaliar o lucro, descontou o frete, de estrada de ferro e carroça,
o custo dos caixões, o salario dos auxiliares e, após esse calculo que
não era laborioso, teve a evidencia de que ganhara 1$500, mil e
quinhentos réis, nem mais nem menos. O Sr. Azevedo tinha-lhe pago pelo
cento a quantia com que se compra uma duzia.

Assim mesmo o seu orgulho não diminuiu e elle viu naquelle ridiculo
lucro objecto para maior contentamento do que se recebesse um avultado
ordenado.

Foi, portanto, com redobrada actividade que se poz ao trabalho. Para o
anno, o lucro seria maior. Tratava-se agora de limpar as fructeiras.
Anastacio e Felizardo continuavam occupados nas grandes plantações;
contratou um outro empregado para ajudal-o no tratamento das velhas
arvores fructiferas.

Foi, pois, com o Mané Candieiro que elle se pôz a serrar os galhos das
arvores, os galhos mortos e aquelles em que a herva damninha segurava as
suas raizes. Era arduo e difficil o trabalho. Tinham ás vezes que subir
ás grimpas para a extirparão do galho attingido; os espinhos rasgavam
as roupas e feriam as carnes; e em muitas occasiões estiveram em risco
de vir ao chão serrote e Quaresma ou o camarada.

Mané Candieiro falava pouco, a não ser que se tratasse de cousas de
caça; mas cantava que nem passarinho. Estava a serrar, estava a cantar
trovas roceiras, ingenuas, onde com surpreza o Major não via entrar a
fauna, a flora locaes, os costumes das profissões roceiras. Eram
vaporosamente sensuaes e muito ternas, mellosas até; por acaso lá
vinha uma em que um passaro local entrara; então o Major escutava.


     _Eu vou dar a despedida
      Como deu o bacuráo,
      Uma perna no cantinho
      Outra no galho de páu._


Este bacuráo que entrava ahi satisfazia particularmente ás
aspirações de Quaresma. A observação popular já começava a
interessar-se pelo espectaculo ambiente, já se emocionava com elle e a
nossa raça deitava, portanto, raizes na grande terra que habitara. Elle
a copiou e mandou ao velho poeta de S. Christovão. Felizardo dizia que
Mané Candieiro era um mentiroso, pois todas aquellas caçadas do
caitetus, jacus, onças eram patranhas; mas, respeitava o seu talento
poetico, principalmente no desafio: o moleque é bom!

Elle era claro e tinha umas feições regulares, cesarianas, duras e
fortes, um tanto amollecidas pelo sangue africano.

Quaresma procurou descobrir nelle aquella odiosa catadura que Darwin
achou nos mestiços; mas, sinceramente, não a encontrou.

Com auxilio de Mané Candieiro, foi que Quaresma conseguiu acabar de
limpar as fructeiras daquelle velho sitio abandonado ha quasi dez
annos. Quando o serviço ficou prompto, elle viu com tristeza aquellas
velhas arvores amputadas, mutiladas, com folhas aqui e sem folhas ali...
Pareciam soffrer e elle se lembrou das mãos que as tinham plantado ha
vinte ou trinta annos, escravos, talvez, banzeiros e desesperançados!...

Mas não tardou que os botões rebentassem e tudo reverdescesse, e o
renascimento das arvores como que trouxe o contentamento das aves e do
passaredo solto. De manhã, esvoaçavam os tyês vermelhos, com o seu
pio pobre, especie de ave tão inutil e tão bella de plumas que parece
ter nascido para os chapéos das damas; as rolas pardas e caboclas em
bando, mariscando, no chão capinado; pelo correr do dia, eram os
sanhassús a cantar nos galhos altos, os papa-capins, as nuvens de
colleiros; e de tarde como que todos elles se reuniam, piando, cantando,
chilreando, pelas altas mangueiras, pelos cajueiros, pelos abacateiros,
entoando louvores ao trabalho tenaz e fecundo do velho Major Quaresma.

Não durou muito essa alegria. Um inimigo appareceu inopinadamente, com
a rapidez ousadissima de um general consumado. Até ali elle se mostrara
timido, parecia que sómente mandava esclarecedores.

Desde aquelle ataque ás provisões de Quaresma, logo afugentadas, não
mais as formigas reappareceram; mas, naquella manhã, quando contemplou
o seu milharal, foi como se lhe tirassem a alma, e ficou sem acção e
as lagrimas lhe vieram aos olhos.

O milho que já tinha repontado, muito verde, pequenino, com uma timidez
de criança, crescera cerca de meio palmo acima da terra; o Major até
mandara buscar o sulphato de cobre para a solução em que ia lavar a
batata ingleza a plantar nos intervallos dos pés.

Toda a manhã, elle ia lá e já via o milharal crescido com o seu
pendão branco e as suas espigas de coma cor de vinho, oscillando ao
vento: naquella, elle não viu nada mais. Até os tenros colmos tinham
sido cortados e levados para longe! A modo que e obra de gente, disse
Felizardo; entretanto, tinham sido as saúvas, os terriveis
hymhopteros, piratas infimos que lhe cahiam em cima do trabalho com uma
rapacidade turca... Era preciso combatel-os. Quaresma poz-se logo em
campo, descobriu as aberturas principaes do formigueiro e em cada uma
queimou a formicida mortal. Passaram-se dias: os inimigos pareciam
derrotados; mas, certa noite, indo ao pomar para melhor apreciar a noite
estrellada, Quaresma ouviu uma bulha exquisita, como se alguem esmagasse
as folhas mortas das arvores... Um estalido... E era perto... Accendeu
um phosphoro e o que viu, meu Deus! Quasi todas as larangeiras estavam
negras de iminensas saúvas. Havia dellas ás centenas, pelos troncos e
pelos galhos acima e agitavam-se, moviam-se, andavam como em ruas
transitadas e vigiadas a população de uma grande cidade: umas subiam,
outras desciam; nada de atropellos, de confusão, de desordem. O
trabalho como que era regulado a toques de corneta. Lá em cima umas
cortavam as folhas pelo peciolo; cá em baixo, outras serravam-nas em
pedaços e afinal eram carregadas por terceiros, levantando-as acima da
descomunal cabeça, era longas fileiras pelo trilho limpo, aberto entre
a herva rasteira.

Houve um instante de desanimo na alma do Major. Não tinha contado com
aquelle obstaculo nem o suppuzera tão forte. Agora via bem que era a
uma sociedade intelligente, organizada, ouzada e tenaz com quem se tinha
de haver. Veio-lhe então á lembrança aquella phrase de Saint-Hilaire:
se nós não expulsássemos as formigas ellas nos expulsariam.

O Major não estava lembrado ao certo se eram essas palavras, mas o
sentido era, e ficou admirado que só agora ella lhe ocorresse.

No dia seguinte, tinha recobrado o amino. Comprou ingredientes e eil-o
mais o Mané Candieiro, a abrir picadas a fazer esforços de sagacidade,
para descobrir os reductos centraes, as _panellas_ dos insectos
terriveis. Então era como se os bombardeassem: o sulpheto queimava,
estourava em tiros seguidos, mortiferos, lethaes!

E dahi em diante, foi uma batalha sem treguas. Se apparecia uma
abertura, um _olho_, logo se lhe applicava a formicida, pois do
contrario, nenhuma plantação era possivel, tanto mais que extinctos os
das suas terras, não tardariam os formigueiros das visinhanças ou dos
logradouros publicos a deitar caniculos para o seu terreno.

Era um supplicio, um castigo, uma especie de vigilancia a dique
hollandez e Quaresma viu bem que só uma autoridade central, um governo
qualquer, ou um accôrdo entre os cultivadores, podia levar a effeito a
extincção daquelle flagello, peor que a saraiva, que a geada, que a
secca, sempre presente, inverno ou verão, outomno ou primavera.

Não obstante essa luta diaria, o Major não desanimou e pôde colher
alguns productos das plantações que tinha feito. Se por occasião das
fructas, a sua alegria foi grande, mais expressiva e mais profunda ella
foi, quando viu partir para a estação em successivas carretas, as
aboboras, os aipins, as batatas doces, em cestos cobertos com saccos
cozidos. Os fructos, em parte, eram de outras mãos; as arvores não
tinham sido plantadas por elle; mas aquillo não, vinha do seu suor, da
sua iniciativa, do seu trabalho!

Elle ainda foi ver aquelles cestos na estação, com a ternura de um pai
que vê partir seu filho para a gloria, e para a victoria. Recebeu o
dinheiro dias depois, contou o e esteve deduzindo os lucros.

Não foi á roça nesse dia; o trabalho de guarda livros roubou o de
cultivador. A sua attenção, já um tanto gasta, não lhe favorecia a
tarefa das cifras, e só pelo meio do dia, pôde dizer a irmã:

--Sabes qual foi o lucro, Adelaide?

--Não, menor do que o dos abacates?

--Um pouco mais.

--Então... Quanto?

--Dous mil quinhentos e setenta réis, respondeu Quaresma, destacando
syllaba por syllaba.

--O que?

--Foi isso. Só de frete paguei cento e quarenta e dous mil quinhentos.

D. Adelaide esteve algum tempo com os olhos baixos, seguindo a costura
que fazia, depois, levantando o olhar:

--Homem, Polycarpo, o melhor é deixares isso... Tens gasto muito
dinheiro... Só com as formigas!

--Ora, Adelaide! Pensas que quero fazer fortuna? Faço isso para dar
exemplo, levantar a agricultura, aproveitar as nossas terras
feracissimas...

--É isto... Queres sempre ser a abelha mestra... Já viste os grandes
fazerem esses sacrificios... Vê lá se fazem! Historias... Mettem-se no
café que tem todas as protecções...

--Mas, faço eu.

A irmã prestou mais attenção a costura, Polycarpo levantou-se, foi
até á janella que dava para o gallinheiro. Fazia um dia fosco e
irritante. Elle concertou o pince-nez, esteve olhando e de lá falou:

--Oh! Adelaide! Aquillo não é uma gallinha morta...

A velha senhora ergueu-se com a costura, foi até á janella e verificou
com a vista:

--É... É já a segunda que morre hoje.

Após esta leve conversa, Quaresma voltou á sua sala de estudos.
Meditava grandes reformas agricolas. Mandara buscar catalogos e ia
examinal-os. Tinha já em mente uma charrúa dupla, um capinador
mecanico, um semeador, um deslocador, grades, tudo americano, de aço,
dando o rendimento effectivo de 20 homens. Até então, não quizera
essas innovações; as terras mais ricas do mundo, não precisaram desse
processos que lhe pareciam artificiaes, para produzir; estava, porém,
agora disposto a empregal-os como experiencia. Aos adubos, no
entretanto, o seu espirito resistia. Terra virada, dizia Felizardo,
terra estrumada; parecia o Quaresma uma profanação estar a empregar
nitratos, phosphatos ou mesmo estrume commum, numa terra brasileira...
Uma injuria!

Quando se convencesse de que eram necessarios, parecia-lhe que todo o
seu systema de idéas ia por terra e os moveis de sua vida
desappareceriam. Estava assim a escolher arados e outros «Planets»,
«Bajacs» e «Brabants» de varios feitios, quando o seu pequeno
copeiro lhe annunciou a visita do dr. Campos.

O edil entrou com a sua jovialidade, a sua mansidão, e o seu grande
corpo. Era alto e gordo, pançudo um pouco, tinha os olhos castanhos,
quasi á flôr do rosto, uma testa média e recta: o nariz, mal feito.
Um tanto trigueiro, cabellos corridos e já grisalhos, era o que se
chama por ahi um caboclo, embora o seu bigode fosse crespo. Não nascera
em Curuzú, era da Bahia ou de Sergipe, habitava, porém, o logar ha
mais de vinte annos, onde casara e prosperara, graças ao dote da mulher
e á sua actividade clinica. Com esta, não gastava grande energia,
mental: tendo de côr uma meia duzia de receitas, elle, desde muito,
conseguira enquadrar as molestias locaes no seu reduzido formulario.

Presidente da Camara, era das pessoas mais consideraveis da Curuzú, e
Quaresma o estimava particularmente pela sua familiaridade, pela sua
affabilidade e simplicidade.

--Ora, viva Major! Como vai isto por ahi? muita formiga? Lá em casa já
não ha mais.

Quaresma respondeu com menor enthusiasmo e jovialidade, mas comente com
a alegria communicativa do doutor. Elle continuava a falar com
desembaraço e naturalidade:

--Sabe o que me traz aqui, Major? Não sabe, não é? Preciso de um
pequeno obsequio seu.

O Major não se espantou; sympathizava com o homem e abriu-se em
offerecimentos.

--Como o Major sabe...

Agora a sua voz era doce, flexivel, subtil; as palavras cahiam-lhe da
boca adocicadas, dobravam-se, colleavam-se:

--Como o Major sabe, as eleições se devem realizar por estes dias. A
victoria é _nossa_. Todas as mezas estão comnosco, excepto uma... Ahi
mesmo, se o Major quizer...

--Mas, como? se eu não sou eleitor, não me metto, nem quero metter-me
em politica? perguntou Quaresma ingenuamente.

--Exactamente por isso, disse o doutor com voz forte: e em seguida
brandamente: a secção funcciona na sua vizinhança, é ali, na escola,
se...

--E dahi?

--Tenho aqui uma carta do Neves, dirigida ao senhor. Se o Major quer
responder (é melhor já) que não houve eleição... Quer?

Quaresma olhou o doutor com firmeza, coçou um instante o cavaignac e
respondeu claramente, firmemente:

--Absolutamente não.

O doutor não se zangou. Pôz mais uncção e maciez a na voz, adduziu
argumentos: que era para o partido, o unico que pugnava pelo
levantamento da lavoura. Quaresma foi inflexivel; disse que não, que
lhe eram absolutamente antipathicas taes disputas, que não tinha
partido e mesmo que tivesse não iria affirmar uma cousa que elle não
sabia ainda se era mentira ou verdade.

Campos não deu mostras de aborrecimento, conversou um pouco sobre
cousas banaes e despediu-se com o ar amavel, com a jovialidade mais sua
que era possivel.

Isto se passou na terça-feira, naquelle dia de luz fosca e irritante.
Á tarde houve trovoada, choveu muito. O tempo só levantou na
quinta-feira, dia em que o Major foi surprehendido com a visita de um
sujeito com um uniforme velho e lamentavel, portador de um papel
official para elle, proprietario do «Socego», conforme mesmo disse o
tal homem fardado.

Em virtude das posturas e leis municipaes, rezava o papel, O Sr.
Polycarpo Quaresma, proprietario do sitio «Socego» era intimado, sob
as penas das mesmas posturas e leis, a roçar e capinar as testadas do
referido sitio que confrontavam com as vias publicas.

O Major ficou um tempo pensando. Julgava impossivel uma tal intimação.
Seria mesmo? Brincadeira... Leu de novo o papel, viu a assignatura do
Dr. Campos. Era certo... Mas que absurda intimação esta de capinar e
limpar estradas na extensão de mil duzentos metros, pois seu sitio dava
de frente para um caminho e de um dos lados acompanhava outro na
extensão de oitocentos metros--era possivel!?

A antiga corvéa!... Um absurdo! Antes confiscassem-lhe o sitio.
Consultando a irmã, ella lhe aconselhou que falasse ao Dr. Campos.
Contou-lhe então Quaresma a conversa que tivera com elle dias antes.

--Mas és tolo, Polycarpo. Foi elle mesmo...

A luz se lhe fez no pensamento... Aquella rede de leis, de posturas, de
codigos e de preceitos, nas mãos desses regulotes, de taes caciques, se
transformava em pôtro, em polé, em instrumento de supplicios para
torturar os inimigos, opprimir as populações, crestar-lhes a
iniciativa e a independencia, abatendo-as e desmoralizando-as.

Pelos seus olhos passaram num instante aquellas faces amarelladas e
chupadas que se encostavam nos portaes das vendas preguiçosamente; viu
tambem aquellas crianças maltrapilhas e sujas, d'olhos baixos, a
esmolar disfarçadamente pelas estradas; viu aquellas terras
abandonadas, improductivas, entregues ás hervas e insectos damninhos;
viu ainda o desespero de Felizardo, homem bom, activo e trabalhador, sem
animo de plantar um grão de milho em casa e bebendo todo o dinheiro que
lhe passava pelas mãos--este quadro passou-lhe pelos olhos com a
rapidez e o brilho sinistro do relampago; e só se apagou de todo,
quando teve que ler a carta que a sua afilhada lhe mandara.

Vinha viva e alegre. Contava pequenas historias de sua vida, a viagem
proxima do papai, á Europa, o desespero do marido no dia em que sahiu
sem annel, pedia noticias do padrinho, de D. Adelaide e, sem
desrespeito, recommendava á irmã de Quaresma que tivesse muito cuidado
com o manto de arminho da «Duqueza».

A «Duqueza» era uma grande pata branca, de penas alvas a macias ao
olhar, que, pela lentidão e magestade do andar, com o pescoço alto e o
passo firme, merecera de Olga esse appellido nobre. O animal tinha
morrido havia dias. E que morte! Uma peste que lhe levara duas duzias de
patos, levara a «Duqueza» tambem. Era uma especie de paralysia que
tomava as pernas, depois o resto do corpo. Tres dias levou a agonizar.
Deitada sobre o peito, com o bico collado ao chão, atacada pelas
formigas, o animal só dava signal de vida por uma lenta oscillação do
pescoço em torno do bico, espantando as moscas que a importunavam na
sua ultima hora.

Era de ver como aquella vida tão extranha á nossa, naquelle instante
penetrava em nós e sentiamo-lhe o soffrimento, a agonia e a dôr.

O gallinheiro ficou como uma aldeia devastada; a peste atacou gallinhas,
perús, patos; ora sobre uma forma, ora sobre outra, foi ceifando,
matando, até reduzir a sua população a menos de metade.

E não havia quem soubesse curar. Numa terra, cujo Governo tinha tantas
escolas que produziam tantos sabios, não havia um só homem que pudesse
reduzir, com as suas drogas ou receitas aquelle consideravel prejuizo.

Esses contratempos, essas contrariedades abateram muito o cultivador
enthusiastico dos primeiros mezes; entretanto não passara pela mente
de Quaresma abandonar os seus propositos. Adquiriu compendios de
veterinaria e até já tratava de comprar as machinas agricolas
descriptas nos catalogos.

Uma tarde, porém, estava á espera da junta de bois que encommendara
para o trabalho do arado, quando lhe appareceu á porta um soldado de
policia com um papel official. Elle se lembrou da intimação municipal.
Estava disposto a resistir, não se incommodou muito.

Recebeu o papel e leu. Não vinha mais da municipalidade, mas da
collectoria, cujo escrivão, Antonio Dutra, conforme estava no papel,
intimava o Sr. Polycarpo Quaresma a pagar quinhentos mil réis de multa,
por ter enviado productos de sua lavoura sem pagamento dos respectivos
impostos.

Viu bem o que havia nisso de vingança mesquinha; mas o seu pensamento
voou logo para as cousas geraes, levado pelo seu patriotismo profundo.

A quarenta kilometros do Rio, pagavam-se impostos para se mandar ao
mercado umas batatas? Depois de Turgot da Revolução, ainda havia
alfandegas interiores?

Como era possivel fazer prosperar a agricultura, com tantas barreiras e
impostos? Se ao monopolio dos atravessadores do Rio se juntavam as
exacções do Estado, como era possivel tirar da terra a remuneração
consoladora?

E o quadro que já lhe passara pelos olhos, quando recebeu a intimação
da municipalidade, voltou-lhe de novo, mais tetrico, mais sombrio, mais
lugubre; e anteviu a epoca em que aquella gente teria de comer sapo,
cobras, animaes mortos, como em França os camponezes, em tempos de
grandes reis.

Quaresma veiu a recordar-se do seu tupy, do seu _folk-lore_, das
modinhas, das suas tentativas agricolas--tudo isso lhe pareceu
insignificante, pueril, infantil.

Era preciso trabalhos maiores, mais profundos; tornava-se necessario
refazer a administração. Imaginava um Governo forte, respeitado,
intelligente, removendo todos esses obices, esses entraves, Sully e
Henrique IV, espalhando sabias leis agrarias, levantando o cultivador...
Então sim! O celleiro surgiria e a patria seria feliz.

Felizardo entregou-lhe o jornal que toda a manhã mandava comprar á
estação, e lhe disse:

--Seu patrão, amanhã não venho _trabaiá_.

--Por certo; é dia feriado... A Independencia.

--Não é por isso.

--Porque então?

--Ha _baruio_ na Côrte e dizem que vão _arrecutá_. Vou p'r'o mato...
Nada!

--Que barulho?

--_Tá_ nas _foias_, sim _sinhô_.

Abriu o jornal e logo deu com a noticia de que os navios da esquadra se
haviam insurgido e intimado ao Presidente a sahir do poder. Lembrou-se
das suas reflexões de instantes atrás; um Governo forte, até á
tyrannia... Medidas agrarias... Sully e Henrique IV...

Os seus olhos brilhavam de esperança. Despediu o empregado. Foi ao
interior da casa, nada disse á irmã, tomou o chapéo, e dirigiu-se á
estação.

Chegou ao telegrapho e escreveu: «Marechal Floriano, Rio. Peço
energia. Sigo já.--Quaresma».



V

O TROVADOR


--De certo, Albernaz, não é possivel continuar assim... Então,
mette-se um sujeito num navio, assesta os canhões p'ra terra e diz: sai
d'ahi _seu_ presidente; e o homem vai sahindo?... Não! É preciso um
exemplo....

--Eu penso tambem da mesma maneira, Caldas. A Republica precisa ficar
forte, consolidada... Esta terra necessita de Governo que se faça
respeitar... É incrivel! Um paiz como este, tão rico, talvez o mais
rico do mundo, é, no emtanto, pobre, deve a todo o mundo... Porque? Por
causa dos Governos que temos tido que não têm prestigio, força... É
por isso.

Vinham andando, á sombra das grandes e magestosas arvores do parque
abandonado; ambos fardados e de espada. Albernaz, depois de um curto
intervallo, continuou:

--Você viu o imperador, o Pedro II... Não havia jornaleco, pasquim por
ahi, que o não chamasse de «banana» e outras cousas... Sahia no
Carnaval... Um desrespeito sem nome! Que aconteceu? Foi-se como um
intruso.

--E era um bom homem, observou o Almirante. Amava o seu paiz... Deodoro
nunca soube o que fez.

Continuavam a andar. O Almirante coçou um dos favoritos e Albernaz
olhou um instante para todos os lados, accendeu o cigarro de palha e
retomou a conversa:

--Morreu arrependido... Nem com a farda quiz ir para a cóva!... Aqui
para nós que ninguem nos ouve: foi um ingrato; o Imperador tinha feito
tanto por toda a familia, não acha?

--Não ha duvida nenhuma!... Albernaz, você quer saber de uma cousa:
estavamos melhor naquelle tempo, digam lá o que disserem...

--Quem diz o contrario? Havia mais moralidade... Onde está um Caxias?
um Rio Branco?

--E mais justiça mesmo, disse com firmeza o Almirante. O que eu soffri,
não foi por causa do _velho_, foi a canalha... Demais, tudo barato...

--Eu não sei, disse Albernaz com particular accento, como ha ainda quem
se case... Anda tudo pela hora da morte!

Elles olharam um instante as velhas arvores da Quinta Imperial, por onde
vinham atravessando. Nunca as tinham contemplado; e, agora parecia-lhes
que jamais tinham pousado os olhos sobre amores tão soberbas, tão
bellas, tão tranquillas e seguras de si, como aquellas que espalhavam
sob os seus grandes ramos uma vasta sombra, deliciosa e macia. Pareciam
que medravam sentindo-se em terra propria, dellas, da qual nunca
sahiriam desalojadas a machado, para edificação de casebres; e esse
sentimento lhes havia dado muita força de vegetar e uma ampla vontade
de se expandirem. O sólo sobre a qual cresciam, era dellas e agradeciam
á terra extendendo muito os seus ramos, cerrando e tecendo a folhagem,
para dar á boa mãe, frescura e protecção contra a inclemencia do
sol.

As mangueiras eram as mais gratas; os ramos longos e cheios de folhas,
quasi beijavam o chão. As jaqueiras se espreguiçavam; os bambus se
inclinavam, de um lado e outro da aléa, e cobriam a terra com uma ogiva
verde...

O velho edificio imperial se erguia sobre a pequena collina. Elles lhe
viam o fundo, aquella parte de construcção mais antiga, joannina, com
a torre do relogio um pouco afastada e separada do corpo do edificio.

Não era bello o palacio, não tinha mesmo nenhum traço de belleza, era
até pobre e monotono. As janellas acanhadas daquella fachada velha, os
andares de pequena altura impressionavam mal; todo elle, porém, tinha
uma tal ou qual segurança de si, um ar de confiança pouco commum nas
nossas habitações, uma certa dignidade, alguma cousa de quem se sente
viver, não para um instante, mas para annos, para seculos... As
palmeiras cercavam-n'o, erectas, firmes, com es seus grandes penachos
verdes, muito altos, alongados para o céo...

Eram como que a guarda da antiga moradia imperial, guarda orgulhosa do
seu mister e funcção.

Albernaz interrompeu o silencio:

--Em que dará isto tudo, Caldas?

--Sei lá.

--O _homem_ deve estar atrapalhado... Já tinha o Rio Grande, agora o
Custodio... hum!

--O poder é o poder, Albernaz.

Vinham andando em demanda á estação de S. Christovão. Atravessaram o
velho parque imperial transversalmente, desde o portão da Cancella até
á linha da Estrada de Ferro. Era de manhã, e o dia estava limpido e
fresco.

Caminhavam com pequenos passos seguros, mas sem pressa. Pouco antes de
sahirem da Quinta, deram com um soldado a dormir numa moita. Albernaz
teve vontade de acordal-o: camarada! camarada! O soldado levantou-se
estremunhado: e, dando com aquelles dous officiaes superiores,
concertou-se rapidamente, fez a continencia que lhes era devida e ficou
com a mão no bonet, um instante firme, mas logo bambeou.

--Abaixe a mão, fez o General. Que faz você aqui?

Albernaz falou em tom rispido e de commando. A praça, falando a medo,
explicou que tinha estado de ronda ao litoral toda a noite. A força se
recolhera aos quarteis; elle obtivera licença para ir em casa, mas o
somno fôra muito e descançava ali um pouco.

--Então como vão as cousas? perguntou o General.

--Não sei, não _sinhô_.

--Os homens desistem ou não?

O General esteve um instante examinando o soldado, Era branco e tinha os
cabellos alourados, de um louro sujo e degradado; as feições eram
feias: mallares salientes, testa ossea e todo elle anguloso e
desconjuntado.

--Donde você é? perguntou-lhe ainda Albernaz.

--Do Piauhy, sim _sinhô_.

--Da capital?

--Do sertão, de Paranaguá, sim _sinhô_.

O Almirante até ali não interrogara o soldado que continuava
amedrontado, respondendo tropegamente. Caldas, para acalmal-o, resolveu
falar-lhe com doçura.

--Você não sabe, camarada, quaes são os navios que _elles_ têm?

--O «Aquidaban»... A «Lucy».

--A «Lucy» não é navio.

--É verdade, sim; sinhô. O «Aquidaban»... Um _bandão_ delles, sim,
_sinhô_.

O General interveio então. Falou-lhe com brandura, quasi paternal,
mudando o tratamento de você para tu, que parece mais doce e intimo
quando se fala aos inferiores:

--Bem, descança, meu filho. É melhor ires para casa... Podem furtar-te
o sabre e estás na _ignacia_.

Os dous generaes continuaram o seu caminho e, em breve, estavam na
plataforma, da estação. A pequena estação tinha um razoavel
movimento. Um grande numero de officiaes, activos, reformados,
honorarios moravam-lhe nas cercanias e os editaes chamavam todos a se
apresentar ás autoridades competentes. Albernaz e Caldas atravessaram
a plataforma no meio de continencias. O General, era mais conhecido em
virtude de seu emprego; o Almirante, não. Quando passavam, ouviam
perguntar: «quem é este Almirante»? Caldas ficava contente e
orgulhava-se um pouco do seu posto e do seu incognito.

Havia uma unica mulher na estação, uma moça. Albernaz olhou-a e
lembrou-se um instante de sua filha Ismenia... Coitada!... Ficaria boa?

Aquellas manias? Onde iria parar? Vieram-lhe as lagrimas, mas elle as
reteve com força.

Já a levara a uma meia duzia de medicos e nenhum fazia parar aquelle
escapamento do juizo que parecia fugir aos poucos do cerebro da moça.

A bulha de um expresso, chocalhando ferragens com estrepido, apitando
com furia e deixando fumaça pesada, pelos ares que rompia, afastou-o de
pensar na filha. Passou o monstro, pejado de soldados, de uniformes e os
trilhos, depois de ter passado, ainda estremeciam.

Bustamante appareceu; morava nos arredores e vinha tomar o trem, para
apresentar-se. Trazia o seu velho uniforme do Paraguay, talhado segundo
os moldes dos guerreiros da Criméa. A barretina era um tronco de cône
que avançava para a frente; e, com aquella banda roxa e casaquinha
curta, parecia ter sahido, fugido, saltado de uma téla de Victor
Meirelles.

--Então por aqui?... Que é isto? indagou o honorario.

--Viemos pela Quinta, disse o Almirante.

--Nada, meus amigos, esses bondes andam muito perto do mar... Não me
importa morrer, mas quero morrer combatendo; isso de morrer por ahi, á
toa, sem saber como, não vai commigo...

O General falara um pouco alto e os jovens officiaes que estavam
proximo, olharam-n'o com mal disfarçada censura. Albernaz percebeu e
ajuntou immmediatamente:

--Conheço bem esse negocio de balas... Já vi muito fogo... Você sabe,
Bustamante, que, em Curuzú...

--A cousa foi terrivel, accrescentou Bustamante.

O trem atracava na estação. Veiu chegando manso, vagaroso, a
locomotiva, muito negra, bufando, sumido gordurosamente, com a sua
grande lanterna na frente, um olho de cyclope, avançava que nem uma
apparição sobrenattural. Foi chegando; o comboio estremeceu todo e
parou por fim.

Estava repleto, muitas fardas de officiaes, a avaliar por ali o Rio
devia ter uma guarnição de cem mil homens. Os militares palravam
alegres, e os civis vinham calados e abatidos, e mesmo apavorados. Se
falavam, era cochichando, olhando com precaução para os bancos de
traz.

A cidade andava inçada de secretas, _familiares_ do Santo Officio
Republicano, e as delações eram moedas com que se obtinham postos e
recompensas.

Bastava a minima critica, para se perder o emprego, a liberdade,--quem
sabe?--a vida tambem. Ainda estavamos no começo da revolta, mas o
regimen já publicara o seu prologo e todos estavam avisados. O chefe de
policia organizara a lista dos suspeitos. Não havia distincção de
posição e talentos. Mereciam as mesmas perseguições do Governo um
pobre continuo e um influente senador; um lente e um simples empregado
de escriptorio. Demais surgiam as vinganças! mesquinhas, a revide de
pequenas implicancias... Todos mandavam: a autoridade estava em todas as
mãos.

Em nome do Marechal Floriano, qualquer official, ou mesmo cidadão, sem
funcção publica alguma, prendia e ai de quem cahia na prisão, lá
ficava esquecido, soffrendo angustiosos supplicios de uma imaginação
dominicana. Os funccionarios disputavam-se em bajulação, em
servilismo... Era um terror, um terror baço, sem coragem, sangrento,
ás occultas, sem grandeza, sem desculpa, sem razão e sem
responsabilidades... Houve execuções; mas não houve nunca um Fouquier
Tinville.

Os militares estavam contentes, especialmente os pequenos, os alferes,
os tenentes e os capitães. Para a maioria a satisfação vinha da
convicção de que iam estender a sua autoridade sobre o pelotão e a
companhia, a todos esse rebanho de civis; mas, em outros muitos havia
sentimento mais puro, desinteresse e sinceridade. Eram os adeptos desse
nefasto o hypocrita positivismo, um pedantismo tyrannico, limitado e
estreito, que justificava todas as violencias, todos os assassinios
todas as ferocidades em nome da manutenção da ordem, condição
necessaria, lá diz elle, ao progresso e tambem ao advento do regimen
normal, a religião da humanidade, a adoração do grão-fetiche, com
fanhosas musicas de cornetins e versos detestaveis, o paraizo emfim, com
inscripções em escriptura phonetica e eleitos calçados com sapatos de
sola de borracha!...

Os positivistas discutiam e citavam theoremas de mecanica para
justificar as suas idéas de Governo, em tudo semelhantes aos khanatos e
emirados orientaes.

A mathematica do positivismo foi sempre um puro falatorio que,
naquelles tempos, amedrontava toda a gente. Havia mesmo quem estivesse
convencido que a mathematica tinha sido feita e criada para o
positivismo, como se a Biblia estivesse sido criada unicamente para a
Igreja Catholica e não tambem para a Anglicana. O prestigio delle era,
portanto, enorme.

O trem correu, parou ainda em uma estação e foi ter á praça da
Republica. O Almirante, cozido com as paredes, seguiu para o Arsenal de
Marinha; Albernaz e Bustamante entraram no Quartel General. Penetraram
no grande casarão, no meio do retinir de espadas, de tiques de
cornetas; o grande pateo estava cheio de soldados, bandeiras, canhões,
feixes de armas ensarilhadas, bayonetas reluzindo ao sol obliquo...

No sobrado, nas proximidades do gabinete do ministro, havia um vai-e-vem
de fardas, dourados, fazendas multicores, uniformes de varias
corporações e milicias, no meio dos quaes os trages escuros dos civis
eram importunos como moscas. Misturavam-se officiaes da guarda nacional,
da policia, da armada, do exercito, de bombeiros e de batalhões
patrioticos que começavam a surgir.

Apresentaram-se e, depois de tel-o feito ao Ajudante General e Ministro
da Guerra, a um só tempo, ficaram a conversar nos corredores, com
bastante prazer, pois que tinham encontrado o Tenente Fontes e ambos
gostavam de ouvil-o.

O General porque já era noivo de sua filha Lalá, e Bustamante porque
aprendia com elle alguma cousa de nomenclatura dos armamentos modernos.

Fontes estava indignado, todo elle era horror, maldição contra os
insurrectos, e propunha os peores castigos.

--Hão de ver o resultado... Piratas! Bandidos! Eu, no caso do Marechal,
se os pegasse... ai delles!

O Tenente não era feroz nem mau, antes bom e até generoso, mas era
positivista e tinha da sua Republica uma idéa religiosa e
transcendente. Fazia repousar nella toda a felicidade humana e não
admittia que a quizessem de outra forma que não aquella que imaginava
boa. Fóra dahi não havia boa fé, sinceriddae; eram hereticos
interesseiros, e, dominicano do seu barrete phrygio, raivoso por não
poder queimal-os em autos de fé, congesto, via passar por seus olhos
uma serie enorme de réos confitentes, relapsos, contumazes, falsos,
simulados, fictos e confictos, sem samarra, soltos por ahi...

Albernaz não tinha tanta furia contra os adversarios. No fundo d'alma,
elle os queria até, tinha amigos lá, e essas divergencias nada
significavam para a sua idade e experiencia.

Depositava, entretanto, uma certa esperança na acção do Marechal.
Estando em apuros financeiros, não lhe dando o bastante a sua reforma e
a gratificação de organizador do archivo do largo do Moura, esperava
obter uma outra commissão, que lhe permitisse mais folgadamente
adquirir o enxoval de Lalá.

O Almirante, tambem, tinha grande confiança nos talentos guerreiros e
de estadista de Floriano. A sua causa não ia lá muito bem. Perdera-a
em primeira instancia, estava gastando muito dinheiro... O Governo
precisava de officiais de marinha, quasi todos estavam na revolta;
talvez lhe dessem uma esquadra a commandar... É verdade que... Mas, que
diabo! Se fosse um navio, então sim: mas uma esquadra a cousa não era
difficil: bastava coragem para combater.

Bustamante cria com força na capacidade do General Peixoto, tanto assim
que, para apoial-o e defender o seu Governo, imaginava organizar um
batalhão patriotico, de que já tinha o nome «Cruzeiro do Sul» e
naturalmente seria o seu commandante, com todas as vantagens do posto de
coronel.

Genelicio, cuja actividade nada tinha de guerreira, esperava muito da
energia e da decisão do Governo de Floriano: esperava ser sub-director
e não podia um Governo sério, honesto e energico, fazer outra cousa,
desde que quizesse pôr ordem na sua secção.

Essas secretas esperanças eram mais geraes do que se pode suppor. Nós
vivemos do Governo e a revolta representava uma confusão nos empregos,
nas honrarias e nas posições que o Estado espalha. Os suspeitos
abririam vagas e as dedicações suppririam os titulos e habilitações
para occupal-as; além disso, o Governo, precisando de sympathias e
homens, tinha que nomear, espalhar, prodigalizar, inventar, criar e
distribuir empregos, ordenados, promoções e gratificações.

O proprio Dr. Armando Borges, o marido de Olga e sabio sereno e dedicado
quando estudante, collocava na revolta a realização de risonhos
anhelos.

Medico e rico, pela fortuna da mulher, elle não andava satisfeito. A
ambição de dinheiro e o desejo de nomeada esporeavam-n'o. Já era
medico do Hospital Syrio, onde ia tres vezes por semana e, em meia hora,
via trinta e mais doentes. Chegava, o enfermeiro, dava-lhe
informações, o doutor ia de cama em cama, perguntando: como vai? Vou
melhor seu doutor, respondia o syrio com voz gutural. Na seguinte,
indagava: Já está melhor? E assim passava a visita; chegando ao
gabinete receitava: doente n. 1, repita a receita; doente 5... quem
é?... Quem é aquelle barbado... Ahn! E receitava.

Mas medico de um hospital particular não dá fama a ninguem: o
indispensavel é ser do Governo, senão elle não passava, de um simples
pratico. Queria ter um cargo official, medico, director ou mesmo lente
da Faculdade.

E isso não era difficil, desde que arranjasse boas recommendações,
pois já tinha certo nome, graças á sua actividade e fertilidade de
recursos.

De quando em quando, publicava um folheto «O cobreiro, Etiologia,
Prophylaxia e tratamento» ou «Contribuição para o estudo da sarna no
Brasil»; e mandava o folheto, quarenta e sessenta paginas, aos jornaes
que se occupavam delle duas ou tres vezes por anno; _o operoso, Dr.
Armando Borges, o illustre clinico, o proficiente medico da nossos
hospitaes, etc. etc_.

Obtinha isso graças á precaução que tomara em estudante de se
relacionar com os rapazes da imprensa.

Não contente com isso escrevia artigos, estiradas compilações, em que
não havia nada de proprio, mas ricos de citações em francez, inglez e
allemão.

O logar de lente é que o tentava mais; o concurso porém, mettia-lhe
medo. Tinha elementos, estava bem relacionado e cotado na Congregação,
mas aquella historia de arguição apavorava-o.

Não havia dia em que não comprasse livros, em francez, inglez e
italiano; tomara até um professor de allemão para entrar na sciencia
germanica; mas faltava-lhe energia para o estudo prolongado e a sua
felicidade pessoal fizera evolar-se a pequena que tivera quando
estudante.

A sala da frente do alto porão tinha sido transformada em bibliotheca.
As paredes estavam forradas de estantes que gemiam ao peso dos grandes
tratados. Ar noite, elle abria as janellas das venezianas, accendia
todos os bicos de gaz e se punha á meza, todo de branco com um livro
aberto sob os olhos.

O somno não tardava a vir ao fim da quinta pagina... isso era o diabo!
Deu em procurar os livros da mulher. Eram romances francezes, Goncourt,
Anatole France, Daudet, Maupassant, que o faziam dormir da mesma maneira
que os tratados. Elle não comprehendia a grandeza daquellas analyses,
daquellas descripções, o interesse e o valor dellas, revelando a
todos, á sociedade, a vida, os sentimentos, as dores daquelles
personagens, um mundo! O seu pedantismo, a sua falsa sciencia e a
pobreza de sua instrucção geral faziam-n'o ver naquillo tudo,
brinquedos, passatempos, falatorios, tanto mais que elle dormia á
leitura, de taes livros.

Precisava, porém, illudir-se, a si mesmo e á mulher. De resto, da rua,
viam-n'o e se dessem com elle a dormir sobre os livros?!... Tratou de
encommendar algumas novelas de Paulo de Kock em lombadas com titulos
trocados e afastou o somno.

A sua clinica, entretanto, prosperava. De commandita com o tutor, chegou
a ganhar uns seis contos, tratando de um febrão de uma orphã rica.

Desde muito que a mulher lhe entrara na sua simulação de
intelligencia, mas aquella manobra indecorosa, indignou-a. Que
necessidade tinha elle disso? Não era já rico? Não era moço? Não
tinha o privilegio de um titulo universitario? Tal acto pareceu á moça
mais vil, mais baixo, que a usura de um judeu, que o aluguel de uma
penna...

Não foi desprezo, nojo que ella teve pelo marido; foi um sentimento
mais calmo, menos activo; desinteressou-se delle, destacou-se de sua
pessoa. Ella sentiu que tinham cortado todos os laços de affeição, de
sympathia, que prendiam ambos, toda a ligação moral, emfim.

Mesmo quando noiva, verificara que aquellas cousas de amor ao estudo, de
interesse pela sciencia, de ambições de descobertas, nelle, eram
superficiaes, estavam á flor da pelle; mas desculpou. Muitas vezes nós
nos enganamos sobre as nossas proprias forças e capacidades; sonhamos
ser Shakespeare e sahimos Mal dos Vinhas. Era perdoavel, mas charlatão?
Era de mais!

Passou-lhe um pensamento mau, mas de que valeria essa quasi
indignidade?... Todos os homens deviam ser iguaes, era inutil mudar
deste para aquelle...

Quando chegou a esta conclusão, sentiu um grande allivio, e a sua
physionomia se illuminou de novo como se já estivesse de todo passada a
nuvem que empanava o sol dos seus olhos.

Naquella carreira atropellada para o nome facil, elle não deu pelas
modificações da mulher. Ella dissimulava os seus sentimentos, mais por
dignidade e delicadeza, que mesmo por qualquer outro motivo; e a elle
faltavam a sagacidade e finura necessarias para descobril-os sob o seu
esconderijo.

Continuavam a viver como se nada houvesse, mas quando estavam longe um
do outro!...

A revolta veiu encontral-os assim; e o doutor, desde tres dias, pois ha
tanto ella rebentara, meditava a sua ascenção social e monetaria.

O sogro suspendera a viagem á Europa, e, naquella manhã, após o
almoço, conforme o seu habito, lia recostado numa cadeira de viagem os
jornaes do dia. O genro vestia-se e a filha; occupava-se com sua
correspondencia, escrevendo á cabeceira da meza de jantar. Ella tinha
um gabinete, com todo o luxo, livros, secretaria, estantes, mas gostava
pela manhã, de escrever ali, ao lado do pai. A sala lhe parecia mais
clara, a vista para a montanha, feia e esmagadora, dava mais seriedade
ao pensamento e a vastidão da sala mais liberdade no escrever.

Ella escrevia e o pai lia; num dado momento elle disse:

--Sabes quem vem ahi, minha filha?

--Quem é?

--Teu padrinho. Telegraphou ao Floriano, dizendo que vinha... Está
aqui, n'«O Paiz».

A moça adivinhou logo o motivo, o modo de agir e reagir do facto sobre
as idéas e sentimentos de Quaresma. Quiz desapprovar, censurar;
sentiu-o, porém, tão coherente com elle mesmo, tão de accordo com a
substancia da vida que elle mesmo fabricara, que se limitou a sorrir
complacente:

--O padrinho...

--Está doido, disse Coleoni. _Per la madona_! Pois um homem que está
quieto, socegado, vem metter-se nesta barafunda, neste inferno...

O doutor voltava já inteiramente vestido, com a sobrecasaca funebre e a
cartola reluzente na mão. Vinha irradiante e o seu rosto redondo
reluzia, excepto onde o grande bigode punha sombras. Ainda ouviu as
ultimas palavras do sogro, pronunciadas com aquelle seu portuguez rouco.

--Que ha? perguntou elle.

Coleoni explicou a repetiu os commentarios que já fizera:

--Mas não ha tal, disse o doutor. É o dever de todo o patriota... Que
tem a idade? Quarenta e poucos annos, não é lá velho... Póde ainda
bater-se pela Republica...

--Mas não tem interesse nisso, objectou o velho.

--E ha de ser só quem tem interesse que se deve bater pela Republica?
interrogou o doutor.

A moça que acabava de ler a carta que tinha escripto, mesmo sem
levantar a cabeça, disse:

--De certo.

--É vêm você com as suas theorias, filhinha. O patriotismo não está
na barriga...

E sorriu com um falso sorriso que o brilho morto dos seus dentes
postiços mais falsificava.

--Mas vocês só falam em patriotismo? E os
outros! É monopolio de vocês o patriotismo? fez Olga.

--De certo. Se elles fossem patriotas não estariam a despejar balas
para a cidade, a entorpecer e desmoralisar a acção da autoridade
constituida.

--Deviam continuar a presenciar as prisões, as deportações, os
fuzilamentos, toda a serie de violencias que se vêm commettendo, aqui e
no Sul?

--Você, no fundo, é uma revoltosa, disse o doutor fechando a
discussão.

Ella não deixava de ser. A sympathia dos desinteressados, da
população. inteira era pelos insurgentes. Não só isso sempre
acontece em toda a parte, como particularmente, no Brasil, devido a
multiplos factores, ha de ser assim normalmente.

Os Governos, com os seus inevitaveis processos de violencia e
hypocrisias, ficam alheiados da sympathia dos que acreditam nelle; e
demais, esquecidos de sua vital impotencia e inutilidade, levam a
prometter o que não podem fazer, de forma a criar desesperados, que
pedem sempre mudanças e mudanças.

Não era, pois, de admirar que a moça tendesse para os revoltosos; e
Coleoni, estrangeiro e conhecendo, graças á sua vida, as nossas
autoridades, calasse as suas sympathias num mutismo prudente.

--Não me vá comprometter, hein Olga?

Ella se tinha levantado para acompanhar o marido. Parou um pouco,
deitou-lhe o seu grande olhar luminoso e com os finos labios um pouco
franzidos:

--Você sabe bem que eu não te comprometto.

O doutor desceu a escada da varanda, atravessou o jardim e ainda do
portão disse adeus a mulher, que lhe seguiu a sahida, debruçada na
varanda, conforme o ritual dos bem ou mal casados.

Por esse tempo, Coração dos Outros sonhava desligado das contingencias
terrenas.

Ricardo vivia ainda na sua casa de commodos dos suburbios, cuja vista ia
de Todos os Santos á Piedade, abrangendo um grande trato de area
edificada, um panorama de casas e arvores.

Já não se falava mais no seu rival e a sua magua tinha assentado.

Por esses dias o seu triumpho desfilava sem contestação. Toda a cidade
o tinha na consideração devida e elle quasi se julgava ao termo da sua
carreira. Faltava o assentimento de Botafogo, mas estava certo de obter.

Já publicara mais de um volume de canções; e, agora pensava em
publicar mais outro.

Ha dias vivia em casa, pouco sahindo, organizando o seu livro. Passava
confinado no seu quarto, almoçando café, que elle mesmo fazia, e pão,
indo á tarde jantar a uma tasca proximo á estação.

Notara que sempre que chegava, os carroceiros e trabalhadores, que
jantavam nas mezas sujas, abaixavam a voz e olhavam-n'o desconfiados;
mas não deu importancia...

Apezar de popular no logar, não encontrara pessoa alguma conhecida
durante os tres ultimos dias; elle mesmo evitava falar e, em sua casa,
limitava-se ao «bom dia» e á «boa tarde» trocados com os vizinhos.

Gostava de passar assim dias, mettido em si mesmo e ouvindo o seu
coração. Não lia jornaes para não distrahir a attenção do seu
trabalho. Vivia a pensar nas suas modinhas e no seu livro que havia de
ser mais uma victoria para elle e para o violão estremecido.

Naquella tarde estava sentado á meza, corrigindo um dos seus trabalhos,
um dos ultimos, aquelle que compuzera no sitio de Quaresma--«Os lábios
de Carola».

Primeiro, leu toda a producção, cantarolando: voltou a lel-a, agarrou
o violão para melhor apanhar o effeito e empacou nestes:


     É mais bella que Helena e Margarida,
     Quando sorri meneando a ventarola.
     Só se encontra a illusão que adoça a vida
          Nos labios de Carola.


Nisto ouviu um tiro, depois outro, outro... Que diabo? pensou. Hão de
ser salvas a algum navio estrangeiro. Repinicou o violão e continuou a
cantar os labios de Carola, onde encontrava a illusão que adoça a
vida...



TERCEIRA PARTE



I

PATRIOTAS


Havia mais do uma hora que elle estava ali, num grande salão do
palacio, vendo o Marechal, mas sem lhe poder falar. Quasi não se
encontravam difficuldades para se chegar á sua presença, mas
falar-lhe, a cousa não era tão facil.

O palacio tinha um ar de intimidade, de quasi relaxamento,
representativo o eloquente. Não era raro ver-se pelos divans, em outras
salas, ajudantes de ordens, ordenanças, continuos, cochilando, meio
deitados e desabotoados. Tudo nelle era desleixo e molleza. Os cantos
dos tectos tinham teias de aranha; dos tapetes, quando pisados com mais
força, subia uma poeira do rua mal varrida.

Quaresma não pudera vir logo, como annunciara no telegramma. Fôra
preciso por em ordem os seus negocios, arranjar quem fizesse companhia
á irmã. Fizera D. Adelaide mil objecções á sua partida;
mostrara-lhe os riscos da luta, da guerra, incompativeis com a sua idade
e superiores á sua força; elle, porém, não se deixara abater, fizera
pé firme, pois sentia, indispensavel, necessario que toda a sua
vontade, que toda a sua intelligencia, que tudo o que elle tinha de
vida e actividade fosse posto á disposição do Governo, para
então!... oh!

Aproveitava os dias até para redigir um memorial que ia entregar a
Floriano. Nelle expunham-se as medidas necessarias para o levantamento
da agricultura e mostravam-se todos os entraves, oriundos da grande
propriedade, das exacções fiscaes, da carestia de fretes, da
estreiteza dos mercados e das violencias politicas.

O Major apertava o manuscripto na mão e lembrava-se da sua casa, lá
longe, no canto daquella planicie feia, olhando, no poente, as montanhas
que se alongavam, se afilavam nos dias claros e transparentes;
lembrava-se de sua irmã, dos seus olhos verdes e placidos que o viram
partir com uma impassibilidade que não era natural; mas do que se
lembrava mais, naquelle momento, era do Anastacio, o seu preto velho, do
seu longo olhar, não mais com aquella ternura passiva de animal
domestico, mas cheio de assombro, de espanto e piedade, rolando muito
nas orbitas as escleroticas muito brancas, quando o viu penetrar no
vagão da estrada de ferro. Parecia que farejava desgraça... Não lhe
era commum tal attitude e como que a tomava por ter descoberto nas
cousas signaes de dolorosos acontecimentos a vir... Ora!...

Ficara Quaresma a um canto vendo entrar um e outro á espera que o
Presidente o chamasse. Era cedo, pouco devia faltar para o meio-dia e
Floriano tinha ainda, como signal do almoço, o palito na boca.

Falou em primeiro logar a uma commissão de senhoras que vinham
offerecer o seu braço e o seu sangue em defeza das instituições e da
patria. A oradora era uma mulher baixa, de busto curto, gorda, com
grandes seios altos e falava agitando o leque fechado na mão direita.

Não se podia dizer bem qual a sua cor, sua raça, ao menos: andavam
tantas nella que uma escondia a outra, furtando toda ella a uma
classificação honesta.

Emquanto falava, a mulhersinha deitava sobre o Marechal os grandes olhos
que despediam chispas. Floriano parecia incommodado com aquelle
chammejar; era como se temesse derreter-se ao calor daquelle olhar que
queimava mais seducção que patriotismo. Fugia encaral-a, abaixava o
rosto como um adolescente, batia com os dedos na meza...

Quando lhe chegou a vez de falar, levantou um pouco o rosto, mas sem
encarar a mulher, e, com um grosso e difficil sorriso do roceiro,
declinou da offerta, visto a Republica ainda dispor de bastante força
para vencer.

A ultima phrase, elle a disse com mais vagar e quasi ironicamente. As
damas despediram-se; o Marechal gyrou o olhar em torno do salão e deu
com Quaresma: Então, Quaresma? fez elle familiarmente.

O Major ia approximar-se, mas logo estacou no logar em que estava. Uma
chusma de officiaes subalternos e cadetes cercou o dictador e a sua
attenção convergiu para elles. Não se ouvia o que diziam. Falavam ao
ouvido de Floriano, cochichavam, batiam-lhe nas espaduas. O Marechal
quasi não falava: movia com a cabeça ou pronunciava um monossylabo,
cousa que Quaresma percebia pela articulação dos labios.

Começaram a sahir. Apertavam a mão do dictador e, um delles, mais
jovial, mais familiar, ao despedir-se, apertou-lhe com força a mão
molle, bateu-lhe no hombro com intimidade, e disse alto e com emphase;
energia, Marechal!

Aquillo tudo parecia tão natural, normal, tendo entrado no novo
ceremonial da Republica, que ninguem, nem o proprio Floriano, teve a
minima surpreza, ao contrario alguns até sorriram alegres por ver o
califado khan, o emir, transmittir um pouco do que tinha de sagrado ao
subalterno desabusado. Não se foram todos immediatamente. Um delles
demorou-se mais a segredar cousas á suprema autoridade do paiz. Era um
cadete da Escola Militar, com a sua farda azul turqueza, talim e sabre de
praça de pret.

Os cadetes da Escola Militar formavam a phalange sagrada.

Tinham todos os privilegios e todos os direitos; precediam ministros nas
entrevistas com o dictador e abusavam dessa situação de esteio do
sylla, para opprimir e vexar a cidade inteira.

Uns trapos do positivismo se tinham collado naquellas intelligencias e
uma religiosidade especial brotara-lhes no sentimento, transformando a
autoridade, especialmente Floriano e vagamente a Republica, em artigo de
fé, em feitiço, em idolo mexicano, em cujo altar todas as violencias
e crimes eram oblatas dignas e offerendas uteis para a sua satisfação
e eternidade.

O cadete lá estava...

Quaresma pôde então ver melhor a physionomia do homem que ia enfeixar
em suas mãos, durante quasi um anno, tão fortes poderes, poderes de
imperador Romano pairando sobre tudo, limitando tudo, sem encontrar
obstaculo algum aos seus caprichos, ás suas fraquezas e vontades, nem
mas leis, nem nos costumes, nem na piedade universal e humana.

Era vulgar e desoladora. O bigode cahido; o labio inferior pendente e
molle a que se agarrava uma grande _mosca_; os traços flacidos e
grosseiros; não havia nem o desenho do queixo ou olhar que fosse
propria, que revelasse algum dote superior. Era um olhar mortiço,
redondo, pobre de expressões, a não ser de tristeza que não lhe era
individual, mas nativa, de raça; e todo elle era gelatinoso, parecia
não ter nervos.

Não quiz o Major ver em taes signaes nada que lhe denotasse o caracter,
a intelligencia e o temperamento. Essas cousas não vogam, disse elle de
si para si.

O seu enthusiasmo por aquelle idolo politico era forte, sincero e
desinteressado. Tinha-o na conta de energico, de fino e supervidente,
tenaz e conhecedor das necessidades do paiz, manhoso talvez um pouco,
uma especie de Luiz XI forrado de um Bismarck. Entretanto, não era
assim. Com uma ausencia total de qualidades intellectuaes, havia no
caracter do Marechal Floriano uma qualidade predominante: tristeza de
animo; e no seu temperamento, muita preguiça. Não a preguiça commum,
essa preguiça de nós todos; era uma preguiça morbida, como que uma
pobreza de irrigação nervosa, provinda de uma insufficiente quantidade
de irrigação no seu organismo. Pelos logares que passou, tornou-se
notavel pela indolencia e desamor ás obrigações dos seus cargos.


Quando director do Arsenal de Pernambuco, nem energia tinha para
assignar o expediente respectivo; e durante o tempo em que foi ministro
da guerra, passava mezes e mezes sem lá ir, deixando tudo por assignar,
pelo que legou ao seu substituto um trabalho avultadissimo.

Quem conhece a actividade papeleira de um Colbert, de um Napoleão, de
um Philippe II, de um Guilherme I, da Allemanha, em geral de todos os
grandes homens de Estado, não comprehende o descaso florianesco pela
expedição de ordens, explicações aos subalternos, de suas vontades,
de suas vistas, certamente necessarias deviam ser taes transmissões
para que o seu senso superior se fizesse sentir e influisse na marcha
das cousas governamentaes e administrativas.

Dessa sua preguiça de pensar e de agir, vinha o seu mutismo, os seus
mysteriosos monosyllabos, levados á altura de ditos sybillinos, as
famosas _encruzilhadas dos tal vezes_, que tanto reagiram sobre a
intelligencia e imaginação nacionaes, mendigas de heroes e grandes
homens.

Essa doentia preguiça, fazia-o andar de chinellos e deu-lhe aquelle
aspecto de calma superior, calma de grande homem de estado ou de
guerreiro extraordinario.

Toda a gente ainda se lembra como foram os seus primeiros mezes de
governo. A braços com o levante de presos, praças e inferiores da
fortaleza de Santa Cruz, tendo mandado fazer um inquerito, abafou-o com
medo que as pessoas indicadas como instigadoras não fizessem outra
sedicção, e, não contente com isto, deu a essas pessoas as melhores
e mais altas recompensas.

Demais, ninguem póde admittir um homem forte, um Cesar, um Napoleão,
que permitta aos subalternos aquellas intimidades deprimentes e tenha
com elles as condescendencias que elle tinha, consentindo que o seu nome
servisse de labaro para uma vasta serie de crimes de toda a especie.

Uma recordação basta. Sabe-se bem sob que atomosphera de má vontade
Napoleão assumiu o commando do exercito da Italia. Augereau que o
chamava «general de rua», disse a alguem, após lhe ter falado: «o
homem metteu-me medo»; e o corso estava senhor do exercito, sem
_balidellas_ no hombro, sem delegar tacita ou explicitamente a sua
autoridade a subalternos irresponsaveis.

De resto, a lentidão com que suffocou a revolta de 6 de Setembro mostra
bem a incerteza, a vacillação de vontade de um homem que dispunha
daquelles extraordinarios recursos que estavam ás suas ordens.

Ha uma outra face do Marechal Floriano que muito explica os seus
movimentos, actos e gestos. Era o seu amor á familia, um amor
entranhado, alguma cousa de patriarchal, de antigo que já se vai
esvaindo com a marcha da civilização.

Em virtude de insuccessos na exploração agricola de duas das suas
propriedades, a sua situação particular era precaria, e não queria
morrer sem deixar á familia as suas propriedades agricolas desoneradas
do peso das dividas.

Honesto e probo como era, a unica esperança que lhe restava, repousava
nas economias sobre os seus ordenados. Dahi lhe veiu essa dubiedade,
esse jogo com pau de dous bicos, jogo indispensavel para conservar os
rendosos logares que teve e o fez atarrachar-se tenazmente á
presidencia da Republica. A hypotheca do «Brejão» e do «Duarte» foi
o seu nariz de Cleopatra...

A sua preguiça, a sua tistreza de animo e o seu amor fervoroso pelo lar
deram em resultado esse _homem-talvez_ que, refractado nas
necessidades mentaes e sociaes dos homens do tempo, foi transformado em
estadista, em Richelieu, e pôde resistir a uma séria revolta com mais
teimosia que vigor, obtendo vidas, dinheiro e despertando até
enthusiasmo e fanatismo.

Esse enthusiasmo e esse fanatismo, que o ampararam, que o animaram, que
o sustentaram, só teriam sido possiveis, depois de ter elle sido
ajudante general do Imperio, senador, ministro, isto após se ter
_fabricado_ á vista de todos o chrystalizado a lenda na mente de todos.

A sua concepção de governo não era o despotismo, nem a democracia,
nem a aristocracia; era a de uma tyrannia domestica. O bêbê portou-se
mal, castiga-se. Levada a cousa ao grande o portar-se mal em fazer-lhe
opposição, ter opiniões contrarias ás suas e o castigo não eram
mais palmadas, sim, porém, prisão e morte. Não ha dinheiro no
Thesouro; ponham-se as notas recolhidas em circulação, assim como se
faz em casa quando chegam visitas e a sopa é pouca: põe-se mais agua.

Demais, a sua educação militar e a sua fraca cultura deram mais realce
a essa concepção infantil, raiando-a de violencia, não tanto por elle
em si, pela sua perversidade natural, pelo seu desprezo pela vida
humana, mas pela fraqueza com que acobertou e não reprimiu a ferocidade
dos seus auxiliares e asseclas.

Quaresma estava longe de pensar nisso tudo; elle com muitos homens
honestas e sinceros do tempo, foram tomados pelo enthusiasmo contagioso
que Floriano conseguira despertar. Pensava na grande obra que o Destino
reservava aquella figura placida e triste; na reforma radical que elle
ia levar organismo anniquilado da patria, que o Major se habituara a
crer a mais rica do mundo, embora, de uns tempos para cá, já tivesse
duvidas a certos respeitos.

De certo, elle não negaria taes esperanças e a sua acção poderosa
havia de se fazer sentir pelos oito milhões de kilometros quadrados do
Brasil, levando-lhes estradas, segurança, protecção aos fracos,
assegurando o trabalho e promovendo a riqueza.

Não se demorou muito nessa ordem de pensamentos. Um seu companheiro de
espera, desde que o Marechal lhe falou familiarmente, começou a
considerar aquelle homem pequenino, taciturno, de _pince-nez_ e foi-se
chegando, se approximando e, quando já perto, disse a Quaresma, quasi
como um terrivel segredo:

--Elles vão ver o _caboclo_... O Major ha muito que o conhece?

Respondeu-lhe o Major e o outro ainda lhe fez uma outra pergunta; o
presidente, porém, ficara só e Quaresma avançou.

--Então, Quaresma? fez Floriano.

--Venho offerecer á V. Ex. os meus fracos prestimos.

O presidente considerou um instante aquella pequenez de homem, sorriu
com difficuldade, mas, levemente, com um pouco de satisfação. Sentiu
por ahi a força de sua popularidade e senão a razão boa de sua causa.

--Agradeço-te muito... Onde tens andado? Sei que deixaste o Arsenal.

Floriano tinha essa capacidade de guardar physionomias, nomes, empregos,
situações dos subalternos com quem lidava. Tinha alguma cousa de
asiatico; era cruel e paternal ao mesmo tempo.

Quaresma explicou-lhe a sua vida e aproveitou a occasião para lhe falar
em leis agrarias, medidas tendentes a desafogar e dar novas bases á
nossa vida agricola. O Marechal ouviu-o distrahido, com uma dobra de
aborrecimento no canto dos labios.

--Trazia á V. Ex. até este memorial...

O presidente teve um gesto de mau humor, um quasi «não me amole» e
disse com preguiça a Quaresma:

--Deixa ahi...

Depositou o manuscripto sobre meza e logo o dictador dirigiu-se ao
interlocutor de ainda agora:

--Que ha, Bustamante? e o batalhão, vai?

O homem approximou-se mais, um tanto amedrontado!

--Vai bem, Marechal. Precisamos de um quartel... Se V. Ex. desse
ordem...

--É exacto. Fala ao Rufino em meu nome que elle póde arranjar... Ou
antes: leva-lhe este bilhete.

Rasgou um pedaço de uma das primeiras paginas do manuscripto de
Quaresma, e assim mesmo, sobre aquella ponta de papel, a lapiz azul,
escreveu algumas palavras ao seu ministro da guerra. Ao acabar é que
deu com a desconsideração:

--Ora! Quaresma! rasguei o teu escripto... Não faz mal... Era a parte
de cima, não tinha nada escripto.

O Major confirmou e o presidente, em seguida, voltando-se para
Bustamante:

--Aproveita Quaresma no teu batalhão. Que posto queres?

--Eu! foz Quaresma estupidamente.

--Bem. Vocês lá se entendam.

Os dous se despediram do presidente e desceram vagarosamente as escadas
do Itamaraty. Até á rua nada disseram um ao outro. Quaresma vinha um
pouco frio. O dia estava claro e quente; o movimento da cidade parecia
não ter soffrido alteração apreciavel. Havia a mesma agitação de
bondes, carros e carroças; mas nas physionomias, um terror, um espanto,
alguma cousa de tremendo ameaçava, todos e parecia estar suspenso no
ar.

Bustamante deu-se a conhecer. Era o Major Bustamante, agora
Tenente-Coronel, velho amigo do Marechal, seu companheiro no Paraguay.

--Mas nós nos conhecemos! exclamou elle.

Quaresma esteve olhando aquelle velho mulato escuro, com uma grande
barba mosaica e olhos espertos, mas não se lembrou de tel-o já
encontrado algum dia.

--Não me recordo... Donde?

--Da casa do General Albernaz... Não se lembra?

Polycarpo então teve uma vaga recordação e o outro explicou-lhe a
formação do seu batalhão patriotico «Cruzeiro do Sul».

--O Sr. quer fazer parte?

--Pois não, fez Quaresma.

--Estamos em difficuldades... Fardamento, calçado para as praças...
Nas primeiras despezas devemos auxiliar o Governo... Não convém
sangrar o Thesouro, não acha?

--Certamente, disse com enthusiasmo Quaresma.

--Folgo muito que o senhor concorde comigo... Vejo que é um patriota...
Resolvi por isso fazer um rateio pelos officiaes, em proporção ao
posto: um alferes concorre com cem mil réis, um tenente com duzentos...
O senhor que patente quer? Ah! É verdade! O senhor é major, não é?

Quaresma então explicou por que o tratavam por Major. Um amigo,
influencia no Ministerio do Interior, lhe tinha mettido o nome numa lista
de guardas nacionaes, com esse posto. Nunca tendo pago os emolumentos,
viu-se, entretanto, sempre tratado Major, e a cousa pegou. A principio,
protestou, mas como teimassem deixou.

--Bem, fez Bustamante. O senhor fica mesmo sendo Major.

--Qual é a minha quota?

--Quatrocentos mil réis. Um pouco forte, mas... O senhor sabe; é um
posto importante... Aceita?

--Pois não.

Bustamante tirou a carteira, tomou nota com uma pontinha do lapiz e
despediu-se jovialmente.

--Então, Major, ás seis, no quartel provisorio.

A conversa se havia passado na esquina da rua Larga com o Campo de
Sant'Anna. Quaresma pretendia tomar um bonde que o levasse ao centro da
cidade. Tencionava visitar o compadre em Botafogo, fazendo, assim, horas
para a sua iniciação militar.

A praça estava pouco transitada; os bondes passavam ao chouto
compassado das mulas; de quando em quando ou via-se um toque de corneta,
rufos de tambor, e do portão central do Quartel General sahia uma
força, armas ao hombro, bayonetas caladas, dansando nos hombros dos
recrutas, faiscando com um brilho duro e máu.

Ia tomar o bonde, quando se ouviram alguns disparos de artilharia e o
secco espoucar dos fuzis. Não durou muito; antes que o bonde attingisse
á rua da Constituição, todos os rumores guerreiros tinham cessado, e
quem não estivesse avisado havia de suppor-se em tempos normaes.

Quaresma chegou-se para o centro do banco e ia ler o jornal que
comprara. Desdobrou-o vagarosamente, mas foi logo interrompido;
bateram-lhe no hombro. Voltou-se.

--Oh! General!

O encontro foi cordial. O General Albernaz gostava dessas cerimonias e
tinha mesmo um prazer, uma deliciosa emoção em reatar conhecimentos
que se tinham enfraquecido por uma separação qualquer. Estava fardado,
com aquelle seu uniforme mal tratado; não trazia espada e o _pince-nez_
continuava preso por um trancelim de ouro que lhe passava por detraz da
orelha esquerda.

--Então vem ver a cousa?

--Vim. Já me apresentei ao Marechal.

--_Elles_ vão ver com quem se metteram. Pensam que tratam com o
Deodoro, enganam-se!... A Republica, graças a Deus, tem agora um homem
na sua frente... O _caboclo_ é de ferro... No Paraguay...

--O Sr. conheceu-o lá, não, General?

--Isto é... Não chegamos a nos encontrar, mas o Camisão... É duro, o
homem. Estou como encarregado das munições... É fino o _caboclo_;
não me quiz no litoral. Sabe muito bem quem sou e que munição que
saia das minhas mãos, é munição... Lá, no deposito, não me sai um
caixote que eu não examine... É necessario... No Paraguay, houve muita
desordem e comilança: mandou-se muita cal por polvora--não sabia?

--Não.

Pois foi. O meu gasto era ir para as praias, para o combate: mas o
_homem_ quer que eu fique com as munições... Capitão manda marinheiro
faz... Elle sabe lá...

Deu de hombros, concertou o trancelim que já cahia da orelha e esteve
calado um instante. Quaresma perguntou:

--Como vai a familia?

--Bem. Sabe que Quinota casou-se?

--Sabia, o Ricardo me disse. E D. Ismenia, como vai?

A physionomia do General toldou-se e respondeu como a contragosto:

--Vai no mesmo.

O pudor de pai tinha-o impedido de dizer toda a verdade. A filha
enlouquecera de uma loucura mansa e infantil. Passava dias inteiros
calada, a um canto, olhando estupidamente tudo, com um olhar morto de
estatua, numa atonia de inanimado, como que cahira em imbecilidade; mas
vinha uma hora, porém, em que se penteava toda, enfeitava-se e corria
á mãe, dizendo: «Aprompta-me, mamãe. O meu noivo não deve tardar...
é hoje o meu casamento». Outras vezes recortava papel, em forma de
participações, e escrevia: Ismenia de Albernaz e Fulano (variava)
participam o seu casamento.

O General já consultara uma duzia de medicos, o espiritismo e agora
andava ás voltas com um feiticeiro milagroso; a filha, porém, não
sarava, não perdia a mania e cada vez mais se embrenhava o seu espirito
naquella obsessão de casamento, alvo que fizeram ser da sua vida, a que
não attingira, aniquilando-se, porém, o seu espirito e a sua mocidade
em pleno verdor.

Entristecia o seu estado aquella casa outr'ora tão alegre, tão
festiva. Os bailes tinham diminuido: e, quando eram obrigados a dar um,
nas datas principaes, a moça, com todos os cuidados, á custa de todas
as promessas, era levada para casa da irmã casada, e lá ficava,
emquanto as outras dansavam, um instante esquecidas da irmã que
soffria.

Albernaz não quis revelar aquella dôr de sua velhice: reprimiu a
emoção e continuou no tom mais natural, naquelle seu tom familiar e
intimo que usava com todos:

--Isto é uma infamia, Sr. Quaresma. Que atrazo para o paiz! E os
prejuizos? Um porto destes fechado ao commercio nacional, quantos annos
de retardamento não representa!

O Major concordou e mostrou a necessidade de prestigiar o Governo, de
forma a tornar impossivel a reproducção de levantes e insurreições.

--De certo, adduziu o General. Assim não progredimos, não nos
adiantamos. E no estrangeiro que mau effeito!

O bonde chegara ao largo de S. Francisco e os dous se separaram.
Quaresma foi direitinho ao largo da Carioca e Albernaz seguiu para a rua
do Rosario.

Olga viu entrar seu padrinho sem aquella alegria expansiva de sempre.
Não foi indifferença que sentiu, foi espanto, assombro, quasi modo,
embora soubesse perfeitamente que elle estava a chegar. Entretanto, não
havia mudança na physionomia de Quaresma, no seu corpo, em todo elle.
Era o mesmo homem baixo, pallido, com aquelle cavaignac apontado e o
olhar agudo por detraz do _pince-nez_... Nem mesmo estava mais queimado
e o geito de apertar os labios era o mesmo que ella conhecia ha tantos
annos. Mas, parecia-lhe mudado e ter entrado impellido, empurrado por
uma força extranha, por um turbilhão; bem examinando, entretanto,
verificou que lhe entrara naturalmente, com o seu passo meudo e firme.
Donde lhe vinha então essa cousa que a acanhava, que lhe tirava sua
alegria de ver pessoa tão amada? Não atinou. Estava lendo na sala de
jantar e Quaresma não se fazia annunciar; ia entrando conforme o velho
habito. Respondeu ao padrinho ainda sob a dolorosa impressão da sua
entrada:

--Papae saiu; e o Armando está lá em baixo escrevendo.

De facto, elle estava escrevendo ou mais particularmente: traduzia para
o _classico_ um grande artigo sobre «Ferimentos por arma de fogo». O
seu ultimo _truc_ intellectual era este do classico. Buscava nisto uma
distincção, uma separação intellectual desses meninos por ahi que
escrevem contos e romances nos jornaes. Elle, um sabio, e sobretudo, um
doutor, não podia escrever da mesma forma que elles. A sua sabedoria
superior e o seu titulo _academico_ não podia usar da mesma lingua, dos
mesmos modismos, da mesma syntaxe que esses poetastros e literatecos.
Veio-lhe então a idéa do classico. O processo era simples: escrevia do
modo commum, com as palavras e o jeito de hoje, em seguida invertia as
orações, picava o periodo com virgulas e substituia _incomodar_ por
_molestar_, ao _redor_ por _derredor_, _isto_ por _esto_, _quão grande_
ou _tão grande_ por _quammanho_, sarapintava tudo de _ao invez_,
_empós_, e assim obtinha o seu estylo classico que começava a causar
admiração aos seus pares e ao publico em geral.

Gostava muito da expressão--_ás rebatinhas_; usava-a a todo o momento
e, guando a punha no branco do papel, imaginava que dera ao seu estylo
uma força e um brilho pascalinos e ás suas idéas unia sufficiencia
transcendente. De noite, lia o padre Vieira, mas logo ás primeiras
linhas o somno lhe vinha e dormia sonhando-se _physico_, tratado de
mestre, em pleno seiscentos, prescrevendo sangria e agua quente, tal e
qual o Dr. Sangrado.

A sua traducção estava quasi no fim, já estava bastante pratico, pois
com o tempo adquirira um vocabulario sufficiente e a versão era feita
mentalmente, em quasi metade, logo na primeira escripta. Recebeu o
recado da mulher, annunciando-lhe a visita, com um pequeno
aborrecimento, mas, como teimasse em não encontrar um equivalente
classico para _orificio_, julgou util a interrupção. Queria pôr
_buraco_, mas era plebeu; _orificio_, se bem que muito usado, era,
entretanto, mais digno. Na volta talvez encontrasse, pensou: e subiu á
sala de jantar. Elle entrou prazenteiro, com o seu grande bigode
esfarelado, o seu rosto redondo e encontrou padrinho e afilhada
empenhados em uma discussão sobre autoridade.

Dizia ella:

--Eu não posso comprehender esse tom divino com que os senhores falam
da autoridade. Não se governa mais em nome de Deus, por que então esse
respeito, essa veneração de que querem cercar os governantes?

O doutor, que ouvira toda a phrase, não pôde deixar de objetar:

--Mas é preciso, indispensavel... Nós sabemos bem que elles são
homens como nós, mas, se não for assim tudo vai por agua abaixo.

Quaresma acrescentou:

--É em virtude das proprias necessidades internas e externas da nossa
sociedade que ella existe... Nas formigas, nas abelhas...

--Admitto. Mas ha revoltas entre as abelhas e formigas, e a autoridade
se mantem lá á custa de assassinios, exacções e violencias?

--Não se sabe... Quem sabe? Talvez... fez evasivamente Quaresma.

O doutor não teve duvidas e foi logo dizendo:

--Que temos nós com as abelhas? Então nós, os homens, o pinaculo da
escala zoologica iremos buscar normas de vida entre insectos?

--Não, é isso, meu caro doutor; buscamos nos exemplos delles a certeza
da generalidade do phenomeno, da sua immanencia, por assim dizer, disse
Quaresma com doçura.

Elle não tinha acabado a explicação e já Olga reflectia:

--Ainda se essa tal autoridade trouxesse felicidade--vá; mas não; de
que vale?

--Ha de trazer, affirmou categoricamente Quaresma. A questão é
consolidal-a.

Conversaram ainda muito tempo. O Major contou a sua visita a Floriano, a
sua proxima incorporação ao batalhão «Cruzeiro do Sul». O doutor
teve uma ponta de inveja, quando elle se referiu ao modo familiar por
que Floriano o tratara. Fizeram um pequeno _lunch_ e Quaresma saiu.

Sentia necessidade de rever aquellas ruas estreitas, com as suas lojas
profundas e escuras, onde os empregados se moviam como em um
subterraneo. A tortuosa Rua dos Ourives, a esburacada Rua da Assembléa,
a casquilha rua do Ouvidor davam-lhe saudades.

A vida continuava a mesma. Havia grupos parados e moças a passeio; no
Café do Rio, uma multidão. Eram os avançados, os _jacobinos_, a
guarda abnegada da Republica, os intransigentes, a cujos olhos, a
moderação, a tolerancia e o respeito pela liberdade e a vida alheias
eram crimes de lesa-patria, sintomas de monarquismo criminoso e
abdicação desonesta diante do estrangeiro. O estrangeiro era sobretudo
o portuguez, o que não impedia de haver jornaes _jacobinissimos_
redigidos por portuguezes da mais bella agua.

A não ser esse grupo gesticulante e apaixonado, a rua do Ouvidor era a
mesma. Os namoros se faziam e as moças iam e vinham. Se uma bala zunia
no alto céo azul, luminoso, as moças davam gritinhos de gata, corriam
para dentro das lojas, esperavam um pouco e logo voltavam sorridentes, o
sangue a subir ás faces pouco e pouco, depois da pallidez do medo.

Quaresma jantou num _restaurant_ e dirigiu-se ao quartel, que
funccionava provisoriamente num velho cortiço condemnado pela hygiene,
lá pelos lados da cidade Nova. Tinha o tal cortiço andar terreo e
sobrado, ambos divididos em cubiculos do tamanho de camarotes de navio.
No sobrado, havia uma varanda de grade de páu e uma escada de madeira
levava até lá, escada tosca e oscillante, que gemia á menor passada.
A casa da ordem funccionava no primeiro quartinho do sobrado e o pateo,
já sem as cordas de seccar ao sol a roupa, mas com as pedras manchadas
das barrélas e da agua de sabão, servia para a instrucção dos
recrutas. O instructor era um sargento reformado, um tanto coxo, e
admittido no batalhão com o posto de alferes, que gritava com uma
demora majestosa: _hom--brô_... armas!

O Major entregou a sua quota ao coronel e este esteve a mostrar-lhe o
modelo do fardamento.

Era muito singular essa fantasia de seringueiro: o dolman era
verde-garrafa e tinha uns vivos azul ferrete, alamares dourados e quatro
estrellas prateadas, em cruz, na góla.

Uma gritaria fel-os vir até á varanda. Entre soldados entrava um
homem, a se debater, a chorar e a implorar, ao mesmo tempo, levando de
quando em quando uma reflada.

--É o Ricardo! exclamou Quaresma. O senhor não o conhece, Coronel?
continuou ele com interesse e piedade.

Bustamante estava impassivel na varanda e só respondeu depois de algum
tempo:

--Conheço... É um voluntario recalcitrante, um patriota rebelde.

Os soldados subiram com o _voluntario_ e Ricardo logo que deu com o
major, suplicou-lhe:

--Salve-me major!

Quaresma chamou de parte o Coronel, rogou-lhe e supplicou-lhe, mas foi
inutil... Ha necessidade de gente... Enfim, fazia-o cabo.

Ricardo, de longe, seguia a conversa dos dous: adivinhou a recusa e
exclamou:

--Eu sirvo sim, sim, mas dêm-me o meu violão.

Bustamante perfilou-se e gritou aos soldados:

--Restituam o violão ao cabo Ricardo!



II

VOCÊ, QUARESMA, É UM VISIONARIO


Oito horas da manhã. A cerração ainda envolve tudo. Do lado de terra,
mal se enxergam as partes baixas dos edificios proximos; para o lado do
mar, então, a vista é impotente contra aquella treva esbranquiçada e
fluctuante, contra aquella muralha de flócos e opaca, que se condensa
ali e aqui em apparições, em semelhanças de cousas. O mar está
silencioso: ha grandes intervallos entre o seu fraco marulho. Vê-se da
praia um pequeno trecho, sujo, coberto de algas, e o odôr da maresia
parece mais forte com a neblina. Para a esquerda e para a direita, é o
desconhecido, o Mysterio. Entretanto, aquella pasta espessa, de uma
claridade diffusa, está povoada de ruidos. O chiar das serras vizinhas,
os apitos de fabricas e locomotivas, os guinchos do guindastes dos
navios enchem aquella manhã indecifravel e taciturna; e ouve-se mesmo a
bulha compassada de remos que ferem o mar. Accredita-se, dentro daquelle
decoro, que é Charonte que traz a sua barca para uma das margens do
Styge...

Attenção! Todos prescrutam a cortina de nevoa pastosa. Os rostos
estão alterados; parece que, do seio da bruma, vão surgir demonios...

Não se ouve mais a bulha: o escaler afastou-se. As physionomias
respiram aliviadas...

Não é noite, não é dia; não é o diluculo, não é o crepusculo:
é a hora da angustia, é a luz da incerteza. No mar, não ha estrellas
nem sol que guiem; na terra, as aves morrem de encontro ás paredes
brancas das casas. A nossa miseria é mais completa e a falta daquelles
mudos marcos da nossa actividade dá mais forte percepção do nosso
isolamento no seio da natureza grandiosa.

Os ruidos continuam, e, como nada se vê, parece que vêm do fundo da
terra ou são allucinações auditivas. A realidade só nos vem do
pedaço de mar que se avista, marulhando com grandes intervallos,
fracamente, tenuemente, a medo, de encontro a areia da praia, suja de
bodelhas, algas e sargaços.

Aos grupos, após o rumor dos remos, os soldados deitaram-se pela relva
que continua a praia. Alguns já cochilam; outros procuram com os olhos
o céo atravez do nevoeiro que lhes humedece o rosto.

O cabo Ricardo Coração dos Outros, de rifle á cintura e gorro á
cabeça, sentado numa pedra, está de parte, sósinho, e olha aquella
manhã angustiosa.

Era a primeira vez que via a cerração assim perto do mar, onde ella
faz sentir toda a sua força de desesperar. Em geral, elle só tinha
olhos para as alvoradas claras e purpurinas, macias e fragrantes;
aquelle amanhecer brumoso e feio, era uma novidade para elle.

Sob o fardamento de cabo, o menestrel não se aborrece. Aquella vida
solta da caserna vai-lhe bem n'alma: o violão está lá dentro e, em
horas de folga, elle o experimenta, cantarolando em voz baixa. É
preciso não enferrujar os dedos... O seu pequeno aborrecimento é não
poder, de quando em quando, soltar o peito.

O commandante do destacamento é Quaresma que, talvez, consentisse...

O Major está no interior da casa que serve de quartel, lendo. O seu
estudo predilecto é agora artilharia. Comprou compendios; mas, como sua
instrucção é insufficiente, da artilharia vai á balistica, da
balistica á mecanica, da mecanica ao calculo e á geometria analytica;
desce mais a escada; vai á trigonometria, á geometria e á algebra e
á arithmetica. Elle percorre essa cadeia de sciencias entrelaçadas com
uma fé de inventor. Aprende uma noção elementarissima após um
rosario de consultas, de compendio em compendio; e leva assim aquelles
dias de ocio guerreiro enfronhado na mathematica, nessa mathematica
rebarbativa e hostil aos cerebros que já não são mais moços.

Ha no destacamento um canhão Krupp, mas elle nada tem a ver com o
mortifero apparelho: comtudo, estuda artilharia. É encarregado delle o
Tenente Fontes, que não dá obediencia alguma ao patriota Major.
Quaresma não se incommoda com isso; vai aprendendo lentamente a
servir-se da boca de fogo e submete-se á arrogancia do subalterno.

O Commandante do «Cruzeiro do Sul», o Bustamante da barba mosaica,
continua no quartel, superintendendo a vida do batalhão, A unidade tem
poucos officiaes e muito poucas praças; mas o Estado paga o pret de
quatrocentas. Ha falta de capitães, o numero de alferes está justo, o
de tenentes quasi, más já ha um major, que é Quaresma, e o
commandante, Bustamante, que por modestia, se fez simplesmente
Tenente-Coronel.

Tem quarenta praças o destacamento que Quaresma commanda, tres alferes,
dous tenentes; mas os officiaes pouco apparecem. Estão doentes ou
licenciados e só elle, o antigo agricultor do «Socego», e um alferes,
Polydoro, este mesmo só á noite, estão a postos. Um soldado entrou:

--Sr. Commandante, posso ir almoçar?

--Póde. Chama-me o cabo Ricardo.

A praça sahiu capengando em cima de grandes botinas: o pobre homem
usava aquella peça protectora como um castigo. Assim que se viu no
matto, que levava á casa, tirou-as e sentiu pelo rosto o sopro da
liberdade.

O commandante chegou á janella. A cerração se ia dissipando. Já se
via o sol que brilhava como um disco de ouro fosco.

Ricardo Coração dos Outros appareceu. Estava engraçado dentro do seu
fardamento de caporal. A blusa era curtissima, sungada; os punhos lhe
apareciam inteiramente: e as calças eram compridissimas e arrastavam no
chão.

--Como vaes Ricardo?

--Bem. E o Sr. Major?

--Assim.

Quaresma deitou sobre o inferior e amigo, aquelle seu olhar agudo e
demorado:

--Andas aborrecido, não é?

O trovador sentiu-se alegre com o interesse do commandante:

--Não... Para que dizer, Major, que sim... Se a cousa for assim até ao
fim, não é mau... O diabo é quando ha tiro... Uma cousa, Major; não
se poderia, assim, ahi pelas horas em que não ha que fazer, ir nas
mangueiras, cantar um pouco...

O Major coçou a cabeça, alisou o cavaignac e disse:

--Eu, não sei... É..

--O Sr. sabe que isso de cantar baixo é remar em secco... Dizem que no
Paraguay...

--Bem. Cante lá; mas não grite, hein?

Calaram-se um pouco; Ricardo ia partir quando o Major recommendou:

--Manda-me trazer o almoço.

Quaresma jantava e almoçava ali mesmo. Não era raro tambem dormir. As
refeições eram-lhe fornecidas por um _frege_ proximo e elle dormia em
um quarto daquella edificação imperial. Porque a casa em que se
acantonara o destacamento, era o pavilhão do Imperador, situado na
antiga Quinta da Ponta do Cajú. Ficavam nella tambem a estação da
estrada de ferro do Rio Douro e uma grande e bulhenta serraria. Quaresma
veiu até á porta, olhou a praia suja e ficou admirado que o Imperador
a quizesse para banhos. A cerração se ia dissipando inteiramente.

As formas das cousas sahiam modeladas do seio daquella massa de nevoa
pesada; e, satisfeitas, como se o pesadello tivesse passado. Primeiro
surgiam as partes baixas, lentamente: e por fim, quasi repentinamente,
as altas.

Á direita, havia a Saude, a Gamboa, os navios de commercio: galeras de
tres mastros, cargueiros a vapor, altaneiros barcos á vela--que iam
sahindo da bruma, e, por instantes aquillo tudo tinha um ar de paysagem
hollandeza, á esquerda, era o sacco da Raposa, o Retiro Saudoso, a
Sapucaia horrenda, a ilha do Governador, os Orgãos Azues, altos de
tocar no céo; em frente, a ilha dos Ferreiros, com os seus depositos de
carvão; e, alongando a vista pelo mar socegado, Nictheroy, cujas
montanhas acabavam de recortar-se no céo azul, á luz daquella manhã
atrazada.

A neblina foi se e um gallo cantou. Era como se a alegria voltasse á
terra: era uma alleluia. Aquelles chiados, aquelles apitos, os guinchos
tinham um accento festivo de contentamento.

Chegou o almoço e o sargento veiu dizer a Quaresma que havia duas
deserções.

--Mais duas? fez admirado o Major.

--Sim, senhor. O 125 e o 320 não responderam hoje a revista.

--Faça a parte.

Quaresma almoçava. O Tenente Fontes, o homem do canhão, chegou. Quasi
nunca dormia ali; pernoitava em casa, e, durante o dia, vinha ver as
cousas como iam.

Uma madrugada, elle não estava. A treva ainda era profunda. O soldado
de vigia viu lá, ao longe, um vulto que se movia dentro da sombra,
resvalando sobre as aguas do mar. Não trazia luz alguma; só o
movimento daquella mancha escura, revelava uma embarcação, e tambem a
ligeira phosphorescencia das aguas. O soldado deu rebate; o pequeno
destacamento poz-se a postos e Quaresma appareceu.

--O canhão! Já! Avante! ordenou o commandante.

E, em seguida, nervoso, recommendou:

--Esperem um pouco.

Correu á casa e foi consultar os seus compendios e tabellas. Demorou-se
e a lancha avançava, os soldados estavam tontos e um delles tomou a
iniciativa: carregou a peça e disparou-a.

Quaresma reappareceu correndo, assustado, e disse, entrecortado pelo
resfolegar:

--Viram bem... a distancia... a alça... o angulo... É preciso ter
sempre em vista a efficiencia do fogo.

Fontes veiu e sabendo do caso no dia seguinte riu-se muito:

--Ora, Major, você pensa que está em um polygno, fazendo estudos
praticos... Fogo para diante!

E assim era. Quasi todas as tardes havia bombardeio, do mar para as
fortalezas, e das fortalezas para o mar; e, tanto os navios como os
fortes, sahiam incolumes de tão terriveis armas.

Lá vinha uma occasião, porém, que acertavam, então os jornaes
noticiavam: «Hontem, o forte Academico, fez um maravilhoso disparo. Com
o canhão tal, metteu uma bala no «Guanabara». No dia seguinte, o
mesmo jornal rectificava, a pedido da bateria do cáes Pharoux que era
a que tinha feito o disparo certeiro. Passavam-se dias e a cousa já
estava esquecida, quando apparecia uma carta de Nictheroy, reclamando as
honras do tiro para a fortaleza de Santa Cruz.

O Tenente Fontes chegou e esteve examinando o canhão com o faro de
entendedor. Havia uma trincheira de fardos de alfafa e a boca da peça
sabia por entre os fiapos da palha, como as guellas de um animal feroz
occulto entre hervas.

Olhava o horizonte, depois de exame attento ao canhão, e considerava a
ilha das Cobras, quando ouviu o gemer do violão e uma voz que dizia:


_Prometto pelo Santissimo Sacramento_...


Dirigiu-se para o local donde partiam os sons e se lhe deparou este
lindissimo quadro: á sombra de uma grande arvore, os soldados deitados
ou sentados em circulo, em torno de Ricardo Coração dos Outros, que
entoava endeixas magoadas.

As praças tinham acabado de almoçar e beber a pinga, e estavam tão
embevecidas na canção de Ricardo que não deram pela chegada do joven
official.

--Que é isto? disse elle severamente.

Os soldados levantaram-se todos, em continencia; e Ricardo, com a mão
direita no gorro, perfilada, e a esquerda, segurando o violão, que
repousava no chão, desculpou-se:

--_Seu_ Tenente, foi o Major quem permittiu, V. S. sabe que se nós não
tivéssemos ordem, não iriamos brincar.

--Bem. Não quero mais isto, disse o official.

--Mas, objectou Ricardo, o Sr. Major Quaresma...

--Não temos aqui Major Quaresma. Não quero, já disse!

Os soldados debandaram e o Tenente Fontes seguiu para a velha casa
imperial, ao encontro do Major do «Cruzeiro do Sul». Quaresma
continuava no seu estudo, um rolar de Sysipho, mas voluntario, para a
grandeza da patria. Fontes foi entrando e dizendo:

--Que é isto, _seu_ Quaresma! Então o senhor permitte cantorias no
destacamento?

O Major não se lembrava mais da cousa e ficou espantado com o ar severo
e rispido do moço. Elle repetiu:

--Então o senhor permitte que os inferiores cantem modinhas e toquem
violão, em pleno serviço?

--Mas que mal faz? Ouvi dizer que em campanha...

--E a disciplina? e o respeito?

--Bem, vou prohibir, disse Quaresma.

--Não é preciso. Já prohibi.

Quaresma não se deu por agastado, não percebeu motivo para agastamento
e disse com doçura:

--Fez bem.

Em seguida perguntou ao official o modo de extrahir a raiz quadrada de
uma fracção decimal; o rapaz ensinou-lhe e elles estiveram
cordialmente conversando sobre cousas vulgares. Fontes era noivo de
Lalá, a terceira filha do General Albernaz, e esperava acabar a revolta
para effectuar o casamento. Durante uma hora a conversa entre os dous
versou sobre este pequenino facto familiar a que estavam ligados
aquelles estrondos, aquelles tiros, aquella solemne disputa entre duas
ambições. Subitamente, a corneta feriu o ar com a sua voz metallica.
Fontes assestou o ouvido; o Major perguntou:

--Que toque é?

--Sentido.

Os dous sahiram. Fontes perfeitamente fardado; e o Major apertando o
talim, sem encontrar geito, tropeçando na espada veneravel que teimava
em se lhe metter entre as pernas curtas. Os soldados já estavam nas
trincheiras, armas á mão; o canhão tinha ao lado a munição
necessaria. Uma lancha avançava lentamente, com a prôa alta assestada
para o posto. De repente, sahiu de sua borda um golfão de fumaça
espessa: Queimou!--gritou uma voz. Todos se abaixaram, a bala passou
alto, zunindo, cantando, inoffensiva. A lancha continuava a avançar
impavida. Além dos soldados, havia curiosos, garotos, a assistir o
tiroteio, e fôra um destes que gritara: queimou!

E assim sempre. Ás vezes elles chegavam bem perto á tropa, ás
trincheiras, atrapalhando o serviço: em outras, um cidadão qualquer,
chegava ao official e muito delicadamente pedia: o senhor dá licença
que dê um tiro. O official accedia, os serventes carregavam a peça e o
homem fazia a pontaria e um tiro partia.

Com o tempo, a revolta passou a ser uma festa, um divertimento da
cidade... Quando se annunciava um bombardeio, num segundo, o terraço do
Passeio Publico se enchia. Era como se fosse uma noite de luar, no tempo
em que era do tom aprecial-as no velho jardim de D. Luiz de
Vasconcellos, vendo o astro solitario pratear a agua e encher o céo.

Alugavam-se binoculos e tanto os velhos como as moças, os rapazes como
as velhas, seguiam o bombardeio como uma representação de theatro:
«queimou Santa Cruz! Agora é o «Aquidaban»! Lá vai»! E dessa
maneira a revolvia correndo familiarmente, entrando nos habitos e nos
costumes da cidade.

No cáes Pharoux, os pequenos garotos, vendedores de jornaes,
engraxates, quitandeiros ficavam atrás das portadas, dos urinarios, das
arvores, a ver, a esperar a quéda das balas; e quando acontecia cahir
uma, corriam todos em bôlo, a apanhal-a como se fosse uma moeda ou
guloseima.

As balas ficaram na moda. Eram alfinetes de gravata, berloques de
relogio, lapizeiras, feitas com as pequenas balas de fuzis: faziam-se
tambem collecções das medias e com os seus estojos de metal, areados,
polidos, lixados, ornavam consolos, os _dunkerques_ das casas médias;
as grandes, os _melões_ e as _aboboras_, como chamavam, guarneciam os
jardins, como vasos de faiança ou estatuas.

A lancha continuava a atirar: Fontes fez um disparo. O canhão vomitou o
projectil, recuou um pouco e logo foi posto em posição. A embarcação
respondeu e o rapazote gritou: queimou!

Eram sempre esses garotos que a anunciavam os tiros do inimigo. Mal viam
o fuzilar breve e a fumaça, lá longe, no navio, jorrar de vagar, muito
pesada, gritavam queimou!

Houve um em Nictheroy que teve o seu quarto de hora de celebridade.
Chamavam-n'o _trinta réis_; os jornaes do tempo occuparam-se com elle,
fizeram-se subscripções a seu favor. Um heroi! Passou a revolta e foi
esquecido, tanto elle como a «Lucy», uma lancha que chegou a fazer-se
entidade na imaginação da _urbs_, a interessal-a, a criar inimigos e
admiradores.

A embarcação deixou de provocar a furia do posto do Cajú, e Fontes
deu instrucções ao seu chefe da peça, e foi-se embora.

Quaresma recolheu-se ao seu quarto e continuou os seus estudos
guerreiros. Os mais dias que passou naquelle extremo da cidade não eram
differentes deste. Os acontecimentos eram os mesmos e a guerra cahia na
banalidade da repetição dos mesmos episodios.

A espaços, quando o aborrecimento lhe vinha, sahia. Descia a cidade e
deixava o posto entregue a Polydoro ou a Fontes, se estava.

Raras vezes o fazia, de dia, porque Polydoro, o mais assiduo, marcineiro
de profissão e em actividade numa fabrica de moveis, só vinha á
noite.

No centro da cidade, a noite era alegre e jovial. Havia muito dinheiro,
o Governo pagava soldos dobrados, e, ás vezes, gratificações, além
do que havia tambem a morte sempre presente; e tudo isso estimulava o
divertir-se. Os theatros eram frequentados e os _restaurants_ nocturnos
tambem.

Quaresma, porém, não se mettia naquelle ruido de praça semi-sitiada.
Ia ás vezes ao theatro, á paisana, e, logo acabado o espectaculo,
voltava para o quarto da cidade ou para o posto.

Em outras tardes, logo que Polydoro chegava, sahia a pé, pelas ruas dos
arredores, pelas praias até ao campo de São Christovão.

Ia vendo aquella successão de cemiterios, com as suas campas alvas que
sobem montanhas, como carneiros tosqueados e limpos a pastar; aquelles
cyprestes meditativos que as vigiam; e como que se lhe representava que
aquella parte da cidade era feudo e senhorio da morte.

As casas tinham um aspecto funebre, recolhidas e concentradas; o mar
marulhava lugubremente na ribanceira lodosa; as palmeiras ciciavam
doridas; e até o tilintar da campainha dos bondes era triste e lugubre.

A paysagem se impregnara da Morte e o pensamento de quem passava ali
mais ainda, para fazer sentir nella tão forte aspecto funereo.

Foi vindo ate ao Campo; ahi deu-lhe vontade de ver a sua antiga casa e
afinal entrou na residencia do General Albernaz. Devia-lhe aquella
visita e aproveitou o ensejo.

Acabavam de jantar e jantara com o General, além do Tenente Fontes e o
Almirante Caldas, o commandante de Quaresma, o Tenente Coronel
Innocencio Bustamante.

Bustamante era um commandante activo, mas dentro do quartel. Não havia
quem como elle se interessasse pelos livros, pela boa calligraphia, com
que eram escriptos os livros mestres, as relações de mostra, os mappas
de companhia e outros documentos. Com auxilio delles, a organização do
seu batalhão era irreprehensivel; e, para não deixar de vigiar a
escripturação, apparecia de onde em onde nos destacamentos do seu
corpo.

Havia dez dias que Quaresma o não via. Após os cumprimentos, elle logo
perguntou ao Major:

--Quantas deserções?

--Até hoje, nove, disse Quaresma.

Bustamante coçou a cabeça desesperado e reflectiu:

--Eu não sei o que tem essa gente... É um desertar sem nome...
Falta-lhes patriotismo!

--Fazem muito bem... Ora! disse o Almirante.

Caldas andava aborrecido, pessimista. O seu processo ia mal e até agora
o Governo não lhe tinha dado cousa alguma. O seu patriotismo se
enfraquecia com o diluir-se da esperança de ser algum dia
Vice-Almirante. É verdade que o Governo ainda não organizara a sua
esquadra; entretanto, pelo rumor que corria, elle não commandaria nem
uma divisão. Uma inquidade! Era velho um pouco, é verdade; mas, por
não ter nunca commandado, nessa materia elle podia despender toda uma
energia moça.

--O Almirante não deve falar assim... A patria está logo abaixo da
humanidade.

Meu caro Tenente, o senhor é moço... Eu sei o que são essas cousas...

--Não se deve desesperar... Não trabalhamos para nós, mas para os
outros e para os vindouros, continuou Fontes persuasivo.

--Que tenho eu com elles? fez agastado Caldas.

Bustamante, o General e Quaresma assistiam a pequena discussão calados
e os dous primeiros um tanto sorridentes com a furia de Caldas, que não
se cansava de dansar a perna e alizar os longos favoritos brancos. O
Tenente respondeu:

--Muito, Almirante. Nós todos devemos trabalhar para que surjam épocas
melhores, de ordem, de felicidade e elevação moral.

--Nunca houve e nunca haverá! disse de um jacto Caldas.

--Eu tambem penso assim, accrescentou Albernaz.

--Isto ha de sempre ser o mesmo, adduziu scepticamente Bustamante.

O Major nada disse; parecia desinteressado da conversa. Fontes, em face
daquellas contestações, ao contrario dos seus congeneres da seita,
não se agastou. Elle era magro e chupado, moreno carregado e a oval do
seu rosto estava amassada aqui e ali.

Com a sua voz arrastada e nazal, agitando a mão direita no geito
favorito dos sermonarios, depois de ouvir todos, falou com uncção:

--Houve já um esboço: a idade média.

Ninguem ali lhe podia contestar. Quaresma só sabia historia do Brasil e
os outros nenhuma.

E a sua affirmação fez calar todos, embora no intimo duvidosos. É uma
curiosa idade média, essa de elevação moral, que a gente não sabe
onde fica, em que anno? Se a gente diz: no tempo de Clotario, elle
proprio, com suas mãos, atacou fogo na palhoça em que encerrava o seu
filho Chrame mais a mulher deste e filhos--o positivista, objecta: ainda
não estava perfeitamente estabelecido o ascendente da igreja. S. Luís,
diremos logo nós, quis executar um senhor feudal porque mandou enforcar
tres crianças que tinham morto um coelho nas suas mattas. Objecta o
fiel: Você não sabe que a nossa idade media vai até o apparecimento
da Divina Comedia? S. Luís já era a decadencia... Citam-se as
epidemias de molestias nervosas, a miseria dos camponios, as ladroagens
á mão armada dos barões, as allucinações do milenio, as crueis
matanças que Carlos Magno fez aos saxões; elles respondem: uma hora
que ainda não estava perfeitamente estabelecido o ascendente moral da
igreja; outra que elle já tinha desapparecido.

Nada disso foi objectado ao positivista e a conversa, resvalou para a
revolta. O Almirante criticava severamente o Governo.

Não tinha plano algum, levava a dar tiros á toa; na sua opinião, já
devia ter feito todo o esforço para occupar a ilha das Cobras, embora
isso custasse rios de sangue. Bustamante não tinha opinião assentada;
mas Quaresma e Fontes julgavam que não: seria uma aventura arriscada e
de uma improficuidade patente. Albernaz, ainda não tinha dado o seu
aviso, e veiu a fazel-o assim:

--Mas nós reconhecemos Humaytá, e por pouco!

--Entretanto, não a tomaram, disse Fontes. As condições naturaes eram
outras e assim mesmo o reconhecimento foi perfeitamente inutil... O Sr.
sabe, esteve lá!

--Isto é... Adoeci e vim um pouco antes para o Brasil, mas o Camisão
disse-me que foi arriscado.

Quaresma voltara ao silencio. Elle procurava ver Ismenia. Fontes lhe
tinha inteirado do seu estado e o Major se sentia por qualquer cousa
preso á molestia da moça. Viu todos: D. Maricota, sempre activa e
diligente; Lalá, a arrancar, com o olhar, o noivo da conversa
interminavel, e as outras que vinham, de quando em quando, da sala de
visitas á sala de jantar onde elle estava. Porfim, não se conteve,
perguntou. Soube que estava em casa da irmã casada e ia peor, cada vez
mais abysmada na sua mania, enfraquecendo-se de corpo. O General contou
tudo com franqueza a Quaresma e quando acabou de narrar aquella sua
desgraça intima, disse com um longo suspiro:

--Não sei, Quaresma... Não sei.

Eram dez horas quando o Major se despediu. Voltou de bonde para a Ponta
do Cajú. Saltou e recolheu-se logo a seu quarto. Vinha cheio da
perturbação, especial que põe em nós o luar que estava lindo, terno
e leitoso, naquella noite. É uma emoção de desafogo do corpo, de
deliquio; parece que nos tiram o envoltorio material e ficamos só alma,
envolvidos numa branda athmosphera de sonhos e chimeras. O Major não
colhia bem a sensação transcendente, mas soffria sem perceber o
effeito da luz pallida e fria do luar. Deitou-se um pouco, vestido, não
por somno, mas em virtude daquella doce embriaguez que o astro lhe tinha
posto nos sentidos.

Dentro em pouco Ricardo veiu chamal-o: o Marechal estava ahi. Era seu
habito sahir á noite, ás vezes, de madrugada, e ir de posto em posto.
O facto se espalhou pelo publico que o apreciava extraordinariamente, e
o Presidente teve mais esse documento para firmar a sua fama de
estadista consumado.

Quaresma veiu ao seu encontro. Floriano vestia chapéo de feltro molle,
abas largas, e uma curta sobrecasaca surrada. Tinha um ar de malfeitor
ou de exemplar chefe de familia em aventuras extra-conjugaes.

O Maior cumprimentou-o e esteve a dar-lhe noticias do ataque que fora
feito ao seu posto, ha dias passados. O Marechal respondia por
monosyllabos preguiçosos e olhava ao redor. Quasi ao despedir-se, falou
mais, dizendo vagarosamente, lentamente:

--Hei de mandar pôr um holophote aqui.

Quaresma veiu acompanhal-o até ao bonde. Atravessavam o velho sitio de
recreio dos Imperadores. Um pouco afastada da estação uma locomotiva,
semi-accesa, resfolegava. Semelhava roncar, dormindo; os carros,
pequenos, banhados pelo luar, muito quietos, socegados como que dormiam.
As annosas mangueiras, com falta de galhos aqui e ali, pareciam
polvilhadas preciosamente de prata. O luar estava magnifico. Os dous
andavam, o marechal perguntou:

--Quantos homens tem você?

--Quarenta.

O Marechal mastigou um: _não é muito_; e voltou ao mutismo. Num dado
momento, Quaresma viu-lhe o rosto inundado pela luz da lua. Pareceu-lhe
mais sympatica a do dictador. Se lhe falasse...

Preparou a pergunta; mas não teve coragem de pronuncial-a. Continuaram
a andar. O Major pensou; que é que tem? não ha desrespeito algum.
Approximavam-se do portão. Num dado momento como que houve uma bulha
atrás. Quaresma voltou-se, mas Floriano quasi não o fez.

Os edificios da serraria pareciam cobertos de neve, tanto era o branco
luar. O Major continuou a mastigar a sua pergunta; urgia, era
indispensavel; o portão estava a dous passos. Tomou coragem, ousou e
falou:

--V. Ex. já leu o meu memorial, Marechal?

Floriano respondeu lentamente, quasi sem levantar o labio inferior
pendente:

--Li.

Quaresma enthusiasmou-se:

--Vê V. Ex. como é facil erguer este paiz. Desde que se cortem todos
aquelles empecilhos que eu apontei, no memorial que V. Ex. teve a
bondade de ler; desde que se corrijam os erros de uma legislação
defeituosa e inadaptavel ás condições do paiz, V. Ex. verá que tudo
isto muda, que, em vez de tributarios, ficaremos com a nossa
independencia feita... Se V. Ex. quisesse...

Á proporção que falava, mais Quaresma se enthusiasmava. Elle não
podia ver bem a physionomia do dictador, encoberto agora como lhe estava
o rosto pelas abas do chapéo de feltro; mas, se a visse, teria de
esfriar, pois havia na sua mascara sinaes do aborrecimento mais mortal.
Aquelle falatorio de Quaresma, aquelle apelo á legislação, a medidas
governamentaes, iam mover-lhe o pensamento, por mais que não quizesse.
O presidente aborrecia-se. Num dado momento, disse:

--Mas, pensa você, Quaresma, que eu hei de pôr a enxada na mão de
cada um desses vadios?! Não havia exercito que chegasse...

Quaresma espantou-se, titubeou, mas retorquiu:

--Mas, mão é isso, Marechal. V. Ex. com o seu prestigio e poder, está
capaz de favorecer, com medidas energicas e adequadas, o apparecimento
de iniciativas, de encaminhar o trabalho, de favorecel-o e tornal-o
remunerador... Bastava, por exemplo...

Atravessavam o portão da velha quinta de Pedro I. O luar continuava
lindo, plastico e opalescente. Um grande edificio inacabado que havia na
rua, parecia terminado, com vidraças e portas feitas com a luz da lua.
Era um palacio de sonho.

Floriano já ouvia Quaresma muito aborrecido. O bonde chegou; elle se
despediu do Major, dizendo com aquella sua placidez de voz:

--Você, Quaresma, é um visionario...

O bonde partiu. A lua povoava os espaços, dava physionomia ás cousas,
fazia nascer soalhos em nossa alma, enchia a vida, enfim, com a sua luz
emprestada...



III

...E TORNARAM LOGO SILENCIOSOS...


--Eu tenho experimentado tudo, Quaresma, mas não sei... não ha meio!

--Já a levou a um medico especialista?

--Já. Tenho corrido medicos, espiritas até feiticeiros, Quaresma!

E os olhos do velho se orvalhavam por baixo do _pince-nez_. Os dous se
haviam encontrado na pagadoria da guerra e vinham pelo campo de
Sant'Anna, a pé, andando pequenos passos e conversando. O General era
mais alto que Quaresma, e emquanto este tinha a cabeça sobre um
pescoço alto, aquelle a tinha mettida entre os hombros proeminentes,
como cotos de azas. Albernaz reatou:

--E remedios! Cada medico receita uma cousa; os espiritas são os
melhores, dão homœpathia; os feiticeiros, tizanas, rezas e
defumações... Eu não sei. Quaresma!

E levantou os olhos para o céo, que estava um tanto plumbeo. Não se
demorou, porém, muito nessa postura; o _pince-nez_ não permittia, já
começava a cahir.

Quaresma abaixou a cabeça e andou assim um pouco olhando as
granulações do granito do passeio. Levantou o olhar ao fim de algum
tempo, e disse:

--Por que não a recolhe a uma casa de saude, General?

--Meu medico já me aconselhou isso... A mulher não quer e agora mesmo,
no estado em que a menina está, não vale a pena...

Falava da filha, da Ismenia, que, naquelles ultimos mezes, péorara
sensivelmente, não tanto da sua molestia mental, mas da saude commum,
vivendo de cama, sempre febril, enlanguescendo, definhando, marchando a
passos largos para o abraço frio da morte.

Albernaz dizia a verdade; para, cural-a tanto de sua loucura conto da
actual molestia intercorrente, lançara mão de todos os recursos, de
todos os conselhos apontados por quem quer que fosse.

Era de fazer reflectir ver aquelle homem, General, marcado com um curso
governamental, procurar mediuns e feiticeiros, para sarar a filha.

Ás vezes até levava-os em casa. Os mediuns chegavam perto da moça,
davam um estremeção, ficavam com uns olhos desvairados, fixos,
gritavam: sai, irmão!--e sacudiam as mãos, do peito para a moça, de
lá para cá, rapidamente, nervosamente, no intuito de descarregar sobre
ella os fluidos milagrosos.

Os feiticeiros tinham outros passes e as ceremonias para entrar no
conhecimento das forças occultas que nos cercam, eram demoradas, lentas
e acabadas. Em geral, eram pretos africanos. Chegavam, accendiam um
fogareiro no quarto, tiravam de um cesto um sapo empalhado ou outra
cousa exquisita, batiam com feixes de hervas, ensaiavam passos de dança
e pronunciavam palavras inintelligiveis. O ritual era complicado e tinha
a sua demora.

Na sahida, a pobre D. Maricota, um tanto já diminuida da sua actividade
e diligencia, olhando, ternamente aquelle grande rosto negro do
mandigueiro, onde a barba branca punha mais veneração e certa
grandeza, perguntava:

--Então, titio?

O preto considerava um instante, como se estivesse recebendo as ultimas
communicações do que não se vê nem se percebe, e dizia com a sua
magestade de africano:

--Vó vê, nhã nhã... Tô crôtando mandinga...

Ella e o General tinham assistido a ceremonia e o amor de paes e tambem
esse fundo de superstição que ha em todos nós, levavam a olhal-a com
respeito, quasi com fé.

--Então foi feitiço que fizeram á minha filha? perguntava a senhora.

--Foi, sim, nhãnhã.

--Quem?

--Santo não qué dizê.

E o preto obscuro, velho escravo, arrancado ha um meio seculo dos
confins da Africa, sahia arrastando a sua velhice e deixando naquelles
dous corações uma esperança fugaz.

Era uma singular situação, a daquelle preto africano, ainda certamente
pouco esquecido das dores do seu longo captiveiro, lançando mão dos
residuos de suas ingenuas crenças tribaes, residuos que tão a custo
tinham resistido ao seu transplante forçado para terras de outros
deuses--e empregando-os na consolação dos seus senhores de outro
tempo. Como que os deuses de sua infancia e de sua raça; aquelles
sanguinarios manipanços da Africa indecifravel, quizessem vingal-o á
legendaria maneira do Christo dos Evangelios...

A doente assistia tudo aquillo sem comprehender e se interessar por
aquelles trejeitos e passes de tão poderosos homens que se
communicavam, que tinham ás suas ordens os seres immateriaes, as
existencias fora e acima da nossa.

Andando, ao lado de Quaresma, o General lembrava-se de tudo isso e teve
um pensamento amargo contra a sciencia, contra os espiritos, contra os
feitiços, contra Deus que lhe ia tirando a filha aos poucos, sem
piedade e commiseração.

O Major não sabia o que dizer diante daquella immensa dor de pai e
parecia-lhe toda o qualquer palavra de consolo parva e idiota. Afinal
disse:

--General, o Sr. permitte que eu a faça ver por um medico?

--Quem é?

--É o marido de minha afilhada... o Sr. conhece... É moço, quem sabe
lá! Não acha? Póde ser, não é?

O General consentiu e a esperança de ver curada a filha lhe afagou as
faces enrugadas. Cada medico que consultava, cada espirita, cada
feiticeiro reanimava-o, pois de todos elle esperava o milagre. Nesse
mesmo dia, Quaresma foi procurar o Dr. Armando.

A revolta já tinha mais de quatro mezes de vida e as vantagens do
Governo eram problematicas. No Sul, a insurreição chegava ás portas
de S. Paulo, e só a Lapa resistia tenazmente, uma das poucas paginas
dignas e limpas de todo aquelle enxurro de paixões. A pequena cidade
tinha dentro de suas trincheiras o Coronel Gomes Carneiro, uma energia,
uma vontade, verdadeiramente isso, porque era sereno, confiante e justo.
Não se desmanchou em violencias de apavorado e soube tornar verdade a
gasta phrase grandiloquente: resistir até á morte.

A ilha do Governador tinha sido occupada e Magé tomado, os revoltosos,
porém, tinham a vasta bahia e a barra apertada, por onde sahiam e
entravam, sem temer o estorvo das fortalezas.

As violencias, os crimes que tinham assignalado esses dous marcos de
actividade guerreira do Governo, chegavam ao ouvido de Quaresma e elle
soffria.

Da ilha do Governador fez-se uma verdadeira mudança de moveis, roupas e
outros haveres. O que não podia ser transportado, era destruido pelo
fogo e pelo machado.

A occupação deixou lá a mais execranda memoria, e até hoje os seus
habitantes ainda se recordam dolorosamente de um Capitão, patriotico ou
da guarda nacional, Ortiz, pela sua ferocidade e insoffrido gosto pelo
saque e outras vexações. Passava um pescador, com uma tampa de peixe,
e o Capitão chamava o pobre homem:

--Venha cá!

O homem approximava-se amedrontado e Ortiz perguntava.

--Quanto quer por isso?

--Tres mil réis, capitão.

Elle sorria diabolicamente e familiarmente regateava:

--Você não deixa por menos... Está caro... Isso é peixe ordinario...
Carapebas! Ora!

--Bem, Capitão, vá lá por dous e quinhentos.

--Leve isso lá dentro.

Elle falava na porta de casa. O pescador voltava e ficava um tempo em
pé, demonstrando que esperava o dinheiro. Ortiz balançava a cabeça e
dizia escarninho:

--Dinheiro! hein? Vá cobrar ao Floriano.

Entretanto, Moreira Cesar deixou boas recordações de e ainda hoje ha
lá quem se lembre delle, agradecido por este ou aquelle beneficio que o
famoso Coronel lhe prestou.

As forças revoltosas parceiam não ter enfraquecido; tinham, porém,
perdido dous navios, sendo um destes o «Javary», cuja reputação na
revolta era das mais altas e consideradas. As forças de terra
detestavam-n'o particularmente. Era um monitor, chato, razo com a agua,
uma especie de saurio ou chelonio de ferro, de construcção franceza.
A sua artilharia era temida; o que sobremodo enraivecia os adversarios,
era elle não ter quasi borda acima d'agua, ficar quasi ao nivel do mar
e fugir assim aos tiros incertos de terra. As suas machinas não
funccionavam, e a grande tartaruga vinha collocar-se em posição de
combate com auxilio de um rebocador.

Um dia em que estava nas proximidades de Villegagnon, foi a pique. Não
se soube e até hoje não foi esclarecido, porque foi. Os legalistas
affirmaram que foi uma bala de Gragoatá; mas os revoltosos asseguraram
que foi a abertura de uma valvula ou um outro accidente qualquer.

Como o do seu irmão, o «Solimões», que desappareceu nas costas do
cabo Polonio, o fim do «Javary» ainda está envolvido no mysterio.

Quaresma permanecia de guarnição no Cajú, e viera receber dinheiro.
Deixara lá Polydoro, pois os outros officiaes estavam doentes ou
licenciados, e Fontes, que, sendo uma especie de inspector geral, ao
contrario de seus habitos, dormira aquella noite no pequeno pavilhão
imperial e ia ficar até á tarde.

Ricardo Coração dos Outros, desde o dia da prohibição de tocar
violão, andava macambuzio. Tinham-lhe tirado o sangue, o motivo de
viver, e passava os dias taciturno, encostado a um tronco de arvore,
maldizendo no fundo de si a incomprehensão dos homens e os caprichos do
destino. Fontes notara a sua tristeza; e, para minorar-lhe o desgosto,
obrigara a Bustamante a fazel-o sargento. Não foi sem custo, porque o
antigo veterano do Paraguay encarecia muito essa graduação e só a
dava como recompensa excepcional ou quando requerida por pessoas
importantes.

A vida do pobre menestrel era assim a de um melro engaiolado; e, de
quando em quando, elle se afastava um pouco e ensaiava a voz, para ver
se ainda a tinha e não fugira com o fumo dos disparos.

Quaresma sabendo que dessa maneira o posto estava bem entregue, resolveu
demorar-se mais, e, após despedir-se de Albernaz, encaminhou-se para a
casa do seu compadre, afim de cumprir a promessa que fizera ao general.

Coleoni ainda não decidira a sua viagem á Europa. Hesitava, esperando
o fim da rebellião que não parecia estar proximo. Elle nada tinha com
ella; até ali, não dissera a ninguem a sua opinião; e, se era muito
instado, appelava para a sua condição de estrangeiro e mettia-se numa
reserva prudente. Mas, aquella exigencia do passaporte, tirado na
chefatura de policia, dava-lhe susto. Naquelles tempos, toda a gente
tinha medo de tratar com autoridades. Havia tanta má vontade com os
estrangeiros, tanta arrogancia nos funccionarios que elle não se
animava a ir obter o documento, temendo que uma palavra, que um olhar,
que um gesto, interpretados por qualquer funccionario zeloso e dedicado,
não o levassem a soffrer maus quartos de hora.

Verdade é que elle era italiano e a Italia já fizera ver ao dictador
que era uma grande potencia, mas no caso de que se lembrava, tratava-se
de um marinheiro, por cuja vida, extincta por uma descarga das forças
legaes, Floriano pagara a quantia de cem contos. Elle, Coleoni, porém,
não era marinheiro, e não sabia, caso fosse preso, se os
representantes diplomaticos de seu paiz tomariam interesse pela sua
liberdade.

De resto, não tendo protestado manter a sua nacionalidade quando o
Governo provisorio expediu o famoso decreto de naturalização, era bem
possivel que uma ou outra parte se ativessem a isso, para
desinteressar-se delle ou mantel-o na famosa galeria 7, da Casa de
Correição, transformada, por uma pennada magica, em prisão de Estado.


A época era de susto e temor, e todos esses que elle sentia, só os
communicava a filha, porque o genro cada vez mais se fazia florianista e
jacobino, de cuja boca muita vez ouvia duras invectivas aos
estrangeiros.

E o doutor tinha razão; já obtivera uma graça governamental. Fôra
nomeado medico do Hospital de Santa Barbara, na vaga de um collega,
demittido a bem do serviço publico como suspeito por ter ido visitar um
amigo na prisão. Como o hospital, porém, ficasse no ilhéo do mesmo
nome, dentro da bahia, em frente á Saude e a Guanabara ainda estivesse
em mão dos revoltosos, elle nada tinha que fazer, pois até agora o
Governo não aceitara, os seus offerecimentos de auxiliar o tratamento
dos feridos.

O Major foi encontrar pai e filha em casa; o doutor tinha sahido, ido
dar uma volta pela cidade, dar arrhas de sua dedicação á causa legal,
conversando com os mais exaltados jacobinos do Café do Rio, não
esquecendo tambem de passear pelos corredores do Itamaraty, fazendo-se
ver pelos ajudantes de ordens, secretarios e outras pessoas influentes
no animo de Floriano.

A moça viu entrar Quaresma com aquelle sentimento extranho que o seu
padrinho lhe causava ultimamente, e esse sentimento mais agudo se
tornava quando o via contar os casos guerreiros do seu destacamento, a
passagem de balas, as descargas das lanchas, naturalmente, simplesmente,
como se fossem feições de uma festa, de uma justa, de um divertimento
qualquer em que a morte não estivesse presente.

Tanto mais que o via apprehensivo, deixando perceber numa phrase e
noutra desanimo e desesperança.

Na verdade o Major tinha um espinho n'alma. Aquella recepção de
Floriano ás suas lembranças de reformas não esperavam nem o seu
enthusiasmo e sinceridade nem tão pouco a idéa que elle fazia do
dictador. Sahira ao encontro de Henrique IV e de Sully e vinha esbarrar
com um presidente que o chamava de visionario, que não avaliava o
alcance dos seus projectos, que os não examinava sequer, desinteressado
daquellas altas cousas de governo como só não o fosse!... Era pois
para sustentar tal homem que deixara o socego de sua casa e se arriscava
nas trincheiras? Era, pois, por esse homem que tanta gente morria? Que
direito tinha elle de vida e de morte sobre os seus concidadãos, se
não se interessava pela sorte delles, pela sua vida feliz e abundante,
pelo enriquecimento do paiz, o progresso de sua lavoura e o bem estar de
sua população rural?

Pensando assim, havia instantes que lhe vinha um mortal desespero, uma
raiva de si mesmo; mas em seguida considerava: o homem está
atrapalhado, não póde agora; mais tarde com certeza elle fará a
cousa...

Vivia nessa alternativa dolorosa e era ella que lhe trazia
apprehensões, desanimo e desesperança, notados por sua afilhada na sua
physionomia já um pouco acabrunhada.

Não tardou, porém, que, abandonando os episodios da sua vida militar,
Quaresma explicasse o motivo de sua visita.

--Mas qual dellas? perguntou a afilhada.

--A segunda, a Ismenia.

--Aquella que estava para casar com o dentista?

--Esta mesmo.

--Ahn!...

Ella pronunciou este _ahn_ muito longo e profundo, como se puzesse nelle
tudo que queria dizer sobre o caso. Via bem o que fazia o desespero da
moça, mas via melhor a causa, naquella obrigação que incrustam no
espirito das meninas, que ellas se devem casar a todo o custo, fazendo
do casamento o pólo e fim da vida, a ponto de parecer uma deshonra, uma
injuria, ficar solteira.

O casamento já não é mais amor, não é maternidade, não é nada
disso: é simplesmente casamento, uma cousa vasia, sem fundamento nem na
nossa natureza nem nas nossas necessidades.

Graças á frouxidão, á pobreza intellectual e fraqueza de energia
vital de Ismenia, aquella fuga do noivo se transformou em certeza de
não casar mais e tudo nella se abysmou nessa idéa desesperada.

Coleoni enterneceu-se muito e interessou-se. Sendo bom de fundo, quando
lutava pela fortuna se fez duro e aspero, mas logo que se viu rico,
perdeu a dureza de que se revestira, pois percebia bem que só se póde
ser bom quando se é forte de algum modo.

Ultimamente o Major tinha diminuido um pouco o interesse pela moça;
andava atormentado com o seu caso de consciencia; entretanto, se não
tinha um constante e particular pensamento pela desdita da filha de
Albernaz, abrangia-a ainda na sua bondade geral, larga e humana.

Não se demorou muito na casa do compadre; elle queria, antes de voltar
ao Cajú, passar pelo quartel do seu batalhão. Ia ver se arranjava uma
pequena licença, para visitar a irmã que deixara lá, no «Socego», e
de quem tinha noticias, por carta, tres vezes por semana. Eram ellas
satisfatorias, comtudo elle tinha necessidade de ver tanto ella como o
Anastacio, physionomias com quem se encontrava diariamente ha tantos
annos e cuja contemplação lhe fazia falta e talvez lhe restituisse a
calma e a paz de espirito.

A ultima carta que recebera de D. Adelaide, havia uma phrase de que, no
momento, se lembrava sorrindo: «Não te exponhas muito, Polycarpo. Toma
muita cautela». Pobre Adelaide! Estava a pensar que esse negocio de
balas é assim como a chuva?!...

O quartel ainda ficava tio velho cortiço condemnado pela hygiene, lá
para as bandas da cidade nova. Assim que Quaresma apontou na esquina, a
sentinella deu um grande berro, fez uma immensa bulha com a arma e elle
entrou, tirando o chapéo da cabeça baixa, pois estava á paisana e
tinha abandonado a cartola com medo de que esse traje fosse ferir as
susceptibilidades republicanas dos jacobinos.

No pateo, o instructor côxo adestrava novos voluntarios e os seus
magestosos e demorados gritos: hom-broôô... armas! Mei-ããã volta...
volver! subiam ao céo e ecoavam longamente pelos muros da antiga
estalagem.

Bustamante estava no seu cubiculo, mais conhecido por gabinete,
irreprehensivel no seu uniforme verde garrafa, alamares dourados e vivos
azul ferrete. Com auxilio de um sargento, examinava a escripta de um
livro quarteleiro.

--Tinta vermelha, Sargento! É como mandam as instrucções de 1864.

Tratava-se de uma emenda ou de cousa semelhante.

Logo que viu Quaresma entrar, o commandante exclamou radiante:

--O Major adivinhou!

Quaresma descançou placidamente o chapéo, bebeu um pouco d'agua, e o
Coronel Innocencio explicou a alegria:

--Sabe que temos de marchar?

--Para onde?

--Não sei... Recebi ordem do Itamaraty.

Elle não dizia nunca do Quartel-General, nem mesmo do Ministro da
Guerra: era do Itamaraty, do Presidente, do chefe supremo. Parecia que
assim dava mais importancia a si mesmo e ao seu batalhão, fazia-o uma
especie de batalhão da guarda, favorito e amado do dictador.

Quaresma não se espantou, nem se aborreceu. Percebeu que era impossivel
obter a licença e tambem necessario mudar os seus estudos: da
artilharia, tinha que passar para a infantaria.

--O Major é que vai commandar o corpo, sabia?

--Não, Coronel. E o senhor não vai?

--Não, disse Bustamante, alisando o cavaignac mosaico e abrindo a bocca
para o lado esquerdo. Tenho que acabar a organização da unidade e não
posso... Não se assuste, mais tarde irei lá ter...

Começava a tarde, quando Quaresma sahiu do quartel. O instructor côxo
continuava, com força, magestade e demora, a gritar: hom-brôôô...
armas! A sentinella não pôde fazer a bulha da entrada, porque só viu
o Major, quando já ia longe. Elle desceu até á cidade e foi ao
Correio. Havia alguns tiros espaçados; no Café do Rio, os levitas
continuavam a trocar idéas para a consolidação definitiva da
Republica.

Antes de chegar ao Correio, Quaresma lembrou-se de sua partida. Correu a
uma livraria e comprou livros sobre infantaria; precisava tambem dos
regulamentos: arranjaria no quartel-general.

Para onde ia? Para o Sul, para Magé, para Nictheroy? Não sabia... Não
sabia... Ah! se isso fosse para realização dos seus desejos e sonhos!
Mas quem sabe?... Podia ser... talvez... Mais tarde...

E passou o dia atormentado pela duvida do bom emprego de sua vida e de
suas energias.

O marido de Olga não fez nenhuma questão em ir ver a filha do General.
Elle levava a intima convicção de que a sua sciencia toda nova pudesse
fazer alguma cousa; mas assim não se deu.

A moça continuou a definhar, e, se a mania parecia um pouco attenuada,
o seu organismo cahia. Estava magra e fraca, a ponto de quasi não poder
sentar-se na cama. Era sua mãe quem mais junto a ella vivia; as irmãs
se desinteressavam um pouco, pois as exigencias de sua mocidade
levavam-n'as para outros lados.

D. Maricota, tendo perdido todo aquelle antigo fervor pelas festas e
bailes, estava sempre no quarto da filha, a consolal-a, animal-a, e, ás
vezes, quando a olhava muito, como que se sentia um tanto culpada pela
sua infelicidade.

A molestia tinha posto mais firmeza nos traços de Ismenia, tinha-lhe
diminuido a lassidão, tirado o mortiço dos olhos e os seus lindos
cabellos castanhos, com reflexos de ouro, mais bellos se faziam quando
cercavam a pallidez de sua face.

Raro era falar muito; e assim foi que, naquelle dia, se espantou muito
D. Maricota com a loquacidade da filha.

--Mamãe, quando se casa Lalá?

--Quando se acabar a revolta.

--A revolta ainda não acabou?

A mãe respondeu-lhe e ella esteve um instante calada, olhando o tecto,
e, após essa contemplação disse á mãe:

--Mamãe... Eu vou morrer...

As palavras sairam-lhe dos labios, seguras, doces e naturaes.

--Não diga isso, minha filha, adiantou-se D. Maricota. Qual morrer!
Você vai ficar boa; seu pai vai levar você para Minas; você engorda,
toma forças...

A mãe dizia-lhe tudo isso devagar, alisando-lhe a face com a mão, como
se tratasse de uma criança. Ella ouvia tudo com paciencia e voltou
por sua vez serenamente:

--Qual, mamãe! Eu sei: vou morrer e peço uma cousa a senhora...

A mãe ficou espantada com a seriedade e firmeza da filha. Olhou em
redor, deu com a porta semi-cerrada e levantou-se para fechal-a. Quiz
ainda ver se a dissuadia daquelle pensamento; Ismenia, porém,
continuava a repetil-o pacientemente docemente, serenamente:

--Eu sei, mamãe.

--Bem. Supponho que é verdade: o que é que você quer?

--Eu quero, mamãe, ir vestida de noiva.

D. Maricota ainda quiz brincar, troçar; a filha, porém, voltou-se para
o outro lado, poz-se a dormir, com um leve respirar espaçado. A mãe
saiu do quarto, commovida, com lagrimas nos olhos e a secreta certeza de
que a filha, falava a verdade.

Não tardou muito a se verificar. O Dr. Armando a tinha visitado
naquella manhã pela quarta vez; ella parecia melhor, desde alguns dias,
falava com discernimento, sentava-se á cama e conversava com prazer.

D. Maricota teve que fazer uma visita e deixou a doente entregue ás
irmãs. Ellas foram lá ao quarto varias vezes e parecia dormir.
Distrahiram-se.

Ismenia despertou: viu, por entre a porta do guarda-vestidos meio
aberto, o seu traje de noiva. Teve vontade de vel-o mais de perto.
Levantou-se descalça e estendeu-o na cama para contemplal-o. Chegou-lhe
o desejo de vestil-o. Poz a saia: e, por ahi, vieram recordações do
seu casamento falhado. Lembrou-se do seu noivo, do nariz fortemente
osseo e dos olhos esgazeados de Cavalcanti; mas não se recordou com
odio, antes como se fosse um logar visto ha muito tempo, e que a tivesse
impressionado.

De quem ella se lembrava com raiva era da cartomante. Illudindo sua
mãe, acompanhada por uma criada, tinha conseguido consultar Mme.
Sinhá. Com que indifferença ella lhe respondeu: não volta! Aquillo
doeu-lhe... Que mulher má! Desde esse dia... Ah!... Acabou de abotoar a
saia em cima do corpinho, pois não encontrara collete; e foi ao
espelho. Viu os seus hombros nús, o seu collo muito branco...
Surprehendeu-se. Era della aquillo tudo? Apalpou-se um pouco e depois
collocou a corôa. O véo afagou-lhe as espaduas carinhosamente, como um
adejo de borboleta. Teve uma fraqueja, uma cousa, deu um ai e cahiu de
costas na cama, com as pernas para fóra... Quando a vieram ver, estava
morta. Tinha ainda a corda na cabeça e um seio, muito branco e redondo,
saltava-lhe do corpinho.

O enterro foi feito no dia immediato e a casa de Albernaz esteve os dous
dias cheia, como nos dias de suas melhores festas.

Quaresma foi ao enterro; elle não gostava muito dessa cerimonia; mas
veiu, e foi ver a pobre moça, no caixão, coberta de flores, vestida de
noiva, com um ar immaculado de imagem. Pouco mudara, entretanto. Era
ella mesma ali; era a Ismenia dolente e pobre de nervos, com os seus
traços meudos e os seus lindos cabellos, que estava dentro daquellas
quatro taboas. A morte tinha fixado a sua pequena belleza e o seu
aspecto pueril; e ella ia para a cova com a insignificancia, com a
innocencia e a falta de accento proprio que tinha tido em vida.

Contemplando aquelles tristes restos, Quaresma viu caixão do coche
parar na porta do cemiterio, atravessar pelas ruas de tumulos--uma
multidão que trepava, se tocava, lutava por espaço, na estreiteza da
varzea e nas encostas das collinas. Algumas sepulturas como se olhavam
com affecto e se queriam approximar; em outras, transparecia repugnancia
por estarem perto. Havia ali, naquelle mudo laboratorio de
decomposições, solicitações incomprehensiveis, repulsões,
sympathias e antipathias; havia tumulos arrogantes, vaidosos,
orgulhosos, humildes, alegres e tristes; e de muitos, recumava o
esforço, um esforço extraordinario, para escapar ao nivelamento da
morte, ao apagamento que ella traz ás condições e ás fortunas.

Quaresma ainda contemplava o cadaver da moça e o cemiterio surgia aos
seus olhos com as esculpturas que se amontoavam, com vasos, cruzes e
inscripções, em alguns tumulos; noutros, eram pyramides de pedra
tosca, retratos, caramanchões extravagantes, complicações de ornatos,
cousas barôcas e delirantes, para fugir ao anonymato do tumulo, ao fim
dos fins.

As inscripções exuberantes são longas, são breves: têm nomes, têm
datas, sobrenomes, filiações, toda a certidão de idade do morto que,
lá em baixo, não se póde mais conhecer e é lama putrida.

E se sente um desespero em não se deparar com um nome conhecido, nem
uma celebridade, uma notabilidade, um desses nomes que enchem decadas e,
ás vezes mesmo, já mortos, parece que continuam a viver. Tudo é
desconhecido; todas aquelles que querem fugir do tumulo para a memoria
dos vivos, são anodynos felizes e mediocres existencias que passaram
pelo mundo sem ser notadas.

E lá ia aquella moça por ali afóra para o buraco escuro, para o fim,
sem deixar na vida um traço mais fundo de sua pessoa, de seus
sentimentos, de sua alma!

Quaresma quiz afastar essa visão triste e encaminhou-se para o interior
da casa. Elle estivera na sala de visitas, onde D. Maricota tambem
estava, cercada de outras senhoras amigas que nada lhe diziam. O Lulú,
fardado do Collegio, com fumo no braço, cochilava a uma cadeira. As
irmãs iam e vinham. Na sala de jantar, estava o General silencioso,
tendo ao lado Fontes e outros amigos.

Caldas e Bustamante conversavam baixo, afastados; e quando Quaresma
passou, pôde ouvir o Almirante dizer:

--Qual! Os homens estão dentro em pouco aqui... O Governo está
exhausto.

O Major ficou na janella que dava para o quintal. O tecido do céo se
tinha adelgaçado; o azul estava sedoso e fino; e tudo tranquillo,
sereno e calmo.

A Estephania, a doutora, a de olhos maliciosos e quentes, passou, tendo
ao lado Lalá, que levava, de quando em quando, o lenço aos olhos já
seccos, a quem aquella dizia:

--Eu, se fosse você, não comprava lá... É caro! Vai ao «Bonheur
des Dames»... Dizem que tem cousas boas e é pechincheiro.

O Major voltou de novo a contemplar o céo que cobriu o quintal. Tinha
uma tranquillidade quasi indifferente. Genelicio appareceu
demasiadamente funebre. Todo de preto, elle tinha afivelado ao rosto a
mais profunda mascara de tristeza. O seu _pince-nez_ azulado tambem
parecia de luto.

Não lhe fôra possivel deixar de ir trabalhar; um serviço urgente,
fizera-o indispensavel na repartição.

--É isto, General, disse elle, não esta lá o Dr. Genelicio, nada se
faz... Não ha meio da «Marinha» mandar os processos certos... É um
relaxamento...

O General não respondeu; estava deveras combalido. Bustamante e Caldas
continuavam a conversar baixo. Ouviu-se o rodar de uma carruagem na rua.
Quinota chegou á sala de jantar:

--Papae, está ahi o coche.

O velho levantou-se a custo e foi para a sala de visitas. Falou á
mulher que se ergueu com a face contrahida, exprimindo uma grande
contensão. Os seus cabellos já tinham muitos fios de prata. Não deu
um passo; esteve um instante parada e logo caiu na cadeira, chorando.
Todos estavam vendo sem saber o que fazer; alguns choravam; Genelicio
tomou um partido: foi retirando os cirios de ao redor do caixão. A mãe
levantou-se, veiu até ao esquife, beijou o cadaver: minha filha!

Quaresma adiantou-se, foi sahindo com o chapéo na mão. No corredor,
ainda ouviu Estephania dizer a alguem: o coche é bonito.

Saiu. Na rua parecia que havia testa. As crianças da visinhança
cercavam-o carro funebre e faziam innocentes commentarios sobre os
dourados e enfeites. As grinaldas foram apparecendo e sendo dependuradas
nas extremidades das columnas do coche: «Á minha querida filha», «Á
minha irmã». As fitas rôxas e pretas, com lettras douradas, moviam-se
lentamente ao leve vento que soprava.

Appareceu o caixão, todo roxo, com guarnições do galões dourados,
muito brilhantes. Tudo aquillo ia p'ra terra. As janellas se povoaram,
de um lado e d'outro da rua; um menino na casa proxima, gritou da rua
para o interior: «mamãe, lá vai o enterro da moça»!

O caixão foi afinal amarrado fortemente no carro mortuario, cujos
cavallos, russos, cobertos com uma rede preta, escarvavam o chão cheios
de impaciencia.

Aquelles que iam acompanhar até ao cemiterio, procuravam os seus
carros. Embarcaram todos, e o enterro rodou.

A esse tempo, na visinhança, alguns pombos immaculadamente brancos, as
aves de Venus, ergueram o vôo, ergueram o vôo, ruflando
estrepitosamente; deram volta por cima do coche e tornaram logo
silenciosos, quasi sem bater azas, para o pombal que se occultava nos
quintaes burguezes...



IV

O BOQUEIRÃO


O sitio de Quaresma, em Curuzú, voltava aos poucos ao estado de
abandono em que elle o encontrara. A herva damninha crescia e cobria
tudo. As plantações que fizera, tinham desapparecido na invasão do
capim, do carrapicho, das ortigas e outros arbustos. Os arredores da
casa offereciam um aspecto desolador, apezar dos esforços de Anastacio,
sempre vigoroso e trabalhador na sua forte velhice africana, mas baldo
de iniciativa, de methodo, de continuidade no esforço.

Um dia capinava aqui, outro dia ali, outro pedaço; assim ia saltando de
trecho em trecho, sem fazer trabalho que se visse, permittindo que as
terras e os arredores da casa adquirissem um aspecto de desleixo que
não condizia como seu trabalho effectivo.

As formigas voltaram tambem, mais terriveis e depredadoras, vencendo
obstaculos, devastando tudo, restos de seara, brotos de fructeiras, até
os araçazeiros depenavam com uma energia e bravura que sorriam nos
fracos expedientes da intelligencia crestada do antigo escravo, incapaz
de achar meios efficazes de batel-as ou afugenta-las.

Entretanto elle cultivava. Era a sua mania, o seu vicio, uma teimosia de
caduco. Tinha uma horta que disputava diariamente ás saúvas; e, como
os animaes da visinhança a tivessem um dia invadido, elle a protegeu
pacientemente com uma cerca de materiaes mais inconcebiveis: latas de
kerozene desdobradas, caibros bons, folhas de coqueiros, taboas de
caixão, não obstante ter á mão bambus á vontade.

Na sua intelligencia havia uma necessidade do tortuoso; do
apparentemente facil; e, em tudo elle punha esse geito de sua psyche,
tanto no falar, com grandes rodeios, como nos canteiros que traçava,
irregulares, maiores aqui, menores ali, fugindo á regularidade, ao
parallelismo, á symetria, com um horror artistico.

A revolta tinha tido sobre a politica local effeito pacificador. Todos
os partidos se fizeram dedicadamente governistas, de forma que, entre os
dous poderosos contendores, o Dr. Campos e o Tenente Antonino, houve um
traço de união que os reconciliou e os fez entenderem-se. Ao osso que
ambos disputavam encarniçadamente, chegou um outro mais forte que poz
em perigo a segurança de ambos e elles se puzeram em expectativa, um
instante unidos.

O candidato foi imposto pelo Governo Central e as eleições chegaram.
É um momento bem curioso esse das eleições na roça. Não se sabe bem
donde sabem tantos typos exoticos. De tal forma são elles esquesitos
que se póde mesmo esperar que appareçam calções e bofes de renda,
espadins e gibão. Ha sobrecasacas de cintura, ha calças boca de sino,
ha chapéos de seda--todo um museu de indumentaria que aquelles roceiros
vestem e por um instante fazem viver por entre as ruas esburacadas e
estradas poeirentas das villas e logarejos. Não faltam tambem os
valentões, com calças bombachas e grandes bengalões de piquiá, á
espera do que der e vier.

Para a monotona vida que levava D. Adelaide, esse desfile de manequins
de museu, por sua porteira, em direcção á secção eleitoral que lhe
ficava nas proximidades, foi um divertimento. Ella passava longo e
tristes dias naquelle isolamento. Fazia-lhe companhia desde muito a
mulher de Felizardo, a sinhá Chica, uma velha cafusa, especie de Medéa
esqueletica, cuja fama de rezadeira pairava por sobre todo o municipio.
Não havia quem como ella soubesse rezar dores, cortar febres, curar
cobreiros e conhecesse os effeitos das hervas medicinaes: a lingua de
vacca, a silvina, o cipó chumbo--toda aquella drogaria que crescia
pelos campos, pelas capoeiras, e pelos troncos de arvores.

Além desse saber que a fazia estimada e respeitavel, tinha tambem a
habilidade de assistir partos. Na redondeza, entre a gente pobre e mesmo
remediada, todos os nascimentos se faziam aos cuidados de suas luzes.

Era de ver como pegava uma faca e agitava o pequeno instrumento
domestico em cruz, repetidas vezes, sobre a séde da dor ou da tarefa,
rezando em voz baixa, balbuciando preces que afugentavam o espirito
maligno que estava ali. Contavam-se della milagres, victorias
extraordinarias, denunciadoras do seu extranho poder quasi magico, sobre
as forças occultas, que nos perseguem ou nos auxiliam.

Um dos mais curiosos, e era contado em toda a parte e á toda a hora,
consistia no afastamento das lagartas. Os vermes haviam dado num
feijoal, aos milheiros, cobrindo as folhas e os colmos; o proprietario
já desesperava e tinha tudo por perdido quando se lembrou dos
maravilhosos poderes de Sinhá Chica. A velha lá foi. Pôz cruzes de
gravetos pelas bordas da roça, assim como se fizesse uma cerca de
invisivel material que nellas se apoiasse; deixou uma extremidade aberta
e collocou-se na opposta a rezar. Não tardou o milagre a verificar-se.
Os vermes, num rebanho moroso e serpejante, como se fossem tocados pela
vara de um pastor, foram sahindo na sua frente, de vagar, aos dous, aos
quatros, aos cinco, aos dez, aos vinte, e um só não ficou.

O doutor Campos não linha absolutamente nenhuma especie de ciume dessa
rival. Armou-se de um pequeno desdem pelo poder sobrehumano da mulher,
mas não appellou nunca para o arsenal de leis, que vedava o exercicio
de sua transcedente medicina. Seria a impopularidade; elle era
politico...

No interior, e não é preciso afastar-se muito do Rio de Janeiro, as
duas medicinas coexistem sem raiva e ambas attendem ás necessidades
mentaes e economicas da população.

A da Sinhá Chica, quasi gratis, ia ao encontro da população pobre,
daquella em cujos cerebros, por contagio ou herança, ainda vivem os
manitus e manipanços, sujeitos a fugirem aos exorcismos, benzeduras e
fumigações. A sua clientela, entretanto, não se resumia só na gente
pobre da terra, ali nascida ou criada; havia mesmo recem-chegados de
outros ares, italianos, portuguezes e hespanhoes, que se socorriam da
sua força sobrenatural, não tanto pelo preço ou contagio das crenças
ambientes, mas tambem por aquella estranha superstição européa de que
todo o negro ou gente colorida penetra e é sagaz para descobrir as
coisas malignas e exercer a feitiçaria.

Emquanto a therapeutica fluidica ou herbacea de Sinhá Chica attendia
aos miseraveis, aos pobretões, a do doutor Campos era requerida pelos
mais cultos e ricos, cuja evolução mental exigia a medicina regular e
official.

Ás vezes, um de um grupo passava para o outro; era nas molestias
graves, nas complicadas, nas incuraveis, quando as hervas e as rezas da
milagrosa nada podiam ou os xaropes e pillulas do doutor eram
impotentes.

Sinhá Chica não era lá uma companheira muito agradavel. Vivia sempre
mergulhada no seu sonho divino, abysmada nos mysteriosos poderes dos
feitiços, sentada sobre as pernas cruzadas, olhos baixos, fixos, de
fraco brilho, parecendo esmalte de olhos de mumia, tanto ella era
encarquilhada e secca.

Não esquecia tambem os santos, a santa madre igreja, os mandamentos,
as orações orthodoxas; embora não soubesse ler, era forte no
cathecismo e conhecia a historia sagrada aos pedaços, adduzindo a
elles interpretações suas e interpelações pittorescas.

Com o Appolinario, o famoso capellão das ladainhas, era ella o forte
poder espiritual da terra. O vigario ficava relegado a um papel de
funccionario, especie de official de registro civil, encarregado dos
baptisados e casamentos, pois toda a communicação com Deus e o
Invisivel se fazia por intermedio de Sinhá Chica ou do Appolinario. É
de dever falar em casamentos, mas bem podiam ser esquecidos, porque a
nossa gente pobre faz um reduzido de tal sacramento e a simples
mancebia, por toda a parte, substitue a solemne instituição catholica.

Felizardo, o marido della, apparecia pouco em casa de Quaresma; e, se
apparecia, era á noite passando os dias pelos mattos com medo do
recrutamento e logo que chegava indagava da mulher se o barulho já
tinha acabado.

Vivia num constante pavor; dormia vestido, galgando a janella e
embrenhando-se na capoeira, á menor bulha ou vida.

Tinham dous filhos, mas que tristeza de gente! Ajuntavam á depressão
moral dos paes uma pobreza de vigor physico e uma indolencia repugnante.
Eram dous rapazes; o mais velho, José, orçava pelos 20 annos; ambos
inertes, molles, sem força e sem crenças, nem mesmo a da feitiçaria,
das rezas e benzeduras, que fazia o encanto da mãe e merecia o respeito
do pae.

Não houve quem os fizesse aprender qualquer cousa e os sujeitasse a um
trabalho continuo. De quando em quando, assim de quinze em quinze dias,
faziam uma talha de lenha e vendiam ao primeiro taverneiro pela metade
do valor; voltavam para casa alegres, satisfeitos, com um lenço de
cores vivas, um vidro de agua da Colonia, um espelho, bugigangas que
denunciavam ainda nelles gostos bastante selvagens.

Passavam então uma semana em casa, a dormir ou á perambular pelas
estradas e vendas; á noite, quasi sempre nos dias de festas e domingos,
sahiam com a _harmonica_ a tocar peças, no que eram eximios, sendo a
presença delles muito requesitada nos bailes da visinhança.

Embora seus paes vivessem em casa de Quaresma, raramente lá appareciam;
e, se o faziam, era porque de todo não tinham que comer. Levavam o
descuido da vida, a imprevidencia, a ponto de não terem medo do
recrutamento. Eram, entretanto, capazes de dedicação, de lealdade e
bondade, mas o trabalho continuado, todo o dia, repugnava-lhes á
natureza, como uma pena ou um castigo.

Essa atonia da nossa população, essa especie de desanimo doentio, de
indifferença nirvanesca por tudo e todas as cousas, cercam de uma
caligem de tristeza, desesperada a a nossa roça e tira-lhe o encanto, a
poesia o o viço seductor de plena natureza.

Parece que nem um dos grandes paizes opprimidos, a Polonia, a Irlanda, a
India apresentará o aspecto cataleptico do nosso interior. Tudo ahi
dorme, cochila, parece morto; naquelles ha revolta, ha fuga para o
sonho; no nosso... Oh!... dorme-se...

A ausencia de Ouaresma trouxera para o seu sitio essa atmosphera geral
da roça. O «Socego» parecia dormir, dormir de encantamento, á espera
que o principe o viesse despertar.

Machinas agricolas, que não haviam ainda servido, enferrujavam com a
etiqueta da casa. Aquelles arados de ponta de aço, que tinham chegado
com a relha reluzente, de um brilho azulado e doce, estavam hediondos e
morriam de tedio no abandono em que jaziam, bracejando angustiosamente
para o céo mudo. De manhã, não se ouvia mais o cacarejar das aves no
gallinheiro, o esvoaçar dos pombos--todo esse hymno matinal de vida, de
trabalho, de fartura não mais se casava com as auroras rosadas e com o
chilreio alacre do passaredo; e ninguem sabia ver as paineiras em flor,
com as suas lindas flores rosadas e brancas que, a espaços, cahiam
docemente como aves feridas.

D. Adelaide não linha nem gosto nem actividade para superintender
aquelles serviços e fruir a poesia da roça. Soffria com a separação
do irmão e vivia como se estivesse na cidade. Comprava os generos na
venda e não se incommodava com as cousas do sitio.

Anceiava pela volta da irmão; escrevia-lhe cartas desesperadas, ás
quaes elle respondia aconselhando calma, fazendo promessas. A ultima
recebida, porém, tinha de sopetão outro accento; não era mais
confiante, enthusiastica, trahia desanimo, desalento, mesmo desespero.

«Querida Adelaide. Só agora posso responder-te a carta que recebi ha
quasi duas semanas. Justamente quando ella me chegou ás mãos, acabava
de ser ferido, ferimento ligeiro é verdade, mas que me levou á cama e
traz-me-á unia convalescença longa. Que combate, minha filha! Que
horror! Quando me lembro delle, passo as mãos pelos olhos como para
afastar uma visão má. Fiquei com um horror á guerra que ninguem póde
avaliar... Uma confusão, um infernal zunir de balas, clarões
sinistros, imprecações--e tudo isto no seio da treva profunda da
noite... Houve momentos que se abandonaram as armas de fogo: batiamo-nos
á bayoneta, a coronhadas, a machado, a facão. Filha: um combate de
troglodytas, um cousa prehistorica... Eu duvido, eu duvido, duvido da
justiça disso tudo, duvido da sua razão de ser, duvido que seja certo
e necessario ir tirar do fundo de nós todos a ferocidade adormecida,
aquella ferocidade que se fez e se depositou em nós nos millenarios
combates com as féras, quando disputavamos a terra e ellas... Eu não
vi homens de hoje; vi homens de Cro-Magnon do Néanderthal armados com
machados de silex, sem piedade, sem amor, sem sonhos generosos, a matar,
sempre a matar... Este teu irmão que estás vendo, tambem fez das suas,
tambem foi descobrir dentro do si muita brutalidade, muita ferocidade,
muita crueldade... Eu matei, minha irmã; eu matei! E não contente de
matar, ainda descarreguei um tiro quando o inimigo arquejava a meus
pés... Perdoa-me! Eu te peço perdão, porque preciso de perdão e não
sei a quem pedir, a que Deus, a que homem, a alguem emfim... Não
imaginas como isto faz-me soffrer... Quando cahi em baixo de uma
carreta, o que me doia não era a ferida, era a alma, era a consciencia;
e Ricardo, que foi ferido e cahiu ao meu lado, a gemer e
pedir--_capitão, meu gorro; meu gorro_!--parecia que era o meu proprio
pensamento que ironizava o meu destino...

Esta vida é absurda e illogica; eu já tenho medo de viver, Adelaide.
Tenho medo, porque não sabemos para onde vamos, o que faremos amanhã,
de que maneira havemos de nos contradizer de sol para sol...

O melhor é não agir, Adelaide; e desde que o meu dever me livre destes
encargos, irei viver na quietude, na quietude mais absoluta possivel,
para que do fundo de mim mesmo ou do mysterio das cousas não provoque a
minha acção o apparecimento de energias extranhas á minha vontade,
que mais me façam soffrer e tirem o doce sabor de viver...

Além do que, penso que todo este meu sacrificio tem sido inutil. Tudo o
que nelle puz de pensamento não foi attingido; e o sangue que derramei,
e o soffrimento que vou soffrer toda a vida, foram empregados, foram
gastos, foram estragados, foram vilipendiados e desmoralisados em pról
de uma tolice politica qualquer...

Ninguem comprehende o que quero, ninguem deseja penetrar e sentir; passo
por doido, tolo, maniaco e a vida se vai fazendo inexoravelmente com a
sua brutalidade e fealdade».

       *       *       *       *       *

Como Quaresma dizia na carta, o seu ferimento não era grave, era
porém, delicado e exigia tempo para uma cura completa e sem perigos.
Ricardo, este, fora ferido mais gravemente. E se o soffrimento de
Quaresma era profundamente moral, o de Coração dos Outros era physico
e não se cançava de gemer e imprecar contra a sorte que o arrastara
até á posição de combatente.

Os hospitaes em que tratavam estavam separados pela bahia, agora
intransponivel, exigindo a viagem de uma margem á outra bem doze horas
por estrada de ferro.

Tanto na ida como na volta, ferido como estava, Quaresma passara pela
estação em que morava. O trem, porém, não parava, e elle se limitou
a deitar pela portinhola um longo e saudoso olhar para aquelle seu
«Socego», de terras pobres e arvores velhas, onde sonhara repousar
calmamente por toda a vida; e, entretanto, o lançara na mais terrivel
das aventuras.

E elle perguntava de si para si, onde, na terra, estava o verdadeiro
socego, onde se poderia encontrar esse repouso de alma e corpo, pelo
qual tanto anceiava, depois dos sacolejamentos por que vinha
passando--onde? E o mappa dos continentes, as cartas dos paizes, as
plantas das cidades, passavam-lhe pelos olhos e não viu, não encontrou
um paiz, uma provincia, uma cidade, uma rua onde o houvesse.

A sua sensação era de fadiga, não physica, mas moral r intellectual.
Tinha vontade de não mais pensar, de não mais amar: queria, comtudo,
viver, por prazer physico, pela sensação material pura e simples de
viver.

Assim, convalesceu longamente, demoradamente, melancolicamente, sem uma
visita, sem ver uma face amiga.

Coleoni e familia se haviam retirado para fóra; o General, por
preguiça e desleixo, não viera vel-o. Vivia só, envolvido na
suavidade da convalescença, a pensar no Destino, na sua vida, nas suas
idéas e mais que tudo nas suas desillusões.

Entretanto, a revolta na bahia chegava ao fim; toda a gente já
presentia isso e queria esse allivio.

O Almirante e Albernaz, ambos pelos mesmos motivos, observavam esse fim
com tristeza. O primeiro via fugir o seu sonho de commandar uma esquadra
e a consequente volta para o quadro; e o General sentia perder a sua
commissão, cujos rendimentos faziam de forma tão notavel melhorar a
situação da familia.

Naquella manhã, bem cedo, D. Maricota accordara o marido:

--Chico, levanta-te! Olha que tens que ir á missa do Senador
Clarimundo...

Ouvindo a recommendação da mulher, Albernaz ergueu-se logo do leito.
Era preciso não faltar. A sua presença se impunha e significava muito.
Clarimundo fôra um republicano historico, agitador, tribuno temido, no
tempo do Imperio; após a Republica, porém, não apresentara aos seus
pares do Senado nada de util e bemfasejo. Embora assim, a sua influencia
ficara sendo grande; e, com diversos outros, era chamado patriarcha da
Republica. Ha nos proceres republicanos uma necessidade extraordinaria
de serem gloriosos e não esquecidos pelo futuro, a que elles se
recommendam com teimoso interesse.

Clarimundo era um desses proceres e, durante a commoção, não se sabia
bem porque, o seu prestigio cresceu e já se falava nelle para
substituir o Marechal. Albernaz conhecera-o vagamente, mas assistir a
sua missa era quasi uma affirmação politica.

A dor da morte da filha já se esvaira muito na sua memoria. O que o
fazia soffrer era aquella semi-vida da moça, mergulhada na loucura e na
molestia. A morte tem a virtude de ser brusca, de chocar, mas não
corroer, como essas molestias duradouras nas pessoas amadas: passado que
é o choque, vai ficando em nós uma suave recordação do ente
querido, uma boa physionomia sempre presente aos nossos olhos.

Dava-se isso com Albernaz e a sua satisfação de viver e a sua
jovialidade natural foram voltando insensivelmente.

Obediente á mulher, preparou-se, vestiu-se e sahiu. Comquanto se
estivesse ainda em plena revolta, esses officios funebres se faziam nas
igrejas do centro da cidade. O General chegou a tempo e á hora. Havia
uniformes e cartolas e todos se comprimiam para assignar as listas de
presença. Não tanto que quisessem attestar á familia do morto esse
acto delicado; dominava-os, além disso, a esperança de ter os nomes
nos jornaes.

Albernaz não deixou de atirar-se tambem a uma das listas que andavam
pelas mesas da sacristia; e, quando ia assignar, alguem lhe falou. Era o
Almirante. A missa ia começar, mas ambos evitaram entrar na nave cheia,
e ficaram a um vão da janella, na sacristia, conversando.

--Então acaba breve, hein?

--Dizem que a esquadra já sahiu de Pernambuco.

Fôra Caldas quem falara primeiro e a resposta do General fel-o sorrir
ironico dizendo:

--Emfim...

--A bahia está cercada de canhões, continuou o General, após uma
pausa, e o Marechal vai intimal-os a renderem-se.

--Já era tempo, fez Caldas... Commigo, a cousa ja estava acabada...
Levar quasi sete mezes para dar cabo de uns calhambeques!...

--Você exagera, Caldas; a cousa não era tão facil assim... E o mar?

--Que fez a esquadra tanto tempo no Recife, você não me dirá? Ah! si
fosse com este seu criado, tinha logo partido e atacado... Sou pelas
decisões promptas...

O padre, no interior da igreja, continuava a pedir Deus repouso para a
alma do Senador Clarimundo. O mystico cheiro de incenso vinha até elles
e o votivo perfume, votivo ao Deus da paz e da bondade, não os demovia
dos seus pensamentos guerreiros.

--Entre nós, adduziu Caldas, não ha mais gente que preste... Isto é
um paiz perdido, acaba colonia ingleza...

Coçou nervoso um dos favoritos e esteve um instante a olhar o ladrilho
do chão. Albernaz avançou, meio sarcastico:

--Agora não; agora a autoridade está prestigiada, consolidada, e uma
era de progresso vai abrir-se para o Brasil.

--Qual o que! Onde é que você viu um Governo...

--Mais baixo, Caldas!

--...onde é que se viu um Governo que não aproveita as aptidões,
abandona-as, deixa-as por ahi vegetar?... Dá-se o mesmo com as nossas
riquezas naturaes: jazem por ahi á toa!

A sineta soou e olharam um pouco a nave cheia. Pela porta, via-se uma
porção de homens, todos de negro, ajoelhados, contrictos, batendo nos
peitos, a confessar de si para si: _mea culpa, mea maxima culpa_...

Uma restea de sol coava-se por uma das aberturas do alto e resplandecia
sobre algumas cabeças.

Insensivelmente, os dous, na sacristia, levaram a mão ao peito e
confessaram tambem: _mea culpa, mea maxima culpa_...

A missa veiu a acabar e ambos entraram para o abraço da pragmatica. A
nave rescendia a incenso e tinha um aspecto tranquillo de immortalidade.

Todos tinham um grande ar de compuncção: amigos, parentes, conhecidos
e desconhecidos pareciam soffrer igualmente. Albernaz e Caldas, logo que
penetraram no corpo da igreja, apanharam no ar um sentimento profundo e
afivelaram-no ao rosto.

Genelicio tambem viera; elle tinha o vicio das missas das pessoas
importantes, dos cartões de pezames, dos cumprimentos em dias de
anniversario. Temendo que a memoria não lhe ajudasse, possuia um
caderninho onde as datas aniversarias estavam assentadas e as
residencias tambem. O indice era organizado com muito cuidado. Não
havia sogra, prima, tia, cunhada, de homem importante, que, em dia de
anniversario, não recebesse os seus parabens, e, por morte, não o
levasse á igreja em missa de setimo dia.

O seu traje de luto era de panno grosso, pesado e, olhando-o,
lembrava-nos logo de um castigo dantesco.

Na rua, Genelicio escovava a cartola com a manga da sobrecasaca e dizia
ao sogro e ao Almirante:

--A cousa está p'ra acabar...! Breve...

--E se resistirem? perguntou o General.

--Qual! Não resistem. Corre que já propuzeram rendição... É preciso
arranjar uma manifestação ao Marechal...

--Não acredito, fez o Almirante. Conheço muito o Saldanha, é
orgulhoso e não se entrega assim...

Genelicio ficou um pouco assustado com a intonação da voz do seu
parente; teve medo que elle falasse mais alto, désse na vista e o
compromettesse. Calou-se; Albernaz, porem, avançou:

--Não ha orgulho que resista a uma esquadra mais forte.

--Forte! Uns calhambeques, homem!

Caldas continha a custo a furia que lhe ia n'alma. O céo estava azul e
calmo. Havia nelle nuvens brancas, leves, esgarçadas, que se moviam
lentamente, como velas, naquelle mar infinito. Genelicio olhou-o um
pouco e aconselhou:

--Almirante não fale assim... Olhe que...

--Qual! Não tenho medo... Porcarias!...

--Bom, fez Genelicio, eu tenho que ir á rua Primeiro de Março e...

Despediu-se e sahiu com o seu traje de chumbo, curvado, olhando o chão
com o seu pince-nez azulado, palmilhando a rua com passo meudo e
cauteloso.

Albernaz e Caldas ainda estiveram conversando um tempo e se despediram
sempre amigos, cada um com o seu desgosto e a sua decepção.

Tinham razão: a revolta veiu a acabar d'ahi a dias. A esquadra legal
entrou: os officiaes revoltosos se refugiaram nos navios de guerra
portuguezes e o Marechal Floriano ficou senhor da bahia.

No dia da entrada, acreditando que houvesse canhoneio, uma grande parte
da população abandonou a cidade, refugiando-se nos suburbios, por
baixo das arvores, na casa de amigos ou nos galpões construidos adrede
pelo Estado.

Era de ver o terror que se estampava naquellas physionomias, a ancia e a
angustia tambem. Levavam trouxas, samburás, pequenas malas; crianças
de peito, a chorar, o papagaio querido, o cachorro de estimação, o
passarinho que de ha muito quebrava a tristeza de uma casa pobre.

O que mais mettia medo era o famoso canhão de dynamite, do
«Nictheroy», uma espalhafatosa invenção americana, instrumento
terrivel, capaz de causar terremotos e de abalar os fundamentos das
montanhas graniticas do Rio.

As crianças e as mulheres, mesmo fóra do alcance de seu poder, temiam
ouvir o seu estrondo: entretanto, esse fantasma _yankee_, esse
pesadello, essa quasi força da natureza, foi morrer abandonado num
caes, desprezado e inoffensivo.

O fim do levante foi um allivio; a cousa já estava, ficando monotona e
o Marechal ganhou feições sobrehumanas com a victoria.

Quaresma teve alta por esse tempo; e uma ala de seu batalhão foi
destacada para guarnecer a ilha das Enxadas. Innocencio Bustamante
continuava a superintender o corpo com muito zelo, do interior do seu
gabinete, na estalagem condemnada que lhe servia de quartel. A
escripturação estava em dia e era feita com a melhor letra.

Polycarpo acceitou com repugnancia o papel de carcereiro, pois na ilha
das Enxadas estavam depositados os marinheiros prisioneiros. Os seus
tormentos d'alma mais cresceram com o exercicio de tal funcção. Quasi
os não olhava: tinha vexame, piedade e parecia-lhe que dentre elles um
conhecia o segredo de sua consciencia.

De resto, todo o systema de idéas que o fizera meter-se na guerra civil
se tinha desmoronado. Não encontrara o Sully e muito menos o Henrique
IV. Sentia tambem que o seu pensamento motriz não residia em nenhuma
das pessoas que encontrara. Todos tinham vindo ou com pueris pensamentos
politicos, ou por interesse; nada de superior os animava. Mesmo entre os
moços, que eram muitos, se não havia baixo interesse, existia uma
adoração fetichica pela forma republicana, um exagero das virtudes
della, um pendor para o despotismo que os seus estudos e meditações
não podiam achar justos. Era grande a sua desillusão.

Os prisioneiros se amontoavam nas antigas salas de aulas e alojamentos
dos aspirantes. Havia simples marinheiros; havia inferiores; havia,
escreventes e operarios de bordo. Brancos, pretos, mulatos, caboclos,
gente de todas as cores e todos os sentimentos, gente que se tinha
incitado em tal aventura pelo habito de obedecer, gente inteiramente
extranha á questão em debate, gente arrancada á força aos lares ou
á calaçaria das ruas, pequeninos, tenros, ou que se haviam alistado
por miseria; gente ignara, simples, ás vezes cruel e perversa como
crianças inconscientes; ás vezes, boa e docil como um cordeiro, mas,
enfim, gente sem responsabilidade, sem anceio politico, sem vontade
propria, simples automatos nas mãos dos chefes e superiores que a
tinham abandonado á mercê do vencedor.

De tarde, elle ficava a passear, olhando o mar. A viração soprava
ainda e as gaivotas continuavam a pescar. Os barcos passavam. Ora, eram
lanchas fumarentas que lá iam para fundo da bahia; ora pequenos botes
ou canôas, roçando carinhosamente a superficie das aguas, pendendo
para lá e para cá, como se as suas alvas velas enfunadas quizessem
afagar a espelhenta superficie do abysmo. Os Orgãos vinham suavemente
morrendo na violeta macia; e o resto era azul, um azul immaterial que
inebriava, embriagava, como um licor capitoso.

Ficava assim um tempo longo, a ver, e quando se voltava, olhava a cidade
que entrava na sombra, aos beijos sangrentos do occaso.

A noite chegava e Quaresma continuava a passear na borda do mar,
meditando, pensando, soffrendo com aquelles lembranças de odios, de
sangueiras e ferocidade.

A sociedade e a vida pareceram-lhe cousas horrorosas, e imaginou que do
exemplo dellas vinham os crimes que aquella punia, castigava e procurava
restringir. Eram negras e desesperadas, as suas idéas; muita vez julgou
que delirava.

E então se lamentava por estar sósinho, par não ter um companheiro
com quem conversar, que lhe fizesse fugir aquelles tristes pensamentos
que o assediavam e se chiavam transformando em obsessão.

Ricardo estava de guarnição na ilha das Cobras: e, mesmo que ali
estivesse, os rigores da disciplina não lhe permittiriam uma conversa
mais amigavel. Vinha a noite inteiramente, e o silencio e a treva
envolviam tudo.

Quaresma ainda ficava horas ao ar livre a pensar, olhando o fundo da
bahia, onde quasi não havia luzes que interrompessem a continuidade do
negror nocturno.

Fixava bem os olhos para lá, como se os quizesse habituar a peneirar
nas cousas indecifraveis e adivinhar dentro da sombra negra a forma das
montanhas, o recorte das ilhas que a noite tinha feito desapparecer.

Fatigado, ia dormir. Nem sempre dormia bem; tinha insomnias e, se queria
ler, a attenção recusava fixar-se e o pensamento vagabundava muito
longe do livro.

Certa noite em que ia dormindo melhor, um inferior veiu accordal-o pela
madrugada:

--Sr. Major, está ahi o _home_ do Itamaraty.

--Que homem?

--O official que vem buscar a turma do Boqueirão.

Sem attinar bem do que se tratava, levantou-se e foi ao encontro do
visitante. O homem já estava no interior de um dos alojamentos. Uma
escolta estava á porta. Seguiam-no algumas praças, das quaes uma
levava uma lanterna que derramava no salão uma fraca luzerna
amarellada. A vasta sala estava cheia de corpos, deitados, semi-nus, e
havia todo o iris das cores humanas. Uns roncavam, outros dormiam
sómente; e quando Quaresma entrou, houve alguém que em sonho,
gemeu--ai! Cumprimentaram-se Quaresma e o emissario do Itamaraty, e nada
disseram. Ambos tiveram medo de falar. O official despertou um dos
prisioneiros e disse para as praças: Levem este.

Seguiu adiante e despertou outro:--onde você esteve? Eu--respondeu o
marinheiro--na «Guanabara»... Ah! patife, acudiu o homem do
Itamaraty... Este tambem... Levem!...

Os soldados conductores iam até á porta, deixaram o prisioneiro e
voltavam.

O official passou por uma porção delles e não fez reparo: adiante,
deu com um rapaz claro, franzino, que não dormia. Gritou então:
levante-se! O rapaz ergueu-se tremendo.--Onde esteve você?
perguntou.--Eu era enfermeiro, retrucou o rapaz.--Que enfermeiro! fez o
emissario. Levem este tambem...

--Mas, seu Tenente, deixe-me escrever á minha mãe, pediu o rapaz quasi
chorando.

--Que mãe respondeu o homem do Itamaraty. Siga! Vá!

E assim foi uma duzia, escolhida a esmo, ao acaso, cercada pela escolta,
a embarcar num batelão que uma lancha logo rebocou para fóra das
aguas da ilha.

Quaresma não atinou de prompto com o sentido da scena e foi, após o
afastamento da lancha, que elle encontrou uma explicação.

Não deixou de pensar então por que força mysteriosa, por que
injuncção ironica elle se tinha misturado em tão tenebrosos
acontecimentos, assistindo ao sinistro alicerçar do regimen...

A embarcação não ia longe. O mar gemia demoradamente de encontro as
pedras do caes. A esteira da embarcação estrellejava phosphorescente.
No alto, num céo negro e profundo, as estrellas brilhavam serenamente.

A lancha desappareceu nas trevas do fundo da bahia. Para onde ia? Para o
Boqueirão...



V

A AFILHADA


Como lhe parecia illogico com elle mesmo estar ali mettido naquelle
estreito calabouço. Pois elle, o Quaresma placido, o Quaresma de tão
profundos pensamentos patrioticos, merecia aquelle triste fim? De que
maneira sorrateira o Destino o arrastara até ali, sem que elle pudesse
presentir o seu extravagante proposito, tão apparentemente sem
relação com o resto da sua vida? Teria sido elle com os seus actos
passados, com as suas acções encadeiadas no tempo, que fizera com que
aquelle velho deus docilmente o trouxesse até á execução de tal
designio? Ou teriam sido os factos externos, que venceram a elle,
Quaresma, e fizeram-n'o escravo da sentença da omnipotente divindade?
Elle não sabia, e, quando teimava em pensar, as duas cousas se
baralhavam, se emmaranhavam e a conclusão certa e exacta lhe fugia.

Não estava ali ha muitas horas. Fôra preso pela manhã, logo ao
erguer-se da cama; e, pelo calculo approximado do tempo, pois estava sem
relogio e mesmo se o tivesse não poderia consultal-o á fraca luz da
masmorra, imaginava podiam ser onze horas.

Porque estava preso? Ao certo não sabia; o official que o conduzira,
nada lhe quizera dizer; e, desde que sahira da ilha das Enxadas para a
das Cobras, não trocara palavra com ninguem, não vira nenhum conhecido
no caminho, nem o proprio Ricardo que lhe podia, com um olhar, com um
gesto, trazer socego ás suas duvidas. Entretanto, elle attribuia a
prisão á carta que escrevera ao Presidente, protestando contra a scena
que presenciara na vespera.

Não se pudera conter. Aquella leva de desgraça a sahir assim, as
deshonras, escolhidos a esmo, para uma carniçaria distante, falara fundo
a todos os seus sentimentos puzera diante dos seus olhos todos os seus
principios moraes; desafiara a sua coragem moral e a sua solidariedade
humana: e elle escrevera a carta com vehemencia, com paixão, indignado.
Nada omittiu do seu pensamento: falou claro, franca e nitidamente.

Deve ser por isso que elle estava ali naquella masmorra, engaiolado,
trancafiado, isolado dos seus semelhantes como uma féra, como um
criminoso, sepultado na treva, soffrendo humidade, misturado com os seus
detrictos quasi sem comer... Como acabarei? Como acabarei? E a pergunta
lhe vinha, no meio da revoada de pensamentos que aquella angustia
provocava pensar. Não havia base para qualquer hypothese. Era de
conducta tão irregular e incerta o Governo que tudo elle, podia
esperar: a liberdade ou a morte, mais esta que aquella.

O tempo estava de morte, de carnificina; todos tinham sêde de matar,
para affirmar mais a victoria e sentil-a bem na consciencia cousa sua,
propria, e altamente honrosa.

Iria morrer, quem sabe se naquella noite mesmo. E que tinha elle feito
de sua vida? Nada. Levara toda ella atraz da miragem de estudar a
patria, por amal-a e querel-a muito, no intuito de contribuir para a sua
felicidade e prosperidade. Gastara a sua mocidade nisso, a sua
virilidade tambem; e, agora que estava na velhice, como ella o
recompensava, como ella o premiava, como ella o condecorava? Matando-o.
E o que não deixara de ver, de gosar, de fruir, na sua vida? Tudo. Não
brincara, não pandegara, não amara--todo esse lado da existencia que
parece fugir um pouco á sua tristeza necessaria, elle não vira, elle
não provara, elle não experimentara.

Desde dezoito annos que o tal patriotismo lhe absorvia e por elle fizera
a tolice de estudar inutilidades. Que lhe importavam os rios? Eram
grandes? Pois que fossem... Em que lhe contribuiria para a felicidade
saber o nome dos heróes do Brasil? Em nada... O importante é que elle
tivesse sido feliz. Foi? Não. Lembrou-se das suas cousas de tupy, do
_folk lore_, das suas tentativas agricolas... Restava disso tudo em sua
alma uma satisfação? Nenhuma! Nenhuma!

O tupy encontrou a incredulidade geral, o riso, a mofa, o escarneo; e
levou-o á loucura. Uma decepção. E a agricultura? Nada. As terras
não eram ferazes e ella não era facil como diziam os livros. Outra
decepção. E, quando o seu patriotismo se fizera combatente, o que
achara? Decepções. Onde estava a doçura de nossa gente? Pois elle
não a viu combater como féras? Pois não a via matar prisioneiros,
innumeros? Outra decepção. A sua vida era uma decepção, uma serie,
melhor, um encadeiamento de decepções.

A patria que quizera ter era um mytho; era um fantasma criado por elle
no silencio do seu gabinete. Nem a physica, nem a moral, nem a
intellectual, nem a politica que julgava existir, havia. A que existia
de facto, era a do Tenente Antonino, a do Dr. Campos, a do homem do
Itamaraty.

E, bem pensando, mesmo na sua pureza, o que vinha a ser a Patria? Não
teria levado toda a sua vida norteado por uma illusão, por uma idéa a
menos, sem base, sem apoio, por um Deus ou uma Deusa cujo imperio se
esvaia? Não sabia que essa idéa nascera da amplificação da crendice
dos povos grego-romanos de que ancestraes mortos continuaram a viver
como sombras e era preciso alimental-as para que elles não perseguissem
os descendentes? Lembrou-se do seu Fustel de Conlangos... Lembrou-se de
que essa noção nada é para os menenanan, para tantas pesos...
Pareceu-lhes que essa idéa como que fôra explorada pelos
conquistadores por instantes sabedores das nossas subserviencias
psychologicas, no intuito de servir ás suas proprias ambições...

Reviu a historia; viu as mutilações, os accrescimos em todos os paizes
historicos e perguntou de si para si; como um homem que vivesse quatro
seculos, sendo francez, inglez, italiano, allemão, podia sentir a
Patria?

Uma hora, para o francez, o Franco-Condado era terra dos seus avós,
outra não era; num dado momento, a Alsacia não era, depois era e
afinal não vinha a ser.

Nós mesmos não tivemos a Cisplatina e não a perdemos; e, porventura,
sentimos que haja lá manes dos nossos avós e por isso soffremos
qualquer magua?

Certamente era uma noção sem consistencia racional e precisava ser
revista.

Mas, como é que elle tão sereno, tão lucido, empregara sua vida,
gastara o seu tempo, envelhecera atraz de tal chimera? Como é que não
viu nitidamente a realidade, não a presentiu logo e se deixou enganar,
por um falaz idolo, absorver-se nelle, dar-lhe em holocausto toda a sua
existencia? Foi o seu isolamento, o seu esquecimento de si mesmo; e
assim é que ia para a cova, sem deixar traço seu, sem um filho, sem um
amor, sem um beijo mais quente, sem nenhum mesmo, e sem sequer uma
asneira!

Nada deixava que affirmasse a sua passagem e a terra não lhe dera nada
de saboroso.

Comtudo, quem sabe se outros que lhe seguissem pegadas não seriam mais
felizes? E logo respondeu a si mesmo: mas como? Se não se fizera
communicar, se nada dissera e não prendera o seu sonho, dando-lhe corpo
e substancia?

E esse seguimento adiantaria alguma cousa? E essa continuidade traria
enfim para a terra alguma felicidade? Ha quantos annos vidas mais
valiosas que a delle, se vinham offerecendo, sacrificando e as cousas
ficaram na mesma, a terra, na mesma miseria, na mesma oppressão, na
mesma tristeza.

E elle se lembrava que ha bem cem annos, ali, naquelle mesmo logar onde
estava, talvez naquella mesma prisão, homens generosos e illustres
estiveram presos por quererem melhorar o estado de cousas de seu tempo.
Talvez só tivessem pensado, mas soffreram pelo seu pensamento. Tinha
havido vantagem? As condições geraes tinham melhorado? Apparentemente
sim: mas, bem examinado, não.

Aquelles homens, accusados de crime tão nefando em face da legislação
da época, tinham levado dous annos a ser julgados; e elle, que não
tinha crime algum, nem era ouvido, nem era julgado: seria simplesmente
executado!

Fôra bom, fôra generoso, fôra honesto, fôra virtuoso--elle que fôra
tudo isso, ia para a cova sem o acompanhamento de um parente, de um
amigo, de um camarada...

Onde estariam elles? Sobre o Ricardo Coração dos Outros, tão simples
e tão innocente na sua mania de violão, elle não poria mais os olhos?
Era tão bom que o pudesse, para mandar á sua irmã o ultimo recado, ao
preto Anastacio um adeus, á sua afilhada um abraço! Nunca mais
vel-os-ia, nunca!

E elle chorou um pouco.

Quaresma, porem, enganava-se em parte. Ricardo soubera de sua prisão e
procurava soltal-o. Teve noticia do exacto motivo della; mas não se
intimidou. Sabia perfeitamente que corria grande risco, pois a
indignação no palacio contra Quaresma fôra geral. A victoria tinha
feito os victoriosos inclementes e ferozes, e aquelle protesto soou
entre elles como um desejo de diminuir o valor das vantagens
alcançadas. Não havia mais piedade, não havia mais sympathia, nem
respeito pela vida humana; o que era necessario era citar o exemplo de um
massacre á turca, porém clandestino, para que jamais o poder
constituido fosse atacado ou mesmo discutido. Era a philosophia social
da época, com forças de religião, com os seus fanaticos, com os seus
sacerdotes e pregadoras, e ella agia com a maldade de uma crença forte,
sobre a qual fizessemos repousar a felicidade de muitos.

Ricardo, entretanto, não se amedrontou; procurou influencias e amigos.
Ao entrar no largo de S. Francisco encontrou Genelicio. Vinha da missa
da irmã da sogra do deputado Castro. Como sempre, trajava uma pesada
sobrecasaca preta que parecia de chumbo. Já estava sub-director e o seu
trabalho era agora imaginar meios e modos de ser director. A cousa era
difficil; mas trabalhava num livro: «Os Tribunaes de Contas nos Paizes
asiaticos»--o qual, demonstrando uma erudição superior, talvez lhe
levasse ao alto logar cubiçado.

Vendo-o, Ricardo não se deteve. Correu-lhe ao encalço e falou-lhe:

--Doutor, V. Ex. dá licença que lhe dê uma palavra?

Genelicio perfilou-se todo e, como tivesse pessima memoria das
physionomias humildes, perguntou com solemnidade e arrogancia:

--Que deseja, camarada?

Coração dos Outros estava com a sua farda do «Cruzeiro do Sul» e
não ficava bem a Genelicio dar-se como conhecido de um soldado, O
trovador julgou-o mesmo esquecido e indagou ingenuamente:

--Não me conhece mais, doutor?

Genelicio fechou um pouco os olhos por detraz do pince-nez azulado e
disse seccamente:

--Não.

--Eu, fez com humildade Ricardo, sou Ricardo Coração dos Outros, que
cantou no seu casamento.

Genelicio não sorriu, não deu mostras de alegria e limitou-se:

--Ah? É o senhor! Bem: que deseja?

--O senhor não sabe que o Major Quaresma está preso?

--Quem é?

--Aquelle que foi vizinho do seu sogro.

--Aquelle maluco... Ahn!... E d'ahi?

--Eu queria que o senhor se interessasse...

--Não me metto nessas cousas, meu amigo. O Governo tem sempre razão.
Passe bem.

E Genelicio seguiu com o seu passo cauteloso de quem poupa as solas das
botas, emquanto Ricardo ficava de pé a olhar o largo, a gente que
passava, a estatua immovel, as casas feias, a igreja... Tudo lhe pareceu
hostil, máo ou indifferente; aquellas caras de homens tinham cataduras
de feras e elle quiz por um momento chorar de desespero por não poder
salvar o amigo.

Lembrou-se, porém, de Albernaz, e correu a procural-o. Não era longe,
mas o General ainda não tinha chegado. Ao fim de uma hora o General
chegou e, dando com Ricardo, perguntou:

--Que ha?

O trovador, bastante emocionado, explicou-lhe com voz dorida todo o
facto. Albernaz concertou o pince-nez, ageitou bem o trancelim de ouro
na orelha e disse com doçura:

--Meu filho, eu não passo... Você sabe: sou governista e parece, se eu
fôr pedir por um preso, que já não o sou bastante... Sinto muito,
mas... que se ha de fazer? Paciencia.

E entrou para o seu gabinete prazenteiro, muito seguro de si, dentro do
seu placido uniforme de General.

Os officiaes continuavam a entrar e a sahir; as campainhas soavam; os
continuos iam r vinham; e Ricardo procurava entre todas aquellas
physionomias uma que lhe pudesse valer. Não havia e elle desesperava.
Mas quem havia de ser? Quem? Lembrou-se: o commandante; e foi ter
com o Coronel Bustamante, na velha estalagem que servia de quartel ao
garboso «Cruzeiro do Sul».

O batalhão ainda continuava em pé de guerra. Embora terminada a
revolta no porto do Rio de Janeiro era preciso mandar forças para o
Sul, de forma que os batalhões não tinham sido dissolvidos e um dos
apontados para partir era o «Cruzeiro».

O Alferes côxo, no ensaboado pateo da antiga estalagem, continuava na
sua faina de instructor dos novos recrutas. Hom--brôoo... armas!
Mei--ãã volta!

Ricardo entrou, subiu rapidamente a oscillante escada do velho cortiço
e logo que chegou ao cubiculo do commandante, gritou: com licença,
Commandante!

Bustamante andava de máo humor. Aquelle negocio de partir para o
Paraná não lhe agradava. Como é que havia de superintender a escripta
do batalhão, no fervor de batalhas, nas desordens de marchas e
contramarchas? Isso era uma tolice do Commandante marchar; o chefe devia
ficar a resguardo, para providenciar e dirigir a escripturação.

Elle pensava nessas cousas, quando Ricardo pediu licença.

--Entre, disse elle.

O bravo Coronel coçava a grande barba mosaica, tinha o dolman
desabotoado e acabava de calçar um dos pes de botina, para com mais
decencia receber o inferior.

Ricardo expoz o seu pedido r esperou com paciencia a resposta, que
custou a vir. Por fim, Innocencio disse sacudindo a cabeça e olhando o
inferior cheio, de severidade:

--Vai-te embora, senão mando-te prender! Já!

E apontou com o dedo a porta da sahida num gesto marcial e energico. O
cabo não se demorou mais. No pateo o instructor coso, veterano do
Paraguay, continuava com solemnidade a encher a arruinada estalagem com
as suas vozes de commando: Hom-brõo... armas! Mei--ãã... volta...
volver!

Ricardo veiu andando triste e desalentado. O mundo lhe parecia vasio de
afecto e de amor. Elle que sempre decantara nas suas modinhas a
dedicação, o amor, as sympathias, via agora que taes sentimentos não
existiam, tinha marchado atraz de cousas fóra da realidade, de
chimeras. Olhou o céo alto. Estava tranquillo e calmo. Olhou as
arvores. As palmeiras cresciam com orgulho e titanicamente pretendiam
attingir o céo. Olhou as casas, as igrejas, os palacios e lembrou-se
das guerras, do sangue, das dores que tudo aquillo custara. E era assim
que se fazia a vida, a historia e o heroismo: com violencia sobre os
outros, com oppressões e soffrimentos.

Logo, porém, recordou que era preciso salvar o amigo que era necessario
dar mais uns passos. Quem poderia? Consultou sua memoria. Viu um, viu
outro e por fim lembrou-se da afilhada de Quaresma, e foi procural-a na
Real Grandeza.

Chegou, narrou-lhe o facto e as suas sinistras apprehensões. Ella estava
só, pois o marido cada vez mais trabalhava para aproveitar os despojos da
victoria; não perdia um minuto, andando atraz de um e de outro.

Olga lembrou-se bem do padrinho, do seu eterno sonhar, da sua ternura,
da tenacidade que punha em seguir as suas idéas, da sua candura de
donzella romantica...

Durante um instante uma grande pena tomou-a toda inteira e tirou-lhe a
vontade de agir. Pareceu-lhe que era bastante a sua piedade e ela ia de
algum modo dar lenitivo ao soffrimento do padrinho; mas bem cedo o viu
ensanguentado--elle, tão generoso, elle, tão bom, e pensou em
salval-o.

--Mas que fazer, meu caro sr. Ricardo, que fazer? Eu não conheço
ninguem... Eu não tenho relações... Minhas amigas... A Alice, a
mulher do Dr. Brandão, está fora... A Cassilda, a filha do Castrioto,
não pode... Não sei, meu Deus!

E accentuou estas ultimas palavras com grande e lancinante desespero. Os
dous ficaram calados. A moça, que estava sentada, tomou a cabeça entre
as mãos e as sua unhas longas e aperoladas engastaram-se nos seus
cabellos negros. Ricardo estava de pé e aparvalhado.

--Que hei de fazer, meu Deus? repetiu ella.

Pela primeira vez, ella sentiu que a vida tinha cousa desesperadoras.
Possuia a mais forte disposição de salvar seu padrinho; faria
sacrificio de tudo, mas era impossivel, impossivel! Não havia um meio;
não havia um caminho. Ella tinha que ir para o posto de supplicio,
tinha que subir o seu Calvario, sem esperança de ressurreição.

--Talvez seu marido, disse Ricardo.

Pensou um pouco, demorou-se mais no exame do caracter do esposo; mas, em
breve, viu bem que o seu egoismo, a sua ambição e a sua ferocidade
interesseira não pemittiriam que elle désse o minimo passo.

--Qual, esse...

Ricardo não sabia o que aconselhal-a e olhava sem pensamento os moveis
e a montanha negra e alta que se avistava da sala onde estavam. Queria
encontrar um alvitre, um conselho; mas nada!

A moça continuava a cravar os dedos nos seus cabellos negros e a olhar
a mesa em que repousavam os seus cotovellos. O silencio era augusto.

Num dado momento, Ricardo teve uma grande alegria no olhar e disse:

--Se a senhora fosse lá...

Ella levantou a cabeça; os seus olhos se dilataram, de espanto e o
rosto lhe ficou rigido. Pensou um pouco, um nada, e falou com firmeza:

--Vou.

Ricardo ficou só e sentou-se. Olga foi vestir-se.

Elle então pensou com admiração naquella moça que por simples
amizade se dava a tão arriscado sacrificio, que tinha a alma tão ao
alcance della mesma e a sentiu bem longe desse nosso mundo, deste nosso
egoismo, dessa nossa baixeza e cobriu a sua imagem com um grande olhar
de reconhecimento.

Não tardou que ella ficasse prompta e ainda abotoava as luvas, na sala
de jantar, quando o marido entrou. Vinha radiante, com os seus grandes
bigodes e o seu rosto redondo cheio de satisfação de si mesmo. Nem fez
menção de ter visto Ricardo e foi logo direito á mulher:

--Vaes sahir?

Ella, afogueada pela ancia desesperada de salvar Quaresma, disse com
certa vivacidade:

--Vou.

Armando ficou admirado de vel-a falar daquelle modo. Voltou-se um
instante para Ricardo, quiz interrogal-o, mas logo, dirigindo-se á
mulher, perguntou com autoridade:

--Onde vaes?

A mulher não lhe respondeu logo e, por sua vez, o doutor interrogou o
trovador:

--Que faz o senhor aqui?

Coração dos Outros não teve animo de responder; adivinhava uma scena
violenta que elle teria querido evitar; mas Olga adiantou-se:

--Vai acompanhar-me ao Itamaraty, para salvar da norte meu padrinho. Já
sabe?

O marido pareceu acalmar-se. Acreditou que, com meios suasorios, poderia
evitar que a mulher désse passo tão perigoso para os seus interesses e
ambições. Falou docemente:

--Fazes mal.

--Porque? perguntou ella com calor.

--Vaes comprometter-me. Sabes que...

Ella, não lhe respondeu logo e mirou-o um instante com os seus grandes
olhos cheios de escarneo; mirou-o um, dous minutos; depois, riu-se um
pouco e disse:

--É isto! _Eu_, porque _eu_, porque _eu_, é só _eu_ para aqui, _eu_
para ali... Não pensas noutra coisa... A vida é feita para ti, todos
só devem viver para ti... Muito engraçado! De forma que eu (agora digo
_eu_ tambem) não tenho direito de me sacrificar, de provar a minha
amizade, de ter na minha vida um traço superior? É interessante! Não
sou nada, nada! Sou alguma coisa como um movel, um adorno, não tenho
relações, não tenho amizades, não tenho caracter? Ora!...

Ella falava, ora vagarosa e irónica, ora rapidamente e apaixonada: e o
marido tinha diante de suas palavras um grande espanto. Elle vivera
sempre tão longe della que não a julgara nunca capaz de taes assomos.
Então aquella menina? Então aquelle _bibelot_? Quem lhe teria ensinado
taes cousas? Quiz desarmal-a com uma ironia e disse risonho:

--Estás no theatro?

Ella lhe respondeu logo:

--Se é só no theatro que ha grandes cousas, estou.

E accrescentou com força:

--É o que te digo: vou e vou, porque devo, porque quero, porque é do
meu direito.

Apanhou a sombrinha, concertou o véo e sahiu solemne, firme, alta e
nobre. O marido não sabia o que fazer. Ficou assombrado e assombrado e
silencioso viu-a sahir pela porta fóra.

Em breve, estava no palacio da rua Larga. Ricardo não entrou; deixou
que a moça o fizesse e foi esperal-a no Campo de Sant'Anna.

Ella subiu. Havia um immenso borborinho, uma agitação de entradas e
sahidas. Toda a gente queria mostrar-se a Floriano, queria
cumprimental-o, queria dar mostras da sua dedicação, provar os seus
serviços, mostrando-se coparticipante na sua victoria. Lançavam mão
de todos os meios, de todos os planos, de todos os processos. O dictador
tão accessivel antes, agora se esquivava. Havia quem lhe quisesse
beijar as mãos, como ao papa ou a um imperador; e elle já tinha nojo
de tanta subserviencia. O califa não se suppunha sagrado e
aborrecia-se.

Olga falou aos continuos, pedindo ser recebida pelo Marechal. Foi
inutil. A muito custo conseguiu falar a um secretario ou ajudante de
ordens. Quando ella lhe disse a que vinha, a physionomia terrosa do
homem tornou-se de óca e sob as suas palpebras correu um firme e rapido
lampejo de espada:

--Quem, Quaresma? disse elle. Um traidor! Um bandido!

Depois, arrependeu-se da vehemencia, fez com certa delicadeza:

--Não é possivel, minha senhora. O Marechal não a attenderá.

Ella nem lhe esperou o fim da phrase. Ergueu-se orgulhosamente, deu-lhe
as costas e teve vergonha de ter de pedir, de ter descido do seu orgulho
e ter enxovalhado a grandeza moral do padrinho com o seu pedido. Com tal
gente, era melhor tel-o deixado morrer só e heroicamente num ilhéo
qualquer, mas levando para o tumulo inteiramente intacto o seu orgulho,
a sua doçura, a sua personalidade moral, sem a macula de um empenho que
diminuisse a injustiça de sua morte, que de algum modo fizesse crer aos
seus algozes que elles tinham direito de matal-o.

Sahiu e andou. Olhou o céo, os ares, as arvores de Santa Thereza, e se
lembrou que, por estas terras, já tinham errado tribus selvagens, das
quaes um dos chefes se orgulhava de ter no sangue o sangue de dez mil
inimigos. Fôra ha quatro seculos. Olhou de novo o céo, os ares, as
arvores de Santa Thereza, as casas, as igrejas: viu os bondes passarem;
uma locomotiva apitou; um carro, puxado por uma linda parelha,
atravessou-lhe na frente, quando já a entrar do Campo... Tinha havido
grandes e innumeras modificações. Que fôra aquelle parque? Talvez um
charco. Tinha havido grandes modificações nos aspectos, na physionomia
da terra, talvez no clima... Esperemos mais, pensou ella; e seguiu
serenamente ao encontro de Ricardo Coração dos Outros.



Todos os Santos (Rio de Janeiro), Janeiro--Março de 1911.



*** End of this LibraryBlog Digital Book "Triste Fim de Polycarpo Quaresma" ***

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