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Title: A nossa Gente
Author: Queiroz, Francisco Teixeira de
Language: Portuguese
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*** Start of this LibraryBlog Digital Book "A nossa Gente" ***


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                           _COMEDIA DO CAMPO_


                             A NOSSA GENTE



    =Parceria Antonio Maria Pereira=|(LIVRARIA-EDITORA)|_50, 52—Rua
       Augusta—52, 54_


                      Obras de TEIXEIRA DE QUEIROZ
                            (_Bento Moreno_)


                            COMEDIA DO CAMPO

                               (ROMANCES)

     I —Contos—1 vol. (ultimos exemplares)                           500

    II —Amor Divino—1 vol. (ultimos exemplares)                      500

   III —Antonio Fogueira—1 vol.                                      500

    IV —Novos contos—1 vol.                                          600

     V —Amores, amores...—1 vol.                                     600

    VI —A nossa gente—1 vol.                                         500


                            COMEDIA BURGUEZA

                               (ROMANCES)

     I —Os noivos—2 vol. (nova edição com o retrato do auctor)      1000

    II —Sallustio Nogueira (exgotado) 1 grosso vol.                 1000

   III —D. Agostinho—1 vol.                                          600

    IV —Morte de D. Agostinho—1 vol.                                 600

    V— O famoso Galrão—1 vol.                                        600


       Arvoredos—(Contos escolhidos, edição diamante, com            800
       estampas)


       As minhas opiniões—(Estudos psychologicos e sociaes) 1        600
       vol.


       O Grande Homem—(Comedia, exgotada).

                                -------

                             EM PREPARAÇÃO

                               (ROMANCE)

                         =A Caridade em Lisboa=

                          (_Comedia burgueza_)



                           _COMEDIA DO CAMPO_

                           (SCENAS DO MINHO)



                             A nossa Gente


                                  POR
                          TEIXEIRA DE QUEIROZ
                            (_Bento Moreno_)



                                 LISBOA
                     PARCERIA ANTONIO MARIA PEREIRA
                          (_Livraria-editora_)
                       50, 52—Rua Augusta—52, 54
                                  1900



                      La plupart des drames sont dans les idées
                      que nous nous formons des choses. Les événements
                      qui nous paraissent dramatiques ne
                      sont que les sujets que notre âme convertit en
                      tragédie ou en comédie, au gré de notre caractère.

                      H. DE BALZAC.—_Modeste Mignon._


                                 LISBOA
             Typographia da Parceria Antonio Maria Pereira
                           _11—Apostolos—11_
                                  1899



                            SANTA MARGARIDA


                             PRIMEIRA PARTE


                                   I


Era adoravel no berço pela sua tranquillidade feliz: esse primeiro anno
de existencia passou-o a mammar e a dormir, deixando de mammar para
dormir, e interrompendo o dormir só para mammar. Nos curtos intervallos
d'estas occupações sérias mostrava pouca vivacidade de caracter: para
tudo e para todos olhava com tal incomprehensão, que se julgou que fosse
doente, ou de somenos intelligencia. Pouco mais do que a planta que
vegéta apegada á terra, e que só estima a terra que a nutre; pois o
unico apego ou affeição manifestado n'este primeiro periodo de vida, foi
pela ama, a Antonia, mulher do caseiro, e desdenhava os afagos da mãe
verdadeira, preferindo-lhe os d'aquella que a sustentava de leite. A boa
creatura ufanava-se com isto e no intimo julgava-se com melhor parte na
maternidade de Margarida do que a propria D. Claudina, que a déra á luz.
Este ciume levou-a a dizer ao seu homem, que mais queria aquella menina
do que ao seu Zé, cuja creação entregara a uma irmã, para tomar conta da
filha dos patrões, como estava assente e ajustado que fosse, mesmo antes
dos dois partos. E justificava-se:

—Pois se ella é tão minha amiga, que não póde estar um só instantinho
sem mim!... Meu rico anjo!... Se accorda e me não vê, logo chora que é
grande matação. Lá o meu rapaz era muito mais bravo e até ruim. Dava-me
cada dentada!... Havia noites, que eu não pregava olho por causa d'elle.

Assim correu o primeiro anno; mas quando se entrou no seguinte e pela
volta dos quatorze mezes, começaram para a misera Antonia noites
difficeis e tormentosas com o rompimento das presas. Tudo que até ahi
fôra doçura de caracter, se transformou em rabugem insupportavel.
Quantas dôres não soffreria a pobre creança para chorar continuadamente,
de dia e de noite, que nem se comprehendia como tivesse folego para
tanto!... A ama aguentava com heroicidade e lagrimas as mordeduras no
peito, que chegavam a fazer-lhe sangue. Os medicos prohibiram o desmamme
n'esta grave crise, que foi tão violenta e alarmante, como qualquer
perigosa molestia. Esperava-se que isto passasse; decerto havia de
passar e passou, depois de ter durado tres longos mezes, com a creança
entre a vida e a morte. Não lhe faltaram com nenhuma coisa que podesse
minorar aquelle soffrimento horrivel: além dos medicos que vinham ambos
todos os dias, foram requeridos os mais afamados e milagrosos santos da
visinhança; e consultadas as feiticeiras mais sérias, que predisseram
com grande tino e sagacidade, sobre cueiros e camisinhas da innocente
Margarida. Mas n'esse periodo atroz dos tres mezes tudo parecera
infructifero: as convulsões eram aterradoras, a febre continuada, o
emagrecimento implacavel! As honras da victoria, por fim, couberam a
santa Margarida, padroeira da capella da casa, cujo valimento
imploraram, adiantando-lhe uma illuminação de velas de cera em oito dias
e oito noites contadas hora a hora. As primeiras reconhecidas melhoras
declararam-se exactamente no fim d'este espaço de tempo, e por tal
motivo houve depois missa cantada em acção de graças e sermão, em que o
padre José Pitança disse coisas maravilhosas ácerca do incontestavel
milagre.

                  *       *       *       *       *

Passara o perigo e com elle todas as afflicções n'aquella casa. A
creança melhorou, entrando n'uma phase de saude regular. Voltaram-lhe as
bellas côres do rosto. Acordou d'esta especie de lethargia com
vivacidade irrequieta nos olhos e signaes de esperteza em todo o
semblante, o que até ahi se lhe não tinha notado. Os paes viviam mais
contentes do que nunca, pois que a filha lhes fôra restituida
accrescentada em espirito e saude. Antonia é que não seria completamente
da mesma opinião, visto que a sua querida menina já não era tão meiga e
docil de caracter. Estava uma insupportavel traquina: tinha muito genio,
um frenesi permanente lhe dominava a vida infantil, custava muito a
aturar. Os nervos ainda se lhe exacerbaram e o querer tornou-se mais
irascivel, quando aos sete annos veio uma segunda crise de doença.
Aquelle pequenino rosto, uma oval delicada que podia conter-se na exigua
mão d'uma fada; aquella bocca pequenina e vermelha como um botão de
rosa; os dois olhos negros como duas amoras... tudo se transformara a
ponto de parecer um rosto feio, com dentes transitoriamente deseguaes e
em posição cahotica, beiços grossos da inflammação, e olhares violentos
e maus. A misera Antonia passou n'este periodo amarguras desconhecidas:
eram mordedellas, beliscões e pancadas com que a mimoseava esta sua
filha de leite. Não socegava, nem de dia nem de noite. O seu dormir
d'agora, era tão vario e turbulento, que mesmo durante o somno seguia a
encarniçada batalha da vida, com gargalhadas, choros, gritos, gestos e
palavras de violencia, como se estivesse acordada. A paciente ama andava
constantemente a pé com um frio de lobo, para a cobrir; pois
considerava, que, se a pequena lhe apanhasse algum resfriamento, ella
mais do que ninguem pagaria o mal com vigilias e canceiras. Durante
essas longas horas de silencio, á luz tremula da lamparina que havia no
quarto commum, escutando o vento que uivava nas carvalheiras da matta e
a chuva que grazinava no telhado e nas vidraças, é que a humilde serva
tinha os seus desabafos deante da imagem da Virgem, que estava no
oratorio:

—Mesmo uma cabrita!... Não é do meu leite... não! Isto... trocaram-m'a
por outra. Se esta Nossa Senhora a levasse para a sua companhia...

Mas vinham-lhe logo idéas de arrependimento, por causa de taes
arrenegos. Creara-a ao seu peito e lembrava-se com amor das consolações,
que Margarida lhe dera no primeiro anno de amammentação, quando era
meiga como um cachorro recem-nascido, formosa como um anho de lã branca.
Não se lhe desvanecera ainda da pelle a sensação deliciosa d'aquelle
contacto setinoso; no mamillo sentia ainda o sugar angelico que lhe
inebriara de caricias todo o corpo e até, por vezes, a tinha adormecido
com deleites (como dizem que produz a cobra manhosa, que magnetisa a
teta ubere de que se sustenta ás furtadelas). Então Margarida era uma
bolinha de carne, que dava gosto mostrar a toda a gente, e com quem
appetecia dormir quando ella se mettia pelo corpo da ama dentro, feita
n'um novello, os joelhinhos proximo do queixo, as mãosinhas agarradas na
mamma com medo que lhe fugisse. Taes coisas nunca esquecem, deixam, na
memoria de todo o corpo, impressão de suavidade e doçura tal, que
impossivel é olvidal-as, mesmo quando surjam novos factos de natureza
varia a contradizel-as. Foi por causa da primeira crise de dentição, que
Margarida mammou muito para além do anno; e ainda para maior mal,
Antonia continuara-lhe este vicio bem mais tempo do que se suppunha. Já
o peito estava sêcco; a menina, que dormia com ella, não pegava no somno
sem que tivesse a chucha na bocca e fazia-o com tanto geito e goso que a
ama lhe dizia:

—Sua lambona! No dia em que se casar ainda ha de pedir d'isto... Caso é
que parece correr-lhe...

E corria e ella deixava correr, pois que n'esse sugar improficuo e
vicioso, a boa mulher, além de não querer contrariar Margarida,
encontrava a lembrança de tantas meiguices passadas, que até lhe vinham
lagrimas de contentamento. Se ao despegar a creança a bocca, por cahir
em somno, ella reconhecia no bico do peito algumas gottas tiradas do seu
sangue, vinham-lhe assomos de ternura, em que perdoava todas as
rabinices do dia. Foram n'este viver defezo até aos cinco annos da
pequenita, pois Antonia só assim encontrava meio de lhe dominar as
crises de genio violento. Quando a via com o diabo no corpo, fechava-se
com ella no quarto ás escuras e lá perpetravam o seu crime. Mal pensava
a ama, que com tal proceder, concorria para tornar aquelles nervos (já
de sua natureza vibrantes e sempre álerta para explodirem como centelhas
electricas) exigentes e melindrosos, logo no começo da vida! Pois assim
se formou aquelle cerebro excentrico e phantasioso: ora illuminado de
alacridade estrondosa e communicativa, ora obscurecido por tristeza
bronca e inconvivente; hoje da suavidade doentia da rola amorosa, ámanhã
da rudeza do milhafre accommettendo com as garras e o bico. Quando presa
de melancolia, procurava escuras sombras nos arvoredos da matta contigua
á habitação, secrestando-se assim do convivio de todos; n'outras
occasiões, com a mente jubilosa praticava innumeras temeridades—subindo
a arvores e a telhados, provocando os viçosos bezerros que pasciam no
prado, soltando os sanhudos cães de guarda para accommetterem pacificos
transeuntes e os pedintes que vinham ao portal. Porém alegrias ou
tristezas eram-lhe de pouca dura: simples fulgurações de nervos, que
logo se apagavam após ephemero clarão. Appareciam frequentes e
ligavam-se taes estados de sentir contrarios, mostrando, no emtanto,
accentuado pendor para tudo que fosse bulha. Traziam tambem essas
rebeldias de nervos caracter de contagiosas ou suggestivas para as
outras creanças, que a imitavam e seguiam com enthusiasmo e obcecação,
collaborando com ella em obras destruidoras contra animaes, flores ou
mobilia. Esta pequena imperatriz da maldade impunha auctoritariamente a
imitação do seu procedimento tyrannico e contundente. Os paes eram
ricos, queriam-lhe muito e consentiam-lhe tudo; por isso encontrava
sempre como victimas para esgotar a turbulencia da sua alma um velho
creado paciente e tonto, um cão gottoso e indefeso que dormia juncto da
lareira, um pobre jumento aposentado, que soltavam para comer nos
vallados. Porém a passividade soffredora, que taes entidades lhe
offereciam, mais lhe fazia referver o sangue; não se ressentirem das
suas provocações tomava-o como de pouca consideração pelo seu poder; o
soffrimento alheio causava-lhe regosijos de que dava mostras com animo
contente e satisfeito. Quem podia, evitava-lhe o contacto; mas os
creados e dependentes faziam-lhe vontades e muitas festas deante dos
paes; diziam-lhe palavras de carinho e agradaveis; louvavam-lhe a
docilidade de genio e animo dadivoso; porém, não poucas vezes, Margarida
lhes commentou os dizeres com esta que tal rabinice:

—Tu dizes isso para a mamã te ouvir...

E D. Claudina sempre a corrigia assim:

—Bem sei que és ruim como as cobras; mas és minha filha...


                                   II


Os doze annos de Margarida, coincidindo com o domingo de Paschoela, em
que se celebrava o orago da capella da casa, foram festejados com
demasiada pompa. Quem primeiro lembrou o ajustado d'essas duas datas foi
Antonia, e D. Claudina assignalou a importancia do facto, por serem os
doze annos a edade que marca a transicção da inconsciencia infantil,
para a responsabilidade de quem já repara na sombra. Talvez ambas
tivessem o pensamento reservado de pedir a collaboração da santa, com o
fim de conseguirem qualquer mudança favoravel no caracter irrascivel da
creança!... Tem-se visto milagres d'estes e maiores; nunca se deve
desesperar da possibilidade da intervenção do poder divino nos destinos
humanos. Posta a questão de assim conseguirem para a alma de Margarida
uma correlação de belleza com a do seu rosto, que era, em certos
instantes, d'uma belleza seraphica, não se pouparam os paes a larguesas.
Formaram plano grandioso: haveria missa a tres padres, com Gloria e
Credo cantados por côro escolhido; haveria sermão de circumstancia
pregado por qualquer padre de nomeada, que viesse de Braga, onde os ha
bons; haveria fogo preso e musica de vespera; romaria e procissão com
anjinhos no dia. Isto pelo que toca ao divino: no que diz respeito ao
profano, grande jantar com numerosos convivas, uma especie de baile no
domingo á noite, que se realisaria na grande sala de ordinario destinada
a estendal e armazem das fructas, batatas e feijão, que se guardavam
para todo o anno.

Quanto mais se martellava n'isto, mais se estendia e melhorava a
primitiva idéa. João da Costa assentou em que, para celebrar
condignamente a juncção da festa da padroeira da sua capella com os doze
annos de sua filha, devia attrahir muito povo de perto e de longe e por
tanto encommendou ao Zé Osti, o mais afamado fogueteiro do Alto Minho
(onde se conhecem dos primeiros) um fogo preso chibante! Sabia elle
muito bem que sendo conhecido este promenor, não ficariam em casa senão
os muribundos; porque até os cegos e paralyticos haviam de concorrer.

Não se enganara: era de vêr como dos campos em lavrada, se levantavam
alaridos de alegria no dia em que atravessaram as aldeias visinhas o
proprio filho do Zé Osti, capitaneando uma duzia de mulheres, que á
cabeça transportavam as diversas figuras e o abundante fogo do ar.
Tambem João da Costa se não esqueceu de mandal-os esperar pela musica
que tinha contractada, e que á frente vinha annunciando o caso com o
estrondo dos seus metaes, tocando grandiosa marcha. A galhardia dos
trombones, figles e cornetins, lardeados pelos alegres clarinetes e
flautas soprados com alma e coração, e tudo esfuziado por um soberbo
requinta que fôra musico do tres de Vianna, formavam um tal conjuncto
alegre e ostentoso, adeante dos bombos e pratos, que era de deixar bois,
charrua e arado, para vir ao caminho gozar, admirar e applaudir! Tudo
merecia a imaginação copiosa e deslumbradora do afamado fogueteiro! As
formosas moçoilas que abandonavam, por momentos, as sacholas e vinham
acompanhadas dos namorados ver as ricas peças, bem o demonstravam
exclamando:

«Olha a chieira d'aquella macaca de chapeu de flôres! Veremos se terá a
mesma, quando lhe rebentarem as bombas por baixo da saia de balão.»

«Olha o barbeiro a amolar as navalhas! No sabbado á noite é que as hade
amolar depressa!...»

«Olha o janota de chapeu alto, que grande charuto leva na bocca! Aquillo
é que hade esguichar fogo, quando lh'o accenderem.»

«E o painel de Santa Margarida cheio de lagrimas de côres á roda! É obra
apilarada! Não vêdes gentes, como se parece com a morgadinha?!...»

Do fogo do ar é que se presumiam coisas de espavento, pelo que se vira
na passada romaria da Agonia. Então deitaram-se foguetes com cabeças
maiores do que as de gente, e houve por momentos receio de que pudessem
estremecer e toldar os vinhos que ainda estavam envasilhados, ou aluir
qualquer penedo mal seguro! Todos tinham tamanho respeito aos monstros,
que o Zé Osti, não encontrando nas localidades homem bastante corajoso
para lhes chegar a murraca, nas occasiões se fazia acompanhar por um
especial, que tinha o craneo por forma duro e resistente, que não
haveria receio de que lhe rebentasse o sangue pelos ouvidos, ou se lhe
voltasse a mioleira, se por acaso um dos foguetes não subisse e lhe
estalasse aos pés.

Era um sugeito atarracado e musculoso, que para exercer o mister tinha
de arroxar o craneo com tres lenços em volta. No intuito de prevenir
desgraças esses foguetes gigantes, deitavam-se sempre longe do ponto da
romaria, e para agora haviam escolhido o conjuncto especial de penedos
chamados o Castello, com o fim de que o estrondo não encommodasse.

                  *       *       *       *       *

Á chegada da musica e do fogo, a creadagem de João da Costa, logo
appareceu no largo da entrada a distribuir copos de vinho, por toda
aquella gente que vinha suada. Foi um despejar como nunca se vira: «e
vivam os senhores fidalgos, por muitos annos e bons», «e viva a senhora
morgadinha que ha de arranjar um namorado de truz!». Em quanto houve
mollete nos cestos foi estacinhar e beber; achando-se já fartos,
recomeçou a musica com tanta furia, que até parecia que se estava no dia
da festa. O fogueteiro para mostrar a sua fazenda descarregou-a ali
mesmo no quinteiro, pondo as figuras em correntesa, para que todos as
vissem e admirassem. Havia realmente progresso e modernice quer nas
attitudes, quer no vestuario, pois tudo era mais humano e natural. Os
corpos com outros geitos e menos rigidos; nas roupas, os papeis
semelhavam fazendas—de seda pareciam as saias e os corpetes, de casemira
as calças e casacas. Até era pena que tão bellas coisas fossem
destinadas a rasgões violentos de bombas e a arderem no meio da
alacridade do povo! Tudo tinha, porém, o fim de augmentar a
magnificencia da festa em honra de Santa Margarida e dos formosos doze
annos da sua afilhada. João da Costa desceu com alguns amigos a apreciar
de perto tanta maravilha e perfeição e com um gesto orgulhoso de cabeça,
indicando um monte especial de foguetes perguntou:

—São os taes?

—Sim, senhor—respondeu o Osti.

—Parecem cabeças de toiro! Subirão?

—Como perdises que encastellem, verá! Iriam ao ceu se fosse preciso.

Eram as faladas maravilhas, timbre e gloria do famoso artista. Os
creados da casa, com as canecas vasias na mão pasmavam deante d'ellas,
considerando absortos, que alma damnada teriam dentro, para com o
estrondo ao rebentar, metterem medo a quem estivesse mesmo a grande
distancia.

Como fosse dia de sexta feira a musica retirou-se depois do beberete,
para voltar na noite seguinte, que era a do arraial. Antes havia a
ultimar os trabalhos de ornamentação da capella e escolher bem o sitio
do fogo preso, para que fosse gosado por toda a gente. Porém com o fim
de não haver descontinuidade no enthusiasmo pela apregoada festa,
chegaram n'este dia pela volta das onze da manhã os tres zabumbas, as
seis caixas e a respectiva gaita de folles, que João da Costa
encommendara, e entraram na freguezia d'um modo ovante, tocando com
verdadeira imponencia, para despertar a alegria nos corações.
Atravessando o povoado em passo lento, solemne e compassado enchiam os
ares com o estrondo magnifico dos seus instrumentos, e logo se dirigiram
á casa de habitação dos festeiros para os saudar. Então ali é que foi o
bom e o bonito, depois de despejarem mais de um cantaro de vinho sobre
uma boa duzia de postas de bacalhau e brôa!... Como ficassem alegres e
satisfeitos, quizeram mostrar melhor a sua gratidão e artes; por isso se
proposeram a exhibir todos os segredos dos seus instrumentos. Bombos a
um lado, caixas ao outro e gaita no centro, começou o grande apparato!
Os zabumbas formavam um fundo de quadro de paisagem colossal e
montanhosa; os seis tambores pareciam alegres comadres a chasquear e a
ralhar; o da gaita de folles pavoneava-se desvanecido com ella nos
braços, encostada ao hombro como um tropheu!... Veio a familia e vieram
os convidados á janella; o rapazio gaudiáva dando cabriolas. N'um certo
momento dois dos caixas, que andavam sempre em rixa, separaram-se dos
companheiros para repenicarem com todo o primor, dobrando o rufo com
elegancia e mestria. Era um florear de baquetas em tom cadenciado e
tremulo sobre a pelle distendida das fallecidas cabras. Mostravam
prestesa, pulso rijo e flexibilidade de musculos. Havia em tudo aquillo
enthusiasmo e coração de valentes, o que se tirava da energia facial com
que se combatiam, procurando reciprocamente cançar-se. No mais vivo da
sequestra, um dos de zabumba, que tambem presumia de sua fama, saltou
para o meio do terreiro e principiou muitas variações, saltando e
pulando com mil requebros. Era homem agil e physionomia viva de olhos
bugalhudos. Com a baqueta da mão direita feria o instrumento em todas as
posições imaginaveis: por cima da cabeça, com elle horisontal á ilharga,
suspenso nas costas, deitando-se no chão com elle sobre o ventre! Os
companheiros seguiam-lhe a destresa de athlecta, com sorriso sceptico e
molle, tirando dos seus bombos sons mais baços.

O gaiteiro vendo applaudidos por todos os assistentes aquellas
galhardias, não lhe consentiu o animo ficar em obscuridade. Era homem
baixo e grosso, physionomia ossea, mas esperta. Filho d'outro de
Compostella, herdara de seu pae o instrumento e a prenda de o tocar com
distincção. Afastando-se dos zabumbas e caixas triviaes, principiou a
rabear entre os tres que já se exhibiam com apparato e luxo de ademanes.
Quiz tambem chamar sobre si a attenção dos festeiros. Com o ventre do
instrumento impando, requebrava-se em passo cadenciado e dolente de
dança gallega: tirava; ora sons plangentes e maguados como gemidos
tristes; ora um psalmear monotono e roufenho, que ondulava no ar como o
vôo pesado d'um ganço; ora guinchos agudos como estylêtes ou espinhos
que entrassem nos ouvidos. Saracoteava-se com o instrumento ao collo,
mechendo os dedos n'uma especie de canudo de flauta e soprando-lhe no
ventre por um bico de cegonha.

Os bombos a falar grosso, as caixas a rufar certo, o gaiteiro a tocar
variado, tudo n'uma paisagem primaveril de folhas tenras, um bom e
carinhoso sol de primavera a aquecer, era deveras divertido e
excentrico! Uma atmosphera empregnada dos aromas de mil plantas, tornava
esta sexta feira de Paschoela risonha e feliz, o que bem se reconhecia
dos semblantes de toda essa gente, pois tinha alma para o sentir.


                                   III

Por todas as disposições se reconhecia que este excepcional domingo e
estes doze annos de Margarida viriam a marcar data na historia da
familia. Os convidados, amigos e parentes de João da Costa, que já
muitos tinham chegado para assistir ao arraial, mostravam-se
interessados por verem tanta gente assim atarefada e remexida: eram
todos os creados da casa, os armadores da capella com Zé Maximo á
frente, que tambem mandava nas illuminações, o fogueteiro com os seus
ajudantes a abrirem covas para o fogo preso, os dos zabumbas, os das
caixas e o gaiteiro... todos a alarmarem a freguezia e redondezas. Uma
balburdia, uma abundancia, uma grandeza sem par!... O amor, louco e
incondiccional, d'aquelles paes por sua filha, explicava o turbulento
apparato; mas, de todas as pessoas ali reunidas, uma parecia menos
gostosa do que se passava e era a festejada creança. Agitava-se é certo,
andava no meio d'aquellas coisas, com outras meninas e rapazes da sua
egualha; porém reconheciam-n'a possuida d'uma das suas crises de
tristeza e inconvivencia, como quando fugia para a matta, a esconder-se
na espessura dos arvoredos, para evitar o contacto de gente, que lhe
melindrasse a sensibilidade. A mãe, que a perscrutava, momento a
momento, percebera, pelo arrepanhado das linhas faciaes, pelo seu olhar
frenetico, que Margarida soffria uma sezão de impaciencia; no seio
decerto lhe crescia um desejo inconstante, e logo que poude tel-a entre
os braços perguntou-lhe:

—Que tens tu, minha filha, que andas tão esquisita?! Falta-te alguma
coisa?

—Não sei... Falta!...

—O que?...

—Não sei... Falta...—repetiu desprendendo-se, para se ir misturar aos
que admiravam o fogo disposto no quinteiro. As creanças faziam os seus
commentarios, comparando estas com outras figuras que tinham visto arder
em romarias, e dirigiam as suas observações a Margarida em tom
bajulador, que ella acceitava com sobranceria de dona. João da Costa,
homem prevenido, vendo-as assim zaranzar, e temendo qualquer semsaboria,
disse ao filho do Zé Osti:

—Olha lá. Não seria melhor recolher tudo na adega?! Póde estragar-se
qualquer coisa, entendes?...

—Mais que isso, póde haver trapalhada. Um lume prompto, a ponta d'um
cigarro dentro d'aquelle cesto (indicou-o com o dedo), levava tudo pelos
ares, emquanto o diabo esfrega um olho...

Abriu-se a ampla porta, que tinha fechadura valente. Ali ninguem
entraria sem consentimento e o morgado accrescentou para o fogueteiro:

—Tu que és responsavel ficas com a chave. Ninguem mais tem que cheirar
n'estas coisas.

O filho de José Osti, com o seu pessoal, é que collocou dentro dos dois
lagares o fogo, arrumando-o pela sua importancia. A um lado o que era
figurame, bem separadas as peças, para se não destruirem os enfeites que
seriam o encanto da vista; ao outro o fogo do ar, as taes abantesmas com
bombas do tamanho de cabeças de toiro. O cesto mysterioso e suspeito, já
assignalado como coisa de circumstancia e perigo, foi collocado a um
canto com a seguinte recommendação do Osti, dita em tom de grande preço:

—São os trincafios, a namite, as lagrimas, a polvora fina e outras
coisas... Isso póde incendiar-se e será uma de mil demonios!...

As creanças, na presença de quem a recommendação fôra feita, ficaram
maravilhadas, medrosas e attentas. Que coisas terriveis e bellas não
estariam debaixo d'aquella toalha de branco linho, cobertura do modesto
cesto!... Os grandes olhos de Margarida haviam-se illuminado de fulgor
cupido e excepcional, logo ao primeiro aviso no quinteiro; agora
fixaram-se com uma absorpção intensa no logar onde haviam pousado o
objecto defezo. Com um impulso que lhe guiava a vontade, a sua pequena
mão dirigiu-se á toalha branca, para a levantar, mas o fogueteiro
susteve-a, dizendo:

—Ó menina! Ahi não se bole! Não ouviu?!...

João da Costa incutiu-lhe maior curiosidade e pavor:

—Ó filha! Nem te approximes sequer!...

—O que aconteceria se eu bolisse?—perguntou com os olhos meigos e
risonhos fitos no Osti.

—Podia-se incendiar tudo, n'um instante, como um relampago—explicou.

—Então havia de ser bonito...

—Isso como um ceu aberto!—encareceu o artista.

Todos sahiram. O grande portão, por onde podia entrar um carro com uma
dorna, fechou-se com estrondo magestatico. João da Costa depois de, por
sua propria mão ter dado volta á chave, entregou-a ao fogueteiro:

—Toma-a, que és o responsavel.

O rosto de Margarida soffreu nova transfiguração: não era de alegria,
nem de tristeza o sentimento que exprimia, mas de reserva e idéa fixa
que lhe obcecasse o cerebro. Fugiu para o seu quarto, abandonando os
companheiros de brinquedos e ali se quedou com a vista absorta na cal
branca da parede... Sorria deliciosamente a uma visão angelica, ou
carregava o sobr'olho n'uma expressão voluntariosa. Sentada na borda da
cama, o queixo levantado na pequenina mão, seguia miragem ou chimera,
que lhe encantava a mente, levando-lh'a a voar pelos infinitos espaços.
Como se houvesse tomado qualquer resolução, desceu de onde estava, bateu
imperiosamente com o pé no chão e pronunciou:

—Pois hei de ir lá vêr o que é!...

Sabia perfeitamente como poderia entrar na adega, mesmo que a porta
estivesse fechada. Quantas vezes, no jogo das escondidas com outras
creanças, ali se sumira sem que ninguem a podesse encontrar!
Ensinara-lhe o caminho uma cadella, que lá dentro tivera a sua ninhada,
e que a occultas a ia amammentar, entrando por um postigo da face
poente, que conservavam sempre aberto para arejo dos toneis. Trepando
pela parede, como muitas vezes praticara, entraria no antro do mysterio,
e sosinha (como era seu desejo) podia admirar o que fôra prohibido a
toda a gente. Deviam ser maravilhas nunca vistas, deslumbramentos nunca
apreciados!... Que intenso prazer lhe não dava, infringir ordens
terminantes de seu pae e do fogueteiro! Um doce e longo effluvio lhe
percorria todos os nervos; antegostava com delicia incomparavel o
instante de poder tocar de leve os encantos que lhe fizeram conceber!
Descobriria o segredo d'esses deslumbramentos, que recamavam o negro
manto das noites d'arraial, com estrellas de côres! Saberia o que eram
em germen as lagrimas, antes de escorrerem em escadeas de luz e de
maravilharem a imaginação! E era-lhe devido este goso pela posição
especial que occupava em tal festa. Não era ella a senhora, a festeira,
a pessoa que deveria mandar sem estorvos em tudo? Estremecia de
contentamento, ao delinear na mente o furtivo accesso pelo postigo
grande, por onde entrava a cadella, quando ia amammentar os filhos.

Realmente, ao lusco-fusco d'esse dia, no periodo em que as sombras
principiavam a cahir solemnemente das montanhas com todo o seu poder de
mysterio, Margarida sahiu de casa com a alma aguilhoada para aclarar o
enigma. Munira-se d'um coto de vela de cêra que tirou do oratorio, d'uma
caixa de lumes-promptos, e foi sem ser presentida. Logo que se encontrou
dentro da adega, diluido o seu corpo na treva, accendeu a luz para
retomar a propria individualidade. Á vista do pequeno cesto coberto de
toalha lavada e branca (qual pacifico e substancial merendeiro) o
entendimento entorpeceu-se-lhe com a força da curiosidade. Seria
possivel estarem ali escondidos os maravilhosos lumes, que, abertos no
escuro da noite, offuscavam o scintilar das estrellas?! Fontes de luz,
variadas no brilho e nas côres; descenso de adornos do firmamento, que
duram instantes; maravilhas de pequenos meteoros, que, ondulando no
espaço como espiritos angelicos, buscam repouso glorioso; rebentos da
treva como flores luminosas de cristal; adereços de pedras preciosas
jorrando do interior do céu... era o que ella presumia sob a modesta
toalha branca... Quantas vezes os olhos do seu corpo não haviam cegado
com os deslumbramentos d'essas lampadas sagradas suspensas sobre a
Terra! As radiantes lagrimas, quando brancas, parecem chuva de
claridades ou pranto celeste brotando como rozeiral de diamantes e
morrendo, depois, suavemente como beijos; quando de côres semelham
rosarios de rubis, de topazios, de esmeraldas, que transformam a treva
em interior illuminado de palacio encantado, habitação de fadas. Tudo
isto, sabia-o Margarida porque lh'o tinham revelado na prohibição feita,
e estava ali inerte sob a toalha branca. Não devia ver e averiguar o que
fosse? Correria risco quem o tentasse... mas para aquelle espirito
irrequieto e temerario, o perigo era um incitamento. Com a pequenina mão
direita, tremula de commocção que não de susto, levantou a ponta da
toalha alumiando-se com a vela acesa... O que viram os seus olhos
cubiçosos e egoistas?!... Nada, ou pouco mais: embrulhos em papeis;
alguns pequenos frascos com liquidos e tigelas com agua de onde se
mergulhavam coisas; meadas de torcidas de algodão impregnadas de
polvora, com envolucro de papel, a que chamam trincafios. Seria d'isto
que sahiam esses lampadarios aereos, que deslumbravam os olhos de tanta
gente?! Mal se podia acreditar, pois toda a apparencia era de objectos
vulgares, inertes e sem flammancia. Cheia de confiança em si e minada do
desejo de averiguação, principiou com os seus delicados dedos a remexer
todas aquellas miudesas, emprestando-lhes alguma vida, para d'ahi sahir
a acalmação da febre que lhe exacerbava a mente. Talvez que, ao seu
contacto, das substancias mortas nascessem vivas faiscas, inicio de
prodigios! Talvez!... Quem poderia dizer o contrario? Aquelle algodão
embebido em polvora e envolto em papel, muitas vezes ella o vira
encendiar-se, se lhe applicavam a morraca... Se agora lhe achegasse a
luz, talvez ardesse um boccadinho e fosse este um começo de
fascinações... Nos olhos vivos e sequiosos apparecia o signal de que tal
desejo lhe crescia no cerebro, como lavareda dominadora. Com mão timida
ainda, mas guiada por força que não podia contrariar, foi ajuntando a
chamma da vela com o ponto negro do trincafio... Apparece o primeiro
brilho e logo Margarida retira promptamente a pequenina mão, para que
não continue a arder... Mas esse ponto luminoso foi logo maior e grande,
propagou-se por todo o cesto, como um vaga-lume rabioso... Alarga-se
n'uma luz azul e viva de relampago, seguem-se estoiros e logo pavoroso e
infernal ruido, que tendo começado dentro do cesto, se propagou com a
velocidade a todo o espaço da ampla adega. Que scena phantastica,
maravilhosa, deslumbrante e cahotica, esta de um horrido estrepito no
meio de lavaredas, que vomitavam raios, esfusiando de todos os lados!...
Quem podera ver a graciosa figura de Margarida, n'esta confusão
terrivel, consideral-a-hia apparição angelica, cheia de gloria e poder
divino, dominando a confusão dos mundos, com a serenidade risonha d'um
seraphim. Estava de pé na separação dos lagares, os braços levantados em
prece sublime, olhos brilhantes e cheios de enthusiasmo, como os dos
martyres que a Deus glorificavam sobre fogueiras! Que se passaria no seu
craneo n'este instante unico!... Talvez sentisse a alma arrebatada em
fogo! talvez se julgasse levada aos infinitos paramos em ondas de luz!
talvez que esse estranho grito que da sua debil garganta sahiu, fosse a
primeira nota d'um canto de gloria!...


                                   IV

O pavor produsido pelo estrondo de bombas e morteiros a rebentarem
dentro da adega grandemente illuminada, foi cruel e estupefaciente!
Reconheceu-se o que tinha succedido; mas o que se não comprehendera
logo, era como o caso se poderia ter passado, visto a chave andar no
bolso do fogueteiro. Só espiritos malignos seriam capazes de ali ter
penetrado; pois só elles podiam conceber a execução de tamanha
catastrophe! Como as aguas das montanhas, quando collidem para um valle,
correu toda a gente para o perigo. N'um momento foi aberto o largo
portão, que semelhava a bocca de enorme forno, com o seu ventre em
chammas! O creado mais resoluto atirou-se ao meio do incendio, subiu
celere ao lagar e, de pé na borda, disse em voz tremenda:

—Jesus!... A menina a arder!...

O seu arrojo, que fôra temeridade, tornou-se loucura: sem attender a
risco, abre caminho por entre linguas de lume e estrondo de bombas, e
tomando o debil corpo da creança, como quem abraça um feixe de
lavaredas, sae com ella para o exterior, por entre gente apavorada. Logo
acudiram com mantas e cobertores, conseguindo apagar as chammas dos
vestidos de Margarida e do homem que a salvara. Porém a desgraçada
creança, sem accordo, parecia morta! Levaram-n'a para casa no meio das
afflicções de todos, especialmente dos desditosos paes e logo a despiram
com rapidez para se apreciar a extensão do mal. O debil e formoso corpo
estava intacto, menos nas partes desprotegidas pelo vestuario. A face
então!? Essa pequenina meniatura de face, que dois beijos poderiam
cobrir, agora vermelha, empolada e disforme perdera a brancura nativa e
a graciosidade de linhas, que a faziam comparar ao rosto das santas!
Todos os delicados relevos de feições tinham desapparecido nivellados em
massa confusa e pastosa, sem expressão humana. No que se transformava
belleza tão delicada, d'uma correcção tão perfeita e harmonica!...
Crestados os cabellos longos e finos, e os bem desenhados supracilios, e
as formosas pestanas, que sombreavam as pupillas; avolumado pelas
empolas o delgado e airoso pescoço... desapparecera toda a graça da viva
cabeça de Margarida. Isso que fôra encantador, prendendo a vista da
pessoa menos attenta, era massa informe e sem espiritualidade. Onde
estava o riso gracioso de seus labios tantas vezes cheios de brisas de
carinho, quantas de nuvens caliginosas de desejos?! Onde a expressão
turbulenta e dominante das narinas, exprimindo apetites rebeldes, mas
innocentes?! E as orelhas pequeninas, da transparencia da porcellana com
veios escuros nas curvas complicadas, onde estavam?! E o breve mento,
tão breve e gracioso como o da Venus de Millo?!... Tudo se desfizera e
se confundira!... Essa interessante physionomia que era jubilo, que era
rebeldia de sangue em fervura, que era signal de alvedrios intensos
gerados no limpo coração e logo subidos aos labios e aos olhos... Os
olhos!... É verdade, os olhos de pupillas inquietas, os olhos de iris
escura, mas indefinida com laivos de ceu e de mar profundos, que tinham
lampejos á noite, mysterio ao entardecer, alegria na alvorada, carinho á
luz brilhantissima do dia... que era feito d'elles?! Jaziam sepultados
sob a grossura das palpebras inflamadas. Teriam vista ao menos?...
Ninguem o sabia. A mãe de Margarida, sem accordo, como morta sobre a
cama; o pae, homem forte e vigoroso, diluia-se em pranto junto da filha
adorada. Os dois medicos que tinham corrido ao toque d'essa grande
desventura, davam consolações vagas, esperanças infundadas. O lindo
rosto de Margarida poderia voltar ao que fôra, a ser outra vez pequenino
e engraçado...—diziam. Ainda n'elle se havia de gosar a vista da mesma
espiritual belleza, que enchera de ventura o coração dos paes infelizes.
Tinham-se visto curas completas mais extraordinarias do que esta,
verdadeiros milagres no entender do povo. Os casos feios é que melhor
assignalam as victorias da sciencia. Não era já circumstancia favoravel,
que a vida tivesse sido poupada em perigo tão violento? O gentil corpo
da creança estava quasi intacto na pureza das suas linhas, na elegancia
do seu porte, na brancura da sua pelle, quando o natural teria sido
ficar reduzido a um negro carvão. Só o rosto fora principalmente
prejudicado... Certo é que no rosto reside toda a formosura. O de
Margarida era tudo que havia de mais immaterial: a bocca pequenina e
vermelha, tinha a graça; os olhos meigos e turbulentos, a inquietação
infantil; na sombra das pestanas e no desenho dos supracilios, estava o
inigma do pensamento; na pelle rosea, a mocidade; no arrojo do nariz a
constante revolta; na curva serena do mento a tenacidade... Se isto
viesse a faltar, ou se se transmudasse a rara combinação, que valeria o
conjuncto, ainda que fôra dez vezes mais perfeito do que o da estatua
grega?!... Porem como a esperança é o riso da natureza humana, e o
natural e o proprio dos que soffrem dores fundas, já os angustiados paes
principiavam a escutar com bastante conformidade as palavras de quem os
consolava. Os medicos, primeiro que tudo, pediram liberdade juncto da
pequena enferma, para largamente applicarem os meios que a profissão
lhes aconselhava. Certificaram desde o começo que Margarida não
morreria, e tocados de piedade por aquelle incomparavel infortunio,
ousaram affirmar que haviam de restituir á creança, a saude e a belleza.
A longa falta de conhecimento em que após o accidente se conservara
algum tempo Margarida, attribuiam-n'o a estado epileptico, despertado
pelo assombro de scena tão extraordinaria, como teria sido a de se ver
repentinamente cercada de chammas e de estoiros infernaes. Devia ter
sido horrendo para uma creança de doze annos, que dentro de si só devia
ter fontes de sonhos aureos e aspirações celestes.



                             SEGUNDA PARTE


                                   I

Passaram-se dias e passaram-se mezes. O soffrer longo e tormentoso
seguia lento. A physionomia de Margarida era toda uma postula. Porém de
informe nos primeiros tempos, foi adquirindo longes de vida e expressão
com os inicios cicatriciaes. Margarida queixava-se pouco; parecia que os
nervos se lhe tivessem insensibilisado, ou que na catastrophe houvesse
adquirido coragem heroica para supportar a dôr. Até os medicos se
admiravam de tanta paciencia nos curativos, pois lhe applicavam topicos
que a deviam mortificar. Notava-se-lhe fundamental mudança no caracter:
antes sempre inquieta e irascivel, agora conformada e paciente.

O padecer raro e profundo, poderá transformar a sensibilidade e o
pensamento? amollecel-os se eram duros, endurecel-os se eram ternos? Em
Margarida parecia realmente ter-se operado essa metamorphose grave: na
vida feliz e descuidosa de infancia mostrara-se sempre e sempre
insatisfeita, nunca se lhe encontrando fim ao querer e ao desejo;
chegada a desventura e martyrio excepcionaes, dormitava-lhe o espirito
em calma angelica, como se gosasse de paz e doçura celestiaes. Alguns
queixumes ainda se lhe ouviram de começo (murmureos de ave doente), em
que recorria aos nomes de seus paes e da ama que a creara, como
lenitivos e sacrarios de amor santo; porém, depois, entrou n'um periodo
de resignação e calma e os seus doze annos mostravam o juizo e a
conformidade das velhas experiencias. Em vez de confessar atroz
soffrimento, dizia palavras de consolação e esperança aos que muito lhe
queriam e eram ellas de tanto conceito e elevadas que nem pareciam da
sua juventude. Entrara, pois, n'aquelle corpo alma nova com o
infortunio: a tonalidade da voz mudara para submissa e melancolica, as
idéas appareciam como florinhas correndo leves em veio d'agua limpida.
Já não era a Margarida que sem motivo gritava, que sem razão chorava
lagrimas, que martyrisava com goso os animaes e as pessoas, que se
deliciava inventando collisões para atormentar os com quem vivia.
Accommodado o seu magro corpo no leito de doentinha, todos lhe apeteciam
o convivio pelo exemplo que dava de um existir sereno e venturoso no
meio de penas. Quando a enorme chaga, que lhe abrangia todo o rosto,
principiou a mostrar tendencias para cura, um phenomeno singular se
verificou—o ressurgimento da expressão humana, que ia apparecendo
lentamente como uma aurora. E o facto excepcional e maravilhoso dava-se,
quando tudo ainda era informe e cahotico n'aquelle rosto: nem a pelle
rosea e setinosa o purpureava, nem a bocca de gazella sorria, nem a
graciosa linha do nariz o equilibrava, nem a perfeita oval o fechava,
nem os formosos olhos... (não falemos agora dos antigos olhos de
Margarida). O que se ia vendo era a cicatrisação, que no seu progresso
confuso já mostrava larga costura com manchas lisas, enrugamentos
complexos, tecidos arrepanhados formando sombras. Assim estava a testa,
a face, o nariz, o mento, as mimosas orelhas, o airoso pescoço... Porém
de tudo isso que era sem fórma e sem graça, resaltava tal suavidade de
expressão, qualquer coisa de ethereo e sublime, de suprahumano e
bondoso, que só pelo transluzir d'uma alma candida e pura n'um rosto, se
póde comprehender. E ainda lhe faltava a belleza dos seus olhos, vivos
feixes de luz sempre em ardencia, e não tinha a pupilla nervosa e sempre
movediça na iris, tão variamente colorida; porque esses olhos, absolutos
senhores n'aquelle semblante expressivo, eram agora apenas dois globos
leitosos, rolando senilmente dentro das orbitas, por traz das palpebras
densas. Os medicos, para não desilludirem os atormentados paes e a ama
Antonia, que lhe queria tanto como se fôra mãe completa, ainda agora os
consolavam com mentirosas esperanças. As bellidas, simples pannos
brancos lançados deante da vista, poderiam desapparecer com o
tempo—diziam. Quando elles não podessem ultimar a cura, outros medicos
havia especialistas de taes molestias, que operavam maravilhas, que
pareciam milagres. D. Claudina escutava-os, porém muito mais se fiava do
alto poder divino, do que de homens grosseiros e barbaros, que se
limitariam a rasgar com ferros os olhos de sua filha! Por isso
comprehendendo como indispensavel a intervenção superior do ceu (a unica
forte e valiosa) continuou com mais fervor as promessas de romarias, de
festas, de offerendas a todos os afamados medianeiros celestes, que se
nomeavam perto e longe do logar onde viviam. Informações que aos ouvidos
lhes chegassem de curas de pequena ou grande monta por este meio
obtidas, serviam logo a D. Claudina e a Antonia de pretexto para
proporem mais resas e penitencias, jejuns e novenas, oblatas ao divino e
á Virgem sua mãe, que cumpririam verificado o beneficio. Isto não
obstava á assidua frequencia da capella da casa, onde se demoravam em
oração fervorosa ao orago, Santa Margarida, e a todos os santos da
celestial côrte. E tamanha e tanta era a fé, que em cada manhã lhes
renascia no peito a doce esperança e logo que sentiam a doentinha
acordada do seu longo repouso, vinha a interessada mãe perguntar-lhe:

—Sentes-te melhor, filha?

—Sinto, minha mãe.

—E já me vês?

—Vejo.

—Com a tua vista?

—Com a minha alma e... e tambem um pouquinho com a minha vista—rematava
sorrindo.

Era consolador ouvir-lhe isto, quando o sol raiava no ceu! Que affecto e
que amor taes palavras continham! Porém amargava-lhes no final o
desengano, ainda que suavisado pela ternura da voz. A dolorosa realidade
permanecia. Era triste ver Margarida, com os dois olhos baços e leitosos
como duas enormes perolas a moverem-se lentamente na busca de claridade
e sem deixarem passar a vista, que estava por tras da nevoa!
Compensava-os (bem insufficientemente) o reconhecerem que na larga
cicatriz da ascosa chaga, havia uma vida nova e uma luz nova de vida
superior. Quando a doentinha falava era de ver que as suas palavras
semelhavam lampejos de luar n'um abysmo de trevas. Habito ou
idealisação, certo era que esse rosto, sem feitio de rosto, tinha alguma
coisa de raro e sublimemente espiritual. D'esta fórma suave, lenta e
dôce, subtil como se fôra um sopro vital, em todos ia entrando a
convicção de que a mente de Margarida, após a cegueira se sublimara,
illuminando-se de divinos clarões, que a predestinavam para altissimos
fins. Denunciava-o os seus conceitos serem de sentimento e bondade
infinitas, e isto maravilhava pela precocidade. N'aquella voz
percebia-se musica de suavidade angelica, cheia de ternuras e modolações
aprasiveis. Encantava estar junto d'ella, escutal-a, conhecer como ella
recebia a inspiração divina, que vinha como pomba esvoaçar-lhe sobre a
cabeça. Não balbuciava uma queixa, nem uma saudade do mundo de que se
conhecia separada para sempre. Ao contrario: confessava-se mais feliz e
ditosa n'esta densa noite, do que o era na luz do tempo em que
irrequieta, nervosa, exigente rebentava em lagrimas de cólera, á menor
contrariedade. Agora nunca chorava!... Não saberão os cegos chorar? As
lagrimas são a belleza dos olhos, quando como diamantes deslisam pelas
faces dos que morrem d'amor; porém, as lagrimas tambem são signaes
d'infortunio, se, como pingos quentes de chumbo escaldam a pelle de
infelizes atormentados. Margarida não tinha nem edade para amar, nem
experiencia para os grandes infortunios; por isso não precisava de
lagrimas. Aquella mente, lago sereno em calma ventura, não tinha a
encrespal-a ventos que só entram por ambiciosas e prescrutadoras
pupillas.

Dulcificavam-se, pois, para a convivencia dos seus achegados e amigos
que a adoravam, aquella alma, o caracter, o temperamento. Lamentavel que
taes olhos tivessem perdido o seu raro poder de fascinação; doloroso que
a physionomia de Margarida, outr'ora tão harmonica das combinações que
dão a formosura, se houvesse transformado em cicatriz... Existia, porém,
pessoa que, por um lento labor, já conformada com o actual estado, a
preferia como era e não a desejava como fôra. Quem? Antonia, a querida
ama, para a qual esta fealdade era formosura, e que julgava a sua menina
muito mais venturosa depois de feia. Coisa estranha e de maravilhar, que
um rosto assim desfigurado, com manchas brancas n'um ponto, violaceas
n'outro, liso e espelhento aqui, enrugado e baço acolá—um todo
arrepanhado de linhas divergentes e crusadas—tivesse tamanha influencia
e poderio sobre as almas; que esses olhos brancos, com um ponto
cinzento, apenas, no sitio da pupilla, vissem coisas do ceu, que nenhuns
outros olhos descobriam!... A sincera Antonia, que mais que ninguem
permanecia junto de Margarida, soffrera mais que os outros do potencial
ascendente. Ouvia-lhe as confidencias do pequenino coração, seguia com a
mente todas as maravilhas que ella descrevia do interior da patria
celestial, onde domina a magestade do Grande Deus, no meio do explendor
e das harmonias dos anjos, archanjos e seraphins. Não podendo conter no
rude peito a emmoção causada por tantas bellezas, dizia-as e
commentava-as com pasmo deante de amigos e confidentes, exclamando com
toda a sua alma nos labios: «Não vedes n'isto—ó gentes!—uma santa que
ainda vos hade fazer milagres?»

Era realmente o que todos viam, com verdadeiro jubilo e devocção. Já na
mente collectiva, o alto problema da santidade de Margarida se resolvia
e fixava. Correu d'isso o clamor e a fama, com a velocidade dos ventos
que varrem nuvens do céu e não tardou que se referissem resultados
beneficos de supplicas que Antonia lhe levara. Ainda sua mãe procurava
no valimento celestial de patronos afamados meio de lhe restituir a
vista, e já Margarida era grande protectora de infortunios alheios,
juncto do Altissimo. Antonia que appresentava em segredo os pedidos de
suas comadres, recebia os agradecimentos e tambem se engrandecia aos
olhos do povo, com o seu nome envolvido em assumptos de tanta maravilha.
Não tardou que aos ouvidos de D. Claudina e de João da Costa chegassem
os côros dos favorecidos, já com novos pedidos e rogos instantes. Não
poderam obstar, tambem, a que pessoas gradas se viessem ajoelhar juncto
do leito da creança, fazendo-se directamente ouvir nas suas queixas e
tocando-a nos magros dedos com o melindre com que se devem tocar as
coisas divinas. Esses que de novo chegavam, ao verem-lhe transtornada a
formosura, não recebiam desagradavel impressão, não achavam aquillo
hediondez, antes para elles se confirmava a opinião de que Deus
escolhera Margarida, para entrar no seu côro celestial de Virgens, e que
para a separar do mundo sensual e peccador, se servira d'um meio que
para muitos pareceria infortunio, mas que fôra na realidade Grande
Ventura. Assim se consolavam os corações dos amargurados paes, que
n'estas palavras encontravam compensador lenitivo.

Haviam-se passado dois annos sobre o inolvidavel dia da catastrophe. A
casa de João Costa estava sempre cercada de gente devota, que vinha
abrigar-se sob a influencia benefica de sua filha; á capella concorriam
offerendas que depositavam aos pés da padroeira, com a ceguinha irmanada
no nome e no celestial prestigio. Até esta epocha raras pessoas haviam
sido admittidas á presença da piedosa creança; porém augmentando os
pedidos vehementes e não podendo ser contida a onda que se avolumava,
necessario se tornou adoptar o expediente de Margarida assistir,
domingos e dias santos, á missa da casa, onde os interessados podiam
concorrer a contemplal-a e impetrar directamente o seu valioso auxilio,
perante os altos julgamentos divinos. Para melhor ser vista collocaram a
cadeira em que a assentavam juncto do altar, do lado do evangelho,
voltada para o officiante.

Assim todas as pessoas, recolhidas na sua fé, lhe podiam dirigir
silenciosas preces, levantal-as fervorosas durante o santo sacrificio.
Para a não fatigarem, pois a sua fraquesa era ainda grande, só áquelles
que para isso tinham poderosos motivos, se consentia que no final da
missa lhe beijassem o longo rosario e as santas reliquias que trazia ao
pescoço. A esses dizia ella palavras consoladoras de promessa; e
maravilhava aquella memoria, que a cegueira tinha tornado mais firme e
vidente, pois aos antigos conhecidos mencionava circumstancias da vida e
os nomes dos filhos, especialisando cada coisa nas suas referencias.
Aquella voz encantava, era carinhosa e suavissima como as dos coros
sagrados, que se ouvem em sonhos. Melodia que vinha do alto, as palavras
que proferia eram recolhidas com avidez, uncção e respeito. A todos
promettia incluir nas suas orações ao Senhor, e com tal voto lhes lavava
o coração dos sentimentos maus e peccaminosos, que por desventura n'elle
tivessem medrado.


                                   II


Os paes de Margarida já pareciam conformados e até orgulhosos de sua
filha. Seguiam o movimento geral das opiniões, admittiam-lhe a santidade
e o poder sobrenatural, que sobre ella tivesse vindo como emanação de
Deus, n'esse dia para sempre memorado da catastrophe. A Providencia
impõe os seus designios aos homens pelos modos mais contraditorios: com
uma penna d'ave mata, com um raio póde ressuscitar. Havia conformidade
na crença geral: a cegueira de Margarida era irremediavel por ser de
origem e vontade divinas. O não terem sido escutadas as supplicas
endereçadas por intermedio dos mais famosos santos conhecidos, era prova
e signal de que deviam submetter-se ao querer do Altissimo. E por
ultimo—opinavam os confessores—o dom de santidade em vida, não vale mais
do que a maior realeza da terra, ou do que todas as realezas da terra
junctas?

Concordavam e acreditavam-n'o os submissos paes, sentindo-se até
enternecidos por haverem dado o ser a Margarida, ainda que se
reconheciam differentes d'aquella carne, que depois que recebera o
divino sopro, era de razão que tivesse mudado de natureza. Notavam
tambem que Margarida vivia de cada vez mais encantada com os doirados
quadros da sua imaginação, que lhe antecipavam a Bemaventurança, á
morte. Tudo que dizia na sua voz dulcissima, encanto de todos os
ouvidos, era risonho e alegre: via-se que d'uma grande desgraça, sahira
a suprema ventura, a sublime pacificação da alma. Que encantadores
esmeros de sentimento Margarida tinha para seus paes! E elles, os
ditosos, escutavam-na, como se percebessem falas de anjos, ou sons de
harpas divinas a desferirem hymnos no espaço! Tudo correu santamente em
dois annos de vida gloriosa, que junctos aos dois primeiros de vida
atormentada, formavam os quatro annos de reclusão, tanto de Margarida
como de seus paes e de Antonia, que até os preceitos obrigatorios da
religião satisfaziam na capella da casa. D'isto resultou que uma funda
anemia, acompanhada de dôres craneanas e insomnias perturbadoras, se
apoderou d'aquelle pobre e implume corpo. Os medicos impozeram então a
necessidade de passeios ao ar livre, que a creança respirasse brisa
balsamica de montanhas e pinheiraes. Era egualmente indispensavel a luz
directa do sol para se não estiolar e morrer a mimosa e tenra planta. A
ella mais do que a todos custou esta ordem dos medicos, pois todos e
ella se tinham habituado a este existir sereno de vida santa, em
convivencia de imaginação com o Ceu, de que Margarida dizia coisas de
encantar. Antonia, tambem habituada á clausura da sua menina, vivendo
sempre na contemplação do ente raro, que era o maior louvor do seu leite
abençoado por Deus, arremetteu em palavras contra o mandado dos
facultativos. Temia dissipar-lhe o encanto divino, entregando-a á
convivencia de todos que lhe quizessem falar nos caminhos por onde
passasse. Comprehendia que assim já não a podia conservar tão intima,
nem tanto para si. Era o egoismo humano a rebentar no mimoso jardim de
sentimentos tão elevados...—a rude Antonia apavorava-se com a idéa de
que aquelle affecto, que ella creara com uma sugeição e uma dedicação de
tantos annos, podesse diminuir. Mas tanto ella como D. Claudina e João
da Costa, porque amavam incondicionalmente Margarida, era justo que se
opposessem ao parecer dos medicos e assim consentissem que se esgotasse
esse precioso e delgado fio de existencia, que em tamanho preço tinham?
Não, até o proprio egoismo, coisa diversa aconselhava, pois a separação
que a morte carnal viria definir, ser-lhes-hia milhões de vezes mais
custosa do que o era a cegueira, quando a julgavam uma fatalidade.
Acceitaram assim, o facto, tomando-o como todos os demais conselhos
attinentes á existencia de Margarida, pois os julgavam de inspiração
divina, por tenderem a não enfraquecer o tenue vigor d'aquelle fragil e
delicado corpo.

                  *       *       *       *       *

Estava-se na primavera: nos valados rebentavam as flores, os gommos
enfeitavam já as arvores despidas e tristes. Tempo alegre e soalheiro,
atmosphera odorifera e excitante. Iam pelos caminhos pedregosos da
aldeia, á procura de pontos altos, onde corresse viração. Margarida
desaprendera de andar, trocava os pés como quando d'um anno principiara
a correr na sala, queixava-se de que as pernas lhe não podessem com o
corpo. O vestuario, apesar de reduzido ao minimo de agasalho, era-lhe
d'um peso incomportavel. Fatigava-se e pedia frequentes repousos nas
bordas da estrada, em muros baixos e sobre as pedras avulsas que
encontrassem. Seus paes, ou Antonia, levavam-na pelo braço como uma
convalescente, sentindo-lhe o contacto do corpo, leve como uma penna. E
assim parecia pessoa vulgar que viesse trazer saudações á luz,
amando-lhe o explendor; que viesse visitar a paisagem que tencionava
gosar longamente. Cada dia seguiam destino differente; mas sempre para o
alto d'onde se descobrisse o fertil e carinhoso valle. Após os primeiros
passeios, sentindo-se mais vigorosa, pois tinha menos dôres e somnos
mais tranquillos, Margarida, n'um resurgimento de memoria, é que
mencionava os sitios que preferia visitar. Parecia este o caso trivial
d'um ausente de muitos annos, que tornasse a viver nas paisagens
queridas da infancia e procurasse confrontal-as com as sensações
d'outr'ora... Passava-se n'aquelle cerebro um trabalho lento de
rememoração, uma reviviscencia psychica. Nos pontos elevados, onde a
respiração é mais livre, larga e substancial, todo o corpo se lhe
aerificava, conhecia-se ligeira como qualquer ave voando.
Amplificava-se-lhe o peito; excitada pela fragancia da brisa fresca e
alpestre, vinham-lhe assomos de enthusiasmo, extasis de commoção perante
o renascimento das plantas, a côr afagadora da verdura, que não podia
apreciar com os olhos. «Como estão bonitos os campos!—exclamava. Para
ali o Ramisco, para acolá a Cerdosa, em frente Refuinho! Como estão
bellos estes campos já semeados, as arvores em flor, os bois a pastar
nas hervas!»

Parecia que tinham vista aquellas pupillas opacas, mas illuminante, como
dois brancos seixos no fundo de limpida corrente. Se ellas estavam sem
movimento, presas ao sol, o rosto de Margarida adquiria a inspiração do
dos santos nos extasis contemplativos da magestade divina. Esses globos
de leite coalhado, no meio das serziduras das feridas, eram duas
candidas cecens em terreno arenoso. O riso, meigo e attractivo, mais
bello do que o das rosas ao abrirem, illuminava-lhe os sentimentos. As
falas murmurantes, como agua correndo em regatos, passavam nos ouvidos e
eram gorgeios de ave: «Oh! que bom cheiro o das serras e dos campos,
como é suave o aroma das flores, minha mãe!» «Não sentes os passaros a
cantarem nos arvoredos, querida Antonia?!» «Quando iremos nós ao
Ramisco, meu pae?! Ainda voltará, o tio Frei Jeronymo, á sua casa de
Preste?»[1]

Falando assim quedava-se silenciosa, rosto erguido ao ceu, a expressão
vaga de cegueira suspensa sobre os campos da veiga, que se alastrava no
sopé da montanha. Este goso espiritual que se adivinhava dentro d'ella
ao contemplar o mundo material com a vista da memoria, enchia de prazer
os carinhosos paes, que tinham n'esta filha um thesouro celestial, um
tabernaculo de coisas puras e santas. Tão habituados já andavam a
consideral-a um ser superior á misera contingencia humana, a ver-lhe na
vida da alma uma vida transparente e etherea, que o doloroso
acontecimento que a cegara, de desventura se havia transformado em obra
de graça, pela santidade que lhe trouxera. Acreditavam piamente n'esse
divino dom que sublimara aquelle corpo enfesadinho e anémico, que
espiritualisara, com belleza nova, aquelle rosto transtornado pelas
manchas de cicatriz, que dera áquelles olhos a visão de coisas sublimes.
Enobrecia-os esta ligação carnal com quem já em vida pertencia ao Ceu.
Por isso cercavam Margarida de esmeros e delicadesas devidas ás
entidades superiores á rudesa commum; pois que essa parte material do
ser que nutriam, tocavam e aconchegavam era apenas condicção transitoria
de passagem no mundo d'uma alma immaterial, já moradora dos paramos sem
fim, em convivencia de Bemaventurados. Aquellas imaginações recreavam-se
em acompanhar Margarida a esses mundos d'Além, onde presumiam que ella
ia nos periodos de somno. Se ao acordar pronunciava palavras vagas de
sentido obscuro, n'isso encontravam o final das palestras que tivera com
os anjos, seus irmãos. E como vereficassem que o seu falar era mais
elevado e inaccessivel, quando rodeada de muitas e muitas flores,
traziam-lhe diariamente molhos das mais raras embellesando-lhe assim o
quarto, como se fôra uma egreja. Era apenas uma antecipação das
homenagens que de futuro lhes seriam rendidas, pelos numerosos crentes
que se acolheriam á sua protecção. Para todos era de saber conhecido,
que os santos apreciam muito os subtis aromas das plantas, que são
essencias evolando-se ao ceu e excitam a imaginação, para comprehender
melhor o sublime e o celestial. E nem os conselhos dos medicos tinham
auctoridade para impedir que Margarida vivesse constantemente respirando
os delicados venenos, que lhe proporcionavam noites deliciosas de
encanto em que a mente, ebria de goso, se lhe alargava em quadros
deslumbrantes. Accentuavam-se-lhe, por isso, as turbulencias do coração
e o depauperamento organico; porém o seu querer era terminante e
exigente, para que a não separassem das suas queridas flores.
Comprehendia bem que eram ellas que a ajudavam a levantar a alma em
preces fervorosas, e que lhe incendiavam a mente em extasis divinos.

Áquelles olhos que não viam, patenteava-se a celestial morada n'uma luz
luarenga sempre egual. Mais que isto, os seus ouvidos escutavam n'esses
instantes singulares, córos angelicos, em que a toada longa e plangente
era como um balsamo, em que a alegria tomava fórma serena e augusta. E
todos comprehendiam este viver de alma superior, esta sublimação dos
sentidos para definir coisas ethereas, a descoberta do mundo dos
encantos feita por uma creança em quem laborava a vontade de Deus. Esse
dom subtil para comprehender era decerto a parte mais bella de tão
gloriosa cegueira e para lh'o conservarem havia sempre abundancia de
flores em volta do pequeno leito de Margarida. De longe e de perto
chegavam offerendas copiosas—collocavam-nas em vasos, como nos altares,
em açafates como aos pés da Virgem, no oratorio, em cima da commoda e
juncavam-lhe com flores a propria coberta, que se lhe ajustava ao corpo
doentinho. Assim podia ella sentil-as, com os magros dedos apreciar a
maciesa das petalas, aspirar-lhes com mais avidez os energicos perfumes.
E que riso de expressão tão estranha, illuminava aquelle semblante
disforme, quando com o seu fino tacto, Margarida adivinhava as flores
que ali tinha e as combinava em ramos e capellas, que pessoas de olhos
sãos não saberiam entrançar com semelhante engenho! Se punha na sua
propria cabeça essas corôas que fazia, todos notavam, quanto se parecia
com as santas adoradas nas egrejas! Se dizia palavras de sentido
transcendente, todos julgavam escutar sons que sahiam de mysteriosas
nuvens. E ainda que fossem coisas que não comprehendessem, tal era a
suavidade encantadora d'aquella voz incomparavel, tal o encanto musical
da sua pronuncia maviosa, que os ouvidos profanos se sentiam
magnetisados e as imaginações dos que escutavam iam voando, voando
sempre, seguindo-a entre estrellas, n'uma região infinita e doirada pela
vista fulgurante dos seres perfeitos e bellos que a habitavam. Aqui era
o paiz encantado da visão e do mysterio, n'elle habitam entes
immaculados e perfeitos! Vivia-se d'este modo na habitação terrena,
fluctuando nas azas da maravilha, creada hora a hora. Uma continua
apotheose d'um sonho, que só a crença na vida eterna podia gerar!...

[1] _Amores, amores..._


                                  III


Porém o estado melindroso da saude de Margarida aggravava-se de cada vez
mais. Os facultativos que a vigiavam com a sua experiencia, assignalavam
os progredimentos da molestia, cuja historia conheciam. Nunca
funccionara bem aquelle pequenino coração: nos primeiros annos de vida
fôra excitado pelos estovamentos dos brinquedos infantis e pela
insaciabilidade da creança mimosa, que dava azas á imaginação inquieta;
no terrivel dia da catastrophe quasi se quedara preste, talvez que no
proposito de nunca mais funccionar, mas recomeçou o seu labor; no longo
periodo de soffrimento, que se seguiu, teve alternativas de resignação e
desesperos, desalentos e esperanças vivas!... Os carinhos maternos e a
dedicação nunca desmentida de Antonia apasiguaram-no e fizeram abrir na
mente de Margarida os alvores d'uma aurora. O tempo trouxe o desengano,
a certeza e o habito da cegueira, e o pequenino coração adquiriu
definitivamente conformidade para o infortunio, n'uma submissão aos
ditames de Deus, propria dos eleitos tocados da divina graça. Abrira-se
para elle uma existencia nova, adornada de bellezas e de encantos: eram
explendores do ceu, não comparaveis aos terrenos, que são mesquinhos e
transitorios. Tudo á mente vinha do coração, d'esse coração combalido,
improprio para a vida commum, e no qual a morte se aninhara como em casa
propria. Mas no rosto cicatricial em que os olhos baços se moviam como
duas bolas de jaspe, despontava a luz que illuminaria a Margarida o
caminho de Bemaventurança e ella desejava e não temia o final dos seus
dias contingntes. No som da voz melodiosa, como será a dos anjos, e no
sentido das palavras que pronunciava, já se reconhecia essa levantada
aspiração, esse sentimento do divino, que linguas vulgares traduzem por
santidade. Caminhava esta pobre existencia corporea abordoada a um
coração doente e não podia prolongar muito a sua jornada. Margarida
acamou de vez e no aconchego do quarto concentrou-se na paixão dominante
das flores, d'esses aromas que lhe povoavam a mente de sublimes visões e
lhe faziam antegostar o ceu. Despertara-se-lhe, primeiro, este amor, nos
passeios aconselhados pelos medicos para se robustecer, agudara-se
depois, na existencia da sua mente recolhida em convivio de anjos. As
flores são bellas e assim como em vida lhe adornavam a paisagem da
morte, depois lhe enfeitariam a sepultura. Morte e sepultura, idéas
risonhas, que assignalariam o seu voar definitivo á patria celestial.
Não as chamava, estas escuras imagens, para não ulcerar os corações de
seus paes e de Antonia, a quem o momento da separação custaria, ainda
que a vissem erguer-se sobre nuvens á gloria de Deus. Porém os seus
ouvidos apurados já sentiam os passos magestosos da Morte, que vinha
n'uma comprida estrada enfeitada de todas as galas, juncada de palmas
victoriosas, acompanhada de musicas alegres. Festa superior á da entrada
da primavera, nos campos e nos montes cobertos de boninas, com o ar
empregnado de balsamos humados da terra, a omnipotencia da luz descendo
do sol para tudo engrandecer! O coração doente consolava-se com os
aspectos d'esta vida sonhada, alagava-se n'uma paz doce, larga e
consoladora, que era um vislumbre da que se gosaria na presença de
Deus!...

Por isso ao presumir proximo o seu ultimo dia, sentindo por adivinhação
que a alma se ia desprender do corpo em que reinara, que a materia
resignava a força que a enobrecera, é que pedia mais flores, muitas
flôres para embebedar com aromas a imaginação. Tinha a cama de virgem
sempre coberta de rosas, de açucenas e de todas as flores campestres de
belleza tão captiva e simples, de perfume tão casto e enebriante. Quando
adormecesse no ultimo somno terreno, queria que fosse entre fragancias e
côres, para nas azas d'essas coisas intangiveis subir ás alturas, onde
habitam os anjos. Foi assim que veio para Margarida a feia morte,
risonha amiga, como um carinhoso dom. N'esse dia assignalado
cercavam-lhe o leito todos os queridos affectos que no mundo tivera. O
bom cura Carvalhosa, de estola branca e oiro sobre a alva sobrepelliz,
dizia-lhe em voz de uncção, palavras solemnes de esperança e ventura. O
rosto sereno e quasi risonho do sacerdote espalhava no quarto, que era
um sanctuario, coragem e tranquillidade, em todos os espiritos. Os paes
de Margarida e Antonia ajoelhados aos pés da cama, voltados para a
Virgem glorificada entre flores e luzes, no oratorio, tinham as faces
innundadas de lagrimas silenciosas e votivas. Outras pessoas intimas,
amigos e parentes, seguiam este ditoso despedir d'alma ao despegar-se do
mundo. A illuminação astral do rosto da moribunda, com os olhos gelados
a procurarem claridade n'uma risonha ancia de sublime, a todos animava.
Parecia-lhes este morrer, antes uma transfiguração da vida: não era o
afastamento para sempre, pois acreditavam que esse espirito, que de
muito pertencia ao ceu, continuaria a velar pelos que muito amara, para
os proteger contra as miserias terrenas. Margarida entre elles,
escutaria as suas supplicas, fortalecel-os-hia nos desalentos e como
branca pomba espiritual, havia de pairar sobre o tecto que lhe abrigara
o nascimento e a morte. Aqui se lhe dispertara a alma para as coisas
sublimes, para as visões eternas; ao cahir gradual do corpo todos lhe
viram corresponder uma crescente sublimação do espirito; as suas
palavras que se adelgaçavam na fortaleza, eram de cada vez mais
cristalinas no som e tinham de cada vez maior sublimidade no sentido. É
que já as pronunciava do limiar da Bemaventurança, cujas portas se lhe
abriam de par em par. Tudo concorrera de longe, para que as lagrimas
choradas em volta d'este pequenino leito de moribunda, coberto de flores
rescendentes, fossem lagrimas mais de goso, do que de amargura, de
conformidade e não de desespero.

                  *       *       *       *       *

Rompia a tranquilla luz da alvorada d'um dia d'Abril, que promettia ser
alegre e soalheiro. Estava-se na mesma semana de Paschoela na qual,
annos antes, começara o glorioso martyrio de Margarida. Havia cá fóra as
pompas da natureza, a reviviscencia da terra subia ao azul em hymnos de
aromas e cores. A doentinha chamara para juncto de si seus paes,
Antonia, e os parentes mais chegados, as de Refuinho e as do Ramisco.
Com uma voz que era um cicio de resa, de todos se despediu com palavras
confortativas, de tanta elevação e carinho e santidade, que bem se
comprehendia que não fosse um espirito da Terra, que n'ella vivesse. Com
os dedos magros de santa deixava a cada um a lembrança d'uma flor,
beijava, amorosa e humilde, as mãos de seus paes e do cura,
sorrindo-lhes com os olhos cegos.—E rematando a vida disse:

—Pedirei ao Senhor, por todos. Perdoem a quem os fez soffrer!...

Rebentaram torrentes de lagrimas e córos de soluços, quando viram que
não mais pudera falar, e que reclinara de vez a resignada cabeça no
largo travesseiro... Começara um longo e infinito somno: o rosto d'uma
serenidade angelica parecia formoso e expressivo como nunca fôra! Ainda
respirava o balsamo das plantas odoriferas, os brancos dedos ainda
procuravam o setim das petalas de rosas e cecens; mas aquella
imaginação, aquella alma diluia-se na amplidão infinita, subindo ao
espaço como um subtil perfume. Margarida repousava na paz eterna do seu
Deus! Terminara o ultimo anhelo do coração.

—Está morta—disse com sentimento grave o medico pousando-lhe a mão na
testa.

—Está viva—pronunciou como em sonho, o padre Carvalhosa...

Lisboa, Abril de 1899.



                                PASTORAL


                                   I


As cabras e as ovelhas, iam a meia encosta, todas n'um carreiro, como
formigas. Tinha sido longa a noite d'abstinencia no curral e pelo
caminho, ás furtadellas, aboccavam as hervagens avulsas, ruminando-as
sofregamente. O Rabicho, sempre adiante, como explorador. Vivo e
esperto, n'um relance conheceu a impaciencia da Tonia, por não andar
mais depressa. «Lá p'ra riba, cão!»—gritára-lhe a pastora, e logo elle
subiu a um penedo, deixando passar todo o rebanho, que depois impelliu
para a frente, com duas boas torquezadas de seus dentes. Os animaes
correram á porfia, vencendo-se uns aos outros. A rapariga ficou
distanciada, a fiar a sua lã, cuja tarefa, para um dia, levava na abada
junta com o presigo. E para não auctorisar novas investidas do rafeiro
berregou-lhe de novo: «Tó, dianho! tens muito dente!...»

N'esse dia, encaminhava-se ella para o Guidon. Perto de lá, na bouça de
João-Paz, deixára escondida a tigela das sopas de leite. No caminho
encontraria o Chico, pastor seu amado, e ambos juntos e unidos iriam
espreguiçar-se por baixo das fragas ou no interior dos frescos giestaes.
O Guidon, quando o maio é soalheiro e formoso, tem as melhores pastagens
dos arredores. O tojo, nos sitios onde se fez queimada, borbulha, tenro
e verde, como herva nos lameiros. Os gomos d'urze parecem microscopicos
pampanos. O rosmaninho, o trevo, o rico e nutriente feno desabrocham em
aromas e enfeitam a serra. Leite filho d'estas plantas silvestres,
delicadas e cheirosas, é o mais gostoso e substancial. Por isso, ao
pasto das terras baixas e frias, que não sobeja da boiada, n'esta épocha
de lavradas, é preferido o dos pincaros, alegres e soberbos. Coisas da
bruta experiencia, que os seculos teem garantido.

Chegado o rabanho ao sitio onde na vespera o lobo roubára um timido
cordeiro, a ovelha-mãe, na expressão de saudade, balou dolorosamente. Ao
longe respondeu-lhe a voz tremula d'outra ovelha, como se fôra um echo.
A pastora logo correu ao alto para alcançar mais com a vista. Imaginára
estar p'r'áli aquelle a quem se votara. Ia ser um dia festival, ao
encontrarem-se na suprema mudez da serra, protegidos do calor á sombra
dos piornos, contemplando-se n'um vago absoluto. Em taes momentos
accelera-se a imaginação; os ouvidos inattentos ensurdecem; a mente
fica-se n'um pasmo; o mundo figura-se um lago tranquillo e morto; o azul
do céo, onde se perde a vista, é d'um ferrete insondavel; o coração bate
forte e rapido, como um bom potro, galopando solto na campina!...

Porém, o que veria a Tonia de suspeito e desagradavel?! A expressão do
seu rosto suave e louco, carregou-se de sombras; o gesto foi de
arremesso e contrariedade; os olhos faiscaram de subita colera!...

Ah!... Em vez do Chico, appareceu-lhe o outro, o Russo, um grande e
forte, de cabellos vermelhos e physionomia diabolica. Coruscava-lhe a
vista inquieta, pequeninas sardas picavam-lhe a pelle, a cabeça era uma
tormenta de fogo!

Quão differente o seu namorado, rapaz franzino, d'aspecto juvenil, rosto
comprido á Nazareno, cabellos negros e mal cuidados, formando sobre a
fronte um tufo revolto d'anneis. D'aquelle todo sahia a expressão que a
enlevava; da expressão desdenhosa ou indifferente a superioridade com
que a submettera; das palavras simples, a musica dos seus ouvidos e da
sua alma inteira. Como era bello e encantador de costas sobre os
penedos, a contemplar o céo n'um sonho de poeta! Como era amoroso e
vago, quando tocava na flauta, coisas que não aprendera com viv'alma!

O Russo decerto lhe queria com mais gana, com mais aquella, bem lá do
fundo. Ao enxergal-a, desabrochando com a aurora no alto do monte, como
subita e incomparavel flôr, todo se alvoroçou. Nos olhos e em todo o
rosto mostrou um pasmo tonto, um riso sem valor, como aconteceria ao
cego, cuja retina morta sentisse inesperadamente a gloriosa illuminação
do sol. Correu para a abraçar no primeiro impulso; mas logo estacou
contemplou-a a distancia. Ella, no alto onde se quedara, de roca á
cinta, o lenço claro apanhando-lhe os cabellos, o recorte da sua figura
desenhando-se no ar, era a pastora das lendas, calma e prophetica. O
Russo percebendo o animo hostil com que a Tonia o recebia,
accendeu-se-lhe n'alma a raiva e o ciume:

—Querias ir só com o outro? Não, que não!...

—Bem se me dá...—retorquiu desdenhosa. Tempo perdido, meu rico!

—Que lh'achas tu? Um lesma, um gomitado. Cá, sou um home. Elle...

A Tonia espertou-se:

—Mal comparado! Tu és um diabo, um porco bravo. Estafermo! Elle é lindo
como um anjo do céo!

A furia do Russo cresceu:

—Sou capaz de o esborrachar na unha, como um piolho, demonios me nunca
levem!

Tinha lagrimas de raiva, ao pronunciar a jura. Era paixão antiga e
abrazadora. Desde os quinze annos, ainda aquelle corpo de rapariga era
como um castanheiro novo, já elle a via constantemente na transparencia
dos luares outonaes. As moles graniticas, penduradas eternamente dos
pincaros, e resequidas pelo sol d'um infindavel agosto, não teriam mais
firmeza, nem mais calor do que elle. O ciume era no seu corpo um moer
lento e occulto, tal o fogo que mina a urze escondida na terra para a
transformar em carvão. Condemnado por aquella repulsa constante,
sentia-se desprezivel e desejava morte, em que soffresse muito. Comtudo
não podia despegar a propria vida d'aquelle sonho malaventurado. Em
presença da Tonia, a natureza ruiva e colerica aloirava-se-lhe n'uns
cambiantes meigos e suaves. O mais tenro anho das suas ovelhas, não
tinha para quem o aleitava tanto carinho e agradecimento, como elle
mostrava áquella rapariga, n'uma submissão de coisa bruta. Comtanto que
o amasse, se a sua vontade d'ella fôra vêl-o apodrecer no fundo d'uma
córga, para ser alimento das aguias e corvos, ir-se-hia lá deitar
voluntariamente e nunca mais comeria! A preferencia pelo outro é que o
humilhava na sua consciencia de homem forte e magnifico. Quedava-se a
scismar de noite no que teria de superior, esse engelhado, tão magro e
pequeno como uma lavandisca. O corpo não, que o seu era grande como uma
torre e devia inspirar sentimento de força. A paixão que lhe refervia lá
dentro, longe de ser mollanqueirona, mostrava-se vehemente e feroz, tal
a das lobas a defenderem os filhos. Aquella rapariga airosa, divina
imagem de qualquer santa, voz musical como a dos passaros, tranquillo
olhar como o da lua, aniquilava-o com a sua nervosa malquerença. Até
ahi, nada a pudera abrandar: nem lagrimas soluçadas de bruços sobre os
penedos; nem supplicas mais ferventes do que orações; nem juras e
promessas inabalaveis como o céo. Diante das vontades e caprichos da
pastora, era humilde e cego. Quantas vezes lhe ficára com a rez, para a
deixar correr monte, talvez á procura do outro?! Quantas vezes lh'a fôra
buscar ao curral e lh'a apascentara durante dias, para que ella fosse ás
romarias, com os ranchos que passavam?! Até sacrificava o seu rebanho,
pois dirigia o da Tonia para as melhores pastagens. Se tinha leite novo,
logo lh'o offerecia como um presente; se encontrava tortulhos
assava-lh'os e ella comia-os: para que não bebesse agua dos ribeiros,
onde ha porcarias e animaes mortos, ia-lh'a buscar longe, trazendo-a na
sua tigela, escrupulosamente lavada, como para uma rainha. Quando a
Tonia acceitava de boa cara estes serviços, já o Russo se entendia muito
bem pago. As recusas ou o mau modo, é que eram fundos golpes no seu
torvo coração.

Vivia uma vida negra e de sobresaltos continuos. Passavam-lhe incendios
diante dos olhos e a sua imaginação ficava a trabalhar em desassocego. A
fatidica _Pedra-suspensa_ (essa antiga ameaça!) parecia-lhe, ás vezes,
que se ia desprender lá do alto, rolar pelos montes e destruir o mundo
inteiro! Oh! visão amedrontadora de todas as existencias!... Só para a
afastar, quantas vezes elle consentira o Chico deitado ao lado da Tonia!
A moça fiava a lã da tarefa, cantava ou escutava-o enlevada. O
magricellas, o ninguem, de papo para o ar, não tratava da rez. E o
desprezado é que fazia o serviço de todos, guiando caridosamente as
cabras e as ovelhas para a sombra das ramadas nos grandes calores, e á
bebida antes de as recolher. Viviam assim pelos montes, perdidos entre
tojaes e piornos, dormindo no verão debaixo das lapas e dos azevinhos.
Havendo satisfação reciproca, tambem gostava de ouvir o tocador de
flauta, que sabia muitas modas tiradas da sua cabeça. Era feliz nos
momentos em que morava longe o ciume, isso a que não sabendo dar o nome,
lhe queimava o peito, como tição ardente. Esquecia o desamor da Tonia
n'essas horas gastas em somno tranquillo. A vida era visão suspensa dos
ramos dos carvalhos, ou fluctuava brandamente como as folhas outonaes ao
sabor d'um murmuro vento. Não havia quisilias, só desejo de felicidade,
socego e gozo, em ventura calypsiaca. Raramente, porém, se passavam dias
assim completos de ventura!...


                                  II

Já tinham caminhado meia hora, n'um silencio inconvivente, quando
chegaram ao ponto d'onde se descobria a Pedra-suspensa. Era o objecto da
lenda mais famosa e conhecida nas povoações em redor. Visto de certo
lado, aquelle granito, não se lhe encontrava o ponto de repouso, na lage
subjacente; parecia um destaque de nuvem, no céo azul. Contavam, sempre
em voz de medo, que logo no principio dos seculos, um mau genio e feio
gigante, ali a depositara, como eterna ameaça a peccadores; porque a sua
queda assignalaria o começo do fim do mundo. A instabilidade da
Pedra-suspensa, tão reconhecida era, que ninguem duvidava de que uma
creança de cinco annos a pudesse derrubar. Grande milagre, não a terem o
vento e os trovões arremessado pelos espaços fóra!... O respeito que
esse granito infundia, era o de um idolo vingador, ameaçando, dia e
noite, as aldeias e o mundo!... Todos os dez annos se formava grande
procissão de penitencia, com gente que partia de sitios mui distantes e
ali se reunia afim de implorar misericordia. Recebida da tradição essa
pratica, executavam-n'a com fervor d'alma religiosa e temente. Os homens
ciliciavam as carnes, as mulheres erguiam clamores, as creanças berravam
de amedrontadas, os bacamartes de bocca de sino troavam pelos caminhos e
por entre os penedos... tudo para distanciar o pavoroso castigo!...

Depois das preces, ficariam acalmadas as justas cóleras divinas? Ninguem
o assegurava. A intangivel crença em que a famosa pedra cahiria, para
assignalar enormes desgraças, conservava-se viva e forte. Poucos tinham
animo para a encarar tranquillos e serenos. Ninguem ousava
approximar-se-lhe, muito menos tocar-lhe, com medo da responsabilidade
n'um cataclysmo. Seria provocar inconsideradamente as cóleras do céo.
Uma penha que bastaria o roçar d'uma corça para a fazer cahir! Pairava
assim no ar, suspensa como uma aguia, por determinação da vontade
divina. A não ser isto já as bategas da chuva, o impulso dos vendavaes,
o degelo das neves a teriam arrastado. Pois não era um verdadeiro
milagre a sua estabilidade?!...

A idéa de a escorar, diminuindo-se as probabilidades da catastrophe,
fôra sempre repellida. Significaria desconfiança no alto poder que ali a
conservava. Melhor é deixar o destino trabalhar por si. Está lá em cima
quem tudo regula. O que tem de ser faz muita força... Pensavam d'este
modo em palavras; mas no fundo, n'esse intimo sentir que até parece
esconder-se á Providencia, se elles pudessem calçar a pedra para não
cahir!... Contra as imprudencias brutas dos gados já se tinham
prevenido, as gentes supersticiosas, sebando-a em volta com ramos e
tojos. Porém as aguias, que vinham de longe, no seu vôo arqueado e
solemne ali poisar? E os lobos famintos, que preferiam aquelle sitio
para comer as suas prêsas? Só milagre e grande milagre é que a sustinha
n'aquella direitura. Acreditavam-n'o camponezes e serranos, todos os que
se desbarretavam e persignavam murmurando qualquer reza, mal a viam. Foi
assim que procederam a Tonia e o Russo. Ambos quedos, ella com o fuso
parado, elle com o barrete na mão, ciciaram orações. Mas o pastor, logo
depois ameaçou a rapariga apontando:

—Vêl-a? Ha de cahir. O mundo acaba-se e tu não serás p'ra mim, nem p'r'ó
outro.

—A Senhora da Peneda não ha de deixar—disse confiada.

—Sou eu que a empurro. Verás.

—Cala-te, hereje, que t'abro a cabeça.

Irada, com os olhos em chamma, arremetteu-lhe com um pedregulho. Havia
ancia de raiva dentro do seu peito soberbo. O Russo não lhe pôde
supportar a vista de cólera e desprezo; curvou a fronte, os olhos
marejaram-se-lhe. O seu destino era peor que o dos condemnados do
Inferno.

—Perdôa, não olhes assim! Tu é que me fazes dizer todos estes peccados.

—Tenho culpa de não teres temor de Deus? Estás na caldeira de
Pedro-Botelho, vestido e calçado! E é bem feito!—accrescentou vingativa.

O cabreiro queria humildar-se até ao rasteiro das cobras e lagartos, só
para lhe merecer uma sombra de perdão. Affligia-o mortalmente a idéa de
que mais uma vez desagradara á Tonia. Como, logo adiante a rapariga
vendo umas cabras se principiou a affirmar, para descobrir o Chico, foi
elle que, no intento de se reconciliar com a pastora apontou:

—Está acolá, em cima do penedo...

—Assobia-lhe para vir p'r'áqui.

—Bem nos vê, se quizer...

Mas obedeceu, assobiou com os dedos na bocca. O outro não se importava,
apenas mexeu a cabeça conservando-se na mesma posição.

—Vae lá, que vamos p'r'ó Guidon,—disse-lhe a moça.

Foi, humildemente, como um perdigueiro. Sentiu gozo em ser mandado; mas
de raiva torcia nas mãos a grossa carapuça. Distante, a occultas para
esconder a sua fraqueza, limpou duas lagrimas ao canhão da vestia. O
outro não queria ir para o Guidon, estava ali muito bem. O Russo
pediu-lhe que obedecesse, para a Tonia se não zangar mais.

—Ora... se 'stou regalado!—respondeu o pastor. Vai tu mais ella.

—Vem, moço—exorou o cabreiro. Olha que ella hoje, sempre te está! Anda,
levo-te a rez.

Consentiu o Chico em deixar ir o rebanho; mas elle ficou. A Tonia não se
teve. Foi pressurosa tiral-o d'aquelle adormecimento. Com ligeiro
sorriso de meiguice, pediu ao Russo:

—Ó aquelle. Junta-me tamem as minhas, que eu vou trazel-o.


                                  III


E lá foi, doida, feliz, correndo de fraga em fraga. O Russo assobiou ao
Rabicho, reuniu todo o gado e partiu... Chorava lagrimas como punhos, e
voltava-se para vêr de relance a Tonia, que chamava o Chico, com acenos
e gritos. Bem se importava o preguiçoso com aquelle louco amor da
rapariga!...

—Eh! moço! vem-te d'ahi p'r'ó Guidon.

Elle respondeu-lhe:

—Eh! que 'stou' qui mui bem.

Tirou do seio a flauta e sentando-se no penedo, principiou a tocar. O
sol illuminava-o de frente, prateando-lhe os cabellos negros. O destaque
da sua figura magra e enfezada sobre o escuro penedo, fazia-se como o
d'uma miniatura em fundo esmaltado. A Tonia chamou-o:

—Já lá vão as tuas cabras, maluco.

Não se importava, encolheu os hombros. A musica absorvia-o
completamente, era o seu destino. A pastora, dominada por esse respeito
instinctivo e sagrado, que se deve ás coisas elevadas, parou a
distancia, para o não interromper. O Russo, que já ia longe, tambem
subiu a uma rocha com o fim de ouvir melhor. Escutava triste e
absorvido. O seu grande corpo, esbatendo-se no verde escuro do monte,
ainda ensombrado n'aquella parte, percebia-se mal, como as figuras dos
baixo-relevos, e tinha a mesma immobilidade captiva. Era moda triste a
que o rapaz tocava. Finda ella, a Tonia approximou-se quasi respeitosa.
Para subir ao penedo onde estava o tocador e arrancal-o d'ali, teve
difficuldades. A pedra era lisa e as tacholas dos sócos estavam gastas.
Mas agarrou-se a um ramo de carvalho, inclinou-se para diante... Os
magnificos e potentes quadris arquearam-se n'uma curva de mulher
completa e fecunda, creada nos caminhos pedregosos. O Chico, vendo-a no
empenho de subir, largou a flauta, tomou-a pelos braços roliços,
attrahiu-a para o seu corpo e por momentos ambos ficaram unidos!... O
Russo presenceava de longe tudo isto. Sahiu-lhe do peito um rugido de
cólera e ciume que fez estremecer as montanhas. Os seus olhos, vermelhos
de desespero, viram uma successão de calamidades sem fim, como as
descrevem os missionarios para o dia de juizo. A Pedra-suspensa
oscillara, já cahia pelos fortes declives d'um mundo em ruinas.
Ennegrecera subitamente o céo azul, reuniram-se n'um instante nuvens
prenhes de tempestades, os trovões abriram medonhas gargantas no céo de
fogo, as pupillas dos raios rutilavam, as trombetas apocalypticas
enchiam de pavor os reconcavos da terra, onde se escondiam
desgraçados!... Tudo se ia acabar para todos!... O seu corpo miseravel,
junto ao de outros reprobos, rolava pelos abysmos. A grita dos homens
era pavorosa, formando um unisono infernal.

Isto o que viu e ouviu n'um instante aquella imaginação turbulenta. Mas
o Chico e a Tonia já tinham descido do penedo. Elles lá vinham a
caminhar, amorosamente unidos, ella apoiando-se-lhe no hombro. Riam e
folgavam, como um casal de pintasilgos em março, resumindo em si todas
as venturas pelos homens sonhadas. Ella offereceu-lhe do seu presigo uma
racha de bacalhau, que o rapaz acceitou para offerecer ao outro, que era
muito pobre, não tendo mesmo, ás vezes, a brôa sufficiente. Logo que se
juntaram deu-lh'a.

—Toma—disse.

—Não tenho fome—rejeitou.

—É a Tonia que t'a dá.

Arrancou-lh'a da mão. Estracinhou-a raivosamente com os dentes, como
faria á carne d'aquelles corpos felizes, se os pudesse trincar.
Excandecido seguiu com os rebanhos, separado dos dois. O semblante
sombrio e transtornado, impressionaria quem lh'o encarasse. Os olhos
gazeos expelliam chispas metallicas e tinham escurecido de cólera. Os
beiços tremiam-lhe como signal da sua loucura. A pastora no momento em
que se juntaram escarneceu-o:

—Que feia carranca... Santo Nome!...

O cabreiro voltou-se rapidamente para a aniquilar, com todo o poder da
sua força herculea. Porém ao vêr aquelle rosto sereno e risonho, só
disse:

—Hoje ha de ser falado!...

N'um relance pensou na famosa Pedra, symbolo de desventuras. Sahia-lhe
do semblante uma expressão feroz: no craneo aninhou-se-lhe a idéa d'um
aniquilamento geral de todas as felicidades terrenas.

Mas a rapariga é que não estava de geito para o aturar. Conhecia-lhe a
maluqueira de bode raivoso e ciumento. Tinha meio de o curar, sem pau
nem pedra: era deixal-o ir só. Um porco bravo assim, um bruto cujo
aspecto causava medo, não servia para viver entre christãos. Fosse lá
p'r'ós lobos, que eram seus iguaes.

Quão differente o outro, o seu querido! Timido e meigo como o cabrito
d'um mez, assobiava e cantava modas mais bonitas que as dos melros e
rouxinoes das mattas. Viver a vida com elle pelos montes, era o mesmo
que passar os dias n'um céo. Ensinava tantas coisas, que não
aprendera!... As cantigas da sua invenção produziam sempre tristeza
branda e carinhosa. Descobria nas estrellas sitios de felicidade e
apontava-os, convidando-a a voarem para lá. Podiam-se comparar os
dois?... O Russo era escambroeiro aspero que rasgava as carnes; o Chico,
ramo de giesta, bello, cheiroso, e flexivel. Por isso ella despediu o
rude cabreiro, retorquindo-lhe á ameaça:

—Elle é isso?! Pois vae-te sósinho com Deus. Nós levamos hoje o gado
p'r'á Ralada.

Chamaram o Rabicho e trataram de separar as suas cabras e ovelhas. O
Russo, sob o castigo tremendo, mostrava-se submisso em todo o seu corpo.
Pedia perdão, não dissera nada mau!... Se alguma palavra feia, se alguma
ameaça ou jura a sua bocca cuspira, estava arrependido. Fossem com elle
que tomaria conta dos rebanhos todo o dia. A comida para ali era a
melhor dos sitios. Encontrava-se tojo tenro, como bicas de manteiga. A
herva, apenas nascida, era a unica do appetite do gado. Havia agua
corrente para os animaes e até uma fonte para a gente... Aquelle grande
corpo, espadaúdo e alto, fazia-se pequeno com a humildade. Uma criança
mostraria mais imponencia. As lagrimas cahiam-lhe em cachos e todo elle
era uma supplica, de curvado e abatido.

A Tonia foi cruel e inflexivel. Abandonou-o, desprezou-o como um trapo.
Disse que os não acompanhasse para a Ralada, que isso os obrigaria a
mudar. Fez-se imperiosa. O seu corpo d'ave, esbelto e franzino, teve
coleamentos de panthera. O rosto de santa transformou-se pela cólera. A
chamma do olhar e os cabellos mal juntos davam-lhe o aspecto d'uma leôa.
O cabreiro tremia de medo, a cabeça sobre o peito, os braços pendentes.
Separaram-se. Os dois lá foram, acintosamente abraçados. O Russo,
desmoronada toda a sua existencia, dirigiu-se em passo tropego, adiante
do gado, para o destino da sua má sorte!...

                                  IV

Chorou longamente o seu infortunio, p'r'áli, a cara junto á terra. Do
fundo mysterioso vinham-lhe palavras infernaes, que o aconselhavam a ser
feroz e deshumano. Ergueu-se tendo o coração empedernido. Os seus olhos
enxutos, viram nitidamente ao longe a Tonia e o Chico enlaçados,
patenteando ás aves o seu amor. Era uma visão graciosa que sahia de
entre as lavaredas da colina em fogo! Á sombra da fraga, sobre a qual
estava a Pedra-suspensa, os loucos tinham-se ido deitar. Elle tocava
flauta, ella contemplava-o, com o fio da roca parado. Justiceira a mão,
que para lá os guiou!—pensou na sua rude mente o Russo.

Desencadearam-se-lhe diante da phantasia sanguinea todas as tempestades
dos seculos sem fim. Só a grande Dôr poderia burilar n'aquelle rude
cerebro taes florescencias tenebrosas. O seu corpo levantou-se n'um
desespero formidavel. Um violento fremito rugia no interior da montanha,
chegando até ás nuvens. Era a voz torva do seu peito, a soluçar pelos
reconcavos da Terra e do Céo!

Ia tombar a Pedra-suspensa—resolveu.

Os seus cabellos ruivos, atravessados pelo sol, faiscavam. Idéas de
impiedade e vingança, como lh'as ensinára a religião e o ciume,
fixaram-se-lhe na fronte d'um modo definitivo. A ventura e a bondade não
cabiam na sua alma desgraçada, pois em volta tudo era escuridão e
rancor. Nem a saudade da serra que estava a florir, nem a convivencia
amoravel do gado, nem o abandono da mãe cega e pobrissima o detiveram.
Não via os _outros_ abraçados n'um gozo sem limites? Palpitando d'amor á
face do sol, pensavam acaso nas ovelhas? Que viesse o lobo e elles não
seriam capazes de o perceber!... Aquelle embevecimento reciproco, era um
peccado mortal, e nem o temor do inferno os separava! O aniquilamento, a
morte rapida era o que mereciam! Clamava do céo vingança, uma tal falta
de vergonha.

Por isso ia elle empurrar a Pedra-suspensa!

Doido, perdido, correu como um cabrão, de penedo em penedo. N'aquelle
peito arquejante escondiam-se sentimentos de tigre. Era um demonio
bruto; porém o instincto e o desespero tornaram-n'o sagaz. Para ser mais
ligeiro e imperceptivel, abandonou os tamancos no caminho. Uma força de
vendaval levava-o pelo ar. Podiam merecer-lhe piedade a desgraça do
mundo e a eterna condemnação de todos os homens?! Algum vivente lhe
mostrara sympathia, ou pensara em lhe prodigalisar carinhos?! O seu odio
absoluto não distinguia a justiça da perversidade.

Já em cima dos penhascos, ao lado do rude instrumento de vingança, olhou
em volta. Um leve impulso de sua vontade bastaria para se produzir o
formidavel castigo. Conheceu a verdade da lenda:—simples sopro de gente
moveria aquelle penedo tamanho como elle! Um resto d'esperança, porém,
obrigou-o a reflectir. Deitou-se de bruços, arrastou-se para diante... A
cabelleira fulva e farta como uma juba, excedendo o rebordo da lage,
appareceu no espaço. Desvairaram-se-lhe subitamente os olhos:—viu com
todas as minudencias irrefutaveis, aquelle terno idyllio, que resumia
toda a sua desventura. O Chico tinha a cabeça no regaço da pastora. Ella
dava-lhe de beber agua fresca pela sua tigela de barro vermelho. Era o
quadro da Samaritana, dessedentando o tranquillo Nazareno, junto do poço
biblico, na velha Palestina. O rosto pallido do rapaz, emmoldurado em
cabellos pretos, tinha a sonhadora expressão de Jesus. Embebidos um no
outro, prolongavam a existencia, na intensidade do sentir!...

Porém elle tambem era homem, tinha direito á felicidade como todo o sêr
vivente. Se a Tonia lhe não havia de pertencer, melhor era acabar com a
propria vida, que lhe não prestava! Havia de elle aniquillar-se, e os
outros haviam de ficar n'aquellas serras queridas? Não lh'o acceitava a
mente perturbada!

                  *       *       *       *       *

Os miseros estavam mesmo por baixo da Pedra-suspensa! A vingança
n'aquelle cerebro, tomou fórma exacta o real, sem poeira de lendas.
Podia esmagal-os, como dois sapos nojentos!... D'esta maneira, acabariam
n'um instante duas vidas incompativeis com a sua felicidade. A morte
para todos tres era uma solução de suprema justiça. A fé supersticiosa
das montanhas tinha-o abandonado; o pobre ficara só, recolhido na sua
dôr infinita!

Mesmo de bruços, principiou a recuar. O seu olho calculador e vingativo
vira, que impellido o penedo, os dois morreriam, estreitamente unidos,
sem tempo para um ai! Havia de ser fulminante esse acabamento como o
causado por um raio de cólera divina! Poz-se em pé, sobre a lapa, a
parallelo do instrumento fatidico. Veiu de novo a visão sanguinea! O
panorama em frente appareceu-lhe envolvido em linguas de chammas! Era o
primeiro signal do tremendo castigo, ha seculos esperado! Um impulso de
cyclone dominava-lhe a vontade. Decerto era Deus que assim o mandava
castigar dois peccadores.

Com a força nervosa e a serenidade d'um illuminado, applicou ao granito
o largo e potente dorso. Demorou-se ainda alguns instantes!... Seria
indecisão?... Era o gozo de ouvir estranhas vozes de coragem e applauso,
bramindo-lhe dentro do craneo! Em volta, já começava claramente o
desmoronamento do universo! E o impavido cabreiro, soltando um ronco
selvagem—medonho grito de féra!—tombou a Pedra-maldita!


                                   V


Não se descollaram do ultimo beijo os dois ternos amantes. A altura era
enorme. No espaço produziu-se um som abafado e largo, que foi de
quebrada em quebrada, pulsando até ao coração da Terra! O Russo
conservou-se em cima da lage, firme, contemplativo, como o Stylita.
Parecia tomado d'assombro! Os seus olhos de louco, viram pedaços de
carne e o sangue atirados para o céo! Aquillo teria sido malvadez?!...
Arrependeu-se de subito, ou quiz envolver-se no aniquilamento geral?!...
Não poderia sobreviver a tamanho crime, ou eram os demonios que o
reclamavam, como sua prêsa?!...

Approximou-se resoluto da borda da fraga! Em baixo o mundo cambaleante e
confuso, era um grande incendio, surgindo de trevas absolutas.
Diabolicas figuras cruzavam os abysmos, á procura de victimas e
sinistros. Gritos infernaes sahiam das boccas escancaradas dos pincaros,
como jactos de lava! Olhos vermelhos de demonios fixavam-no ironicos e
cubiçosos! Abriu os braços n'um gesto de supplica e perdão, atirou-se ao
espaço como um abutre de amplas azas e o seu grande vulto, rolando pelo
ar, parecia vir da eternidade, na primitiva condemnação! Sobre a mole
granitica impellida pelo seu desespero, esmagaram-se-lhe as carnes e os
ossos! O sangue espirrou, tingindo de vermelho a relva circumdante. Era
tudo quanto restava, d'uma paixão desesperada e selvagem!...

                  *       *       *       *       *

A manhã de primavera, tranquilla e sumptuosa de luz, alegrava montes e
campinas. Enfeitavam as encostas, o codeço e o tojo, rebentados d'entre
as penhas, cuja negrura avivavam d'amarello. As myriades de flôres dos
urzaes, formavam tufos d'aljofares e d'amethystas nas aridas córgas. O
feto novo era como uma extensão de relva, pelo verde claro. O modesto
trevo e o alegre malmequer, salpicavam a terra. Gottas d'orvalho como
lagrimas, rebrilhavam penduradas das flôres da giesta. As mattas
silenciosas iam acordando com o gorgeio dos passaros. Nos fundos abysmos
das montanhas, formavam lagos os pardacentos nevoeiros. Passado o
primeiro momento de susto, os rebanhos continuaram a retouçar nas
hervas, diante da gloria do sol deslumbrante. As aguias pairavam
magestosas, ao longe, sobre os mais altos cumes. Toda a natureza
palpitava e se engrandecia, sob a acção impulsiva do calor. Nas serras,
nas brandas, nos ribeiros, nos cabeços, nos valles... uma tranquillidade
pathetica de vida natural. Sobre os telhados das aldeias levantavam-se
os fumos domesticos, brandamente, como fumos de incenso sobre os
altares. Em volta a muda altivez da soberba e impassivel montanha!...

Só uma voz lamentosa se ouvia na socegada amplidão: era a do rafeiro, o
amoravel Rabicho, que em redor da Pedra, chorava a pobre Tonia.

E chorava a cortar a alma, como se fôra um christão, ganindo, uivando,
aos saltos em volta dos cadaveres!... Amoravel rafeiro, pobre Tonia,
desgraçados amantes!... Ah!...

Lisboa—Novembro de 1888.



                              FOGO DO CÉU

                                                    (_a Sousa Martins._)


                                  I


A meia encosta da montanha subia a estrada de macadam, qual longa facha
branca collada em fundo escuro. Tarde nevoenta, atmosphera pesada e
electrica! As pessoas nervosas sentiam-se impacientes, com desejos
fulgurantes e insaciaveis de imaginações inquietas. A necessidade de
movimento, a agitação do corpo tornava-se imperiosa. Cada um procurava o
esgoto rapido da sensibilidade que o affligia, o aniquilamento do
proprio ser, com o fim de se encontrar no remanso bonançoso de uma vida
serena e repousada, como as aguas de uma lagoa. Mary logo de manhã se
levantara mal disposta, a carne em sobresaltos, uma intensa vontade de
chorar. Pediu de tarde a seu pae que a acompanhasse n'um largo passeio a
cavallo, galopando para longe, á descoberta de novas sensações, em
horisontes infinitos, onde a vista se perdesse.

O velho cedeu apesar da ameaça de chuva. Mary precisava do rosto
açoitado pelo ar fresco, sentir o arripio do vento nos cabellos, escutar
o ribombo da trovoada desenvolvendo-se a distancia.

Lá iam os dous, pela estrada de macadam, a par como namorados: elle com
a sua barba branca collada ao peito, Mary olho febril, o rosto em
desafogo, o véu azul fluctuando como flammula. Os cavallos ás upas,
garbosos, correndo ao desafio: _Joe_, o de D. Francisco, calmo e
magestoso; _Luck_, o de Mary, franzino, mais audaz, resfolegando
impaciente.

—Mary. Quando vier a chuva?!...—disse o receioso velho.

Que importava! Não lhes tinha succedido isso d'outras vezes? Era um
episodio, uma diversão da monotonia ordinaria da vetusta casa, entre
carvalheiras, com o som plangente do orgão espraiando-se sobre os campos
desertos. Os nervos imperiosos exigiam-lhe commoções, fortes balanços de
galope, sacudidellas nos musculos entorpecidos, uma boa molhadela
emfim...

Continuavam intrepidamente para o cimo da montanha, distanciando-se do
povoado. O horisonte de cada vez mais largo, a paisagem variando em
cambiantes de luz; na ribeira os terrenos, ermos de cearas, ás arvores
tristonhas e outomnaes, os fumos domesticos erguendo-se lentamente no
ar, como louvor religioso.

Era no mez de novembro: as folhas sêccas accumulavam-se nos recantos dos
caminhos—despresadas depois de ephemera vida, e de terem com o seu viço
de rebentos novos alegrado a encosta. Á maneira que os cavalleiros
subiam para o alto, as montanhas desenrolavam-se-lhes n'um aspecto mais
uniforme e esbatido, pela distancia de muitas leguas, como se fôra
ondulado de mar subitamente solidificado n'um instante mais calmo. Os
bosquesinhos de carvalhos, nascidos das aguas a rebentar nas quebradas,
eram nodoas attestando a sensibilidade da vida, a circulação da seiva
n'aquella aridez arrogante de terrenos ingratos, cobertos de tojo e de
alcantiladas penedias. Os campanarios destacavam-se pela brancura da
cal, tristes e solitarios, os sinos mudos. De cada vez se encastellavam
mais nuvens no horisonte, tomando aspecto torvo de ameaça. O ribombo do
trovão ennovelava por cima das cristas dos grandes outeiros. Havia no ar
um sentimento de anciedade, uma como paralysação de vida, um spasmo em
toda a natureza! Respirava-se mal, a accumulação electrica opprimia o
peito:

—Mary; seria melhor voltar!...

—Só até lá cima, meu pae!...

Os cavallos excitados pela corrida, de cada vez consumiam maiores
distancias. Luck, delgado e nervoso, parecia o hippogriffo lendario,
voando por sobre geleiras, levando a vaporosa fada n'um sonho
scandinavo. Sentia a febre da mão que sustinha a redea; ao seu dorso
arqueado communicavam-se as correntes nervosas do gracil corpo de Mary.
Joe, o do fidalgo, apesar de mais pausado era valente, e acompanhava-o
garboso.

Caminhavam subindo sempre, no parecer ao desafio com as nuvens grossas e
plumbeas, gravidas de trovões e raios, que passavam no espaço, n'uma
jornada apocalyptica.

Para onde iriam essas nuvens de tempestade? Onde pararia Mary, loira, o
rosto animado, impetuosa, franzina, a imaginação ardente a pedir largas
paisagens, o coração oppresso a desejar atmosphera mais leve, que os
pulmões respirassem desafogadamente?!...

Chegaram ao vertice da estrada. Para a esquerda havia montanhas sombrias
e estereis; porém era completa a solidão e o desamparo!

Descobriam aldeias e casas, a muita distancia, n'um ajuntamento de
defeza contra os perigos dos ermos. Haviam caminhado em largo galope
além de uma hora, distanciando-se sempre do povoado. A antiga morada
d'onde tinham partido, só pelo tino acertariam onde ficava! Mary
quedára-se a olhar com ousadia, para o céu e para a terra, o corpo mais
livre, o querer amplo, a imaginação em maior tranquilidade. Esta
uniforme paisagem de serranias que se pegavam umas nas outras, com um
tom azulado e vesperal era de immensa pacificação. Porém as nuvens
caliginosas condensavam-se já perto, o regougar do trovão aproximava-se
a olhos vistos, a propria natureza parecia preoccupada, emquanto Mary
sorria deliciosamente ao céu plumbeo, ás montanhas ondeantes, ao valle
cheio de arvores amarellentas, que levantavam para o ar braços em
supplica.

Dous pequenos pastores, de certo irmãos, desciam apressados dos
pincaros, trazendo o seu rebanho. Receiavam chuva grossa e trovoada,
eram muito pequenos e supersticiosos, vinham com ancia de se recolherem
á protecção de Santa Barbara bemdita, e de lhe resarem junto da lareira,
onde arderia o canhoto do natal, amuleto contra as iras do céu. Irmão e
irmã, teriam dez a doze annos, rotos e pobrissimos, aspecto triste e
desconfiado. Os cabellos em desalinho, descalços, as pernas arroixadas
do vento cortante dos montes! Desciam espavoridos, correndo pela encosta
abaixo, acompanhados do cão e do rebanho, tudo juncto em grande
confusão. A sua pobre choupana coberta de colmo estava no sopé da
montanha. Conheciam o tempo, não havia que esperar, a trovoada
aproximava-se, não tinham valor para a aguentar sósinhos lá em cima.
Mary, com os olhos pregados n'elles, vendo-os a rebolar aos saltos pelo
monte, encarecia, na sua boa alma, a conformidade, que adivinhava
n'aquella vida humilde:

—Meu pae, aquelles pastores, aqui sósinhos!...

Já saltara do cavallo, esperava-os para lhes fallar, interrogal-os
ácerca da sua pobreza que devia ser incommensuravel, dar-lhes alguma
cousa para o agasalho do corpo.

Cahiam ruidosamente as primeiras gottas de chuva. Grossas como landes
varejadas de carvalheiras por ventania aspera, espapavam-se no pó da
estrada. Havia forte ruido no ar; ao parecer, mão herculea impellia de
grande distancia punhados de areia: era o bater secco do granizo sobre
os terrenos, sobre as penedias e nas folhas amarellentas dos raros
carvalhos. A turbação atmospherica augmentara subitamente, escurecera
tudo em redor. Os trovões roncavam perto, semelhando o unissono cavo e
amedrontador de milhares de carroças rodando juntas.

—Onde nos havemos de recolher, Mary?—disse D. Francisco.

Em qualquer parte. Sob aquelle frondoso castanheiro, que ali perto
nascera isolado n'um tenue veio de agua que resumbrava na base de um
penedo. Os cavallos tinham na pelle tremuras de susto; levavam-nos pela
redea para o designado abrigo. Os miseros pastores chegavam n'esse
momento á estrada, inquietos, receiosos de que as ovelhas se lhes
trasmalhassem e como a chuva engrossasse rapida e subitamente,
recolheram-se com o gado n'uma grande cova, de proposito aberta no
flanco do monte, para estes casos, ali frequentes. Mary e seu pae,
protegidos pelo velho castanheiro olhavam silenciosos e contristados
para aquelles rotinhos e humildes, em monte com as ovelhas, cheios de
inquietação com medo que o trovão apavorasse os animaes. E do interior
da cova consideravam cheios de admiração aquelles senhores de aspecto
tão rico e maravilhoso, mais bello do que o dos santos da igreja.

As bategas de agua cresciam em força, o ribombo troava com arrogancia
por cima dos pincaros eminentes. O fidalgo observava o ar com serenidade
receiosa, a solemne barba branca de patriarcha biblico cobrindo-lhe o
largo peito. O vento soprava com violencia, os movimentos ondulatorios
da atmosphera formavam vagas, como n'um mar aereo. Tinham desapparecido
as povoações, os campanarios, os cimos das montanhas por traz da
densidade da chuva. Restringira-se-lhes a muito pouco a área visual,
tudo estava coalhado n'uma densa nevoa, o aspecto das cousas era
indefinido e vago.

—Durará muito?—disse Mary apprehensiva.

Estava a vêr que sim.

Fizera mal em não ter cedido ao aviso de seu pae. N'aquella vasta
solidão principiava a sentir-se n'um desamparo tenebroso. Ennegrecia-lhe
o espirito com a apparencia lugubre das penedias suprajacentes. D.
Francisco vendo-a pallida e contrariada, apparentava agora conformidade
e riso, para a fortalecer. Tinha medo de algum desanimo, de qualquer
crise de nervos. Era esta a querida filha da sua alma, o seu unico
enlevo, a alegria, o conforto no despovoado da viuvez e da velhice. Mary
sentia na alma a amargura de ter contrariado a previdencia do bom velho,
de quem era a luz dos olhos. O aspecto do céu de cada vez mais orgulhoso
e ameaçador.

Os sons medonhos reforçados nas quebradas dos montes, rolavam como
grandes e implacaveis penedias, que viessem lá do alto para tudo
aniquilar. Já os trovões concorriam de todos os lados, arrogantes e
magestosos, rebentando perto em estalidos breves e seccos, como milhões
de taboas a baterem umas contra as outras. Laminas de fogo de coriscos
rasgavam o ventre das nuvens e esta luz luarenga cobria a paisagem de um
tom funereo. Havia no ar uma escuridão de caverna sem que a noite já
começasse a abraçar o mundo no seu amplexo triste. A natureza em combate
tinha olhar terrificante. Nem o conjunto de toda a artilheria do mundo,
cem vezes augmentada, vomitando ao mesmo tempo granadas e materias
inflamaveis pela bocca redonda dos seus canhões, daria ideia d'esta
formidavel batalha, ferida nos paramos sombrios do ar.

—Meu pae!... tenho medo!...—confessou a corajosa Mary.

As ovelhas conservaram-se junto dos pastores mettidos na sua cova, como
timidas creanças perto de sua mãe. Os pequenos de joelhos, as mãos
erguidas, em lagrimas de receio pediam misericordia em altos gritos
dirigidos a Deus clemente. Desejava D. Francisco animal-os,
soccorrel-os, trazendo-os para juncto de si; porém não lh'o consentiam
as catadupas de agua, que já vinham pelas gargantas dos montes sahir ali
perto, em formidaveis ribeiros. Elle ainda conservava Joe pela redea;
porém Mary já havia abandonado Luck, que de olho allucinado, e tremendo
em todo o corpo, resfolegava com estrondo pelas narinas largas. O pavor
crescia, o formidavel estalido do trovão rebentava quasi sobre o
castanheiro, innumeros relampagos fuzilavam ao mesmo tempo pondo-lhes o
espirito em confusão.

—Tenho muito medo, meu pae!—confessou Mary, tremula e agitada.

Como poderiam sahir d'ali? Impossivel!—ponderou o coração amargurado do
velho. Esperava que a furia da tempestade diminuisse, que o horror do
trovão abrandasse, que o fogo dos relampagos lhes não tirasse a vista,
que a chuva fosse menos copiosa... A pobre Mary já o não ouvia, pallida
e assustada, sentiam-se-lhe ranger os dentes, a ella que sempre fôra a
ousadia, o denodo, o vigor moral de seu pae.

Os dous corações batiam n'um ambiente de terrores, os ares incendiados
por chammas infernaes, os ouvidos surdos por causa dos pavorosos sons
que desciam do céu, ou resurgiam das corcovas da montanha. De toda a
parte o mundo parecia ameaçado por castigos e invectivas de morte. No
bojo largo e mysterioso das nuvens parecia esconder-se, ainda
silenciosa, a suprema voz da infinita maldição! Vencendo espaços com o
desespero dos demonios escorraçados do céu na noite biblica, essas
nuvens pareciam que accarretavam do começo dos tempos a punição de
crimes accumulados por seculos de perversidade!...

Os aterrados pastores continuavam de joelhos, as mãos supplicantes,
pedindo misericordia em agudos gritos. A convulsão do franzino e esbelto
corpo de Mary communicava-se ao tronco do castanheiro frondoso e para
ella todo o mundo se sentia abalado e tremente. D. Francisco
abandonou-a, por um momento, emquanto procurava colher as redeas de
Luck, que se ia separando encolhido e agitado.

A confusão de todas as cousas attingira n'este instante imponencia
d'assombrar! Um forte e vibrante estampido, acompanhado de illuminação
subita de raio, rebentou sobre a arvore protectora. Luck então fugiu
espavorido; Joe repuchou fortemente o braço do fidalgo, que se sentiu
cahir, as pernas sem vigor. Instinctivamente, D. Francisco, lança os
olhos para o castanheiro, e vê no rosto funereo de Mary extinguir-se a
vista, o tronco flexivel como um vime inclinar-se, todo o corpo, qual
estatua de alabastro, cahir sobre a terra n'uma compostura
sepulchral!!...


                                   II


Fora fulminada? estava morta?!... O rosto de seu pae era de um pavor
dantesco!... Luck despenhara-se pelo monte, em saltos infernaes! Joe,
menos nervoso, tremia humilde junto de seu dono.

O desditoso velho atirou-se com desespero sobre o corpo livido de Mary,
que vira pender como uma açucena, impellida por vento maldito.
Encontrava-a sem energia corporea, o aspecto de completa ausencia de
sensibilidade, os olhos meio cerrados. Queria aquecel-a com os seus
carinhos, dar-lhe o movimento do proprio sangue! Estreitava-a nos
braços, agitava-lhe o corpo, sacudia-a para lhe dar vida. De apavorado
emmudecera, não tinha lagrimas para exprimir tamanha dôr; mas por fim a
sua voz rugiu formidavel como a do leão, como a do mar, como a da
tempestade:

—Mary!... Mary!... Accorda, Mary!...

As creanças tinham corrido n'um instincto de soccorro. Augmentavam a dôr
do quadro com o chôro desesperado, que acresciam ao do inconsolavel pae,
que chamava sua filha em altos brados dirigidos ao céu crudelissimo.

D. Francisco erguera-se, com o corpo de Mary intimamente unido ao seu.
Que loucura esta! Pensar em reanimal-a communicando-lhe o seu calor,
dar-lhe sensibilidade com o vigor do affecto, fazel-a soffrer com a
grande e immensa dôr que o suffocava! O corpo estava exanime;
pendiam-lhe os braços, cahia-lhe a cabeça, as pernas sem energia, o
tronco vergando-se como um junco. O ribombo do trovão continuava atroz:
os relampagos successivos illuminavam as serras lugubres, as altas
penedias de uma grandeza cyclopica, as humildes aldeias e campanarios,
as veigas de uma passividade mortal.

—Chamae gente!... Chamae gente!...—gritava D. Francisco aos pastores,
que d'elle se tinham acercado n'um intento piedoso.

As creanças identificadas com aquelle soffrer incomparavel, gritavam
inutilmente! Quem as ouviria? O logar ficava longe, a sua casa distante,
a magestosa garganta da tempestade engulia-lhes a voz.

Talvez o velho cabreiro esperasse a primeira aberta para lhes vir em
auxilio!... Unica e misera esperança!...

Os enxurros desciam ovantes em catadupas pelas gargantas dos montes: os
caminhos eram ribeiros, nas fundas corgas sussurravam as aguas como
grandes rios, a ira do céu parecia crescer a todos os momentos.

—Chamae gente!... Chamae gente!...—repetia o fidalgo com o corpo de Mary
estreitamente abraçado, exprimindo no semblante a maior dôr que no mundo
possa existir.

Clamavam as creanças com maior desespero e força; porem as suas vozes
perdiam-se no infinito espaço. Um instante houve em que esses gritos
foram triumphaes, como se um soccorro afortunado viesse espavorir a
desgraça.

—Pae!... Pae!...—exclamaram com alvoroço.

Era o robusto montanhez que despresando perigos, subia em corrida a
encosta, para proteger os filhos, e livrar o rebanho das correntes
impetuosas.

Ao deparar com a scena horrivel que os pequenos lhe apontavam, como
produzida pelo fogo sinistro do raio, a sua mudez e espanto eram
formidaveis. Obedeceu como automato aos monossylabos de D. Francisco,
ageitando-lhe o cavallo para elle montar.

E emquanto montava, as suas rudes mãos e os braços negros de rachador,
sustentaram por instantes o franzino e gracioso corpo de Mary, para o
entregar ao velho, que o recebeu com sofreguidão e ainda com
esperança!...

                  *       *       *       *       *

D. Francisco voltou n'um galope desesperado, a filha amantissima
achegada ao seio caloroso. A sua ideia era alcançar em minutos o portal
da querida habitação, mandar uma legião de criados á procura de
soccorros que lhe restituissem Mary. Joe parecia identificado com a
grandiosa tragedia que se passava na alma de seu dono! Era uma corrida
de phantasma, atravez dos espaços do primitivo cahos! Um homem robusto,
ainda que velho, cabello e barba sujeitos ao vento, despresando chuva,
trovões e relampagos, galopando furiosamente com o corpo de uma donzella
estreitado nos braços, era o que viam passar attonitos os raros
viandantes. Paravam tranzidos de espanto, ninguem se oppunha a esta
marcha do desespero, e só exclamações se ouviam:

—É o fidalgo!... É o fidalgo!...

Joe sentindo a força da alma lugubre que o guiava, vencia caminhos,
voltava com lucidez, transpunha ribeiros aos saltos. O inconsolavel pae,
ainda na crença de que d'aquelle deliquio Mary poderia acordar,
animava-lhe com monossylabos energicos a vertiginosa carreira, na
direcção da antiga morada de seus maiores. Ali chegou finalmente com o
espolio querido. Portal largamente aberto, porque de longe os criados já
tinham notado a infernal corrida. O corpo exanime de Mary foi estendido
sobre a sua cama de donzella, e logo veio o medico que a olhou com
aspecto dolorido de desanimo!...

Ali estava como n'um leito de morta: a face pallida; os braços molles; o
corpo exhausto, acceitando passivamente todos os impulsos. Não
respirava, não lhe batia o coração, não lhe foi encontrado o pulso. Era
desgraça irreparavel, todas as tentativas seriam infructiferas! Para que
haviam de enfermeiras conspurcar aquelle corpo gracil, se Mary estava
morta, definitivamente morta?! Um raio do céu fulminára a formosa
donzella, flexivel como um vidoeiro novo, candida como o lyrio, risonha
como um cravo! O medico que a vira nascer, e lhe queria como a propria
filha, agarrou-se a D. Francisco, chorando, chorando, sem poder falar!

É que Mary já não existia, o pavoroso raio consumira no seu fogo aquella
rosea existencia! Nunca mais aquelle coração palpitaria de amor, nunca
mais os seus dedos sublimes acordariam sons de musica religiosa no orgão
antigo, nunca mais aquella voz clara como um veio d'agua pura, se
levantaria em preces fervorosas.

D. Francisco não lhe tornaria a ouvir dizer: «Meu pae! meu pae!» Mary
estava morta, definitivamente morta, fulminara-a a colera das nuvens!...



                               VOLTOU...


                                  I


Bons velhinhos os que moram n'aquella casa! N'este domingo sereno de
março, lá se veem sentados á porta, com o sorriso dos modestos e felizes
a florir-lhes no rosto; tem as cabeças protegidas contra o mal da
soalheira e os pés, fóra dos tamancos, para os aquecerem. A veiga, onde
pastam bois, é tranquilla; a subida da encosta, onde rebentam urzes e
codeçaes, está vistosa. Aquelles bons companheiros, casados ha cerca de
cincoenta annos, tem um para o outro o mesmo olhar confortativo e
amoroso do tempo de moços. Miguel conserva impressa na retina a imagem
de quando Luiza era nova: não lhe percebera o nascer das rugas; nem o
desmaiar da pelle; nem a queda dos dentes, que no riso ainda lhe
appareciam como uma fiada branca e egual de rosario de pinhões. Os
cabellos (talvez pela vista enfraquecida) eram as mesmas longas tranças,
negras e colleantes, como lampreias no fundo de rio arenoso. O corpo de
sua mulher mantivera para elle, sempre, a mesma puresa de
linhas—consolidara-se na graça e gentilesa da juventude, não o tinham
abandonado os elementos de frescura e mocidade.

De egual modo, Luiza, via seu marido. Quem estava ali, a seu lado, com
os joelhos ao sol e o lenço de Alcobaça na cabeça, era o mesmo rapaz
valente, trabalhador e sadio, ligeiro como um lobo, que a namorara
quando ella tinha vinte annos. Nem as molhadellas lhe tinham engrossado
as articulações com o rheumatismo, nem as barbas e cabellos eram da
brancura de linho sedoso, mas acastanhados e lustrosos como outr'ora.
Não tivera a edade poder para lhe diminuir a vista: logo que o
emperramento das pernas passasse, vel-o-hiam como o primeiro malho nas
eiras, a primeira enxada no morder da terra, a melhor roçadoura para
derrubar silvedos. Ella que o amparava da cama até a lareira e da
lareira até ao sol, vivia na fé de que o seu Miguel tornaria a ser o
mais celere e desembaraçado homem de todas as redondesas para atracar um
touro que fugisse em descampado, para vencer, d'um pulo, o ribeiro da
freguezia, para pôr em debandada uma feira de troquilhas bulhentos. Não
o vira ella ludibriar magotes de adversarios, ora afastando-os para
longe com um talho de varrer, ora safando-se-lhes com um salto, para
fóra da muralha da gente com que o cercavam? Assim mesmo, meio
entrevado, ainda se não poderiam chegar a elle, nem tres, nem quatro
pimpões, se Miguel tivesse nas unhas o seu pau de carvalho e estivesse
bem encostado a uma parede para só poderem atacal-o de frente.
Experimentassem, querendo, e ver-se-hia se ella não dizia a verdade.

                  *       *       *       *       *

Á porta da casa estavam ambos silenciosos, n'esse secreto e intimo goso
d'uma perpetua conformidade moral, imaginando-se na força do sentir e
sem recearem a morte que podia separal-os, levando um e deixando o outro
a vaguear no mundo, n'uma existencia de lamentos e saudades. Não
pensavam n'este horror, visto que no céu havia um Deus, justo e bom, que
não permittiria tal iniquidade. D'aquella somnolencia feliz,
despertou-os o padre Clemente Carvalhosa, que ora vinha pelo estreito
caminho rente á casa de Miguel.

—É o senhor cura—disse Luiza, falando como se só comsigo falasse.

—Ah! hoje demorou-se mais. É que os rapazes não sabiam a doutrina.
Calaceiros!...—pronunciou o velho, sem levantar os olhos dos joelhos.

O sacerdote adeantava-se com o seu habitual ar benevolente. A batina
ecclesiastica dava-lhe solemnidade ao parecer, e só o passo energico era
signal de que não vinha em boa disposição de espirito. Luiza, logo que o
viu á voz, levantou-se para o saudar; Miguel que tinha, ao lado o pau a
que se amparava, ia a fazer o primeiro esforço para se erguer, quando o
cura, já com a mão na cancella para entrar, disse alto:

—Eh! lá! Para doentes não ha ceremonias!...

—Muito bom dia, senhor. Hoje mais tardinho. Os rapazes não a sabiam,
está de vêr...

—É verdade—informou o Carvalhosa com voz irritada. Talvez peior que no
domingo passado e estamos no fim da quaresma.

—Uma palmatoria senhor! Olhe que isso não vae sem lhes doer.

—E é que o faço!—asseverou com energia o ecclesiastico. Se me obrigarem
a sahir de mim, irá o diabo n'aquella sachristia.

—Vossa Senhoria não é capaz d'isso...—opinou ironicamente Luiza.

—Não sou capaz!? Estás enganadissima! É que vocês nunca me viram pelo
lado do forro. Se me volto do avêsso, vae ahi o dia de juizo.

Miguel offerecendo-lhe o bordão de paralytico aconselhou:

—Com este é que elles se ensinavam. Já lá andam taludos, dos que não vão
a palmatoria.

—É o que elles mereciam, é—applaudiu Luiza.

—Isso tambem não, mulher!—entendeu o cura. Um pau molesta de mais, pode
fazer sangue ou quebrar algum osso. É bastante uma palmatoria puchada
com valentia, como eu o sei fazer. Mando logo chamar o Corcunda para
lh'a encommendar. Deixa que se elles virem, pendurada na sachristia, a
santa Luzia de cinco olhos, não tornam a apparecer sem trazerem o recado
na ponta da lingua.

—Vossa Senhoria—commentou o Miguel—para essas coisas de bater... O
senhor abbade, quando por ahi vinha, sabia-os tosar melhor, se os
garotaços faltavam á obrigação...

O Carvalhosa retomou a sua energia:

—Estás parvo, homem! A questão é fazerem-me chegar a mostarda ao nariz.
Mas vamos ao que serve—disse mudando de tom.—Do vosso Luiz, não tem
havido noticia nenhuma... nenhuma?...

—Nenhuma... nenhuma...—responderam os dois n'um unisono triste.

—E tendes perguntado?

—Se temos!—disse Miguel. Sempre que sei de alguem que chega do Brazil,
se as dores das juntas me dão licença, lá vou ter com essa pessoa... Mas
até agora nada, nada!...

Luiza commentou chorosa:

—São terras onde ha animaes que comem gente!... Quem sabe se alguma
serpente me deu cabo d'elle...

—É celebre!—entendeu o cura. Eu tambem tenho feito esforços para saber
noticias, mas tudo em vão!... É celebre! Pois ainda ha dez annos vos
mandou o dinheiro com que arranjastes esta casa e comprastes os bens por
ahi abaixo e não torna a dar accordo de si! É celebre! muito celebre!
Quem será o ladrão que disfruta, a esta hora, o que elle tanto lhe
custaria a ganhar! Sim, porque elle fortuna havia de ter ganho!

—Isso é o que menos importa—interferiu Luiza. Aqui ha que farte para
elle e para nós. O que queriamos era vel-o vivo e são.

—Pois apega-te com Nossa Senhora da Boa Viagem, que ella t'o trará. Eu
vou-me até casa que são horas de minha irmã ter o caldo na tigella.
Adeus e devoção, Luiza.

—Ah! isso tenho eu, senhor! Promessas e resas olhe que as faço todos os
dias.


                                   II


Havia muitas pessoas na freguezia que se lembravam da partida do filho
do Miguel. Era um rapasinho carinhoso, serviçal e bem comportado.
Delgado de corpo, tez morena, sorriso sempre conformado, fazia gosto
vel-o ajudar á missa; porque procedia com grande promptidão e esmero. No
caracter era a mãe, sempre boa e humilde; no desembaraço o pae, sempre
agil e resolvido. De quatorze annos não havia, por ali, outro para
mandar á villa n'uma pressa de chamar o medico ou buscar um remedio.
Quer fosse de dia ou de noite, quer os caminhos estivessem cheios de
neve ou de lama, o Luiz nunca se escusava, nunca procurou uma desculpa.
Nem o medo do lobo, nem o das trovoadas o impedia de ser prestimoso.
Miguel todo se ufanava com este brio do rapaz, e com a atmosphera de
sympathia de que o via cercado. E quanto a estudo? Isso dizia o mestre
que nenhum lhe levava a melhor nos desafios á taboada, e na doutrina.
Até era uma pena não ser possivel ordenal-o em Braga, para um dia vir
ali dizer uma missa nova, e verem-no do pulpito lançar a voz da
religião. Porém, o Luiz, ainda que o podesse conseguir com esmolas, lá
para essa vida de padre não o chamava a inclinação e toda a sua idéa era
embarcar, para tirar seus paes da pobreza em que viviam e da labuta
constante em que se amofinavam. Apesar do Brazil ser a commum ambição da
gente d'aquella provincia, isto não tinha prognostico favoravel das
pessoas que lhe conheciam o genio perdulario, o gosto que fazia, já em
creança, em dar tudo que possuisse. Um pedaço de pão e presigo com que
lhe pagassem qualquer serviço prestado, logo o repartia com os rapazes
da sua egualha, ou com algum pobre que encontrasse, ou mesmo com
qualquer cão esfomeado que estivesse a olhar para elle quando comia. E
não era porque em casa lhe sobrasse, pois Miguel, n'esse tempo, tinha
mais tres filhos vivos e era elle só a trabalhar, moirejando nas terras
que são ingratas para compensar o esforço rude do homem, que só tem a
sua enxada para as servir. Estava na indole de Luiz dar tudo, repartir
com quem quer que fosse. O coração não lhe soffria o possuir coisa de
que os outros não compartilhassem. Os unicos motivos de zanga de sua mãe
para com elle, vinham de conhecer que lhe roubava pão para os pobres que
passavam, quando ella não tinha bastante para si.

—Tu és tolo, rapaz!—reprehendia-o. Vês que esta fornada me não chega até
á outra, e tiras-me a brôa da masseira! Olha que ainda podes andar como
esses mandriões de pedintes, que só tem por seu mal, não se quererem
achegar ao trabalho.

Luiz ficava triste, por, a santa creatura que era sua mãe, não
comprehender o intimo goso que elle sentia em fazer bem. Amargurava-o
esta idéa, pois não admittia maior consolação do que a de dar, mesmo aos
que não tivessem necessidade. O rosto de agradecimento que os
beneficiados faziam ao receber, era o premio unico a que aspirava. Mas
havia mais alguma coisa n'este animo dadivoso: era o pouco geito de
possuir em proprio, o que quer que fosse. Angustiava-o a preoccupação de
guardar. Viver sempre na abstracção, na inconsciencia do que valem as
coisas materiaes, era a caracteristica do seu coração. O prestar
serviços sem idéa de interesse ou recompensa completava-lhe a indole
bondosa. Sua mãe estava sempre a prégar-lhe:

—Nunca hasde juntar coisa que se veja. Como é que tu queres ir para o
negocio com esse genio?

E porque assim o entendiam todos na freguezia e os proprios paes, é que
muito os maravilhou o receberem, na pobre casita onde os dois velhos
moravam e viviam sós, a visita d'um amigo de Luiz, que lhes trazia uma
ordem para receberem no Porto uma grande somma de dinheiro—uma somma,
para elles tamanha, que os lançava repentinamente na opulencia. Porém,
Luiza, ao apparecimento d'esse senhor todo aceiado, já homem grisalho e
enegrecido na pelle da face pelas soalheiras dos sertões brazilicos, não
se importou nada com a riqueza que elle annunciava e tomando-o como o
precursor de seu filho, logo inquiriu:

—E o senhor conhece-o, o meu Luiz? Está um homem assim alto como é o
pae? E quando é que o temos a consoar com a gente?

A todas as perguntas o mensageiro respondeu de maneira a arrancar-lhe
lagrimas de contentamento. Miguel que, chamado, viera offegante da
labuta dos campos, perguntou, primeiro que tudo, em voz meia
reprehensiva, mas cheia de coração:

—E elle não tem idéa de vêr a gente antes que nos levem para a cova? A
riqueza estimamol-a muito; mas antes queremos a companhia.

O amigo de Luiz enterneceu-se com esta insistencia e consolou os paes
fazendo-lhes graciosamente promessas para que não estava auctorisado. O
dinheiro enviado era o melhor signal de que o filho os visitaria em
breve—disse. Trazia tambem recommendação de lhes lembrar que
transformassem a casa de moradia para o receberem condignamente, e de
que empregassem o restante na compra de algumas terras, que lhes
garantissem uma mediania repousada e sem cuidados.

—Isso—confessou Miguel—até vem a calhar, porque andam em bocca de venda
estes bens aqui em redor.

Para designar a grandeza das terras estendeu pela encosta que descia
brandamente até ao ribeiro, um olhar commovido, acompanhado d'um gesto
de opulencia. Fôra esta a ambição de toda a sua vida. Muitas vezes, só
com Luiza, quando junto da lareira comiam o magro caldo da ceia, elle
reprimia o prazer que o filho lhes daria se enviasse dinheiro para
comprarem aquelles campos, que toda a vida haviam cultivado como
caseiros. Era o seu suor d'elles accumulado sobre a terra, que os fazia
fructificar e lh'os tornava queridos, como uma parte viva e nobre da
propria existencia. Possuir a bella quinta que em volta do seu pequeno
eido se estendia, abrir a agua das poças com a arrogancia de
proprietario, levantar as videiras com a certeza de que eram seus
aquelles braços flexiveis, e ao enterrar a enxada na terra negra e
humosa sentir a convicção de que remexia no que ninguem lhe podia
disputar, de que preparava o solo para resultados que não partilharia
com outrem, era o maior goso que a boa fortuna podia trazer a Miguel. E
tamanha commoção os dois manifestaram, na sua mudez, deante do hospede,
quando designaram com o olhar essas terras, que o recemchegado
perguntou:

—São estes os bens que vocemecês trazem de casa?

—Sim, senhor, aquelles mesmos em que Luiz trabalhou comnosco, indo á
soga dos bois, quando lavravamos. Elle falou-lhe n'isto?

A um signal affirmativo, os consortes, choraram copiosamente. Até
parecia mal ver um homem sadio e forte, como era então Miguel, limpar os
olhos á grosseira estopa das mangas da sua camisa e soluçar com a cara
escondida. Porém aquelle contentamento era mais forte do que elle; em
coração humano não presumia outro egual. Para se desculpar, perante o
amigo de Luiz, ia dizendo por entre lagrimas:

—O senhor não pode comprehender o que isto é. Se soubesse o que me vae
cá por dentro... Estou capaz de estoirar de alegria.

O feliz mensageiro sentia-se transitoriamente envolvido na mesma
atmosphera de felicidade que respiravam os dois casados. Ligando-os a si
n'um só abraço disse:

—O que desejo é que por muitos e largos annos gosem o que tanto amam, e
que isto seja na companhia de seu filho, que estou certo se não demorará
muito.

Depois combinou com elles a maneira de receberem o dinheiro que estava
no Porto, á ordem de Miguel. Para lhes facilitar a empresa já tinha
tractado da transferencia da quantia para a villa proxima, onde da mão
de negociante honrado podiam recebel-a toda d'uma vez, ou parcelada,
conforme melhor conviesse. N'esse mesmo dia, Miguel acompanhou o amigo
de seu filho para pessoalmente ajustarem com o tal negociante o
recebimento em questão.


                                  III


Este notavel successo trouxe á memoria dos do logar o bom rapasinho que
Luiz sempre fôra; como era geitoso no ajudar á missa, como, com
desinteresse sympathico, se prestava a servir toda a gente. Não podia
deixar de ser feliz, quem logo no começo da vida se mostrara tão
diligente e bondoso. Deus, que é justo, ajuda de preferencia aquelles
que o merecem, os que desde o principio se mostram attentos e
respeitosos pelas coisas da religião. Entendiam-no assim e mostravam
como exemplo d'isto a fortuna que acompanhara Luiz para poder alegrar a
existencia de seus paes, garantindo-lhes um magnifico bem-estar, e
proporcionando-lhes o goso de possuirem as terras que sempre haviam
trabalhado.

A proposito recordavam o bello dia de maio em que elle partira. Muitos
faziam o apparato de mencionarem meudas circumstancias, que agora
representavam como se as tivessem deante dos olhos. Repetiam palavras,
apontavam pessoas, e reproduziam detalhes. Que formoso sol o d'esse
tempo! como elle aquecia o corpo e alegrava o espirito! O padre Clemente
Carvalhosa, já então curava a freguezia e, por assim dizer, era o
parocho, pois que o verdadeiro estava frequentemente em Braga, junto do
senhor arcebispo de quem era amigo, e havia annos que por ali não
apparecia. Como Luiz não tivesse vocação para o estado ecclesiastico,
fôra o Carvalhosa quem influira para o mandarem para o Brazil, ver
mundo, fazer-se homem, ganhar a riqueza com que voltasse a engrandecer a
sua familia e a sua terra. Se o bom velho fosse egoista, forcejaria por
conserval-o para o ajudar á missa, tratar das coisas da egreja e
auxiliar o mestre escola. Mais tarde poderia mesmo conseguir-se que
ficasse substituindo José Fortunato, o que era alguma coisa de
representativo. Porém, reconhecendo que aquella intelligencia
naturalmente viva se acanharia na estreiteza d'uma aldeia, o bom cura é
que promoveu, entre a melhor gente da freguezia, uma colheita de
donativos para vestirem o Luiz do Miguel e pagarem-lhe a passagem para
esse Brazil, terra prodigiosa, onde o oiro rebenta das arvores com a
bondade dos fructos que alimentam o homem. Sentia no fundo do seu
generoso coração, que era uma boa obra a que emprehendia. Quem sabia se
não estava trabalhando para o esplendor das festas da sua egreja, para
reformar e accrescentar materialmente a riqueza do templo, attenta a
vocação que Luiz mostrava para as coisas santas? Não seria amesquinhar
as bellas promessas de caracter de rapaz tão bom, tão docil, tão
intelligente, o prendel-o entre aquellas montanhas de limitado
horisonte?

—Mas, senhor,—entendia a mãe—olhe que elle para conservar dinheiro não
lhe serve. Quanto ganhar, quanto dá!

—Cala-te, mulher,—contestou Miguel—deixa ir o rapaz que no mundo é que
elles se armam gente. Tenho-lhe amor, pois é meu filho, mas o senhor
cura é que diz bem.

Aquelle que assim falara com desapego, é a quem mais custou o
desprender-se de Luiz, no assignalado dia da partida, n'esse bello maio
em que o sol aquecia o corpo e alegrava o espirito d'um modo differente
do actual. Luiz com o seu caracter submisso ia de vontade; mas não tinha
n'essa occasião, propriamente idéa de ambição ou opulencia, nenhum
proposito de no futuro deslumbrar os simples da sua aldeia. Commovido e
sem fala, as lagrimas rebentavam-lhe dos olhos, como pingos de seiva
d'uma arvore quando chora. Se seu pae se não podia desagarrar d'elle,
tambem elle se não podia desagarrar de seu pae, nem de sua mãe, nem dos
rapazes que ficavam. No fundo da sua retina estampara-se indelevelmente
e para sempre, toda aquella paizagem da sua alma—a modesta egreja, com o
campanario exterior d'um só sino; o musgo das paredes dos caminhos
estreitos; a largura dos campos onde rebentava a herva; a sobranceria
dos montes altos, artilhados de penedias temerosas! Sentira que a alma,
n'esse dia de sol encantador, se lhe dividira em duas partes: uma ali
ficava pendurada dos galhos das arvores que se enfolhavam, dentro da
pobrissima casa onde nascera, e nas encostas a escutar o gemer das
fontes e dos regos d'agua; a outra, a mais dura e resistente levava-a
comsigo. O cura Clemente Carvalhosa, ainda no vigor da vida e saude,
abençoara-o no limitte da freguezia, até onde o acompanhara, e n'esse
momento, Luiz, supplicante e com as mãos erguidas pediu-lhe:

—Quando a Russa tiver a cria, senhor, peço-lhe que a deixe crescer e que
a não venda, que eu mando dinheiro para a pagar.

A Russa era a egua do cura. O rapasito tinha-lhe grande affecto,
adquirido no habito de a levar a beber, e de a acompanhar quando o
sacerdote ia para algum officio, no que substituira o creado Simão.

Na villa é que se apartou de sua mãe e de seu pae, pois d'ali em deante
seguia na companhia d'outros emigrantes que levavam identico destino. Na
volta, a excellente Luiza, veio considerando se aquella dôr que soffrera
no apartamento incluiria a redempção da sua pobresa. Valeria a pena
tental-a, para quem desde o nascimento fôra destinada á vida do trabalho
e das privações? Quando ella o dera á luz, bem como aos outros que lhe
tinham morrido de bexigas, já fôra na perspectiva de os prender á terra
negra, cavando-a com a enxada, para d'ella tirarem o pão duro de que se
alimentariam. Isto era a vida assente na pobreza e conformidade: o que
Luiz ia buscar longe, o que seria? Com os olhos razos d'agua, a pobre
mulher, só percebia o esbatido d'um mar ennevoado e sem fim, a negrura
d'um mysterio lugubre que formava esse porvir incerto...


                                   IV


Nos primeiros tempos d'ausencia, receberam frequentes cartas repassadas
de affecto e saudade, ás vezes com signaes de lagrimas que ennodoavam o
papel a ponto de se tornarem inintelligiveis algumas palavras. Porém,
passados tres annos, a correspondencia cessou quasi de repente e
espalhou-se o boato de que Luiz morrera, sendo depois isto desmentido
por outros dizeres, egualmente sem base. N'estas alternativas, de luto e
contentamento, passaram-se os dias longos e as noites infinitas,
limitando-se os dois paes a reverem-se no seu passado, modesto e feliz,
acreditando Miguel na eterna formosura de Luiza e esta no garbo e
valentia perpetua de Miguel. Até que um dia chegou esse bom mensageiro,
que lhes trouxe os meios para reformarem a moradia e comprarem as
terras, e com este facto lhes voltou a esperança, sempre risonha e
carinhosa, de que seu filho havia de chegar em breve. Além das palavras
de bom agouro, que o desconhecido deante d'elles pronunciara, receberam,
logo após, carta de Luiz, em que lhes falava com ternura do possivel
regresso e insistia especialmente na velhice tranquilla e abastada que
procurava garantir-lhes. Porém, depois d'este promettedor acontecimento,
que lhes deu annos de prazer emquanto reedificaram a casa,
levantando-lhe um andar, emquanto plantaram videiras e enfeitaram a
quinta, com arvores novas e um bello muro em volta; Luiz nunca mais
escreveu, estabelecendo-se completo silencio, similhante ao primeiro que
parecera de morte definitiva. Fartou-se o padre Clemente Carvalhosa de
lhe escrever sentidas cartas, falando de tudo quanto podia haver de mais
amoravel e terno no coração: a velhice dos paes, que não poderiam
aguentar-se por muitos annos; a commodidade da habitação, que elles
tinham arranjado ostentosamente para o receberem; a belleza e
transformação dos campos em que elle labutara e brincara quando creança.
Até lembrava a recommendação, que Luiz fizera no dia da partida, para
não vender a cria da Russa: a esse proposito notificava-lhe que, tanto
esse animal como a mãe, haviam morrido de velhos, em grande
tranquillidade e ventura; mas que na mesma côrte da residencia havia
outra egua descendente da segunda, que era a estampa viva das saudosas
extinctas. Nenhuma d'estas amoraveis e longas dissertações teve
resposta, o coração de Luiz tinha-se de certo ressequido, pois já não
vivia para tão commoventes memorias. Receberia elle as cartas? Não lhe
seriam entregues por ter mudado de terra?!... É no que assentavam,
afastando sempre a hypothese da morte, como castigo cruel e immerecido.
Mas ao fim d'um crescido periodo de annos, sem noticias de nenhuma
especie, experimentados por muitos e successivos desenganos,
atormentados pelos pensamentos negros que traz a velhice, Miguel disse,
um dia, em voz sumida, para não assustar a companheira:

—Talvez elle morresse... talvez....

Quem sabe?! Ha diversas maneiras de morrer. O corpo póde andar, no
mundo, aos solavancos e encontrões, e ter desapparecido a vida com a
alegria da alma. N'este domingo de março soalheiro, os dois velhos
estavam á porta de sua casa, serenos e meditativos, mas conformados; foi
o bom cura que lhes veiu incautamente turvar o coração, recordando-lhes
o filho morto, ou eternamente desapparecido, o que para elles valia o
mesmo. E quando ambos retomavam a tranquillidade em que estavam antes da
chegada do sacerdote, ficando mudos, com os pés extendidos ao sol e a
cabeça resguardada para que o calor os não adoecesse, sentiram passos no
caminho que bordeja a quinta e viram que um estrangeiro se encaminhava
para elles. Quem seria? Era um homem andrajoso, qualquer viajante pobre
em caminhada para longe. O seu aspecto de miseria commovia... Trazia as
botas cambadas, a camisa suja, as calças roidas; n'um saquito enfiado
n'um pau, levava ás costas, toda a sua riqueza. Que ar esmorecido e
doente! que longa barba mal tratada! como vinha dorido dos pés! Ao
approximar-se da cancella, que dava ingresso no quinteiro, parou
saudando com o chapeu esburacado. Miguel, com vista mais fraca do que
Luiza, perguntou a esta:

—O que é?

O recemchegado é que respondeu em voz de cançado:

—Um pobre viandante que pede uma sede de agua. Dão-m'a senhores?

A velha disse com expressão de carinho:

—Entre, faz favor?... Quanta agua quizer!...

Não mostrou medo, nem repellencia, nem suspeitas d'aquelle homem roto,
que podia ser um ladrão assassino. Foi ella mesma que veiu levantar a
caravelha da cancella, para que elle entrasse, pois que o via sem forças
para tão pouco... Conhecia-se que estava enfraquecido pela fome e pela
longa jornada. Quem seria este misero de aspecto tão soffredor? Algum
d'esses infelizes que vivem afastados durante muitos annos de todas as
affeições e carinhos, e voltam ao seu lar depois de longa e dolorosa
penitencia. O recem-vindo sentou-se n'uma tosca pedra que estava perto
de Miguel, pousando ao lado o pobre saquito, que era a sua riqueza. O
penoso suspiro que do peito lhe sahiu ao descançar, condensava, de
certo, uma vida aspera de soffrimento e exprimia talvez o desejo d'um
periodo de socego, ainda que fosse na sepultura. Quando Luiza veiu de
dentro de casa, com a malga, branca de jaspe, cheia d'agua limpida e
fresca, elle tomou-a nas duas mãos, emborcou-a com satisfação, tendo no
fim de beber um respirar de saciedade. Os seus olhos amortecidos pela
desgraça, tiveram brilho carinhoso e contente ao restituir a malga.
Agradeceu este favor com um sentimento que lhe veiu do fundo d'alma:

—Deus-lh'o pague!—disse.

Conservou-se silencioso durante muito tempo, a cabeça curvada para o
peito, como um vagabundo que na alma procurasse o seu destino. Os dois
velhos contemplavam-no compadecidos: nos seus corações amoraveis e bons
apparecera um sentimento de infinda piedade. Não tinham elles tambem um
filho, que assim andava perdido no mundo, vagueando por longes terras? O
bem que elles, a este desconhecido, podessem fazer, outrem, no ponto
distante onde estivesse Luiz, o retribuiria, soccorrendo-o se elle
necessitasse. Com o instincto dos que são captivos do infortunio alheio,
advinhavam que junto d'elles estava um infeliz precocemente avelhentado.
Não procuravam, com perguntas desnecessarias, perturbar-lhe a paz que
elle parecia ter encontrado sentando-se n'aquella pedra, a olhar
meditativamente o chão do quinteiro. Adivinhavam-lhe, pelo aspecto,
soffrimento que na sua vida obscura e modesta, elles nunca tinham
sentido. Por esse mundo fóra, as desgraças engrossam, ás vezes, tão
rapidamente, como o ribeiro que passa no fundo da aldeia, quando recebe
as torrentes pluviaes, vindas a roncar pelas encostas e pelos caminhos.
Que significaria o silencio dolorido d'este desgraçado, que nos restos
do seu vestuario deixava perceber signaes de que no mundo tinha sido
alguma coisa mais do que aquillo que ora apparentava?!...

O viandante levantou lentamente a cabeça. Primeiro fixou a vista
agradecida, amoravel e sem reservas nos que lhe tinham morto a sêde.
Apesar da estranheza d'aquelle semblante, não causou aos dois velhos
impressão, de que fosse o de algum doido que andasse desgarrado pelos
caminhos da aldeia. O seu olhar era absorto, mas tranquillo e bondoso.
Ainda que estranho ali, não lhes causava receio, nem pavor. Ao
contrario: do imo da sua sensibilidade subia-lhes, a favor do misero, um
formoso grito de benevolencia e compaixão. Aquella testa sulcada pela
desventura, o rosto macerado pela desgraça, dizia alguma coisa de
pacifico e sublime, como a luz sahindo de entre nuvens caliginosas no
meio de rude tempestade. Os dois septuagenarios reconheciam que a
apparição de tal infortunio estava tomando sympathico logar na sua
pacifica existencia... «Este desconhecido —pensavam—ainda que em
qualquer tempo de sua vida, tenha sido mau e perverso, agora só parece
ser desventurado!» Isto originara-lhes no seio a mesma piedade que
sentiriam se áquella casa se viesse recolher um lobo ferido, ou mesmo,
se um abutre lhes cahisse exanime junto da capoeira de que fôra o
flagello. Esses animaes, tantas vezes escorraçados com alaridos de
colera, teriam elles animo de os acabar, quando os reconhecessem
indefezos e supplicantes nas vascas da morte?! Não: o findar da vida
merece sempre compaixão; a desgraça redime de todas as culpas perante os
corações bons e sensiveis.


                                   V


Mas este pobresinho não era perigoso e não poderia nunca ter sido
perverso: tamanha era a uncção maguada e soffredora que exprimia o seu
rosto retalhado pelas rugas, o seu olhar extincto pela longa miseria!
Havia n'elle tanta meiguice e affecto que só lhes provocava misericordia
e caridade. Se o pedisse não lhe recusariam agasalho em sua casa. Que
valia um logar junto da lareira, uma manta para cobrir os lassos membros
sobre um pouco de colmo, uma tigella de caldo para aconchegar e
fortalecer o estomago? De mais tinham elles, sem pessoa a quem o
legassem. Uma obra de misericordia, offerecida por intenção d'aquelle
que lhes dera o bem-estar de que gosavam, era acto meritorio que lhes
consolaria o espirito e teria certo apreço perante Deus. Uma voz
interior affirmava-lhes que ali estava um infeliz digno de piedade: e
sem muito saberem porque, ia-lhes dispertando sympathia o sorriso lento
que na sua expressão se abria, á maneira que contemplava os dois velhos,
que examinava a casa toda caiada de fresco, a latada que cobria o
quinteiro, e o saudavel aspecto dos campos da propriedade em redor. A
horta, ali mesmo ao lado, estava opulenta de couves e grellos; as
borbulhas das videiras principiavam a engrossar; a temperatura era
tepida e carinhosa; o misero parecia respirar, n'este ar, felicidade
nova e paradisiaca. Similhava um cego, desde muito privado do goso da
vista, que readquirindo-a de surpreza, entrasse gradualmente n'um
periodo de enthusiasmo lento; ou então, o homem que recolhido, por
longos annos, em lugubre masmorra, fosse restituido á liberdade e á luz
durante um somno, achando-se incredulo pela ventura reconquistada.

Este silencio demorado, e o demorado exame que o estranho estava fazendo
de tudo quanto em volta se via, principiava a enredar em pensamentos
vagos Luiza e Miguel. Primeiro passeara em volta com os olhos do corpo;
mas depois, uma alegria crescente, lhe fôra desabrochando no rosto
escalavrado, a custo, como rebenta a bonina em terreno duro. Os velhos,
apesar de suggestionados por aquelle todo de bondade e infortunio, houve
um instante em que na mente lhes passaram receios, julgando-se agora na
presença d'um louco. Pois que podia significar esta mudez, quasi
familiar, da parte de quem ali era estranho e entrara sob pretexto de
pedir uma sêde d'agua? Não se atreviam a interrogal-o, pois grande é a
timidez da decrepitude. Annos antes já tudo estaria aclarado: pois que
Miguel sempre fôra homem de grande desembaraço e não teria papas na
lingua para perguntar quem era e o que queria do mais. Agora, porem, a
edade e o corpo paralytico influiam no acanhamento do animo. Os
septuagenarios entreolharam-se, volvendo ambos, depois, a vista para o
peregrino ao qual Luiza disse:

—Parece gostar muito d'este sitio...

—Oh! muito!—exclamou. Tudo isto lhes pertence?

Circumdou de novo o olhar pelo eido e pelos campos, extendendo-o até ao
pinhal que se erguia n'uma ligeira collina.

—Em quanto Deus quizer—respondeu Miguel. E vocemecê d'onde é? para onde
vae?

O desconhecido teve no rosto uma expressão de infinita paz e
tranquilidade, que não deu idéa clara do seu pensar e destino. Sorria
ligeiramente, com a incomparavel doçura d'uma creança a sonhar. Olhou os
dois como se olham amigos e, Miguel, animado por esta expressão
confortativa, ponderou:

—Sim; porque vocemecê ha de ter por força uma terra...

—Tenho, tenho uma terra...

E ficou attento para o chão inculto do quinteiro, como se sentisse
difficuldade em designar o ponto do globo, onde essa terra se talhava.

Recahiu no silencio carinhoso que até ali conservara, mas com rosto tão
aberto em bondade que, de todo, deixou de causar receios. Examinou a
limpeza da casa em que os velhos moravam, e pensou na conformidade de
existencia que dentro d'ella se passaria. Reinava, decerto, n'aquelles
entes, a feliz paz da consciencia; desconheciam as perturbações agitadas
da vida das cidades. Não pensavam em alardes, nem tinham ambições:
talvez durante todos os seus annos, nem uma só noite tivessem abandonado
aquella ditosa morada. Quem sabe o que o estrangeiro estaria calculando
na sua mente, que pensamentos de felicidade o estariam a encantar!?...
Talvez, depois de vida desventurosa, viesse encontrar n'aquelle quadro
simples o primeiro refrigerio para as suas dores, a primeira idéa clara
do que é a ventura. Os pacificos septuagenarios, pareciam comprehender,
que o seu viver ditoso estava reconfortando a alma do misero que tinham
na sua presença. Além de não ser rasoavel negarem-lhe um tal balsamo,
encantava-os que assim fosse. Por isso, orgulhosos da sua modestia,
deixavam que o homem andrajoso tudo apreciasse, sorridente e sem inveja.
A casa juncto da qual se encontravam tinha aspecto de nova, as janellas
com vidraças viam sobre a latada do quinteiro, o alpendre, debaixo da
varanda deitava para o lado do caminho, uma escada exterior mostrava
ingresso ao andar de cima—accrescente feito para a chegada de Luiz, se a
Deus prouvera, guial-o um dia para ali. Como fossem inimigos de
grandezas, apesar da casa assim reformada, nunca abandonaram a parte
terrea conservando ahi a sua moradia. A cosinha, á porta da qual
estavam, era a mesma em que viveram com os filhos; ao lado havia o
quarto soalhado em que dormiam agora, como sempre. As transformações
n'este pavimento consistiam em que o que d'antes fôra côrte de gado
servia agora para adega, salgadeira e casa de recolher a lenha no
inverno. Ao fundo d'um telheiro, armado cá fóra, é que guardavam as duas
juntas de nedios bois, os mais bellos do logar. O chiqueiro do porco e a
capoeira das gallinhas ficavam encostados ao muro, rente com a casa.
Tudo designava certo bem estar, conforto, e até opulencia, dentro da
modestia de camponezes.

Para onde iria o infeliz, que tinham deante dos olhos não o sabiam,
visto que elle o não quizera dizer; mas o que sentiam, com a intuição
das almas simples, pouco habituadas a luctas, é que sendo a sua figura,
quando o viram entrar a cancella, a d'um infeliz retorcido pela miseria,
agora, ao fim de pouco tempo, e depois de reconfortado na contemplação
de todas aquellas coisas bem arranjadas, parecia mais alliviado do
soffrimento que lhe alquebrava o corpo e a alma. Era outro, tinha-lhe
feito bem o repouso sobre a tosca pedra, refrigerara-o a malga de agua
limpida, consolara-o o aspecto feliz dos velhos que estavam ao sol,
esperando, n'este santo domingo, a hora do jantar parcimonioso, apesar
de na panella haver carne e salpicão que elles ambos comeriam regalados,
agradecendo a Deus tamanho beneficio na velhice. Ao quinteiro chegava o
suave odor do caldo gordo e fumegante, e não tardaria que Luiza se
levantasse para ir á adega buscar o excellente vinho, para o beber de
parceria com o seu homem e pela mesma infusa. Como elles seriam felizes,
se n'esse bello e glorioso dia podessem compartilhar com o seu Luiz, que
uma voz intima lhes dizia ainda viver, este bom jantar! Se tal
felicidade lhes fosse dado poderem gozar morreriam contentes, não
duvidando de que iriam direitinhos para o céu!


                                   VI


O descanço sobre a pedra tosca; o sabor da agua com que o tinham
alliviado da sede do caminho; o banho de luz e tranquilidade em que todo
o seu ser se mergulhara durante longos minutos; e principalmente a
ventura que adivinhava na existencia sempre egual d'aquelles casados de
tantos annos, haviam transformado em pouco tempo o aspecto do infeliz.
Sorvia deleitado o ar que aqui se respirava, sorriam-lhe os olhos na
contemplação d'esta paizagem carinhosa e melancolica, desfaziam-se-lhe
as rugas da face ao renascer-lhe na alma a alegria que, por certo,
n'elle se finara havia muito. Como Miguel o visse mais tractavel e
familiar no aspecto, ponderou:

—Vocemecê estava tão moido, que decerto vem de muitissimo longe.

—Oh! de muitissimo longe!...—repetiu o forasteiro com accento de grande
amargura.

—Talvez d'essa Lisboa!...—entendeu o paralytico.

—Muito mais para lá!...

E fez um gesto largo, d'uma amplidão infinita, acompanhando-o com um
olhar que fôra até aos confins do mundo.

—Do Brazil?—indagou Luiza com ancia e soffreguidão no rosto inquieto.

Um simples aceno affirmativo de cabeça, deu resposta á pergunta. E logo
os rostos dos dois septuagenarios se alegraram, como se em crepusculo
matinal vissem surgir d'entre as penedias o sol nascente. Ao mesmo tempo
tiveram a mesma lembrança. «Quem sabe se este desconhecido nos poderá
dar noticias do nosso Luiz?!...»—pensaram. Porém, antes de o inquirirem,
sustiveram-se n'este pensamento triste: «Como se pode voltar do paiz do
oiro, da opulencia e da ventura, assim pobre, mal trajado e n'um aspecto
tão miseravel e desvalido!» E Luiza, compadecida, considerou com as
lagrimas a rebentarem-lhe:

—Então é que não foi feliz, por lá... Nem todos o podem ser...

—Nem todos... nem todos...—disse o estrangeiro, apparecendo-lhe no rosto
um fulgor de alegria velada por amargura.

—E conheceria por lá o nosso filho?...—perguntou a velha.

—O seu filho! Tem um filho no Brazil?—indagou, o mal trajado, n'uma voz
que se esforçava por ser corajosa e serena.

—Temos—esclareceu Miguel inclinando-se para o interlocutor. Chama-se
Luiz da Silva; mas lá puzeram-lhe o nome de Luiz da Tóca, por ser o nome
d'este logar em que nasceu. Foi e nunca mais voltou—concluiu o velho,
por sua vez, com os olhos rasos d'agua.

Um rubor de incendio subiu á face do desconhecido, que com fingido
esforço, como de quem se recorda disse:

—Luiz da Tóca... Luiz da Tóca... Lembro-me muito bem; vivi muito com
elle, e somos amigos.

No primeiro momento, os velhos quasi se julgaram ludibriados com esta
resposta: tão grande era a inverosimilhança do que escutavam! Pois não
haviam dado resultado as instantes e repetidas diligencias do cura
Carvalhosa, para descobrir o paradeiro de Luiz, e o acaso trazia-lhes ao
pé da porta uma testemunha, que em tudo os podia esclarecer! Porém, a
crença de seus corações n'uma Suprema Vontade, providencial e divina,
era forte, e não duvidaram de que Deus e os santos com quem se tinham
apegado, pudessem mais do que o virtuoso sacerdote. O accento de
sinceridade com que aquellas palavras foram ditas, a expressão de
bondade e espontanea satisfação do rosto do homem que tinham deante
d'elles, excluiam a possibilidade de qualquer ignobil mentira. O velho
Miguel, apesar de meio paralytico, logo se abordoou ao seu pau, para
erguer o corpo doente, com a energia dos antigos tempos; mas a commoção
tornava-lhe insufficiente o esforço. Mesmo sentado ainda poude dizer:

—Pois, o senhor, é que já não sae d'esta casa. Se conhece o Luiz, se é
seu amigo, fica aqui comnosco para nos ajudar a saber d'elle e a
encontral-o.

Luiza, apesar de a lingua se lhe recusar a exprimir tudo quanto lhe ia
na alma, attonita como estava, perguntou em voz tremula:

—E em que terra encontrou vocemecê o nosso filho? Sabe onde estará
agora?

O estranho não respondeu logo. A sua phisionomia denunciava excepcional
perturbação de contentamento, que os velhos não podiam apreciar por
causa da nevoa de lagrimas que tinham nos olhos. Approximando-se, porem,
dos dois, que uniu no mesmo abraço, disse soluçante:

—Seu filho está aqui, meus queridos paes!...

E passada que foi a primeira onda de alegria accrescentou:

—Mas venho muito pobre! Só possuo estes farrapos que me cobrem. Se
soubessem quanto tenho soffrido!

—Pobre!—bradou Miguel com a sua antiga energia, sahindo-lhe a voz do
peito, como o ronco d'um trovão do interior d'uma nuvem. Então de quem é
tudo quanto aqui temos? Não fostes tu que o ganhastes, homem!?

E n'um gesto do seu braço revigorado pelo acontecimento, mostrava a
riqueza que havia: a casa afidalgada, a horta abundante, os campos
relvados que se extendiam para além, as videiras em promessas de
rebentação, e o bello muro que circumdava a quinta todo caiado de novo.

Luiza, voltando os olhos ao céu, pronunciou com as lagrimas a
correrem-lhe em fio:

—Nossa Senhora do Amparo ouviu as minhas rezas. Já podemos morrer em
paz.



                            CRESCE O MAR!...


                          (a Antonio Candido).


Tarde calma e deleitosa! bella tarde de outono! Azul amortecido no ceu e
a briza leve como o pensamento a perpassar na superficie da areia e a
arripiar-se nas penedias que debruam a praia. Baixamar socegado!
Balançam-se nos ares as brancas azas das gaivotas, que vão para o norte;
e as velas dos barcos dos pescadores parecem ao longe outras gaivotas a
emergir das aguas. Está deserto o areal; principia a nascer o marulho do
vago infinito, que vem rolando á superficie como voz cariciosa e meiga.
Avoluma-se de momento para momento, uiva, no começo como um leão
pequeno, principia a dar côr ao silencio, que desce com a tarde lá do
infinito céu. O magestoso sol fulgura, inclinando o facho de luz sobre
as aguas; a poeira d'oiro que o cerca, forma-lhe a fofa cama, onde
repousará durante a noite.

Tarde calma e deleitosa! bella tarde de outono, que, gerando sensações
amoraveis em toda a natureza, attrahiu duas tenras creanças á admiração
do mar argentado, e do mysterio formado de tranquillidade e luz, que no
ar pairava. Eram dois irmãos, filhos de uma viuva, cujo marido o mar
escondera para não mais lh'o restituir, e que morava em frente das
ondas, na esperança de ainda ouvir a voz que a enamorara. O rapasito
teria sete annos, e a pequena talvez cinco... não mais de certo.
Enlevados na serena paz do universo, os leves corações palpitando de
satisfação intima, viviam juntos nas sublimes regiões do absoluto, os
innocentes, olhos pregados no reverbero prateado das aguas, os ouvidos
attentos ao marulho cantante que os chamava como se fôra a voz de seu
pae. Não era a primeira vez que na praia se encontravam escutando
aquella voz suave, d'um rythmo dominante pela dolencia; e até já em
muitas occasiões, a carinhosa mãe os prevenira contra as incontestaveis
maldades, que as ondas encerram. Porem todo esse pavor artificial se
tinha apagado na convivencia do mar, essas ondas que de longe vinham
crescendo em ameaças, desfaziam-se impotentes contra as penedias
dentadas da praia e a espuma branca e leve, como uma illusão, vinha-lhes
lamber a elles, humildemente, os pequeninos pés enterrados na areia.

N'essa tarde calma e deleitosa, emquanto a mãe se demorava na sua labuta
de camponeza, Tone e a Zefa, contemplavam o mar, o pavoroso mar que lhes
prendera o pae, e reconheciam n'aquella tranquillidade bondosa um amigo
que lhes sorria para os namorar. Mostrava-se carinhoso e terno, as aguas
claras deixavam vêr no fundo branco as mais bellas das suas joias:
seixos semelhantes a ovos de pomba; pequeninas conchas vazias e cavas,
como petalas de rosas; algas multicores e rendilhadas; molluscos boiando
agarrados ao musgo das penedias uns, outros presos á pedra formando com
ella um só corpo inabalavel e insensivel. O anteparo dos rochedos
negros, que elles costumavam respeitar nos dias de nevoeiro como
phantasmas que se erguessem do abysmo, e que nas noites tempestuosas ali
permaneciam afrontando impavidamente o perigo, n'este dia e n'esta tarde
calma e deleitosa, eram serenos e fortes arrimos que os defenderiam
contra as ciladas das ondas. As repetidas provas que tinham da sua
estabilidade e solidez afoutavam-nos a consideral-os como protectores
devotados. Pois não era instavel a luz que desapparecia, o céu que
desmaiava, as aguas que se remechiam, a movediça areia que cedia ao peso
dos seus pequeninos pés? Era. Só a rocha, a rocha escura e aspera, lhes
merecia confiança; só ella reconheciam como bastante forte para resistir
ao mar e á furia das tempestades. Para aquellas consciencias nascentes e
timidas as pedras feias eram arrimo unico e protecção contra os receios
escondidos nas palavras de sua mãe, que sempre procurara inimisal-os
contra o mar.

No areal extenso, branco como uma longa teia de linho, Tone levava Zefa
pela mão. Principiava o sol a avermelhar no horisonte. Mais uma vez os
seus inexperientes olhos soffreram o singular deslumbramento de vêrem no
meio da gloriosa chama, os anjos do paraiso com toda a sua bella
legenda; era para lá d'aquella entrada em fogo que existia o céu, o
logar escolhido para o Maravilhoso e Innarravel. Assim o indicou Tone
com a magnificencia do seu saber:

—Olha Zefa: é o céu onde estão os anjos de Nosso Senhor.

A pequenita ficou mais uma vez presa na contemplação da patria
celestial. O seu olhar azul prolongou-se para o infinito, n'uma visão
sublime de candura. O seu imaginar via todas as maravilhas na
athmosphera subtil e impalpavel, no doirado da luz, na angelical
brancura de figuras meigas como a sua alma innocente.

—Como é lindo!—exclamou Zefa.

Foram caminhando, pela branca areia, as mãos reciprocamente apertadas,
sentindo n'este contacto amoravel realidade de existencia e protecção
mutua. Dirigiram-se a um rochedo que se lhes offerecia em suave e branda
subida e d'onde podiam intemeratamente gozar tudo que os maravilhava.

No mais alto d'essa pedra escura, roida pelas ondas, a grata aragem
agitava as leves camisinhas de pobre linho com que cobriam a sua nudez.
Como o dia estivera calido, sentiam agradavelmente a benefica sensação
de frescura passar-lhe nos cabellos, a amaciar-lhes a pelle. Do alto da
enorme penedia, que lhes era pedestal, lançavam olhos ao largo e
aspiravam o cheiro acre e forte que vinha das aguas que sussurravam.
Impavidos e cheios de toda aquella grandeza que se lhes impunha,
reconheciam-se enlevados nas maravilhas, que os sentidos percebiam nas
ondas e no céu. E Tone disse com effusão:

—Olha o mar Zefa! É ali que está o pae!

Apontou vagamente para esse infinito d'Além, que o olhar azul da
pequenita abraçou n'uma sombra de tristeza e saudade. Havia na sua
expressão de limpidez seraphica, alguma coisa de dôr ou meiga ternura,
que se espalhou pelo ar fóra escurecendo-o. Era ali que estava o pae! E
o que seria _ali_?!...

O sol semelhava fogo voraz que incendiasse o céu. Parecia um instante de
perigo, tremendo para o universo, esse em que a immensa chamma irradiava
do horisonte. Só o grande poder de Deus, com um gesto formidavel e
omnipotente, poderia extinguir o brazido ameaçador! Se assim não fosse,
o que poderia acontecer á terra, ao mar e ás estrellas se essa cólera de
lume se estendesse a toda a amplidão infinita? Seria uma grande desgraça
reduzir a Nada tudo quanto era bello e grande e os maravilhava
enchendo-lhes a alma de grandiosas aspirações. A briza agitava-lhes as
camisinhas de grosso linho, os cabellos incultos fluctuavam e as duas
creancinhas viveram um momento em grande terror!

Porem a intervenção providencial manifestou-se: o que era incendio
foi-se apagando, a luz tornara-se d'um deslumbrante alaranjado primeiro,
depois d'um roxo terno que franjava o azul. Uma nuvem que ao longe
estava suspensa sorria-lhes do alto com o seu roseo carinho. Parecia um
resto de tunica d'anjo, que andasse perdida no ar.

Tamanho encanto sentiam as duas creanças, que nem davam pelo marulho das
ondas, que já se agitavam perto. E quando os seus bellos olhos sobre as
aguas desceram, entertiveram-se a contemplar o redomoinho variado que
ellas faziam, subindo lentamente até ao sopé do rochedo, para depois se
retirarem com humildade. Havia n'isto carinho e não cólera; a espuma,
tão bella e tão branca, vinha tremendo sobre o dorso da vaga até se
desfazer; as algas vermelhas, verdes e azuladas fluctuavam dormentes
como n'um berço; os lindos seixos que formavam mosaico no fundo
encrespavam-se, como se fossem de cera molle. Muito unidos, encontrando
no corpo um do outro mutuo apoio, observavam interessados aquelle
crescer do mar, posto que muitas vezes tivessem visto um tal phenomeno
que sempre os encantava. A onda é constantemente nova: nunca tem a mesma
força em dois momentos successivos, nem o seu enrolar é de forma egual,
em duas d'estas irmãs gemeas nascidas par a par; o facto de se fazer e
refazer perpetuamente dá a sensação d'um inicio de vida que surge. Por
isso Tone e Zefa, mudos e risonhos, vendo uma vaga avolumar-se sobre
outra vaga, consideravam quanto havia de carinhoso e amigo n'estes
beijos da espuma á penedia onde estavam. O marulho grosso que vinha lá
de longe inchando sempre, até rebentar na praia, entorpecia-os
deliciosamente, deixando-lhes nos ouvidos uma ressonancia plangente. Era
musica suave e rara, cuja melancolia se casava de modo admiravel com
esse gradual escurecimento do céu, da terra e do mar, que os envolvia
como n'um mysterio.

A tenue sombra que vinha do horisonte em redor, diluida em tenue
orvalho, cercava-os d'uma atmosphera de goso triste que lhes desmaiava a
expressão por sentirem muito.

Crescia o mar, a luz do sol apagava-se, já o pestanejar das estrellas no
céu apparecia. Perto, mui perto, conheciam o bater das ondas na base do
rochedo e o galgar das aguas pelo areal acima. Aquellas pequeninas almas
voavam na amplidão, como serenas e doiradas nuvens, que levassem todas
as celestiaes chimeras que haviam sonhado. O que os seus olhos ainda
viam, e o que os seus ouvidos percebiam eram coisas que lhes embalavam o
entendimento levando-o para mundos sidereos e encantadores. Esse gemer
da sombra que escurecia o mar immenso, o rebrilhar da abobada celeste na
grande festa da noite outomnal, faziam-lhes caricias no cerebro, sem
lhes causar pavor. Esquecidas as existencias terrenas, só viviam na
amplidão infinita, as pobres almas ingenuas!...

Os seus corpos sem peso, vagueavam suspensos no mundo ethereo; a
imaginação alargava-se-lhes como o fumo do incenso ao evolar-se dos
thuribulos sagrados na festa paschal. Iam intemeratamente por essa
amplidão do mar, fortalecidos pelas idéas de mysterio com que a noite
estrellada seduz as mentes infantis.

A sombra espessa cahira pesada e egual sobre a rugosa superficie das
aguas, dissolvendo os rochedos da praia, esfumando, em tenue esbatido, o
terreno onde estava a casa de moradia. Encantava-os a phosphorescencia
das ondas, enfeitiçava-os o lacrimar argenteo do ceu, sentiam os
corações subir em extasis... De todas as realidades só a brancura da
areia percebiam estendida como um lençol e o ruido do mar que regougava
a seus pés. Os ouvidos, porém, já de muito habituados a este som tantas
vezes ameaçador, quantas muitas carinhoso e meigo, não presentiram que
elle lhes rugia de todos os lados. Estavam cercados pelas aguas em
revolta e só d'isto tiveram a primeira suspeita, quando pelo rochedo
subiu uma onda, cuja espuma em flocos lhes voou para os cabellos
incultos que fluctuavam ao sabor da brisa. A pequenina Zefa soffreu um
rebate de susto, e agarrando-se mais fortemente a seu pequeno irmão,
gemeu receiosa:

—Tenho medo!...

Tone despertou do sonho de poeta em que vivera! Como tivesse mais dois
annos, sentiu o peso das suas responsabilidades. Era escuro e o bramido
erguia-se energico e temeroso. Lembrou se então de descer da rocha e
fugir ao perigo; mas, circumvagando o olhar inquieto, logo reconheceu o
bloqueio que o mar lhes estabelecera. Titubeante, mas querendo fingir
coragem, disse:

—Não tens medo Zefa. A gente vae-se já embora...

Que especie de soccorro esperaria Tone, sabendo que todos os dias
aquelles rochedos da praia se escondiam nas aguas, amedrontados pela
furia do protentoso mar?! Talvez o não soubesse dizer; porém o coração
esperançado, sempre ouvira que, para lá da abobada celeste, existia o
omnipotente Deus que valia aos desgraçados nas horas dos grandes
infortunios. Um acto simples do seu querer, manifestado sobre o mundo
n'um gesto formidavel, seria logo obedecido pelos mares e pelos montes,
pelas estrellas e pelo sol! Era só apegarem-se com elle, levantarem o
pensamento até junto do seu throno celestial, todo oiro e luz, e ali
supplicarem cheios de vehemencia e fé!

Precisavam fazer um grande esforço, pois tinham de ir para além de tudo
quanto se via no espaço infinito. E logo que o Pae-do-céu os ouvisse,
aquelle mar enfurecido se tornaria bonançoso, a sua voz horrenda seria
apenas um cantico, as aguas recuariam mansas até os confins do mundo, e
elles veriam desenrollar-se diante dos seus pequeninos pés uma estrada
singella e vulgar, que os conduziria ao seu casal. E o coração
amargurado e inquieto de Tone, tumefeito de consoladora esperança, voou
pelos espaços, em quanto cahia supplice sobre a rocha erguendo as mãos e
aconselhando:

—Resa muito, ao Senhor, Zefa!

A pequenita ajoelhou como elle ajoelhara; pôz as mãosinhas, fitou nas
estrellas os olhos cheios de lagrimas. Não sabia ainda resar, mas os
seus labios delgadinhos imitavam n'um anceio as palavras fervorosas que
seu irmão dizia alto: «Padre nosso, que estaes no ceu...»

O mar não se apiedava. Os seus bramidos eram violentos e colericos. De
onda a onda as aguas subiam mais. A todos os momentos os corpos lhes
eram salpicados de espuma e as pobres camisinhas de linho grosso já
estavam encharcadas. Zefa, d'um primeiro lamento timido e perigoso, foi
subindo a um pranto sentido. Chorava copiosamente em gritos, mas a
vontade energica de Tone ainda procurava sustental-a contra esta
fraqueza. Sem uma lagrima, sem uma ruga de pavor no rosto e com voz
clara animou-a:

—Cala Zefa, não chores. O pae está ali—(apontou o vasto oceano)—e vem
buscar a gente para irmos todos para a nossa mãe.

Acreditaria Tone, n'este providencial soccorro?! A furia do mar
augmentava de instante a instante, as vagas ameaçavam-no de mais perto,
elle continuava com a irmãsinha estreitada contra o seu corpo valoroso.
Ambos esperavam, com os cabellos empastados e as camisas colladas á
pelle, que da infinita bondade do céu viesse o soccorro que os
restituisse aos braços de sua mãe. Do mysterio insondavel da noite é que
viria a voz salvadora, ou fosse na vontade protentosa de Deus abrandando
a inclemencia do mar, ou na força amorosa de seu pae cuja sombra tantas
vezes conheceram a vaguear sobre os rochedos e sobre as aguas!...

E sua mãe? aquella boa alma consoladora que os aconchegava ao seio nas
crises das doenças?! Zefa entregava-se á protecção de Tone; este, de
animo varonil, alguma coisa via surgir ou do ceu omnipotente, ou do mar
mysterioso, ou da terra sempre querida.

Da terra querida chegou-lhes realmente o primeiro som d'uma voz
fortalecedora e meiga, quando estavam no maior desespero.
«Tone!»...«Zefa!»...—dizia um grito sahido do medonho seio da noite.
Havia n'esse grito mais desespero e mais lagrimas do que furia no
bramido do mar, e gottas d'agua nos seus abysmos insondaveis. Era a voz
da Mãe que procurava seus filhos na praia e que no meio d'angustias os
pedia á immensa escuridão. Aquelle som carinhoso e desesperado chegou
aos ouvidos dos apavorados innocentes, quando os seus pequeninos pés já
se mergulhavam na agua, que recuando mais uma vez pareceria arrependida
da propria crueldade.

«Mãe!... Mãe!»...—clamaram tranzidos de medo, com o ultimo vislumbre de
esperança posto na voz imprecativa e meiga, que atravessara o medonho
falar das ondas. Ouvil-os-hia a desventurada? Parece que sim, por certo
guiada pelo coração, pois que n'um fugaz momento de calmaria clamou com
mais força ainda:

—Onde estaes filhos!...

Elles responderam em desfalecido choro, mas vehementes com a energia do
desespero:

—Aqui mãe!...

Sem duvida aquelles olhos d'amor adivinharam o lugar; e o perigo, que
era eminente. Para os filhos se dirigiu, como uma loba, como uma leôa,
energica, impetuosa, inconsiderada, guiando-se apenas pelo instincto que
vinha do fundo das suas entranhas. Do rochedo onde os filhos estavam
estreitados n'um supremo abraço, separava-a o mar que se balouçava
dolentemente, crescendo a cada nova onda, ameaçando-a com dentes e
garras sanhozas de tigre. Na limpidez do céu estrellado via os dois
pequeninos corpos muito unidos, fortalecendo-se cada um na fraqueza do
outro.

A mãe, impellida pela energia da sua amoravel loucura, entrou
resolutamente na agua animando as creanças com a palavra clara,
encorajando-as com o denodado exemplo.

—Esperae, esperae! Não vos atireis por ora, filhos!

Suppunha ter ainda tempo de se approximar do rochedo e recebel-os nos
braços para com elles fugir para o humilde tegurio. A frialdade da agua
não lhe diminuia o calor do sangue em fervura, o impeto das ondas não
lhe quebrava a força dos musculos, o terror do abysmo não a cançava.

Ia avançando com prudencia, já immerso o corpo até aos hombros, os
braços levantados para animar os filhos, com a sua approximação. Fazia
todos os esforços de valor moral, para que elles acreditassem na
efficacia d'aquelle auxilio. As criancinhas, silenciosas, com o terror
vago nos olhos, percebiam o lento chegar d'aquella mulher fragil,
sublimada por uma coragem indomita. Mas a valentia do mar augmentava de
instante para instante. Quando a mãe sentiu que se ia afundar, atirou-se
n'um arranco sublime contra as encapelladas ondas. Os filhos, por
instincto, logo a imitaram para serem recolhidos n'aquelles braços de
caricias. Estreitaram-se fortemente, uniram-se n'um supremo esforço;
porem, a furia impiedosa do mar separou-os logo. Os corpos fluctuaram
até que uma vaga soberba e altaneira os cobriu, envolvendo-os n'um
sudario de espuma, levando-os para o negro abysmo, onde iam encontrar a
sombra querida do pae que por lá vagueava.



                               O GAMARRÃO


Dia de finados, dia lugubre, dia triste!... Pelas oito horas da noute,
dos lados de Serpins, sentiu-se grande reboliço. Muita gente a correr.
Francisca, a criada do morgado, pedindo soccorro n'uma voz esganiçada.
Seriam ladrões? pegaria algum fogo? armar-se-hia qualquer desordem?
Ninguem o sabia. Para lá se dirigiam em tropel homens armados de
roçadoiras, espingardas velhas e varapaus—todos n'uma attitude
combatente, falando alto! O sacristão direito á torre para tocar a
rebate, mulheres e creanças alarmando a villa correndo e gritando, os
prudentes a fecharem as janellas para se não metterem em barulhos, nem
servirem de testemunhas... era o que se via.

Averiguou-se, por fim, que o morgado Gamarrão se encontrara
repentinamente mal com uma colica, resultado de uma copiosa ceia de
castanhas com geropiga. Homem sanguineo, rebolava-se pelo chão da
cosinha como uma pipa, dava urros que nem um touro, os olhos
esbogalhados rebentavam-lhe das orbitas. Dous valentes creados sopesaram
o moribundo como um sacco de trigo e atiraram-n'o sobre a cama. O
cirurgião Mendonça, seu velho inimigo, veio quando elle já nem respirava
e dirigindo-lhe a ponteira da bengala, desprezou-o:

—Resem-lhe por alma, se é que a tinha. Está prompto, não torna a dizer
asneiras.

O mulherio, em volta da Francisca, acompanhava-a na sua grande dôr,
chorando com ella, consolando-a com delicadeza. Não se comprehendia o
sentimento da rapariga por este mastodonte avaro e gordo, o mais
embirrento homem das redondezas; porém ella, recusando consolações,
explicou:

—Não que era muito meu amigo. Tinha-me promettido umas arrecadas para o
Natal. Ai! meu rico amo!

Porém todos estavam certos que o morgado lh'as não daria. Era uma alma
de presunto, como dizia o Mendonça, não tinha amor a vivente. Durante um
longo periodo, talvez de trinta annos, ninguem soube que o Gamarrão
escrevesse ou recebesse uma carta. Orphãos, viuvas e necessitados que á
sua riqueza fossem buscar amparo, em vez de beneficio, tinham como certo
o abraço selvagem d'este urso indomavel.

O seu unico herdeiro vinha a ser um sobrinho residente em Trancoso. O
administrador do concelho, o Menezes, promptificou-se a escrever ao
collega de lá, participando-lhe o occorrido. Não se fez esperar a
resposta telegraphica, dizendo que em breve chegaria a Serpins o dr.
João Gama, sobrinho do morgado.

Gente credula em demasia! Sem nenhuma especie de informações, logo se
deitaram a imaginar este homem differente do fallecido. Que seria
risonho e condescendente, esmoler e affavel.

Prepararam-se para o receber, affectuosamente nos braços, logo que elle
chegasse e resolveram consideral-o como o bemvindo.

A tarde em que elle appareceu era lamacenta e chuvosa; as pessoas, as
arvores e o ar mostravam-se fuscos e encebados. Quando viram o dr. Gama,
julgaram assistir á ressurreição do tio—anafado, soberbão e de tal
volume que lhe custou a sahir da diligencia. O cocheiro commentou:

—Devia pagar dous lugares. Já em Braga foi a mesma chalaça, para o
metter dentro.

Porém, elle, ao encontrar-se fóra d'aquella velha arca de Noé, sentiu a
ampla sensação da liberdade conquistada e mostrou-se sorridente,
benevolo e acariciador. A primeira impressão foi boa e não desmanchou o
que tinham presumido.

O administrador, ao voltar de Serpins, affirmou na botica:

—Temos homem. Talvez se faça alguma cousa.

Ao que o Mendonça retorquiu, chupando o cigarro:

—Elles são parentes, meu amigo!...

Increparam-n'o pela duvida.

—Então você não admitte...

—Admitto tudo... mas não me cheira.

Que deixassem a cousa por sua conta, pediu o Menezes, premeditando um
golpe de grande politico. A questão era de geito. Todos comem palha, o
caso é saber-lh'a dar. Má impressão não lhe fizera, e uma carta que
recebera do collega de Trancoso, avivara-lhe as esperanças. E logo no
dia seguinte de manhã apresentou-se em casa do _novo conterraneo_,
palavras estas que pronunciou de modo a imprimir-lhes a ideia de
naturalisação official, de uma especie de carta de cidadão, passada ali
mesmo por elle.

De tudo se fallou. O Menezes gostava de ostentar importancia—que tinha
relações, que recebia muitas cartas, que em Lisboa falava com ministros.
Sendo ferrenho regenerador, affirmava que o Lopo, o Barjona e o proprio
Fontes o tratavam affavelmente e o recebiam em cavaqueiras intimas.
Fazia gestos largos, conquistando, dirigindo, aconselhando.

—Seu tio—disse depois de conveniente preparação—era muito estimado entre
nós. Esmoler, chão no tracto, bondoso, o que se chama um coração aberto.
A sua piedade e religião eram proverbiaes.

O dr. Gama limpou duas lagrimas que lhe humedeceram as palpebras.
Conservou-se silencioso por momentos e em tom compungido respondeu:

—Agradeço-lhe as suas palavras, que sei verdadeiras. Conheci esse
coração magnanimo, esse homem antigo, esse tio admiravel! Era tal como
diz, um santo, um bom.

—Julguei que nunca vira seu tio...—balbuciou timidamente.

—Durante estes ultimos vinte annos carteamo-nos sobejamente. Os nossos
corações uniram-se em bellas paginas, como só elle as sabia escrever.

—Não o apreciei debaixo d'esse ponto de vista, mas sim na convivencia.
Era um homem altamente religioso e não d'esses modernos que chasqueiam
dos bons principios. Uma festa, aqui popularissima, á Senhora do Regaço,
e que elle todos os annos fazia á sua custa, com pompa e luzimento,
dera-lhe entre a nossa gente verdadeira nomeada de bom catholico. N'este
ponto julgo adivinhar que v. s.ª não quebrará a tradicção...

O dr. Gama concentrou-se. Tomou aspecto reflexivo, enguliu em sêcco duas
vezes.

—Se meu religioso tio—respondeu—a cuja memoria tanto devo, costumava
fazer a festa da Senhora do Regaço, com pompa e luzimento, não serei eu
que venha interromper essa piedosa pratica. Preciso, porém, consultar os
seus livros e papeis secretos, para conhecer os precisos termos em que
elle procedia, e da mesmissima fórma eu proceder tambem.

—Deixaria elle apontamento a tal respeito?— —observou o duvidoso
Menezes—Isso não offenderia a sua modestia?...

—Não, de certo não. Conheço a fundo a alma de meu tio, pela nossa
activissima correspondencia. Esses documentos e livros devem existir;
estou certo que existem.

Causou estranheza tal revelação. Teve, porém, o valor de alegrar e
alimpar a embirrenta e sordida memoria do avaro Gamarrão. Quantas
virtudes n'este mundo se mascaram de vicio, para não as offender a luz
crúa da publicidade!—consideravam philosophicamente alguns homens
meditativos d'aquella terra.

Affluiu muita gente a visitar o novo morgado de Serpins.

De aldeias proximas vieram, por caminhos pedregosos, varios
ecclesiasticos e proprietarios montados nas suas eguas lanzudas.

Falaram n'elle para deputado do circulo e d'ahi cada um tirava
esperanças de engrandecimento pessoal. O provedor da Misericordia,
animado pelo bom acolhimento que tivera o Menezes, procurou estar só com
o homem, para lhe recommendar á generosidade o hospital, cuja vigilancia
a seu cargo tinha.

—Seu caridoso tio, meu velho amigo, era o melhor protector da Santa
Casa. Nas festas do anno e no anniversario da morte da senhora morgada,
tinhamos sempre presentes de roupas, gallinhas e dinheiro. Sem um tal
auxilio não poderiamos viver, e ouso pensar que o seu continuador, o seu
herdeiro, não nos faltará igualmente com a sua protecção.

—Se meu caridoso tio—retorquiu solemne—cuja memoria tanto respeito,
auxiliava o hospital d'esta terra com roupas, gallinhas e dinheiro, não
serei eu que lhe desmereça a santa memoria, deixando de o fazer.
Preciso, porém, de consultar os seus livros e papeis secretos, para
conhecer os precisos termos em que essas dadivas eram feitas, para as
continuar.

—E haverá, porventura, esses documentos?

—Decerto! Oh! quasi que o posso jurar! Eu conhecia-lhe profundamente os
habitos.

Depois d'isto os cavalheiros mais grados reuniram-se na idéa grandiosa
de solemnes exequias por alma do morgado de Serpins. O presidente da
camara, homem circumspecto e idoso, foi encarregado de levar este
projecto ao regozijo funebre do dr. Gama, que se mostrou sensivel a taes
provas de affecto, confessando:

—É bem certo que a virtude sempre terá o condigno premio, digam o que
disserem scepticos e maldizentes!

O presidente ponderou:

—Muito esperavamos d'este querido conterraneo. Ainda ha bem pouco tinha
promettido auxiliar-me n'uma empreza difficil. Ha aqui uma rua que é a
grande arteria da nossa circulação. Estreita n'um ponto, para se alargar
é necessario demolir um pequeno predio, que pertencia ao senhor seu tio
e presentemente a v. s.ª pertence. Promettera me elle que essa
expropriação seria gratuita e a camara da minha presidencia, para
perpetuar tão valioso feito, tinha resolvido dar á arteria em questão,
que será no futuro uma especie de avenida, o nome do doador. A
Providencia mandou outra coisa e agora é o nome de v. s.ª que está na
nossa ideia...

—Isso não! o nome d'elle é que será perpetuado! Se meu generoso tio, a
cuja memoria tanto devo, havia decidido concorrer para essa obra pela
fórma que me diz, não serei eu que deixe de completar o seu pensamento.
Preciso, porém, lêr os seus livros e papeis secretos, para conhecer os
precisos termos em que esse tio patriota desejava fazer a cedencia. Todo
o meu empenho é cumprir á risca a sua vontade... para mim sagrada e para
todos saudosa!

—Modo de pensar e proceder verdadeiramente fidalgo! Receio, porém, que o
senhor morgado não tenha deixado escripto... que...

—Tudo escrevia. Durante mais de vinte annos eu conhecio-o no intimo. Era
um verdadeiro litterato, para a familia. Eu tenho quasi a certeza, ia-o
mesmo jurar sobre umas Horas, se necessario fosse, que meu chorado tio
deixou alguma cousa a esse respeito... Escrevia tudo, mesmo tudo, não
imagina! Ando em busca das suas memorias e vontades e hei de
encontral-as. Já mesmo alguma coisa encontrei—o rol das suas rendas em
divida. Escrevia tudo, creia...

                  *       *       *       *       *

O dr. Gama agradecera individualmente as homenagens prestadas ao nome do
seu antecessor. Exequias magnificas; concorrencia de todo o clero do
concelho; missa a tres padres; no côro rabecas, clarinetes e flauta; um
sermão do afamado padre Carapeta, exalçando por ahi além as virtudes do
fallecido!...

Um poeta de veia funebre escreveu uma elegia que foi impressa e
divulgada. Um tabellião e o escrevente da fazenda organisaram
correspondencias para os jornaes do Porto, avultando os factos. N'uma
terra pequena não se podia fazer mais e o juiz de direito, homem
entendido, affirmou que nas grandes se não faria melhor.

Todo o mundo julgava o dr. Gama contente e sazonado. Foi, porém,
justamente depois d'esta solemne demonstração que elle começou a
mostrar-se sibyllino e rijo. Não dava occasião a largas conversas, e as
que não podia evitar, guiava-as para um campo generico, pronunciando
sonoramente as palavras do alto do seu magnifico busto. Uma vez que
manhosamente o levaram, n'uma especie de visita, ao predio a demolir
para o alargamento da rua, elle deixou-se conduzir, achou magnifica a
idéa, mas evitou fazer qualquer promessa compromettedora.

Quereria este Gama faltar áquillo em que já concordara? Não podia ser...
julgavam-n'o incapaz... era talvez feitio... No emtanto tornava-se
urgente uma aclaração e para a obterem concertaram-se o Menezes, o
Provedor e o Presidente, fazendo-se acompanhar do Mendonça, que era
desembaraçado e não tinha papas na lingua. Vestiram se apparatosamente
de sobrecasaca, chapéu alto, luva... tudo como o caso requeria. Entraram
n'aquella sala humida e fria da casa de Serpins. As janellas davam sobre
um laranjal, cujo verde escuro entenebrecia o ambiente. O tecto
abahulava-se n'uma intenção de amplitude, concentrando a claridade. As
cadeiras dormitavam aos lados, quasi em abandono!

Palraram sobre todas as cousas—lavoura, demandas, politica,
melhoramentos... e n'um a proposito bem aproveitado, o presidente pôz
timidamente a questão:

—V. s.ª bem sabe... Temos os nossos orçamentos a mandar para cima...
Quereriamos alguma cousa de certo. As suas promessas...

—Promessas, promessas... Eu por mim ainda não tive tempo de pensar a
sério nos objectos das nossas ponderações...

—Mas os nossos compromissos... a festa da Senhora do Regaço á
porta...—insufflou o Menezes.

O provedor accrescentou:

—Os doentes necessitados não pódem esperar. V. s.ª comprehende...

—Comprehendo, porém são cousas difficeis. Immenso que fazer! Uma casa
grande e muito embrulhada na administração. Caseiros, rendas, generos,
gados, o diabo! Ainda não pude... realmente ainda não pude...

O Mendonça, que era azedo, esperto e embirrava com o morto, aproveitou o
momento para desbravar o terreno e ao mesmo tempo lançar grossa mancha
em todos os Gamarrões, pois fôra sempre seu parecer que este sobrinho
equivalia á besta do tio. N'um tom que, á primeira vista, se poderia
julgar inconveniente disse:

—Meu caro senhor, cartas na mesa. Estes cavalheiros tiveram de v. s.ª
solemnes promettimentos. Fundados n'elles fizeram declarações lá fóra e
com todo o direito vêem exigir que v. s.ª cumpra a sua palavra. Ora eis
ahi está o que é, sem mais refolhos.

—A memoria de seu tio tudo merece—insinuou o presidente, para avelludar
a dura arremetida do Mendonça.

O sobrinho do Gamarrão atirando solemnemente com o busto para diante,
ergueu a cabeça, e de palpebras meio cerradas, affirmou:

—Se meu nobre tio, cuja memoria eu venero e acato no mais alto grau,
costumasse fazer todas essas dadivas, que os senhores dizem, de tal
teria deixado apontamento ou lembrança que ainda não encontrei. Porém
que encontrasse ou que encontre, eu desde este momento solemne declaro
que acho abominavel, (abominavel é o termo!) este procedimento de
quererem influir no tribunal da minha consciencia! É cousa que se faça,
o perturbar uma consciencia, seja ella de quem fôr, de um rei ou de um
mendigo?! A um homem delicado e quasi timido, como eu, impôr-lhe um tal
onus e n'esses termos! Não se poderá taxar de indelicadeza, de violencia
e até de coacção!? Eu recuso e recuso terminantemente.

Foi terrivel o assombro!

Os quatro olharam-se sem comprehender! Depois das exequias, do sermão,
da poesia, das correspondencias, sahir-se com esta! O Mendonça, azedo e
ironico, atirando com a ponta do cigarro para o sophá, retorquiu em voz
levantada:

—Lérias, cantigas!... O que você não quer é dar nada, eis ahi está. Por
força havia de ser um avarento como o jumento de seu tio. Pela cara se
lhe tiram as obras. É um Gamarrão segundo.

E retirando-se após os outros, que já se dirigiam para a porta,
accrescentou:

—Um alarve d'estes só se ensinava com meia duzia de lambadas. É o que
elle merecia. Grandissimo pulha!

O dr. Gama ficou estarrecido e apopletico. Que procedimento inaudito!
Que formidavel canalha! Correu á varanda trasbordando de impetuosa raiva
e vendo-os ainda no quinteiro gritou lhes:

—Comedores! Nem vintem! Ouviram seus comedores!?

O Mendonça voltou-se e n'um gesto de punhos cerrados aggrediu-o:

—N'essas ventas, n'essa cara de cabaça é que devia ser! Grandissima
cavalgadura!

E todas as bellas esperanças e promessas foram poeira levada pelo vento
d'esta discordia, derivada d'uma velhacaria dupla.



                           O CALVARIO DO AMOR


                                   I


Seriam duas horas d'uma fria noite de março, quando a cavalgada sahia o
largo portal do Corcovado, em direitura á egreja da freguezia, que
ficava a uma boa hora de distancia.

A noiva, joven e formosa, com vestido de seda clara semeado de florinhas
azues, montava soberba mula, ajaezada á hespanhola e coberta de valioso
teliz de veludo encarnado com brilhos d'oiro, peça antiga na casa de D.
Bento d'Osma, o ditoso noivo, que aos sessenta annos ia receber como
esposa a encantadora Maria. Pelo caminho aspero e pedregoso, ladeado de
pinheiraes sombrios, de penedias soberbas, de campos ferteis, de
precipicios fundos onde grasnavam aguas tumultuosas, sentia-se a
animação da extensa cavalgada. As lumieiras, que os creados sustentavam
altas, erguendo os braços para aclararem maior area do caminho,
produziam sombras phantasticas que se espalmavam nos muros e deitavam
nos campos, dando a este quadro de vida commum, aspecto tão singular que
ao longe pareceria festa de demonios em delirio. As aves silvestres e os
animaes bravios que tal presenceassem, acordados do seu repouso, assim o
deviam pensar, pois fugiam uns voando, outros correndo e sumindo-se
todos no denso negrume da noite. Ia na frente a noiva, delgada e airosa,
dentro do seu vestido claro, os cabellos negros e fartos ornados de
flores naturaes, as mais bellas flores dos jardins d'Osma, onde as havia
raras e viçosas todo o anno. Ao lado de Maria, D. Bento, ainda vigoroso,
montava magnifico cavallo baio adrede comprado para este acto solemne. E
logo a seguir o pae da airosa menina, o José Pereira do Corcovado, da
conhecida casa do Corcovado e seus quatro filhos, Manuel, Thomaz,
Vicente e José, rapazes valentes e destemidos, pimpões de varrer tudo em
romarias e feiras, quando se junctassem os quatro. Cercava-os o maior
numero das lumieiras, para acautelarem a noiva contra qualquer estorvo
do caminho turtuoso e difficil, e assim assegurarem tambem aos que
vinham atraz, transito livre. Estes eram pessoas de differentes edades e
feitios; senhoras velhas de vestidos serios de seda preta e meninas
novas todas de claro, desde a cor de rosa virginal até ao verde-prado
que é esperança. Os homens antigos estadeavam as suas casacas de gollas
altas e bofes nos peitilhos das camisas; os rapazes d'agora vestuario
delambido e collarinhos pegados á pelle do pescoço. Havia alguns padres
na extensa cavalgada, de sobrecasaca grave, bota eclesiastica de borla
no joelho, ou bute simples nos mais pobres que não tinham para
abastanças, volta no pescoço, e deitando a sua sentença latina do alto
das suas eguas de farta cauda e largo ventre prolifero. Os da
rectaguarda mofavam do velho D. Bento, pela desproporção na edade com
Maria, e alludindo á violenta e conhecida paixão, que por ella tinha, o
João da Cunha, da casa da Maceira, disse um conceituosamente:

—Póde muito bem ser um segundo tomo do velho D. Thomaz que se casou com
a D. Paulina, morgada da Cerdosa[2].

—Que lhe preste—accrescentou Frei Ignacio pitadeando-se.

                  *       *       *       *       *

Era realmente coisa sabida que João da Cunha amava perdidamente Maria; e
tão perdidamente a amava e tão de receiar era uma vingança dos rapazes
da Maceira (que tambem eram quatro e não inferiores em valentia aos do
Corcovado), que os irmãos da noiva iam adeante a guardal-a e promptos
para tudo. Arrebatando-a ao amado preferido, levavam-na juncto do altar
para a entregarem ao morgado d'Osma, senhor de Osma e de muitas
propriedades de Minho e Douro. João só podia alardear boa linhagem e
muito amor, quanto a haveres a casa era pequena e filhos muitos. Quando
n'isto falaram ao velho do Corcovado desatou n'um berreiro de espantar
lobos: «que amor sem riqueza era bonito, mas julgava-o destempero; que
se lhe queria a filha viesse pedil-a trazendo titulos de propriedade
para a merecer. Elle por sua parte, tinha boa casa; mas herdeiros
cinco».

—Portanto, que tire d'ahi o sentido—rematou para o enviado.

O da Maceira que era ousado e temerario approximou-se um dia do velho e
perguntou-lhe de cabeça alta:

—Como quer o senhor José Pereira que eu arranje assim de repente
dinheiro?

—Isso é comtigo e não commigo.

—E com quanto se contenta?—disse sarcastico.

—Com muito; dinheiro quanto mais melhor—respondeu o velho no mesmo tom.

—E quanto tempo me dá para arranjar isso com que lhe possa comprar
Maria?

—Ella não é negra. Não te me faças birbante que se os meus rapazes
ouvem...

—Bem me importo com ameaças! Peço um anno, para ir ao Brazil entender-me
com meu tio Antonio, que lá tenho. Acceita?

—Vae ao Brazil, vae onde quizeres, eu já falei.

E voltou-lhe as costas sem mais ceremonias.

O rapaz sahiu o portal do Corcovado com uma batalha no cerebro. A sua
idéa n'aquelle instante, foi roubar violentamente Maria, fugir com ella
para sitio alpestre e ignorado, e lá viverem vida selvatica d'amor,
sustentando-se de leite e fructos da terra. Chamava-o, a grandes vozes,
o coração, para essa existencia poetica, altiva e nomada, querida da
imaginação de todos os independentes, como apropriada á vida feliz.
Alimentarem-se de caça, do mel das abelhas, de medronhos e hervas;
beberem o leite, a limpida agua das fontes por escudellas de madeiras ou
de cortiça; vaguearem no silencio magestoso das mattas escuras, pouco
conhecidas dos homens; suspirarem juncto das estrellas na amplidão das
serras altas, absorverem a largos pulmões o ar fresco e aromatico das
brizas que vem dos codeçaes floridos e das urzes sempre verdes... era o
que lhes deleitaria a sensibilidade, irmanando-os com os pastores, com
os anjos e com os poetas. Nos primeiros colloquios d'amor, que tivera
com Maria, quando ainda eram creanças e simples, já detalhavam a vida
dos ermos, baseando-a no aspecto ditoso e feliz dos pegureiros, que na
primavera subiam ás montanhas com os seus rebanhos, e no que sabiam de
contos de fadas e moiras encantadas. Era essa existencia que lhes
convinha: uma cabana e dormir entre a lã das ovelhas, imaginar ao som
gemente dos regatos e deleitar os olhos no azul infinito que não tem
fim—um viver só pelo goso de existir e nada mais.

Então ninguem sabia ainda que elles se amavam, a flor doente de
sensibilidade que lhes estava rebentando no coração era apenas
presentida pelas ingenuas creanças. A modo que iam crescendo tomava esse
sentimento vago uma fórma mais definida e concreta, os olhos do corpo,
ensinados pela experiencia, iam corrigindo as incertas aspirações da
alma contemplativa e um dia disse João a Maria: «Quando nos casaremos
nós?»; ficando absortos n'um spasmo de mente a voarem pelos espaços
sidereos.

Casar! palavra magica e dolente em que tudo se comprehende e pouco se
diz. Seria só a união dos corpos? Seria a harmonia dos corações? Seria a
orchestração das palavras melodicas que sentiam nos ouvidos, quando de
noite pensavam um no outro? Que seria?!... O contacto das suas pelles,
quando se abraçavam e beijavam nos brinquedos infantis, dispertava-lhes,
por vezes, fulgurações no cerebro, chispas nos nervos, deleites
celestiaes. Casar seria a absorpção de dois entes n'um ente novo e mais
complexo; mas o casar ideal, a completação ambiccionada era fugir, não
ver homens, nem casas, nem mares turbulentos, e só conhecer serras
tranquillas, arvoredos mysteriosos, e animaes amigos. Poderiam realisar
estas sublimes aspirações?...

Foram crescendo os corpos; adelgaçava-se a nuvem em que divinamente
viviam occultos; era mais palpavel a realidade, João e Maria para
casarem precisavam merecer-se. Por isso elle foi principiar os estudos,
com idéa de seguir uma carreira, que lhe desse no mundo uma situação.
Maria ficou na aldeia, entre as mesmas arvores, contemplando os mesmos
penhascos e o mesmo céu, e, quando não teve comsigo João, cruciante foi
a sua dôr. Porém logo nas primeiras férias todas as saudades se diluiram
e a alegria d'esse primeiro encontro e dos seguintes compensara-os da
magua da primeira separação.

O velho da casa do Corcovado, mais experiente e sagaz do que os filhos,
foi quem primeiro deu pelo caso. Não lhe convinha: determinou acabar
aquillo d'uma vez. Formou uma assembléa com os seus rapazes: fechando-se
n'um quarto com elles, expoz o caso e pediu-lhes alvitre no modo de
proceder.

—Isso dá-se cabo d'elle, é o melhor—disse Thomaz, o de genio mais
violento.

E o Vicente secundou-o:

—Sahe-se-lhe ao caminho longe d'aqui, quando vier a férias;
arruma-se-lhe um estalo na cabeça e enterra-se bem fundo n'um campo,
onde ninguem o encontrará.

—Não é preciso tanto—disse o velho concentrado e tenaz. O D. Bento
d'Osma gosta da pequena; porque já m'o disse. Maria fez desoito;
arranjam-se os papeis em segredo, chama-se aqui sem ella o esperar,
fala-se-lhe tezo, e casam-se sem dar tempo a que o marmanjo consulte os
irmãos.

—Que nós não tememos—disse o Manuel, o mais velho, applaudido pelos mais
novos.

Maria por um acaso feliz estava no quarto contiguo e como falassem alto
ouviu a conversa. Foi grande a sua perturbação, mas simulou o contrario
para a defesa. Descobriu meio de tudo communicar ao mais velho da
Maceira, o Gonsalo, para o tornar conhecido do irmão, asseverando-lhe
que, por sua parte, estava prompta para quanto João entendesse
necessario fazer-se com o fim de defenderem o seu amor. Foi n'essa
occasião, que o namorado desejando levar as coisas a bem anunciou ao
velho José Pereira, primeiro por um enviado, depois directamente, os
projectos em que estava de conquistar no mundo posição que lhe desse
direito á mão de Maria, terminando pela affirmativa de ir ao Brazil. Tal
viagem, porém, nunca pensou em realisal-a e a promessa era apenas um
estratagema de ganhar tempo, para concertar um plano de fugir com a sua
amada.

[2] Amores, amores...


                                   II

Simulou-se na Maceira o caso da partida de João para a companhia do tio
que tinha no Brazil, tudo com o apparato do estylo: enxoval, despedidas,
choros, a sahida do rapaz acompanhado de seus irmãos, e até um
telegramma do Porto, que participava o embarque. Fez-se a representação
com a maior verosimilhança. O namorado desappareceu da aldeia e
falava-se d'elle com saudade e sympathia. Os do Corcovado, acreditando
só metade do que viam, principiaram logo a dispor as coisas para o
enlace de Maria com D. Bento.

O Manoel, que era o de mais tino, sahiu uma noite a cavallo levando
comsigo dois creados só até ao limite da aldeia: ia tractar com o
morgado d'Osma de coisas de escriptura e dote; informal-o do que havia e
do que seu pae com todos elles tinha accordado. Assentes as bases do
contracto com o noivo, que não offereceu difficuldades, pois toda a sua
ambição era obter a mocidade de Maria para caldear com a sua velhice,
logo se despacharam os dois mais novos, Vicente e José, para irem a
Braga tractar secretamente dos papeis do casamento. No entretanto,
dentro do Corcovado não se dormia descançado: havia armas promptas, e
esculcas de noite no velho casarão. Conheciam bem os da Maceira:
sabiam-nos ousados, valentes e até loucos d'audacia. Ainda que João
houvesse partido (do que não tinham absoluta certeza), ficavam os outros
que eram capazes de armarem uma batalha campal, para garantirem ao irmão
ausente, uma desaffronta e uma vingança estrondosa. Dispunham os seus
meios de resistencia para se defenderem, ainda que preferiam que tudo se
passasse com normalidade e socego. Esconderam, pois, entre si e D. Bento
o plano urdido, simularam vida tranquilla e ordinaria, simularam mesmo a
crença no descuido dos da Maceira, na partida de João, e já em Braga
corria velozmente o processo ecclesiastico com todas as licenças
necessarias para em vinte e quatro horas, logo que taes licenças
chegassem, se realisarem as nupcias.

Em Braga era tambem onde estava João da Cunha, á espera de aviso dos
irmãos, para regressar á aldeia na opportunidade conveniente, e aqui foi
avisado por um amigo, de que os papeis andavam em segredo, nas mãos do
senhor Arcebispo. Logo comprehendeu tudo e na manhã seguinte, depois de
andar duas noites a cavallo, chegou á Maceira, onde entrou tanto a
occultas, que só os irmãos e o pae d'isto tiveram conhecimento, pois
elle tomara a precaução de despedir o arreeiro com a cavalgadura fora do
logar, que atravessou a pé, não seguindo veredas nem caminhos, mas
atravessando campos e saltando muros. O que logo ficou assente entre
todos foi que Maria não casaria com D. Bento d'Osma, ainda que fosse
necessario matarem e morrerem.

A pobre menina, vigiada e guardada, como se sentia, não pôde, durante
esses dias crueis, mandar nenhum enviado ao Corcovado. Vivia em grande
amargura e afflicção por suspeitar coisas tenebrosas do que em volta
d'ella se tramava. O seu amor e a exaltação do seu espirito eram
tamanhos, que pensou em suicidar-se, antes que ceder a quaesquer
conselhos ou pressão de pae e irmãos, para preferir outro homem a João.
Porém era alma juvenil e crente, não podia comprehender que a
Providencia divina, e Maria Santissima, de quem sempre fôra tão devota,
podessem concordar em tal iniquidade. Ora não querendo Deus e não o
consentindo a Virgem, nada podiam os homens—pensava ella.

Os papeis chegaram de Braga ao mesmo tempo que vestidos e enfeites para
o dia solemne das bodas, que podiam realisar-se d'um para o outro
momento. D'isto foi avisado D. Bento d'Osma, por uma carta, emquanto
Maria era chamada á presença de seu pae e irmãos, que sisudos e graves
como juizes a sentencear, lhe disseram a resolução em que tinham
assente. O pae rematou o longo arrazoado dizendo:

—De modo que tu vaes ser senhora d'uma das maiores casas da provincia e
mulher d'um dos maiores fidalgos conhecidos.

—Mas se eu não gosto d'elle, que é um velho e antes quero João da Cunha,
apezar de pobre!...

—Tolices dos desoito annos—commentou sarcasticamente o velho. Com esse
não te dava eu consentimento, nem com um bacamarte cheio de zagalotes
assente no meu peito.

—Pois com outro não caso—disse resoluta e sem lagrimas.

—Isso veremos—disse Manoel, o mais velho dos irmãos. Ainda que tenhamos
de te levar para a egreja atada de pés e mãos, has de ir.

—Não será preciso...—acrescentou o Thomaz, pronunciando as palavras com
ironia feroz. Irá muito bem a cavallo e nós veremos.

—Carrascos!—pronunciou Maria, cahindo redondamente no chão, rigida como
um cadaver.

                  *       *       *       *       *

A este tempo os da Maceira já estavam conhecedores do resolvido
matrimonio de Maria com D. Bento d'Osma. Essa informação trouxera-a de
Braga o proprio namorado. Mostravam-se, porém, naturaes no trato e
despreoccupados do que se passava; mas entre si assentaram o raptar
Maria antes do casamento, no proprio acto nupcial, ou até dos braços de
D. Bento, se não pudesse ser d'outro modo. Quem os conhecesse bem, sabia
que tentariam o supremo golpe, atravez de difficuldades, que outros
pudessem julgar invenciveis. Entregar Maria intacta ao irmão era o
supremo desejo de Gonçalo, Antonio e Thomé. Porém, vencer, á valentona,
todos os obstaculos que os do Corcovado teriam accumulado em volta da
desejada rapariga, para que não fosse tocada por mãos impuras, é que não
poderiam... Necessario era, pois, servirem se do engenho, primeiro que
da força; e tiveram artes de fazer chegar ás mãos da fraca creatura, as
palavras animadoras d'uma carta que João lhe escreveu, em que explicava
o proposito em que estava. Esse papel foi levado á casa do Corcovado por
um pedinte de classica barba longa, curvado e de voz lamentosa quando
pedia. Abeirou-se da porta da cosinha, e como fosse desconhecido e
significasse vir de longe (talvez de romagem a S. Thiago de Compostella,
pois trazia conchas cosidas nos andrajos) as creadas interessaram-se por
elle e attenderam-n'o. Vinha esfomeado e friorento; pedia o caldo da
esmola e o agasalho do palheiro; como soubesse contar historias e ler a
signa, entreteve os creados e ficou por ali coisa de tres dias. Os
proprios irmãos de Maria gostaram do pobre e escutaram-lhe os casos; o
velho José Pereira, ouvindo-lhe dizer que fôra soldado no tempo dos
francezes, que acompanhara o general inglez pela Hespanha dentro,
conversou com elle e mandou dar-lhe uma tigella de vinho. Maria, a quem
o misero, lendo nas linhas da mão aberta predestinou alegre e risonho
futuro, sorriu-lhe no meio das suas amarguras. Foi n'este acto que o
pedinte lhe introduziu na manga do vestido a carta de João da Cunha, o
que tanto alvoroçou a pobre menina, que só por um milagre de energia não
cahiu com um desmaio. Assim ficou ella instruida do plano concertado
pelo seu namorado.


                                   III

Ia a cavalgada pelo tortuoso caminho que do Corcovado segue para a
egreja, onde a festa nupcial de Maria com D. Bento d'Osma se ia
realisar. Apesar das lumieiras (que só adeante, junto da noiva, faziam
grande illuminação) aquelle acompanhamento de tão longa enfiada de gente
de cavallo, atravez da noite escura, semelhava uma forte corrente de
ferro de muitos e grossos elos, obrigada a repetidas curvas n'um
subterraneo; ou, então, qualquer monstro de cobra-crotal curveteando em
numerosos accidentes de terreno, para escapar a um perigo que receasse,
ou attingir a presa que lhe fugisse. Os que cercavam a noiva tinham
entre si poucas falas, como se fôra avançada de numerosas forças que
temessem qualquer cilada. Intrigava-os o aspecto sereno e a alma
resignada de Maria, que sabiam coagida para aquelle acto. Jactanciosos,
como eram os do Corcovado, passou-lhes pela mente que o animo da irmã se
tivesse submettido á dura necessidade, logo que reconhecera o inane de
qualquer resistencia. Essa mudança no espirito da namorada poderia ter
desenganado os da Maceira, não sendo até impossivel que realmente João
estivesse já além dos mares. Maria apenas mostrara furtivas lagrimas ao
paramentar-se para a festa com o seu ultimo vestido de virgem, e antes
de sahir de casa esteve no oratorio resando ferverosamente a Nossa
Senhora dos Desamparados, de quem era devota. Conservara-se bastante
tempo estranha, absorvida, quasi extatica, com os olhos sofregos na
imagem querida, talvez pedindo-lhe fortaleza ou confessando-lhe os
ultimos peccados de pensamento. Tudo parecia natural e simples e
indicava que estivesse resignada. Porem, seus irmãos, por um resto de
precaução, aperceberam-se para o caminho até á egreja, pois era longo,
máu e iam de noite; ainda que este estado d'alma lhes parecesse logico,
pois sabiam o espirito de piedade religiosa, com que sua santa mãe
fallecida, a tinha educado. Em tão supremo lance da vida d'uma rapariga
de desoito annos, era natural profunda commoção, pelo quanto
apresentaria de desconhecido e nevoento o novo dia que se lhe ia abrir
na existencia. O seu silencio era o fructo de todos os sentimentos
desencontrados, que lhe moravam no peito, o fructo da curta e variada
historia da sua vida, com um amor precoce e violento, que vira
desfolhado no cumprimento do sagrado dever da obediencia ao pae, severo
mas bom. Assim o presumiam todos; por isso a desconfiança não era
absoluta e os meios de defesa eram incompletos.

Scintillavam as estrellas no firmamento, n'essa immensa aboboda negra
como o veludo, em que grandes e bellos diamantes estivessem collados
desde infinitos tempos, e tremelusissem por um movimento ondulatorio do
proprio céu. Fendiam as lumieiras, com alegres chammas, a sombra
compacta da noite. O estrepito da cavalgada, perturbava o silencio, tal
um caminhar de tropas. As sombras iam a grandes passos parecendo
espectros. A amplitude da treva absorvente tornava mesquinha a
existencia do homem. Os que se dirigiam na tortuosa estrada sentiam-se
oprimidos no peito, mas a vista alegrou-se-lhes quando, vencida uma
corcunda de caminho, descobriram a egreja rural, lá no fundo, com as
vidraças a jorrarem luz, como se fôra noite faustosa de romaria. Quadro
ao mesmo tempo phantastico e jubiloso, este apparecimento subito do
modesto templo, assim illuminado, surgindo do infinito ventre da
escuridade infinita. Era como um facho espetado n'uma grande caldeira de
breu. Em todos os corações houve sobresalto de gozo, até mesmo no de
Maria. D. Bento d'Osma descobrira o sacrario da sua felicidade; o velho
do Corcovado o remate das suas aspirações de grandeza; seus filhos,
julgaram afastados os receios de mau encontro dos da Maceira, que mesmo
que fossem vencidos lhe aguariam o prazer da festa. E Maria o que
descobrira para sorrir?...—Alguma esperança?... era aquelle luzeiro,
alegria na tristeza das suas amarguras?...

De todos os corações se levantara um peso; amplificara-se o sentir e o
desejo de cada um; etherisara-se-lhes a imaginação em hymnos triumphaes.
Os formosos olhos de Maria sorriram á profunda escuridade, talvez por á
sua mente ter chegado em recordação, qualquer promessa do seu amado.
Desciam para o valle onde brilhava a egreja, lentamente, no meio do fogo
das lumieiras. Ao chegarem á borda do adro, o leve corpo da noiva, para
ser tirado de cima da mula, ricamente ajaesada á hespanhola com teliz de
veludo encarnado lampejando oiros, cahiu nos braços de Manoel, seu irmão
mais velho. Repicaram faustosamente os sinos n'este instante,
annunciando o momentoso acontecimento, ás estrellas que luziam, aos
montes silenciosos, aos animaes bravios escondidos nas suas tocas. As
aves occultas na espessura das mattas e no interior dos silvedos, quando
ao romper da manhã viessem gorgear as suas impressões, decerto
relatariam o acontecimento singular que lhes fizera abrir os olhos para
a egreja illuminada, e os ouvidos para o jocundo repicar dos sinos. Que
necessidade de perturbar a escuridão infinita e solemne, o silencio
augusto e magestoso com signaes de festa humana?—perguntariam ao
recomeçarem os seus amores, ebrios de rosea alvorada.

Pela porta do templo, amplamente aberta, entraram os convidados. No
interior, grande perfusão de lumes em todos os altares, para se celebrar
a sumptuosa festa. Sorriam os santos, o rosto da Virgem era expressivo e
carinhoso, os anjos, os seraphins e cherubins, que nas columnas do altar
mór se suspendiam entre nuvens, brincavam alegremente.

A luz espancara a tetrica escuridade; o cheiro do incenso e da cera do
qual as paredes estavam impregnadas espiritualisara-se com o calor das
velas. Os numerosos convidados sentiam-se satisfeitos e communicativos,
tinham abundancia de palavras para encher a conversação. A modesta
egreja rural, mais uma vez era perturbada na sua tranquillidade: assim
cheia de movimento e sussurro de festa, deixava de escutar a musica do
ribeiro, agora crescido d'aguas, e de ligar o seu viver obscuro ao das
arvores amigas que lhe cresciam em volta, enfolhando-se todos os annos
na primavera para a festejar...

Maria subiu o corpo do templo, até ao altar mór, ao lado de seu pae, um
velho robusto, de barba em volta da cara sadia, altos collarinhos em
camisa de bofes, a casaca das suas bodas (quarenta annos antes)
tapando-lhe a nuca com a alta golla. Ao passar em frente da imagem de
Nossa Senhora, da qual era solicita devota, ajoelhou orando com fervor,
o que fez com que muitos assistentes entrassem em piedoso recolhimento
espiritual, imitando-a na mystica submissão. Pediria coragem para o
difficil transe?... confessar-se-hia humilde peccadora por ter tido idéa
de resistencia á vontade de seu pae?!... No alto da egreja, onde de novo
se curvou reverente para fazer as suas supplicas ao Altissimo,
cercavam-na as senhoras mais gradas da visinhança, amigas e parentas, as
de Refuinho, da Torre Velha, do Ramisco... que todas como ella resavam
com recolhimento e fervor. Davam assim tempo a que o padre Pitança se
revestisse na sacristia acompanhado d'outros padres. O cura Clemente
Carvalhosa, já velho, alquebrado e doente, não podia vir a estas festas
de noite, por causa do seu rheumatismo: substituia-o o corpolento
Pitança. Quando este reappareceu juncto do arco cruzeiro, coberto com a
longa capa d'asperges, a batina occulta sob a alva de celebrante, a
estola cahindo-lhe serenamente sobre o amplo peito de caçador e occulta
pelo solemne pluvial, o grande vulto do sacerdote assim paramentado,
tinha a magestade do d'um bispo da edade-média, guerreiro, soberbo e
forte. Um absoluto silencio se estabeleceu rapidamente, em respeito ao
acto momentoso que se ia celebrar. D. Bento d'Osma, radiante dentro
d'uma farda de fidalgo em que se não encontrava muito á vontade, sorria
d'um modo incaracteristico, trabalhado interiormente por grande confusão
de idéas e sentimentos. Maria estava pallida, mas o seu rosto mostrava
serenidade e o seu olhar firmeza. Quando os nubentes davam o primeiro
passo para o celebrante, no meio do silencio de tanta gente, attenta e
commovida, no meio da gloria de luzes que transformavam o ambito da
modesta egreja n'um templo de apotheose... é que um avejão, phantasma ou
demonio, ou muitos demonios juntos se lembraram de lançar pela egreja
fóra os seus gritos lamentosos, terriveis, amedrontadores, e tão
lamentosos, terriveis e amedrontadores, que rebentaram simultaneamente
no tecto e nas campas, por traz do altar mór e no côro! Não eram vozes
com semelhança de humanas, era um como fremito horrendo que se sentisse
ao mesmo tempo no céu e no cimo da terra, que surgisse da profundeza dos
abysmos infernaes e tivesse a mesma natureza e raiva das imprecações dos
condemnados. Todos ficaram transidos de mêdo, e se sentiram faltos do
sentimento da realidade: deante dos olhos desvairados dos assistentes,
assim colhidos de surpreza, e n'este primeiro momento, parecera-lhes que
os mortos haviam rompido o lagedo das sepulturas ao clangor da trombeta
final, ou que eram os santos que desciam espavoridos dos altares para
recolherem ao logar seguro da celeste morada. Viam o tecto do templo
vergar sob o peso da vontade divina, que procuraria assim castigar algum
grande peccado, ou impedir tremenda iniquidade. A confusão de todos os
cerebros foi completa quando no pulpito, no côro, e no recanto da pia
baptismal appareceram tres grandes fogueiras com fumo de polvora e
reboar de estoiros, como n'um incendio de magica. Da primeira
perturbação logo se passou ao terror fundado na evidencia de um fogo no
sanctuario. As vozes em grita, supplicantes e desvairadas, junctavam-se
ás das aventesmas e ao rebate dos sinos. A maioria procurou fugir pela
porta principal que estava aberta de par em par; os mais serenos, os que
poderiam formular raciocinio no meio d'esta grande confusão foram
levados na onda. Os rapazes do Corcovado, paraliticos na vontade,
tiveram um vislumbre da possibilidade d'um acto de vingança dos da
Maceira, mas não se poderam concertar para a defeza. Muitas senhoras
fugiram para a sacristia, e no meio d'ellas foi Maria. A sacristia
estava ás escuras e a porta para o adro viam-n'a aberta... Por ali
entrara um vulto humano que rapidamente tomou nos braços a noiva,
decerto para a salvar do pavoroso castigo que a todos ameaçava. O seu
corpo gentil, dentro do vestido de casamento, a cabeça enfeitada de
flores, os olhos bellos que tantas lagrimas amargas tinham chorado, o
peito ancioso que em silencio suspirara sentidas endeixas d'amor... tudo
levou esse salvador providencial e ambos se sumiram no negrume d'essa
noite fria de Março. Festejavam-na do céu as estrellas, acompanhava-a o
murmurio das fontes, cantava-lhe aos ouvidos a ligeira brisa, e a
escuridade amiga e silenciosa encobria estes amores deleitosos. João da
Cunha, celere como um gamo, saltou primeiro o muro do adro levando
comsigo a penna leve do corpo da sua amada, atravessou veloz um campo,
saltou outro muro e no caminho d'além, atirou Maria para sobre uma egua
valente, montando depois n'um cavallo fiel. E como se isto fôra um vôo
de lendas scandinavas, lá foram os dois vencendo encostas, galgando
ribeiros, entranhando-se de cada vez mais no seio protector e cumplice
da noite calada e escura. Escutavam de vez em quando para ver se outro
tropel de cavallos os seguiria; mas João confiava sereno na promessa de
seus irmãos, que lhe haviam offerecido as vidas para o livrar de
perseguidores.


                                   IV

A perturbação de todos os que assistiam á ceremonia matrimonial foi
maior do que podiam esperar os inventores do estratagema. Alarmados pelo
subitaneo alarido de vozes de duendes, almas-penadas, diabos ou o que
quer que era, em furia e delirio; accrescentado o primeiro barulho com o
reboliço que se sentira no telhado da egreja, que parecia derruir-se;
levado ao auge o desconcerto com o rapido apparecimento da chama azulada
do incendio, com o cheiro da polvora e estrondo de bombas, acompanhados
do toque desesperado de sinos a rebate... produziu-se em todos os
cerebros um movimento de terror e assombro facil de comprehender. O povo
casual e os creados das lumieiras, que tinham deixado as cavalgaduras no
caminho para assistirem á festa, foram os primeiros a fugir e
encontraram-se desvairados no adro, cegos no meio da escuridade pelo
brilho que nos olhos traziam da farta illuminação das tochas. A sua
grita e clamor acabou de apavorar os proprios animaes, que, n'um tropel
desvairado, correram pelos caminhos e atravez dos campos, como fugidos
d'uma casa em chamas. Os convidados, apesar de numerosos, não eram
bastantes para acudir ás supplicas das senhoras, presas d'um
extraordinario medo e algumas desmaiadas. Os minutos que durou a
intensidade do perigo, pareceram annos de castigo e tormentos, a todos
que se encontraram no meio do horrivel drama. Os homens mais resolutos,
serenos, e affeitos a perigos julgaram que este era o seu ultimo
instante de vida terrena e já sob os proprios pés sentiam
abrirem-se-lhes escancaradas as verdadeiras gargantas do inferno. Ás
vozes rogativas das senhoras, acudiram alguns: o padre Pitança, caçador
e temerario, encontrou-se entre ellas de capa d'asperges, falando alto,
dizendo palavras incoherentes, mas que davam sentimento de realidade; os
do Corcovado correram em busca de Maria... D. Bento d'Osma, esse cahira
de joelhos no sitio em que estava na capella mór—tinha as mãos erguidas,
os olhos espantados, no semblante o esgar dos epilepticos, e murmurava
palavras de prece batendo os dentes. Estava inerte, não procurava evitar
a condemnação que o abatera, não pensava em resistir á divina vontade,
que o punia sem misericordia.

Porém os do Corcovado procurando sua irmã gritavam por ella na egreja,
no adro, na sacristia... por toda a parte. Não a encontrando vieram á
fala para cerzirem as suas idéas, e facil lhes foi concordarem no que
poderia ter sido aquella emboscada. Sentiram-se realmente apavorados e
grotescos.

—Nada! é lá possivel!—ainda teimou o mais velho—procuremol-a melhor, que
estará por ahi cahida sem sentidos...

Procuraram com vellas e tochas acesas, que arrancaram dos proprios
altares, e de momento a momento a suspeita d'uma cilada dos da Maceira
tomava maior vulto e lhes enchia o espirito d'uma colera crescente. A
elles se juntaram o velho pae e o D. Bento d'Osma, que os creados haviam
arrancado á sua paralisia, e todos chamavam por Maria e pronunciavam o
seu doce nome, com ancia e carinho, atirando-o para o ventre mysterioso
d'aquella negra e hostil noite de Março. Nem acordada, nem desmaiada,
nem viva, nem morta a encontravam, por mais que empregassem vozes
supplices ou de desespero. Agruparam-se com os parentes e o noivo de
Maria, os convidados e os proprios creados. Assim todos reunidos, de
tochas na mão, em volta da modesta egreja rural semelhavam multidão
imprecativa de povo e não gente na ancia d'um interesse terreno. A noiva
não respondera, nem ás primeiras vozes carinhosas do pae e do noivo, nem
ás palavras já cheias de ira de seus irmãos. Na egreja, na sachristia,
no adro não a descobriam... logo, Maria, ou voava para celesteaes
alturas com as suas azas de pomba virgem, ou fugira nos braços do seu
amado, o João da Cunha da Maceira.

—Com dez mil demonios, que sou capaz de trincar o coração a esse
malvado, como Pedro, o Crú, fez aos carrascos de sua mulher—rugiu o
velho do Corcovado, com a face incendiada em desespero.

—Rapazes!—berrou D. Bento d'Osma á multidão dos seus creados—mil
cruzados novos aquelle que os pilhar.

E os irmãos de Maria, concertados em identico pensamento de vindicta e
com a imagem sarcastica e victoriosa dos da Maceira deante dos olhos,
clamaram:

—Os nossos cavallos depressa que não os deixaremos descançar, nem nas
profundezas do inferno!

Não era muito facil encontrar os cavallos, pois quasi todos tinham
fugido espavoridos. Como se poderia ir ter com elles atravez da vaga
escuridão da noite, por caminhos e veredas incertas? Correram os
creados, que os conheciam e a cujo chamamento e vozes os animaes estavam
habituados. Partiram do adro, cada um com a sua lumieira erguida como um
tropheu, chamando e assobiando, em direcções diversas. Que coisa esta de
homens com vozes bradantes, armados de fogachos furando a espessa treva,
a saltarem muros, e a correr pelos campos, estradas e atalhos! Seria ás
arvores hirtas e silenciosas, ás estrellas sorridentes e alegres, aos
espaços mudos e infinitos que elles supplicavam? Lá iam com assobios e
palavras semeando a negrura torva. Ao fim d'algum tempo alguns voltaram
com os animaes que buscavam e lhes haviam obedecido, reconhecendo-lhes o
imperio a que estavam sujeitos. Já se tinha passado talvez mais de uma
hora, quando os parceaes de D. Bento e os rapazes do Corcovado poderam
montar os seus fieis cavallos, para irem no alcance dos
fugitivos—duração infinita para os apaixonados corações se distancearem
no goso d'uma felicidade tão rudemente conquistada.

Mas para que lado correriam os perseguidores, se os terrenos eram tão
vastos, as montanhas tão silvestres e asperas? Como nortear a marcha em
noite escura de breu, por veredas multiplas e perigosas? Reuniram
conselho para deliberar.

—Para a Maceira?—lembraram os rapazes do Corcovado.

—Não seriam tão asnos que em tal ratoeira cahissem—observou o prudente
José Pereira.

—Para o Cerdal, pois são amigos de Cesario.—opinou uma voz.

—Meu primo não me faria o aggravo de lá os receber—inteirou D. Bento
d'Osma.

—Sigam para os montes—ordenou o padre José Pitança, de estola sobre o
amplo peito, mas já sem pluvial, que largara para se desembaraçar em
qualquer lucta de braço a braço, se necessidade houvesse de a sustentar.

—E se elle a fosse depositar respeitosamente e intacta no Ramisco, para
depois seguir o processo judicial!?—aventou com a sua voz meliflua o
desembargador João Xavier.

Esta lembrança esdruxula, deixou perplexos e irritadas todas as vontades
e corações que desejavam uma acção violenta e immediata de assignalada
desforra. O sangue dos do Corcovado borbulhava em fremente cachoeira e
Thomaz, que era dos quatro o de animo mais ardente e vingativo, disse:

—Qual asneira! Vamos lá para cima que até me parece que já os estou
sentindo correr adeante.

E esporeou energicamente o seu cavallo, que lhe respondeu com um salto,
vencendo á desfillada a ladeira, onde as ferraduras feriam lume nas
lages. Manoel o mais velho ainda teve tempo para ordenar, gritando:

—Cada um pelo seu caminho e por edades. Eu á direita.

Abalaram encosta acima, acicatando com violencia os animaes. Alguns dos
amigos e convidados de D. Bento d'Osma seguiram-nos animados d'um
generoso espirito de desforra. No pavor da noite, este galope de
combate, amplificou-se primeiro, foi esmorecendo gradualmente, restando
por fim nos ouvidos dos que tinham ficado, uma ressonancia como de sons
repercutidos no fundo d'um poço. O padre José Pitança, de alva e estola,
no meio do adro, estendeu com vigor os braços, increpando no vago com os
punhos apontados ao céu:

—Grandissimo patife! Que o esborrachava...

—Uma costa d'Africa é que precisa—ameaçou o velho José Pereira.

—Uma costa d'Africa!—rugiu D. Bento d'Osma. Uma forca! mil forcas é que
merecia.

Porem quasi todos entenderam que deviam ir para o Corcovado, onde estava
a mesa preparada para o começo do festim da boda. Ali aguardariam os
acontecimentos. Muitos porfiavam em acreditar que os fugitivos seriam
alcançados. Porem a maioria das senhoras, cujos nervos tinham sido
desorientados com a commoção causada por tão estranho, quanto
inesperado, successo, preferiram as suas proprias casas, onde melhor se
aquietariam com rezas e com descanço ao seu conchego habitual.


                                   V

Noite escura e triste; noite, cheia de negruras no céu e no coração!
Pouco depois de João da Cunha e Maria partirem a gallope para o seu
louco destino, entraram com elles pavorosos receios, tremendo um por
causa do outro. Durante muito tempo os acompanhou o alarme de vozes em
grita, que se produzira na egreja e no adro, e que se fôra estendendo
pela aldeia, tal onda de revolta popular. Como fossem subindo a céu
amplo sobre o valle, onde a agitação se alastrava, ouviram, até muito
longe, esse rumor sinistro, perseguidor e amaldiçoante; mas depois que
venceram o primeiro cabeço de monte, era antes um sussurro de mar a
bater em rochas escarpadas, isso que lhes chegava aos ouvidos. Mais
além, só conheciam a impressão arquejante que lhes ficara vibrando no
cerebro perturbado. De vez em quando sonhavam tropel de cavallos que
lhes viessem no encalce e paravam attonitos com o ouvido á escuta;
conhecido o erro continuavam animados pela doce esperança de viverem no
seu amor absoluto, reciproco e vehemente. Maria, apesar de animosa e a
tudo resolvida, não deixava de temer a vindicta de seus irmãos, e no
escuro da noite mysteriosa murmurou como n'uma prece: «Deus nos proteja!
Se nos apanham está tudo acabado!» Ao que o intrepido amante oppoz, com
voz decisiva: «Nada receies. O meu corpo será mais difficil de
trespassar, que um duro penedo!» Continuavam a rasgar a treva densa, por
caminhos perigosos e pouco calcados de gente. João conhecia todos
aquelles montes como os campos da sua aldeia; palmilhara-os, durante
annos, acompanhado do seu perdigueiro, em todos os carreiros e veredas.
Cego que elle se houvera tornado, determinaria a posição dos ribeiros e
rochedos e as nodoas das bouças. Por tanto, para se dirigir na selva
escura d'esta noite espessa, bastava-lhe o sorrir das estrellas do céu e
a ditosa ventura de ter a seu lado aquella a quem amava. Eram favoraveis
as circumstancias para não serem encontrados e para chegarem ao ponto
ditoso, onde descançariam longe da furia e perversidade humana. Trazia
esse quadro na menina dos olhos; era uma casinha alpestre, armada entre
fragoas. Porém, como estivesse ainda muito distante e os montes fossem
largos, só quando se annunciasse a luz solar poderia definitivamente
nortear-se, para chegar em direitura, ao paraiso onde podiam florir os
seus amores. Por agora só pensava em distanciar-se de onde estavam os
seus temiveis inimigos; queria apenas retirar-se do perigo, livrar a sua
felicidade da furia dos irmãos de Maria, que seria cruenta se se viessem
a encontrar, n'essa noite, face a face. Armara-se para chegar a todos os
extremos d'um combate sanguinoso: preso no arção trazeiro levava duas
clavinas carregadas com zagalotes, nos coldres duas magnificas pistolas
de cavallaria com balas, no bolso interior um acerado punhal de lamina
triangular. Preparara-se para uma rude empresa de morte e amor, venderia
muito cara a vida e a fortuna de viver. Mas distancear a hypothese
horrenda e desgraçada d'um encontro funesto com qualquer dos que o
perseguiriam, era o seu anhelo, o seu unico desejo. Por isso procurava
com ancia ganhar distancias, mettia por atalhos perigosos, evitava
quanto podia a proximidade de casas e povoados, onde se podesse dar
indicio da sua passagem. Nem sempre o pudéra conseguir e n'um logar que
atravessaram, o ruido dos cavallos devia ter sido percebido por um grupo
de mulheres, que enfornavam a broa da semana. Cresceram os pavores e
receios que enegreciam a imaginação de Maria; porém João aquietou-a
dizendo-lhe que, aquelle caminho era forçado para muitos logares
distantes, uns dos outros. Continuaram silenciosos e cheios d'esperança
na negrura cumplice da noite, porém o sussurro dos ribeiros que iam
grossos d'aguas, o acordar repentino d'algum animal bravio que fugisse
por entre carrascos e tojos, a propria voz do vento que passava nos
codeçaes e bouças se transformavam na mente de Maria em signaes de gente
amotinada que os perseguia, em prenuncios de embuscadas que seus crueis
irmãos tivessem armado contra o seu unico, verdadeiro e sentido amor. A
aldeia ficava-lhes de cada vez mais distante, lá em baixo, em fundo
valle. Demonstrava-o o passo mais lento das cavalgaduras que era já de
fadiga. Tambem agora tinham de caminhar com maior prudencia, pois João
confessava-se no limite dos montes seus conhecidos e familiares. Podiam
esbarrar com algum ribeiro que os obrigasse a retroceder, por isso
procurava sempre os pontos mais altos, onde essa contraria probabilidade
diminuia. Ás montanhas succediam outras montanhas, sempre n'um
levantamento gigante que parecia ter limite no céu, onde talvez fossem
cravar seus dentes de penedias asperas. Só as estrellas os acompanhavam
com riso carinhoso e só estas é que davam a luz tenue, que lhes deixava
distinguir os asperos carreiros, brancos sobre a terra negra. O ar
tambem era mais leve e mais cortante, a modo que a sombra da noite se ia
adelgaçando. Ao nascente, para onde levavam voltados os rostos, já viam
com antecedencia a promettedora chegada do sol, essa alegria sumptuosa
do mundo!... Eram menos inquietas e vibrateis as pestanas argenteas dos
astros, que se sentiam cançados da continuada vigilancia durante a longa
noite. Visto não terem podido combater victoriosamente a treva densa,
deixavam essa encantadora tarefa ao seu glorioso avô, que traria a
brilhante poeira de oiro fino, para enfeitar as cristas das montanhas,
enchendo de luz a profundeza dos valles e os recessos das penedias.
Maria anciosa por encontrar o limite no seu caminhar perguntou:

—Estamos ainda muito longe?

—Andaremos, com dia, talvez uma hora.

—E a gente que nos encontrar?...

—Só pastores e ovelhas poderemos encontrar.

—Santo Deus! Esses pastores não nos denunciarão?

—Os teus irmãos não nos fazem, decerto, para este lado, e daremos
informações erradas a quem falarmos.

—Em todo o caso fujamos sempre...—rematou inquieta.

Seguiam, já n'uma penumbra fofa, o carreiro aberto, ao longo da espinha
d'um monte amplo, pelos pés senhoris das ovelhas e cabras que ali
passavam diariamente. Um bufo, que levantou o seu vôo pesado, de entre
um massiço de penedos, gerou subito alarme no peito de Maria, denunciado
n'um grito de susto, que o seu amado acalmou com a explicação prompta do
facto. A luz do sol, ainda distante, provocava este e ainda outros
signaes de renascimento da vida terrestre. Já a massa espessa das
montanhas se definia em formas comprehensiveis á vista: agigantavam-se
os penedos com aspecto de homens associados em conversa; as arvores,
dispersas nos terrenos aridos, recortavam-se no céu que se ia
acinzentando; as aguas da chuva que se tinham accumulado em covas
naturaes, eram espelhentas. Com taes prenuncios de dia entrava nos
corações amantes, a fé e a esperança na felicidade do amor. Tão de breu
fôra essa noite, que só agora sentiam a posse completa das proprias
individualidades, até então amalgamadas com a espessura da treva.

A proxima chegada do sol aclarando o firmamento, que parecia de vidro
fosco, apagava gradualmente todos os luzeiros pendurados pelo ar.
Formara-se um nimbo lacteo sobre o horisonte. Pipillavam as timidas
calhandras erguendo-se do seu leito, entre carquejas, com as pennas
irriçadas pelo frio, o que lhes avultava o tamanho. Das bouças já sahiam
gaios, grasnando como patos selvagens; levantavam-se melros cortando o
crepusculo com o seu vôo rectilineo e silvo agudo; surgiam pêgas a
palrar como velhas dementes. Era a gloria da luz e da vida que renascia
e animava a solemne mudez das montanhas crespas. Um ligeiro sorrir dos
labios de Maria denunciou que o coração se lhe descomprimia, que a sua
alma ingenua e pura, aceitava de boamente os perigos do dia, em troca da
escuridade protectora da noite. Não assim João da Cunha, receioso dos
males que podiam agora nascer. Se os do Corcovado houvessem acertado na
perseguição, se os visse apparecer na volta d'um monte ou do meio d'um
matagal, seria tamanha a desgraça, que só a morte a podia definir.
Correria o seu sangue e o sangue dos de Maria. Todo o que se vertesse
havia de ser em desproveito da sua ventura, que não mais poderia brotar.
Mas com um movimento energico de cabeça afastou para longe ideias
tetricas; de novo no amplo e corajoso peito entrou a esperança risonha e
cariciosa. As montanhas eram largas, os caminhos muitos e intrincados,
só um grande infortunio o levaria ao encontro dos seus algozes.
Consumidos os dias de gozo, doces como o mel, que viessem as
perseguições e os flagellos crueis, pois o encontrariam resoluto e
altivo, como era natural do seu animo levantado e temerario.

Subiam, subiam ainda na encosta d'um monte, que tinha outros mais altos
para os lados do céu. Os já andados escorriam lá para o fundo, em
successão de valles, n'um dos quaes assentava a risonha aldeia d'onde
haviam partido. Ao vencerem um alto cabeço deram de frente com o olho
redondo do sol, que os fitava impavido e dominador.

—Ainda é muito longe?—perguntou Maria.

—Mais uma legua para andar.

Desciam na vertente d'além: n'esse alvorecer encontraram a primeira
pastagem de boa relva, mosqueada de malmequeres, goivos e junquilhos
nascidos no sopé d'uma penedia d'onde brotava agua, e o primeiro rebanho
guardado por um pequeno pastor. Era um rapaz franzino e sujo: ao ver
aquella formosa senhora, vestida de claro e com flores na cabeça como
qualquer santa, acompanhada por tão garboso cavalleiro, logo se levantou
da lage onde estava sentado, conservando-se com o grosso barrete na mão,
até que elles chegassem.

—Bom dia rapaz—saudou João da Cunha.

—Bô dia—respondeu em voz rouquenha. Agora não ha romaria: eh! voncês
p'ra onde vão?

—Levar uma promessa á Senhora Apparecida—respondeu João.

—Tão linda como a Senhora Apparecida é essa senhora. É sua?

—É minha, é Joaquim. Chamas-te Joaquim?

—Não senhor, sou Zé.

—Pois toma lá este dinheiro e dá-o á tua mãe para te mercar uma camisa.
Se por aqui vierem uns senhores a cavallo diz-lhes que não viste passar
ninguem.

—Se voncê quer, digo. Hei de rezar por vós, que não ides bem p'ra
Senhora Apparecida, mas p'ro Senhor Bô-Home.

—É que vamos primeiro ao Senhor Bom-Homem e depois á Senhora
Apparecida—explicou.

—Antão, havendes de tornar para traz.

—Pois tornamos.

—Isso é falar. Deus os acompanhe.

Ficaram receiosos d'este encontro, como já o vinham das mulheres que
enfornavam o pão. O convivio humano era-lhes n'este momento antipathico.
Da intelligencia alheia, só perigos lhes poderiam advir. Maria levava o
rosto palido e fatigado; desejava chegar breve ao ponto da terra, onde
pudesse repousar e esconder-se. O seu amado comprehendeu-lhe este
secreto pensamento tão legitimo e natural. Chegados a um sitio d'onde se
lhes desdobrava aos olhos um largo ondeado de montanhas, João apontou a
brancura d'uma ermida, que se destacava sobre a mancha negra d'uma matta
e disse:

—Acolá, vês?

—É uma capella!

—Para além da capella está a casa.

—Quanto tempo?

—Pouco tempo.

Metteram por uma esplanada coberta de penedias em cujas anfractuosidades
podiam esconder a sua marcha. A luz do sol já enchia os montes e até os
valles cobertos pelo nevoeiro matinal. O ar rescendia a aromas, que se
levantavam da terra, das flores e hervas alpestres. Passavam no céu,
azul palido, aves de grande corpulencia, abutres e aguias, que pousavam
nos pincaros mais levantados. Os negros corvos crocitavam perto, subindo
do chão para os penhascos. Apparecia aqui um coelho que rebolava pela
terra arenosa; rompia adeante um par de perdizes, já acasaladas no
começo d'amores; erguia-se uma lebre, veloz na carreira, corveteando de
orelha guicha. Maria, certa do limite da sua jornada, mostrava rosto
mais desanuveado; todo o seu desejo e ambição era, n'este momento,
esconder-se como timida corsa no denso matagal, que fazia mysteriosa
negrura, juncto da alva capella que João lhe apontara. Não tardou muito
que aportassem ao carinhoso abrigo. Bem mereciam este repouso, depois de
tão longas horas atormentadas pelo esforço corporeo e pelas preocupações
do espirito. As horas, muitas ou poucas, que ali permanecessem,
ignorados e tranquillos, enchel-os-hiam de amor ardente, para
entorpecerem a sensibilidade, emquanto não vinha o desenlace da arrojada
aventura.

—Ninguem nos supporá aqui, meu amor—suspirou João ao saltar do seu
cavallo.

—E de quem é esta casa?—perguntou Maria ao cahir-lhe nos braços, para
descer da egua.

—D'um amigo de longe, que só vem aqui, de anno a anno, fazer as suas
caçadas.

Depois de recolher as cavalgaduras, entraram na modesta cabana, coberta
de colmo. Logo fecharam a porta sobre os seus corpos cançados. João ao
apertar Maria nos braços nervosos exclamou desvairado.

—Até que emfim! Podem agora vir todos os tormentos da terra!...


                                   VI


Dia venturoso, primeiro dia d'amor, em casa modesta e simples, cercados
do silencio dos ermos, bafejados pela brisa balsamica e leve, aquecidos
pela chama copiosa do bello sol de primavera. Da terra humilde dos
montes nasciam flores, abrindo no vasto azul o sorriso, que de noite
cubiçara o brilho das estrellas. As aves simples, que a floresta enchiam
de seus encantos, ignoravam a apotheose que estavam fazendo d'aquella
felicidade. Tudo que havia de rescendente nas duas almas, ditosas e
bellas como os lyrios brancos, subia em anhelos para as celestiaes
alturas, enchendo os espaços infinitos de sua fragancia.

O dedicado amigo de João da Cunha, que lhe cedera este sagrado abrigo,
havia-lh'o provisionado de modo que não fosse necessario, logo de
entrada, qualquer contacto com gente do povoado. Por isso n'este
primeiro dia, nem as janellas descerraram, vivendo os dois na escuridade
que mais os unia no seu amor immenso. Os serranos, que por acaso
passavam, não presumiriam viv'alma dentro d'aquella casa simples,
construida entre penhascos approveitados como tractos de paredes. As
duas unicas janellas eram aberturas naturais das fragas: por ali
entravam outr'ora as aves de presa, que nos reconcavos faziam seus
ninhos. As duas portas collocadas no afastamento mais largo dos penedos
aglomerados, davam entrada uma para a cosinha, outra para a casa de
jantar e dormitorio. As cavalgaduras arrumavam-se n'uma loja aberta na
espessura da terra no ponto inferior do fraguedo. O telhado de colmo era
preso, para resistir ás ventanias invernaes, com pedras e paus
atravessados. As aberturas desnecessarias tinham sido tapadas
grosseiramente com pedra avulsa, sem o esmero de rebouco de argamassa
exterior. Esta rustica morada assentava a mais de meia encosta, por cima
da afamada matta do Medronhal. As duas janellas abriam para o declive
dos montes e via-se, em corrida extensão, a severa e funda garganta, por
onde sussurravam as grandes aguas, que vinham de longe, formando o
ribeiro da Marnoca, celebre pelas suas trutas. O inverno tinha sido
aspero e copioso, o desgelo das neves altas, ainda em principio,
engrossava a corrente que n'um fragor de trovão se despenhava de rochedo
em rochedo, por entre togeiras virgens, onde não pousaria o pé rustico
do pegureiro, se para ali se lhe extraviasse a rez. Havia até sitios
perigosos, aos quaes é duvidoso que pudesse chegar, lobo esfomeado em
procura de presa. Eram brenhas selvaticas e dantescas onde, só no
torrido estio, entrava o sol para calcinar as pedras. O contemplal-a
apenas, enchia a alma de pavores e mysterio. Os dois amados, na
escuridade da sua cabana e cercados do silencio do ermo, que este aspero
ruido tornava mais completo, sentiam-se tão fóra do mundo e dos homens,
que os seus corações já palpitavam unisonos e sem receio. Era sua
aspiração e desejo, viverem, assim infinitamente, n'esta paz tranquilla
de sepultura, formando um ser de dois seres, com um unico sentir e uma
só vontade—louca aspiração de juvenil egoismo, de que só pode dar razão
a immensa felicidade que fruiam. Eram como essas aves que outr'ora ali
tinham formado seus ninhos toscos, na ignorancia de tudo que não fossem
montes e estrellas. Independencia absoluta da vida esquecida dos que se
persuadem que no amplo universo, nada mais existe do que o amor.
Veio-lhes a fadiga e o somno, que mais dilatada lhes tornou a ventura,
continuando-a pelo sonho em céus deslumbrantes. Quando acordaram já o
sol declinava no horisonte, arrastando a resplendente juba loira pelo
cume das montanhas. Abriram então uma das janellas para se despedirem do
astro que, fulgurando, deixava o mundo e levava comsigo a alegria da
terra.

N'uma d'essas toscas aberturas a poente, appareceram amarellecidos pela
ultima luz d'esse venturoso dia, as duas cabeças unidas, os dois corpos
enlaçados. Demorando-se na contemplação do formoso espectaculo, Maria,
tinha ainda o seu vestido de noiva e na cabeça as flores com que lh'a
haviam enfeitado. O crepusculo cobriu-a lentamente com o seu veu de gaze
fino, como a uma creança que dormisse, sombreando-lhe o rosto com tintas
de melancolia.

E para orchestrar este quadro de simplicidade antiga e paradisiaca,
subia do fundo da garganta escura da floresta o som magnifico e potente
das aguas, como um hymno religioso, que se amplificasse solemne nas
abobadas d'uma cathedral. Fechava-se assim este primeiro dia enebriante
e ditoso: viera a noite alargar o vasio de todas as existencias, afofar
com sombras os meandros da vida universal.

Accenderam lume, para se aquecerem.

Em frente um do outro, sentados em toscos escabellos de carvalho annoso,
estavam em silencio, enredando os seus pensamentos. Presas as suas
linguas nas circumstancias d'esta existencia anomala e feliz,
communicavam-se por meio de sorrisos e beijos. Maria, porém, rompeu o
encanto da sua mudez, considerando:

—Até quando durará isto?!

—Hade durar sempre—affirmou João.

—Talvez bem pouco dure...

—Teu pae perdoa-nos...

—Nunca nos perdoará—disse repassada d'angustia. Não o conheces.

—Seremos do mesmo modo felizes.

—Porém como!?...

João fez um gesto amplo e vago de quem acredita no céu clemente e
mysterioso, dentro do qual se conservam em amalgama todas as soluções
felizes da existencia humana. Apesar d'isto, continuaram tristes e
absorvidos na sua tristeza, deante do lume alegre e crepitante, com
chamas que se levantavam e diluiam como as esperanças. É assim toda a
ventura: ergue-se com impeto, flameja triumphal, desaparece como a
chama, como ella deixando a treva e o frio. Porém estes amores apenas
começados estariam, por certo, bem distantes do seu fim: no querido
ermo, protegidos pela treva densa, principiava a primeira noite fecunda
e bella. Fecunda e bella foi, mas tinha de acabar como o dia. E acabou:
já no ambiente se sentia o acordar de existencias chamadas pelo
reapparecimento do sol, o qual, os ditosos amantes, tambem de novo
vieram saudar.

Abriram a porta que dava para nascente, e abraçados como duas estatuas
em grupo, appareceram risonhos deante do sol:—Maria com o seu vestido de
noiva machucado, as flores da cabeça emmurchecidas; João o rosto mais
severo e palido do que ao findar o precedente dia.

Rompeu o grande astro por entre penedias: primeiro como uma gema d'ovo,
amarella e redonda; depois com a irradiação d'uma enorme fornalha que
estivesse no infinito. A todos a luz patentearia a realidade da Terra: a
Maria e a João mostrava-lhes a extensão aspera e vaga da montanha, um
chão arenoso e safaro, cheio de granitos e pobres plantas, sempre
açoitadas de ventanias e chuvas, crestadas pelas neves duradoras, roidas
do dente damninho das cabras. Contemplavam essa aridez impressionante e
forte das serranias, que educa as vontades para a victoria e para o
sacrificio, que prepara o cerebro para extremos de abnegação até á
morte. Sentiam essa grave austeridade contrastando com a terna ventura
dos seus corações, jovens e amantes, com o sentir mais delicado das suas
organisações creadas na tranquilidade e maciesa das veigas floridas, de
culturas abundantes que agudam a sensibilidade. O bello sol reunia-lhes
os dois corpos n'um feixe de luz, atando-os com os seus raios d'oiro; o
seu magnificente beijo matinal sellava a incomparavel ventura d'este
amor incomparavel. Tão descuidados e seguros se encontravam em momento
tão ditoso, que João não teve duvida em propor á sua amada o sahirem á
procura d'um rebanho, que lhes désse leite para o almoço.

Foram enlaçados, como dois ramos nascidos do mesmo tronco. Rostos
alegres e corações abertos á aventura iam pelo monte além, descendo para
sitios onde presumiam pastos. Amplificavam-se-lhes os pulmões para
n'elles entrar o ar fresco; dilatavam-se as narinas excitadas pelos
aromas da brisa silvestre. Andaram bastante para encontrar o primeiro
rebanho: quando voltavam, ao ninho d'amor, com a caneca a transbordar de
grosso leite, é que ouviram latidos d'uma matilha, que de longe vinha
batendo a serra para o Medronhal. Continuava a subir aparatosamente o
sol, no céu tranquillo e mudo, desdobrando pelas corcovas das montanhas,
pelo apertado das gargantas, e pelos ferteis valles o seu lençol de luz.
Os cães ladravam ainda longe, porém a revoada dos seus ganidos,
misturados a tiros de espingarda e a gritos de batedores, subia pela
encosta acima, como o fumo d'uma nevoa, que o vento sul levantasse. O
rosto de Maria alterou-se, parou com o ouvido á escuta e perguntou:

—Que será?

—Alguma batida ao bicho bravo. O fogo é lá p'ra baixo—explicou João.

—Vamos depressa para casa!...—pediu receiosa.

—Pois vamos—concordou abraçando-a pela cintura, para andarem mais
depressa.

Caminhavam diligentes e celeres, não reparando que se lhes vertia o
leite da infusa. Dominava-os apenas a idéa de não serem vistos de
viv'alma, de se esconderem na modesta choupana, com portas e janellas
fechadas, n'uma escuridade completa. Porém, os seus passos deseguaes e
nervosos foram sustidos n'um momento, pela apparição d'uma sombra...
d'um phantasma... d'um homem a cavallo, que apparecendo ao norte se
dirigia como elles, para o lado da ermida branca.

—Olha gente!—exclamou Maria. Se nos vê, santo Deus!...

Esconderam-se por traz d'um macisso do urzal virgem, que pegava com o
Medronhal. D'ali queriam observar o destino do cavalleiro. O silencio de
João, as linhas do seu rosto contrahido e pallido, o peito tão quieto
que nem respirava, denunciavam a negrura do seu coração. Comprehendeu o
perigo: ainda que aquelle homem fosse um estranho, que os não
conhecesse, havia de causar-lhe surpresa o encontral-os n'aquellas rudes
paragens, sósinhos, tão jovens, tão namorados e tão dignos um do outro.
Levaria a noticia do singular encontro e estariam logo descobertos. Pelo
menos seriam obrigados a mudar d'abrigo e a esgotar depressa o primeiro
calix da sua ventura.

—Talvez passe para deante—ciciou-lhe, quasi ao ouvido, o namorado de
Maria.

Mas o cavalleiro, caminhando devagar e cautelloso, como avançada na
observação de campo inimigo, estava ainda bastante longe para só se
distinguir o seu vulto com o chapeu desabado, a espingarda atravessada
nos joelhos, o grosso tronco, firme sobre a sella.

—Peor é—considerou João—se ha por aqui alguma porta de espera; porque
então fica.

—O que é uma porta de espera?—perguntou anciosa Maria.

—O ponto onde pode romper a caça—esclareceu.

Do lado esquerdo surgiu outro cavalleiro com o egual aspecto de
descanço, da mesma forma vestido e armado, convergindo tambem para o
sitio da ermida. Viam-no mais perto, sem que pudessem ainda definir
particularidades. Porém, quando chegou a um altinho, onde o recorte do
seu corpo e da cavalgadura se fez com maior precisão e nitidez, Maria
deu um grito, que pela intensidade da dôr que exprimia, seria capaz de
acordar lastimas nos reconcavos d'aquellas montanhas.

—É meu irmão Thomaz!

A João da Cunha cahiu-lhe da mão o tarro de leite, que se verteu pela
terra. Affirmando-se com acuidade de vista, levou a mão ao punhal que
tinha no bolso rugindo:

—Pois matto-o.

Em casa é que tinha as armas, com que poderia fazer frente aos seus
inimigos; mas a casa estava distante, e tinham de subir um pedaço de
encosta aspera. Chegariam a tempo se corressem; porém, as pernas de
Maria, recusavam-se a andar. Era mortal a pallidez do seu bello rosto,
tremula de commoção a sua voz melodica, pavorosa a angustia da sua alma;
o seu corpo sem energia, deixava-se desfallecer sobre o chão. João da
Cunha, o valente rapaz, principiou a tremer como um vidoeiro, açoitado
por ventos furiosos. Maria agarrando-se fortemente ao seu corpo
supplicava-lhe:

—Esconde-me, esconde-me. Que me não vejam!

Subia, magestoso e grave do fundo da matta, o sussurro do ribeiro da
Marnoca, cujas grandes aguas se despenhavam, avolumando-se-lhes o som,
com as ressonancias da montanha. Essa voz rouca e solemne attrahia os
dois corações amantes, que só poderiam encontrar refugio nas covas
fundas, onde a corrente uivava e onde o javali se escondia. N'essa
tetrica escuridade de noite haveria por ventura, abrigo e defesa contra
a furia e colera dos irmãos de Maria?

—Vamos, vamos para baixo e se lá ainda nos encontrarem, jura-me que me
has de mattar com esse punhal, antes que elles me toquem!—clamava a
amada, enleando-se ao tronco do seu amado.


                                   VII

Conservava-se silencioso João da Cunha, porem tinha o semblante
terrivelmente tetrico. Já se ouviam mais perto os tiros de espingarda e
os gritos d'alarme dos batedores, e com este novo perigo mais se
estreitavam os corpos dos dois namorados. Obedecendo ao chamamento da
voz em supplica e reconhecendo a inutilidade de quaesquer esforços para
se deffender, João deixava-se arrastar por Maria para o fundo abysmo da
garganta escura da montanha, onde se despenhavam as aguas em
precipicios. No ultimo relance em que viu, por entre o urzal virgem que
os occultava, os dois cavalleiros, reconheceu serem Thomaz e Vicente, os
dois mais temiveis dos do Corcovado. Aproximava-se portanto, o fim do
seu tragico amor. Com a robustez do seu corpo agil, ia amparando o corpo
delicioso de Maria, que já se entregava sem animo. A cada paragem
indispensavel para refazer forças ella solicitava de João, com
verdadeiras lagrimas, que a deixasse esconder-se mais na escuridade. Já
tinha os pés e os braços ensanguentados de roçarem nos silvedos e nas
arestas vivas do granito; o vestido rasgado pelos espinhos dos abrolhos
e das tojeiras! João, apesar de toda a solicitude, não conseguia afastar
com as suas mãos piedosas todos esses duros obstaculos. Tambem elle
tinha a carne dilacerada e dos olhos vermelhos e vehementes sahiam-lhe
expressões alternadas de colera e de pavor. Mas iam descendo sempre,
amparando-se para não rebolarem pelo ingreme declive, do fundo do qual
vinha o bravio ronco das aguas, que se precipitavam de penedo em penedo,
por entre nuvens de espuma branca. O espirito de Maria sentia consolação
em embrenhar-se n'esta sombra de noite, cada vez mais espessa; mas o
barulho dos batedores e dos cães chegava-lhe de muito perto. E quando se
encontrou á borda do ribeiro gemebundo, com a pelle rasgada em feridas,
o vestido de noiva em farrapos, os cabellos desgrenhados e sem flores,
disse com expressão de alivio e desafogo:

—Podemos morrer. Aqui não nos verão!

O seu amado estava silencioso e rigido no meio da desventura, que por
todos os lados o cercava. Em breve ali chegaria a sofrega matilha, que
podia denunciar a estada d'elles n'aquelle mattagal aspero, escondidos
no reconcavo d'um penedo, abraçados n'um ultimo alento d'amor. João que
já uma vez batera aquellas brenhas, em alegre e bulhenta companhia,
via-se agora como o timido veado, occulto por medronheiros, altas
giestas e urzes seculares, com o fim de se furtar á impertinencia de
miseros rafeiros!... Do peito sahiam-lhe impetos de coragem, tinha
subitaneos repellões de musculos que o animavam a mostrar-se aos seus
inimigos, tal como era, indomito e sem temôr. Poderia subir n'um
arranco, qual outro cabrito montez, aquellas rochas escarpadas; poderia
haver ás mãos as clavinas e as pistolas: depois em campo claro, peito a
peito, combater com denodo, matando e morrendo. O seu coração ousado era
uma cachoeira de sangue n'estes momentos; exaltava-se-lhe a mente n'uma
febre de lucta. Erguendo-se, alto como um gigante, exclamou com os
braços para o céu:

—Sem ao menos ter aqui as minhas armas com que te possa defender!...

Maria dedusindo d'estas palavras do seu amado, que elle tivesse o
pensamento de se ir aperceber para a lucta supplicou:

—Não me deixes só! Ninguem nos imaginará n'esta cova.

—Depois de darem busca á casa e encontrarem cavallos e mais coisas que
nos pertencem, como não adivinharão?...

—Falta-lhes ainda descobrir-nos.

—Bastam os cães para nos denunciarem, como se fossemos bicho medroso...

Humilhou-se, abatendo de novo o seu corpo sobre a terra humosa. Havia
gemer de raiva n'aquelle peito ancioso. Com aspecto torvo e fronte
livida, olhava com vista negra para a espessura da matta, onde o vivo
sol da manhã, apenas gerava uma penumbra. Zumbiam abelhas colhendo o
alimento do rosmaninho, da flôr do tojo e dos sargaços; os innocentes
piscos de peito vermelho volitavam de galho em galho; passara uma cobra
entre o folhedo, que tapetava o chão. A espessura do medronhal já se
enfeitava com rebentos novos; a vida universal, independente e
descuidosa, crescia, remoçava-se á vista d'aquelles corações
desfallecidos e sem esperança.

A grita dos batedores avultava em intensidade. A matilha em busca accesa
estava perto, subia e descia as penedias, entrava nas covas e na negrura
dos mattos. Os dois amantes, ouviam perto os latidos; sentiam o ganir e
o choro proprio da canzoada na ancia da procura. João da Cunha,
paralytico na sua vontade e remettido á impotencia do seu aspero
desespero, não falava: fechou os olhos para não ver, tapou os ouvidos
para não ouvir. Maria, com a sua alma candida cheia ainda de fé e
esperança, estava de joelhos, as mãos erguidas, orando fervorosa e
supplicante, o pallido rosto innundado de lagrimas. Deu um grito e
interrompeu a prece, ao ver por entre a espessura da velha urze que
tapava a bocca do antro onde se tinham escondido, o negro focinho d'um
valente cão do Crasto, que rosnava. João ergueu-se de repente, apurando
todos os seus sentidos, e ficou ameaçador com o punhal na mão. O animal
recuou, subindo para um penedo d'onde principiou a ladrar e a arremetter
com ferocidade. Era um animal medeano, mas de cabeça poderosa: tinha o
focinho agudo, a bocca rasgada como a dos lobos, as orelhas cortadas, em
volta do pescoço uma colleira de pregos. O corpo zebrado de negro, em
fundo pardacento, lembrava a pelle da hyena. O pello do dorso, mais
cerdoso, estava erriçado pela colera; os olhos sanguineos, em circulo
negro, olhavam com ferocidade; os dentes brancos, fortes, eguaes,
arreganhavam-se deixando ver a lingua comprida, como uma chamma. Ladrava
com desespero, resfolgando-lhe as narinas, pois via João da Cunha, com o
punhal na mão, em attitude aggressiva. Outros cães da matilha vieram
junctar as suas vozes ás do denunciante; os batedores, suppondo peça de
caça renitente, algum javalli encurralado entre penedos, animavam com
gritos os animaes, em quanto se iam approximando.

O lance era de extremos perigos. João da Cunha, palido como a morte,
estreitava ao seu valente corpo, o leve corpo de Maria, cujos irmãos, ao
suspeitarem do valor do signal dado pelos cães se tinham já reunido
juncto da ermida para conferenciarem.

—São elles—disse Thomaz, o de coração mais duro. Examinei aquella casa,
tem coisas que lhes pertencem. Ha um cavallo da Maceira.

—Não nos fugirão agora—disse rancorosamente Vicente.

N'estas palavras havia alegria e impiedade. Concertaram o seu plano, que
consistia em descerem, ao mesmo tempo, de quatro pontos differentes,
convergindo para o sitio onde o ladrido se accentuava mais vivo e feroz.
Porfiavam por chegar primeiro que os batedores, para só por si
liquidarem este pleito. Tinham calma no aspecto, mas levavam no coração,
muito mais goso e ferocidade, do que teriam para desalojar a mais
temivel das féras.

Tamanha era a perseguição que os mastins lhes faziam que João e Maria
tiveram de sahir do seu esconderijo, para ficarem em terreno aberto,
onde se pudessem defender. Os cães do Corcovado, ouvindo a voz carinhosa
da sua ama, tinham-se afastado da contenda; mas os restantes,
especialmente o que primeiro os descobrira, mostravam-se de cada vez
mais inimigos. Houve um instante em que o assedio se tornou tão violento
que João da Cunha pronunciou alto:

—Maus raios! Eu sem lhes poder chegar!...

N'este apertado lance é que Maria descobriu, n'uma clareira, cercada de
urzes e medronheiros, passar seu irmão mais velho, o Manuel, com a
espingarda ao hombro, dirigindo-se para o sitio onde os cães ladravam.

—Estamos descobertos!—disse apontando.

—Inferno!—bramou João da Cunha. Não ter comigo as clavinas!

Este apparecimento levou Maria para as visões da loucura. Pelo ramalhar
das arvores, em cujos braços as espingardas se prendiam, pelo ondear dos
mattos, percebia-se claramente que tambem os outros do Corcovado para o
mesmo ponto convergiam.

Maria pensou em encontrar sitio, ainda mais inaccessivel, lá para o
fundo do precipicio. João desvairado, acompanhava-a, amparando-a, para a
não deixar cahir. Nenhum d'elles sabia para onde era levado pelo
destino, pela força interior que os impellia, mas ambos comprehendiam
que mais para baixo era mais cavernoso o marulho da corrente, mais denso
o arvoredo. Havia ahi uma queda de muitos metros, onde a agua levantava
alegres nuvens de espuma, e depois se expraiava em larguesa de bahia
tranquilla. Sem conhecerem o risco, para ahi se dirigiram, attrahidos
pela escuridade e para se livrarem da perseguição crescente da matilha.
Entraram n'uma passagem estreita, onde o ribeiro corria precipitado. O
negrume do logar e o fragor da corrente cegava-os e ensurdecia-os.
Chegaram á fraga d'onde a catadupa se precipita no fundo barathro. Ahi
apareceram abraçados um ao outro, tão meigos e sorridentes, como no
primeiro momento d'amor, e n'esse supremo instante é que uma voz de
vingança se lhes levantou fronteira, ameaçando-os:

—Nem mais um passo, que os varo!...

Era o Thomaz, que os apontava com a arma aperrada.

Maria deu um grito de pavor desprendendo-se dos braços do seu amado.
Tapou os olhos para não ver e correndo pela lage fóra, precipitou-se na
cachoeira fremente. João com os dentes cerrados de desespero, os olhos
em chammas de loucura, ainda tentou agarral-a; porém acompanhou-a na
queda, sem poder tocar-lhe no vestido de noiva.

                  *       *       *       *       *

O cadaver de João da Cunha, foi encontrado, depois, entre as penedias,
com o craneo esmigalhado. Já os corvos crocitavam em volta da sua misera
podridão. O de Maria, colhido amorosamente pela massa das aguas ao cahir
appareceu boiando no remanso limpido, como o de Ophelia, retido por um
innocente ramo d'urze. Foi d'esta humilde planta, que o seu corpo gentil
recebeu o ultimo beijo de carinho.


                                  FIM



                                 INDICE

                       Santa Margarida               1

                       Pastoral                     63

                       Fogo do Céu                  95

                       Voltou                      113

                       Cresce o Mar                155

                       O Gamarrão                  171

                       O Calvario do Amor          187



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