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Title: Iracema: com uma noticia biographica do auctor
Author: Alencar, José Martiniano de
Language: Portuguese
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BIBLIOTHECA UNIVERSAL

ANTIGA E MODERNA



IRACEMA



POR

JOSÉ DE ALENCAR


COM UMA NOTICIA BIOGRAPHICA DO AUCTOR

13ª SERIE--NUMERO 49



LISBOA

COMPANHIA NACIONAL EDITORA

Successora de DAVID CCRAZZI e JUSTINO GUEDES

40--Rua da Atalaya--52


FILIAES: Praça de D. Pedro, 137, 1º andar, PORTO

38, rua da Quitanda, Rio de Janeiro


1890



Á TERRA NATAL

UM FILHO AUSENTE



INDICE
NOTICIA BIOGRAPHICA
MEU AMIGO
IRACEMA
CAPITULO I
CAPITULO II
CAPITULO III
CAPITULO IV
CAPITULO V
CAPITULO VI
CAPITULO VII
CAPITULO VIII
CAPITULO IX
CAPITULO X
CAPITULO XI
CAPITULO XII
CAPITULO XIII
CAPITULO XIV
CAPITULO XV
CAPITULO XVI
CAPITULO XVII
CAPITULO XVIII
CAPITULO XIX
CAPITULO XX
CAPITULO XXI
CAPITULO XXII
CAPITULO XXIII
CAPITULO XXIV
CAPITULO XXV
CAPITULO XXVI
CAPITULO XXVII
CAPITULO XXVIII
CAPITULO XXIX
CAPITULO XXX
CAPITULO XXXI
CAPITULO XXXII
CAPITULO XXXIII
NOTAS
CARTA AO DR. JAGUARIBE



NOTICIA BIOGRAPHICA


José Martiniano do Alencar. Este grande escriptor brazileiro, mais
conhecido pelo nome de José de Alencar, nasceu no Ceará no dia 1 de
janeiro de 1829, sendo filho, ao que parece, do illustre politico do
mesmo nome. Dizemos "ao que parece" porque nas biographias d'este grande
escriptor, que temos presentes, não se accusa a sua filiação. Pode
ser lapso, pode ser outro motivo qualquer que não precisamos de apurar.
O que é certo é que José Martiniano d'Alencar mostrou desde creança
um grande engenho. Tinha 17 annos quando em 1840 se matriculou na
faculdade de direito de S. Paulo para tomar, como tomou, o grau de
bacharel, tendo ido porém em 1848 concluir os seus estudos juridicos e
formar-se na eschola de Olinda.

Em S. Paulo começou a manifestar-se o seu talento litterario,
publicando varios artigos n'um periodico intitulado: _Ensaios_, e
redigido pelos estudantes da Faculdade, que appareceu em S. Paulo nos
annos de 1840 a 1848.

Em 1851 concluiu Alencar o seu curso, e veiu logo para o Rio de Janeiro,
entregando-se então com mais desafogo aos trabalhos litterarios.
Estreiou-se na capital do imperio escrevendo no _Correio Mercantil_ um
artigo de critica acerca das _Poesias_ de Augusto Zaluar. N'esse mesmo
anno, como que para mostrar que as suas preoccupações litterarias o
não desviavam de estudos mais áridos, escreveu alguns artigos sobre a
reforma hypothecaria, e em seguida começou a escrever, sempre no
_Correio Mercantil_ umas revistas semanaes, intituladas: _Ao correr da
penna_ assignadas com a sigla _Al_.

Em julho de 1855 sahiu da redacção do _Correio Mercantil_, e passou a
collaborar no _Jornal do Commercio_, onde escreveu, entre outros
artigos, um a respeito de Thalberg, outro a respeito do _Othello_ e
outro ácerca do padre Mont'Alverne. Em outubro de 1855 assumiu a
direcção do _Diario do Rio de Janeiro_, que conservou até 1858.

Em 1856 publicou o seu primeiro folheto, que devia ser seguido por
tamanho numero de volumes. Esse folheto intitulava-se: _Cartas sobre a
confederação dos Tamoyos_, e era uma collecção de folhetins que
haviam sido publicados no _Diario do Rio de Janeiro_, e em que se fazia a
critica do celebre poema de Gonçalves Dias.

Em 1857, finalmente, sahia o _Guarany_ o famoso romance brazileiro, que
produziu um verdadeiro enthusiasmo, e que deu a José d'Alencar os
fóros, emquanto a nós merecidissimos, de primeiro romancista
brazileiro. Alguns criticos rabujentos notavam que aquelles Indios de
José de Alencar eram _plus beaux que nature_, que eram uns Indios
ideaes, muito diversos das creaturas porcas, rebaixadas e deprimidas que
representam na actual civilisação brazileira o elemento indigena.
Esses criticos porém esqueciam-se de uma cousa: de que os Indios
actuaes não são os Indios que viviam livremente na floresta, na
plenitude da sua força e da sua independencia, e tambem de que, se os
guaranys de Alencar são pelo menos Indios de excepção, Indios de
excepção eram tambem de certo aquelle suave Uncas, o ultimo dos
mohicanos, e o pensativo Chingachgook, que viviam em tão santa harmonia
com o Longa Carabina, aquelle Nathaniel Bempo, personagem querido de
Fennimore Cooper.

Mas os protestos, se os houve, desappareceram no meio do coro unisono
dos applausos. O Brazil tinha finalmente uma litteratura sua, bem sua,
romances que se não modelavam pelas formas velhas e gastas dos romances
europeus. A America do Sul tinha emfim o seu Cooper.

Pery, Izabel, Alvaro, Ayres Gomes foram personagens que ficaram, para
sempre gravados no espirito do publico brazileiro, e, para mais se
consagrar a gloria do _Guarany_, até o grande maestro brazileiro Carlos
Gomes escolheu este formoso romance para d'elle se extrahir o _libretto_
da sua opera o _Guarany_, que é a sua obra prima, a obra prima da
musica brazileira, e uma das notaveis operas do nosso tempo, que já
hoje tem fama universal, e é representada com applauso em todos os
theatros do mundo.

O que, porém, sobretudo se apreciava no _Guarany_, e a esse respeito
não havia diversidade de opiniões, era a belleza incomparavel do
estylo, a magnificencia das descripções da natureza.

Ao mesmo tempo tentava José de Alencar o theatro, e, depois de fazer
representar uma comedia de valor secundario _Verso e reverso_, dava ao
theatro a sua obra prima, tambem uma das obras primas do theatro
brazileiro, _O Demonio familiar_. É esta comedia um magnifico estudo
dos costumes brazileiros, e foi decerto um profundo golpe vibrado á
escravatura, porque o seu entrecho se cifra principalmente na
demonstração da influencia nefasta do _moleque_ na familia brazileira.
_O Demonio familiar_ é esse moleque, elemento permanente de discordia e
de desmoralisação.

O _Guarany_ e o _Demonio familiar_ bastavam para assegurar a gloria de
um escriptor; mas José de Alencar foi sempre consummido por uma sede
insaciavel de escrever. Trabalhava com uma rapidez tal que isso
prejudicava muitas vezes o acabado das suas obras, e impedia-o de lhes
fazer attingir a perfeição, a que poderiam aliás ter chegado tanto
quanto isso é possivel a obras humanas.

No theatro, pois, ao _Demonio familiar_ e ao _Verso e reverso_
seguiram-se o _Credito_, e os _Jesuitas_, drama que foi retirado de
scena, porque o publico abandonou por tal forma o theatro em que elle se
representava que diz um critico de Alencar, que talvez no Rio de Janeiro
não fosse visto por um cento de pessoas. Esta ausencia do publico
indignou muito José de Alencar que, publicando o drama, o precedeu de
um prefacio em que diz que dava o drama á luz publica, só para que se
visse que, se o theatro brazileiro não existia, não era por falta de
bons auctores, nem de boas peças, mas sim pelo inqualificavel
retrahimento do publico. Este accesso de vaidade não era permittido a
um homem de tão verdadeiro merecimento como era José de Alencar.
Effectivamente não tinha razão alguma: o drama os _Jesuitas_ era
detestavel, pueril, sem caracteres bem desenhados, sem acção logica,
sem cousa alguma do que constitue verdadeiramente o merito de uma obra
litteraria.

Não desanimou Alencar, e deu á scena as _Azas de um Anjo_, drama que
se modelava um pouco pela _Dama das Camelias_, com a excepção de que
no fim Margarida Gautier casa com Armand Duval. Um critico brazileiro
muito divertido, que assigna com as iniciaes J. S. uma obra
verdadeiramente inepta intitulada _Manual de litteratura_, diz a respeito
das _Azas de um Anjo_ o seguinte:

"É uma tocante oração em favor da perdida.

"No fim, sobretudo, no casamento d'esta com Luiz, nada ha de francez. É
um traço de bondade e abnegação, proprio do caracter brazileiro, que
o francez não approvaria."

Esperamos ainda assim que no Brazil não sejam extremamente vulgares
esses actos de abnegação e de bondade, porque a geração que
resultasse d'estes actos de bondade podia ser exquisitamente
qualificada.

Mas o que é curioso é que, apesar d'esta peça ser a apotheose do
caracter brazileiro, a auctoridade prohibiu que se representasse, e
_J.S._ acha muito justa a prohibição. Já se vê que não quer que no
theatro se ponham em relevo para ensinamento do publico a bondade e a
abnegação tão proprias do caracter brazileiro.

José de Alencar acudiu em defeza da sua peça na imprensa, e outros
escriptores o apoiaram. Effectivamente a pudibunda censura brazileira
mostrou-se muito mais transigente com peças de um valor muito inferior
ao das _Azas de um Anjo_.

A ultima peça de José de Alencar foi a _Mai_, representada em 1860.

N'esse mesmo anno era elle nomeado consultor do ministerio da justiça,
e recebia a carta de conselho.

José de Alencar, ao passo que ia ganhando um brilhante nome litterario,
não abandonava a politica nem descurava as cousas praticas da vida.
Fôra, havia muito, nomeado professor de direito mercantil no _Instituto
Commercial_ do Rio de Janeiro. Ao mesmo tempo entrava como deputado na
camara, pertencendo, porém, ao grupo conservador, em vez de se
enfileirar, como o outro José Martiniano de Alencar, nas phalanges do
partido liberal. Na sua carreira de empregado publico foi tambem, além
de consultor do ministerio da justiça, director de secção.

A acção da politica no litterato sente-se na _Guerra dos Mascates_,
romance em dois volumes, que elle publicou a bastante distancia de tempo
um do outro, cujo enredo se trava em 1710 no tempo das desavenças dos
moradores de Olinda com os do Recife, mas que tem apenas por intento
fazer retratos contemporaneos com os nomes do seculo XVIII. Esta
intenção era por tal forma transparente que no parlamento lh'o
lançaram em rosto, porque effectivamente Alencar não se contentava com
o desenho moral dos personagens, fazia o retrato physico tanto ao vivo
que ninguem podia deixar de reconhecer o retratado. Assim o governador
de Pernambuco D. Sebastião de Sousa Caldas é evidentemente o imperador
D. Pedro II, o secretario Barbosa Lima é o visconde do Rio Branco,
outro personagem é o marquez de S. Vicente, outro o barão de
Inhomerim, etc., etc.

O retrato do imperador não está muito lisongeado, e não devia agradar
ao personagem escolhido para modêlo, que se podia até considerar como
injuriado positivamente. Comtudo, isso não obstou a que o imperador, em
1868, quando se formou o ministerio conservador, acceitasse a entrada de
José Martiniano de Alencar para a pasta da justiça. Esteve porém
pouco tempo no ministerio. Uma dissidencia no seio do partido
conservador fêl-o sahir do governo, levando-o a ir sentar-se na camara
ao lado dos dissidentes.

Continuando, porém, a apreciar o litterato, o romancista, citemos ainda
dois dos seus melhores romances: o _Gaúcho_ e _Iracema_. O caracter do
gaúcho, que adora a sua egua _Morena_, que a entende, que lhe fala e
que a escuta, está traçado com uma rara perfeição. _Iracema_ é
sobretudo um romancinho adoravelmente escripto. Nunca o estylo de
Alencar attingiu tão delicada suavidade. Exhala-se de cada periodo como
que o perfume das flores com que se elabora o mel das suas palavras. O
sr. Pinheiro Chagas teve occasião de prestar a este livro a merecida
homenagem. Fez porém algumas observações relativas á mania que teem
alguns escriptores brazileiros, e um d'elles era Alencar, de pretenderem
modificar as formas grammaticaes da lingua. Alencar entendeu dever
responder na segunda edição do seu romance á critica do escriptor
portuguez. Essa replica parecia-se um pouco com o prefacio dos
_Jesuitas_. Manifestava uma grande vaidade realmente inadmissivel em
escriptor de tão elevado merito, e mostrava um desprêso completo pelas
regras mais elementares da philologia.

As _Minas de prata_ passam por ser um dos seus menos bons romances;
encerra comtudo algumas scenas primorosas. Queixam-se os paulistas de
que as paizagens da sua provincia descriptas no _Til_, são
perfeitamente phantasistas; _Ubirajara_, _A pata da Gazella_, _O tronco
do ipê_, se não augmentaram a reputação do grande romancista não a
prejudicaram tambem. O _Sertanejo_, muito criticado por alguns,
parece-nos comtudo um dos seus bons romances. As paizagens que elle
descreve são as paizagens da sua provincia natal, que elle conhece
perfeitamente, e o typo do vaqueiro que ama em silencio a filha do seu
patrão e que procura, com uma raiva intima, afastar todos aquelles que
ella possa amar, está traçado com vigor.

Os seus romances de côrte, se assim nós podemos exprimir, são
inferiores aos seus romances do sertão. Nem firmou alguns d'elles com o
seu nome, _Diva_ e _Luciola_, romances moldados pela comedia _Azas de um
Anjo_ tratam da rehabilitação de peccadoras; _Cinco minutos_, uma das
suas primeiras obras e a _Viuvinha_ são romances ligeirissimos,
graciosamente desenhados; a _Senhora_ encerra uma situação fortemente
dramatica, mas mal desenvolvida. Trata-se de um homem de vis
sentimentos, que despreza uma rapariga pobre que o adorava e despreza-a
por ella ser pobre. Tempos depois, acceita o casamento com uma mulher
deshonrada por outro homem, porque este lhe paga por uma avultada somma
a venda do seu nome. Ora essa mulher é a tal que elle desprezara e que
o seu desprêso arrojara pelo caminho da prostituição. O assumpto
prestava-se, como vêem, ás mais dramaticas situações.

No genero de pamphletos, e obras politicas, etc., escreveu ainda José
de Alencar, que sempre se mostrou hostil ao imperador, a _imagem
imperial_, e as _Cartas de Erasmo_. Publicou em volume os seus discursos
parlamentares de 1809, e os de 1871. É tambem sua, uma obra intitulada
_Estatistica da provincia do Ceará_.

José de Alencar veiu á Europa em 1870. Voltando ao Brazil, foi
inesperadamente colhido pela morte no anno de 1877, quando acabava de
completar 48 annos, e quando se achava portanto na força da vida. A sua
morte enluctou a litteratura brazileira e aquelles mesmos que tinham
combatido _Senio_, pseudonymo querido de José de Alencar, foram os
primeiros a render homenagem ao grande vulto, logo que elle desappareceu
da scena publica.


(Do _Diccionario Popular_).



MEU AMIGO

Este livro vae naturalmente encontral-o no seu pittoresco sitio da
varzea, no doce lar, que povoa a numerosa prole, alegria e esperança
do casal.

Imagino que é a hora mais ardente da sesta.

O sol a pino dardeja raios de fogo sobre as areias nataes: as aves
emmudecem; as plantas languem. A natureza soffre a influencia da
poderosa irradiação tropical, que produz o diamante e o genio, as duas
mais sublimes expressões do poder creador.

Os meninos brincam na sombra do outão, com pequenos ossos de rezes, que
figuram a boiada. Era assim que eu brincava, ha quantos annos, em outro
sitio, não muito distante do seu. A dona da casa terna e incansavel
manda abrir o côco verde, ou prepara o saboroso creme do burity para
refrigerar o esposo, que pouco ha recolheu de sua excursão pelo sitio,
e agora repousa embalando-se na macia e commoda rêde.

Abra então este livrinho, que lhe chega da côrte imprevisto. Percorra
suas paginas para desenfastiar o espirito das cousas graves que o trazem
occupado.

Talvez me desvaneça amor do ninho, ou se illudam as reminiscencias da
infancia avivadas recentemente. Senão, creio que ao abrir o pequeno
volume, sentirá uma onda do mesmo aroma silvestre e bravio que lhe vem
da varzea. Derrama-o a briza que perpassou os espathos da carnauba e a
ramagem das aroeiras em flôr.

Essa onda é a inspiração da patria que volve a ella, agora e sempre,
como volve de continuo o olhar do infante para o materno semblante que
lhe sorri.

O livro é cearense. Foi imaginado ahi, na limpidez d'esse céo de
cristallino azul, e depois vasado no coração cheio das recordações
vivaces de uma imaginação virgem. Escrevi-o para ser lido lá, na
varanda da casa rustica ou na fresca sombra do pomar, ao doce embalo da
rêde, entre os murmures do vento que crepita na arêa ou farfalha nas
palmas dos coqueiros.

Para lá, pois, que é o berço seu, o envio.

Mas assim mandado por um filho ausente, para muitos extranho, esquecido
talvez dos poucos amigos, e só lembrado pela incessante desaffeição,
qual sorte será a do livro?

Que lhe falte hospitalidade, não ha temer. As auras de nossos campos
parecem tão impregnadas d'essa virtude primitiva, que quantas raças
habitem ahi a inspiram com o halito vital. Receio sim que seja recebido
como extrangeiro e hospede na terra dos meus.

Se, porém, ao abordar ás plagas do Mocoribe, fôr acolhido pelo bom
cearense, presado de seus irmãos ainda mais na adversidade do que nos
tempos prosperos, estou certo que o filho de minha alma achará na terra
de seu pae, a intimidade e conchego da familia.

O nome de outros filhos ennobrece nossa provincia na politica e na
sciencia; entre elles o meu, hoje apagado, quando o trazia
brilhantemente aquelle que primeiro o creou. N'este momento mesmo a
espada heroica de muito bravo cearense vae ceifando no campo da batalha
ampla messe de gloria.

Quem não pode illustrar a terra natal canta as lendas suas, sem metro,
na rude toada de seus antigos filhos.

Acolha pois a primeira mostra e offereça-a a nossos patricios a quem é
dedicada.

Este pedido foi um dos motivos de lhe endereçar o livro: o outro lhe
direi depois que o tenha lido.

Muita cousa me occorre dizer sobre o assumpto, que talvez devera
anticipar á leitura da obra, para prevenir a surpreza de alguns e
responder ás observações ou reparos de outros.

Mas sempre fui avêsso aos prologos; em meu conceito elles fazem á
obra, o mesmo que o passaro á fructa antes de colhida; roubam as
primicias do sabor litterario. Por isso me reservo para depois.

Na ultima pagina me encontrará de novo; então conversaremos a gosto,
em mais liberdade do que teriamos n'este portico do livro, onde as
etiquetas mandam receber o publico com a gravidade e reverencia devida a
tão alto senhor.


Rio de Janeiro--Maio de 1865.


                             J. de Alencar.



IRACEMA



I


Verdes mares bravios de minha terra natal, onde canta a jandaia nas
frondes da carnaúba:

Verdes mares que brilhaes como liquida esmeralda aos raios do sol
nascente, perlongando as alvas praias ensombradas de coqueiros:

Serenae verdes mares, e alisae docemente a vaga impetuosa para que o
barco aventureiro manso resvalle á flôr das aguas.

Onde vae a affouta jangada, que deixa rapida a costa cearense, aberta ao
fresco terral a grande vela?

Onde vae como branca alcyone buscando o rochedo patrio nas solidÕes do
oceano?

Tres entes respiram sobre o fragil lenho que vae singrando veloce, mar
em fora:

Um joven guerreiro cuja tez branca não cora o sangue americano: uma
creança e um rafeiro que viram a luz no berço das florestas, e brincam
irmãos, filhos ambos da mesma terra selvagem.

A lufada intermittente traz da praia um écho vibrante, que resôa entre
o marulho das vagas:

--Iracema!...

O moço guerreiro, encostado ao mastro, leva os olhos prêsos na sombra
fugitiva da terra: a espaços o olhar empanado por tenue lagrima cahe
sobre o giráu, onde folgam as duas innocentes creaturas, companheiras
de seu infortunio.

N'esse momento o labio arranca d'alma um agro sorriso.

Que deixára elle na terra do exilio?

Uma historia que me contaram nas lindas varzeas onde nasci, á calada da
noite, quando a lua passeava no céo argenteando os campos, e a brisa
rugitava nos palmares.

Refresca o vento.

O rullo das vagas precipita. O barco salta sobre as ondas; desapparece
no horisonte. Abre-se a immensidade dos mares: e a borrasca enverga,
como o condor, as foscas azas sobre o abysmo.

Deus te leve a salvo, brioso e altivo barco, por entre as vagas
revoltas, e te poje n'alguma enseada amiga. Soprem para ti as brandas
auras: e para ti jaspeie a bonança mares de leite.

Em quanto vogas assim á discripção do vento, airoso barco, volva ás
brancas areias a saudade, que te acompanha, mas não se parte da terra
onde revoa.



II


Além, muito além d'aquella serra, que ainda azula no horisonte, nasceu
Iracema:

Iracema, a virgem dos labios de mel, que tinha os cabellos mais negros
que a aza da graúna, e mais longos que seu talhe de palmeira.

O favo da jaty não era doce como seu sorriso; nem a baunilha rescendia
no bosque como seu halito perfumado.

Mais rapida que a corsa selvagem, a morena virgem corria o sertão e as
matas do Ipú, onde campeava sua guerreira tribu, da grande nação
tabajara. O pé gracil e nú, mal rosçando, alisava apenas a verde
pellucia que vestia a terra com as primeiras aguas.

Um dia, ao pino do sol, ella repousava em um claro da floresta.
Banhava-lhe o corpo a sombra da oitycica, mais fresca do que o orvalho
da noite. Os ramos da acacia silvestre esparziam flores sobre seus
humidos cabellos. Escondidos na folhagem os passaros ameigavam o canto.

Iracema sahiu do banho: o aljofar d'agua ainda a roreja, como á dôce
mangaba que córou em manhã de chuva. Emquanto repousa empluma das
pennas do gará as flechas de seu arco; e concerta com o sabiá da mata
pousado no galho proximo, o canto agreste.

A graciosa ará, sua companheira e amiga, brinca junto d'ella. Ás vezes
sobe aos ramos da arvore e de lá chama a virgem pelo seu nome; outras
remexe o urú de palha matisada, onde traz a selvagem seus perfumes, os
alvos fios do crautá, as agulhas da jussára com que tece a renda, e as
tintas de que matisa o algodão.

Rumor suspeito quebra a doce harmonia da sesta. Ergue a virgem os
olhos, que o sol não deslumbra; sua vista perturba-se.

Deante d'ella e todo a contemplal-a, está um guerreiro extranho, se é
guerreiro e não algum máu espirito da floresta. Tem nas faces o branco
das areias que bordam o mar, nos olhos o azul triste das aguas
profundas. Ignotas armas e tecidos ignotos cobrem-lhe o corpo.

Foi rapido, como o olhar, o gesto de Iracema. A flecha embebida no arco
partiu. Gottas de sangue borbulham na face do desconhecido.

De primeiro impeto, a mão lesta cahiu sobre a cruz da espada; mas logo
sorrio. O moço guerreiro aprendeu na religião de sua mãe, onde a
mulher é symbolo de ternura e amor. Soffreu mais d'alma, que da ferida.

O sentimento que elle pôz nos olhos e no rosto, não sei eu. Porem a
virgem lançou de si o arco e a uiraçaba, e correu para o guerreiro,
sentida da magoa que causara. A mão que rapida ferira, estancou mais
rapida e compassiva o sangue que gotejava. Depois Iracema quebrou a
flecha homicida: deu a haste ao desconhecido, guardando comsigo a ponta
farpada.

O guerreiro falou:

--Quebras commigo a flecha da paz?

--Quem te ensinou, guerreiro branco, a linguagem de meus irmãos? D'onde
vieste a estas matas, que nunca viram outro guerreiro como tu?

--Venho de bem longe, filha das florestas. Venho das terras que teus
irmãos já possuiram, e hoje tem os meus.

--Bemvindo seja o extrangeiro aos campos dos Tabajaras, senhores das
aldeias, e á cabana de Araken, pae de Iracema.



III


O extrangeiro seguiu a virgem através da floresta.

Quando o sol descambava sobre a crista dos montes, e a rôla desatava do
fundo da mata os primeiros arrulhos, elles descobriram no valle a grande
taba: e mais longe, pendurada no rochedo, á sombra dos altos joaseiros,
a cabana do Pagé.

O ancião fumava á porta, sentado na esteira de carnaúba, meditando os
sagrados ritos de Tupan. O tenue sôpro da brisa carmeava, como frocos de
algodão, os compridos e raros cabellos brancos. De immovel que estava,
sumia a vida nos olhos cavos e nas rugas profundas.

O Pagé lobrigou os dois vultos que avançavam; cuidou vêr a sombra de
uma arvore solitaria que vinha alongando-se pelo valle fora.

Quando os viajantes entraram na densa penumbra do bosque, então seu
olhar como o do tigre, feito ás trevas, conheceu Iracema, e viu que a
seguia um joven guerreiro, de extranha raça e longes terras.

As tribus tabajaras, d'além Ibyapaba, falavam de uma nova raça de
guerreiros, alvos como flôres de borrasca, e vindos de remota plaga ás
margens do Mearim. O ancião pensou que fôsse um guerreiro semelhante,
aquelle que pisava os campos nativos.

Tranquillo, esperou.

A virgem aponta para o extrangeiro e diz:

--Elle veiu, pae.

--Veiu bem. É Tupan que traz o hospede á cabana de Araken.

Assim dizendo, o Pagé passou o cachimbo ao extrangeiro: e entraram
ambos na cabana.

O mancebo sentou na rede principal, suspensa no centro da habitação.

Iracema accendeu o fogo da hospitalidade; e trouxe o que havia de
provisões para satisfazer a fome e a sede: trouxe os restos da caça, a
farinha d'agua, os fructos silvestres, os favos de mel e o vinho de
cajú e ananaz.

Depois a virgem entrou com a igaçaba, que enchêra na fonte proxima de
agua fresca para lavar o rosto e as mãos do extrangeiro.

Quando o guerreiro terminou a refeição, o velho Pagé apagou o
cachimbo e falou:

--Vieste?

--Vim: respondeu o desconhecido.

--Bem vieste. O extrangeiro é senhor na cabana de Araken. Os Tabajaras
tem mil guerreiros para defendel-o, e mulheres sem conto para servil-o.
Dize, e todos te obedecerão.

--Pagé eu te agradeço o agasalho que me déste. Logo que o sol nascer
deixarei tua cabana e teus campos onde vim perdido; mas não devo
deixal-os sem dizer-te quem é o guerreiro, que fizeste amigo.

--Foi a Tupan que o Pagé serviu: elle te trouxe, elle te levará.
Araken nada fez pelo hospede; não pergunta d'onde vem, e quando vae. Se
queres dormir, desçam sobre ti os sonhos alegres: se queres falar, teu
hospede escuta.

O extrangeiro disse:

--Sou dos guerreiros brancos, que levantaram a taba nas margens do
Jaguaribe, perto do mar, onde habitam os Pytiguaras, inimigos de tua
nação. Meu nome é Martim, que na tua lingua diz como filho de
guerreiro; meu sangue o do grande povo que primeiro viu as terras de tua
patria. Já meus destroçados companheiros voltaram por mar ás margens
do Parahyba, de onde vieram: e o chefe, desamparado dos seus, atravessa
agora os vastos sertões do Apody. Só eu de tantos fiquei, porque
estava entre os Pytiguaras de Acaraú, na cabana do bravo Poty, irmão
de Jacaúna, que plantou commigo a arvore da amizade. Ha tres sóes
partimos para a caça; e perdido dos meus vim aos campos dos Tabajaras.

--Foi algum máu espirito da floresta que cegou o guerreiro branco no
escuro da mata: respondeu o ancião.

A cauâm piou, além. na extrema do valle. Cahia a noite.



IV


O Pagé vibrou a maracá, e sahiu da cabana: porém, o extrangeiro não
ficou só.

Iracema voltára com as mulheres chamadas para servir o hospede de
Araken, e os guerreiros vindos para obedecer-lhe.

--Guerreiro branco, disse a virgem, o prazer emballe a tua rêde durante
a noite; e o sol traga luz aos teus olhos, alegria á tua alma.

E assim dizendo Iracema tinha o labio tremulo, e humida a palpebra.

--Tu me deixas? perguntou Martim.

--As mais bellas mulheres da grande taba comtigo ficam.

--Para ellas a filha de Araken não devia ter conduzido o hospede á
cabana do Pagé.

--Extrangeiro, Iracema não pode ser tua serva. É ella que guarda o
segredo da jurema e o mysterio do sonho. Sua mão fabrica para o Pagé a
bebida de Tupan.

O guerreiro christão atravessou a cabana e sumiu-se na treva.

A grande taba erguia-se no fundo do valle, illuminada pelos faxos da
alegria. Rugia o maracá; ao quebro lento do canto selvagem, batia a
dança em torno a rude cadencia. O Pagé inspirado conduzia o sagrado
tripudio e dizia ao povo crente os segredos de Tupan.

O maior chefe cia nação tabajara, Irapuam, descêra do mais alto da
serra Ibyapaba, para levar as tribus do sertão contra o inimigo
Pytiguara. Os guerreiros do valle festejam a vinda do chefe e o proximo
combate.

O mancebo christão viu longe o clarão da festa, e passou além, e
olhou o céo azul sem nuvens. A estrella morta que então brilhava sobre
a cupula da floresta, guiou seu passo firme para as frescas margens do
Acaraú.

Quando elle transmontou o valle e ia penetrar na matta, o vulto de
Iracema surgiu. A virgem seguira o extrangeiro como a brisa subtil que
resvalla sem murmurejar por entre a ramagem.

--Porque, disse ella, o extrangeiro abandona a cabana hospedeira sem
levar o presente da volta? Quem fez mal ao guerreiro branco na terra dos
Tabajaras?

O christão sentiu quanto era justa a queixa, e achou-se ingrato.

--Ninguem fez mal ao teu hospede, filha de Araken. Era o desejo de vêr
seus amigos que o afastava dos campos dos Tabajaras. Não levava o
presente da volta; mas leva em sua alma a lembrança de Iracema.

--Se a lembrança de Iracema estivesse na alma do extrangeiro, ella não
o deixaria partir. O vento não leva a areia da varzea, quando a areia
bebe a agua da chuva.

--A virgem suspirou:

--Guerreiro branco, espera que Cauby volte da caça. O irmão de Iracema
tem o ouvido subtil que pressente a boicininga entre os rumores da
matta; e o olhar do oitibó que vê melhor na treva. Elle te guiará ás
margens do rio das garças.

--Quanto tempo se passará antes que o irmão de Iracema esteja de volta
na cabana de Araken?

--O sol, que vae nascer, tornará com o guerreiro Cauby aos campos do
Ipú.

--Teu hospede espera, filha de Araken: mas se o sol tornando, não
trouxer o irmão de Iracema, elle levará o guerreiro branco á taba dos
Pytiguaras.

Martim voltou á cabana do Pagé.

A alva rêde que Iracema perfumara com a resina do beijoim guardava-lhe
um somno calmo e doce. O christão adormeceu ouvindo suspirar, entre os
murmurios da floresta, o canto mavioso da virgem indiana.



V


O gallo da campina ergue a poupa escarlate fora do ninho. Seu limpido
trinado annuncia a aproximação do dia.

Ainda a sombra cobre a terra. Já o povo selvagem colhe as redes na
grande taba e caminha para o banho. O velho Pagé que velou toda a
noite, falando ás estrellas, conjurando os máus espiritos da treva,
entra furtivamente na cabana.

Eis retroa o boré pela amplidão do valle.

Travam das armas os rapidos guerreiros, e correm ao campo. Quando fôram
todos na vasta ocára circular, Irapuam, o chefe, soltou o grito de
guerra.

--Tupan deu á grande nação tabajara toda esta terra. Nós guardamos
as serras, que manam os corregos, com os frescos ipús onde cresce a
maniva e o algodão; e abandonamos ao barbaro Potyuara, comedor de
camarão, as areias núas do mar, com os sêccos taboleiros sem agua e
sem florestas. Agora os pescadores da praia, sempre vencidos, deixam vir
pelo mar a raça branca dos guerreiros de fogo, inimigos de Tupan. Já
os emboabas estiveram no Jaguaribe; logo estarão em nossos campos; e
com elles os Potyuaras. Faremos nós, senhores das aldeias, como a
pomba, que se encolhe em seu ninho, quando a serpente enrosca pelos
galhos?

O irado chefe brande o tacape e o arremessa no meio do campo. Derrubando
a fronte, cobre o rubido olhar:

--Irapuam falou; disse.

O mais moço dos guerreiros avança:

--O gavião paira nos ares. Quando a nambú levanta, elle cae das nuvens
e rasga as entranhas da victima. O guerreiro tabajara, filho da serra,
é como o gavião.

Troa e retroa a pocema da guerra.

O joven guerreiro erguera o tacape; e por sua vez o brandio. Girando no
ar, rapida e ameaçadora, a arma do chefe passou de mão em mão.

O velho Andira, irmão do Pagé, a deixou tombar, e calcou no chão, com
o pé agil ainda e firme.

Pasma o povo tabajara da acção desusada. Voto de paz em tão provado e
impetuoso guerreiro! É o velho heroe, que cresceu na sanha, crescendo
nos annos, é o feroz Andira quem derrubou o tacape, nuncio da proxima
lucta?

Incertos todos e mudos escutam:

--Andira, o velho Andira, bebeu mais sangue na guerra do que já beberam
cauim nas festas de Tupan, todos quantos guerreiros allumia agora a luz
de seus olhos. Elle viu mais combates em sua vida do que luas lhe
despiram a fronte. Quanto craneo de Potyuara escalpellou sua mão
implacavel, antes que o tempo lhe arrancasse o primeiro cabello? E o
velho Andira nunca temeu que o inimigo pisasse a terra de seus paes: mas
alegrava-se quando elle vinha, e sentia com o faro da guerra a juventude
renascer no corpo decrepito, como a arvore sêcca renasce com o sopro do
inverno. A nação tabajara é prudente. Ella deve encostar o tacape da
lucta para tanger o memby da festa. Celebra, Irapuam, a vinda dos
emboabas e deixa que cheguem todos aos nossos campos. Então Andira te
promette o banquete da victoria.

Desabriu emfim Irapuam a funda colera:

--Fica tu, escondido entre as igaçabas de vinho, tica, velho morcego,
porque temes a luz do dia, e só bebes o sangue da victima que dorme.
Irapuam leva a guerra no punho de seu tacape. O terror que elle inspira
voa com o rouco som do boré. O Potyuara já tremeu ouvindo rugir na
serra, mais forte que o ribombo do mar.



VI


Martim vae a passo e passo por entre os altos joaseiros que cercam a
cabana do Pagé.

Era o tempo em que o doce aracaty chega do mar, e derrama a deliciosa
frescura pelo arido sertão. A planta respira; um dôce arrepio irriça
a verde coma da floresta.

O christão contempla o occaso do sol. A sombra, que desce dos montes e
cobre o valle, penetra sua alma. Lembra-se do lugar onde nasceu, dos
entes queridos que alli deixou. Sabe elle se tornará a vel-os algum
dia?

Em tôrno carpe a natureza o dia que expira. Soluça a onda trepida e
lacrimosa; geme a brisa na folhagem; o mesmo silencio anhela de
afflicto.

Iracema parou em face do joven guerreiro:

--É a presença de Iracema que perturba a serenidade no rosto do
extrangeiro?

Martim pousou brandos olhos na face da virgem:

--Não, filha de Araken: tua presença alegra, como a luz da manhã. Foi
a lembrança da patria que trouxe a saudade ao coração presago.

--Uma noiva te espera?

O forasteiro desviou os olhos. Iracema dobrou a cabeça sobre a espadua,
como a tenra palma da carnaúba, quando a chuva peneira na varsea.

--Ella não é mais doce do que Iracema, a virgem dos labios de mel; nem
mais formosa! murmurou o extrangeiro.

--A flor da mata é formosa quando tem rama que a abrigue, e tronco onde
se enlace. Iracema não vive n'alma de um guerreiro: nunca sentiu a
frescura de seu sorriso.

Emmudeceram ambos, com os olhos no chão, escutando a palpitação dos
seios que batiam oppressos.

A virgem falou emfim:

--A alegria voltará logo á alma do guerreiro branco; porque Iracema
quer que elle veja antes da noite a noiva que o espera.

Martim sorriu do ingenuo desejo da filha do Pagé.

--Vem! disse a virgem.

Atravessaram o bosque e desceram ao valle. Onde morria a falda da
collina o arvoredo era basto: densa abobada de folhagem verde-negra
cobria o adyto agreste, reservado aos mysterios do rito barbaro.

Era de jurema o bosque sagrado. Em torno corriam os troncos rugosos da
arvore de Tupan; dos galhos pendiam occultos pela rama escura os vasos
do sacrificio: lastravam o chão as cinzas de extincto fogo, que servira
á festa da ultima lua.

Antes de penetrar o recondito sitio, a virgem que conduzia o guerreiro
pela mão, hesitou, inclinando o ouvido subtil aos suspiros da brisa.
Todos os ligeiros rumores da mata tinham uma voz para a selvagem filha
do sertão. Nada havia porém de suspeito no intenso respiro da
floresta.

Iracema fez ao extrangeiro um gesto de espera e silencio, e desappareceu
no mais sombrio do bosque. O sol ainda pairava suspenso no viso da
serrania: e já noite profunda enchia aquella solidão.

Quando a virgem tornou, trazia n'uma folha gottas de verde extranho
licor vasadas da igaçaba, que acabava de tirar do seio da terra.
Apresentou ao guerreiro a taça agreste.

--Bebe!

Martim sentiu perpassar nos olhos o somno da morte: porém logo a luz
inundou os seios d'alma: a fôrça exhuberou no coração. Reviveu os
dias passados melhor do que os tinha vivido: fruiu a realidade de suas
mais bellas esperanças.

Eil-o que volta á terra natal, abraça sua velha mãe, revê mais lindo
e terno o anjo puro dos amores infantis.

Mas porque, mal de volta ao berço da patria, o joven guerreiro de novo
abandona o tecto paterno e demanda o sertão?

Já atravessa as florestas; já chega aos campos do Ipú. Busca na selva
a filha do Pagé. Segue o rastro ligeiro da virgem arisca, soltando á
brisa com o crebro suspiro o doce nome:

--Iracema! Iracema!...

Já a alcança e cinge-lhe o braço pelo talhe esbelto.

Cedendo á meiga pressão, a virgem reclinou ao peito do guerreiro, e
ficou alli tremula e palpitante como a timida perdiz, quando o terno
companheiro lhe arrufa com o bico a macia penugem.

O labio do guerreiro suspirou mais uma vez o doce nome e soluçou, como
se chamara outro labio amante. Iracema sentiu que sua alma se escapava
para embeber-se no osculo ardente.

E a fronte reclinava, e a flôr do sorriso desabrochava já para
deixar-se colher.

Subito a virgem tremeu; soltando-se rapida do braço que a cingia,
travou do arco.



VII


Iracema passou entre as arvores, silenciosa como uma sombra: seu olhar
scintillante coava entre as folhas, quaes frouxos raios de estrellas:
ella escutava o silencio profundo da noite e aspirava as auras subtis
que afflavam.

Parou. Uma sombra resvallava entre as ramas; e nas folhas crepitava um
passo ligeiro, se não era o roer de algum insecto. A pouco e pouco o
tenue rumor foi crescendo e a sombra avultou.

Era um guerreiro. De um salto a virgem estava em face d'elle, tremula de
susto e mais de colera.

--Iracema! exclamou o guerreiro recuando.

--Anhanga turvou sem duvida o somno de Irapuam, que o trouxe perdido ao
bosque da jurema, onde nenhum guerreiro penetra sem a vontade de Araken.

--Não foi Anhanga, mas a lembrança de Iracema, que turvou o somno do
primeiro guerreiro tabajara. Irapuam desceu de seu ninho de aguia para
seguir na varzea a garça do rio. As vozes da taba contaram ao ouvido do
chefe que um extrangeiro era vindo á cabana de Araken.

A virgem estremeceu. O guerreiro cravou n'ella o olhar abrazado:

--O coração aqui no peito de Irapuam, ficou tigre. Pulou de raiva.
Veio farejando a presa. O extrangeiro está no bosque, e Iracema o
acompanhava. Quero beber-lhe o sangue todo: quando o sangue do guerreiro
branco correr nas veias do chefe tabajara, talvez o ame a filha de
Araken.

A pupilla negra da virgem scintillou na treva, e de seu labio borbulhou
como gottas do leite caustico da euphorbia, um sorriso de despreso:

--Nunca Iracema daria seu seio, que o espirito de Tupan habita só, ao
guerreiro mais vil dos guerreiros tabajaras! Torpe é o morcego porque
foge da luz e bebe o sangue da victima adormecida!...

--Filha de Araken! Não assanha o jaguar! O nome de Irapuam voa mais
longe que o goaná do lago, quando sente a chuva além das serras. Que o
guerreiro branco venha, e o seio de Iracema se abra para o vencedor.

--O guerreiro branco é hospede de Araken. A paz o trouxe aos campos do
Ipú, a paz o guarda. Quem offender o extrangeiro, offende o Pagé.

Rugiu de sanha o chefe tabajara:

--A raiva de Irapuam só ouve agora o grito da vingança. O extrangeiro
vae morrer.

--A filha de Araken é mais forte que o chefe dos guerreiros, disse
Iracema travando da inubia. Ella tem aqui a voz de Tupan, que chama o
seu povo.

--Mas ella não chamará! respondeu o chefe escarnecendo.

--Não, porque Irapuam vae ser punido pela mão de Iracema. Seu primeiro
passo, é o passo da morte.

A virgem retrahiu d'um salto o avanço que tomara, e vibrou o arco. O
chefe cerrou ainda o punho do formidavel tacape; mas pela vez primeira
sentio que pesava ao braço robusto. O golpe que devia ferir Iracema,
ainda não alçado, já lhe trespassava, a elle proprio, o coração.

Conheceu quanto o varão forte, é pela sua mesma fortaleza, mais
vencido das grandes paixões.

--A sombra de Iracema não esconderá sempre o extrangeiro á vingança
de Irapuam. Vil é o guerreiro, que se deixa proteger por uma mulher.

Dizendo estas palavras, o chefe desappareceu entre as arvores. A virgem
sempre alerta volveu para o christão adormecido; e velou o resto da
noite a seu lado. As emoções recentes, que agitaram sua alma, a
abriram inda mais á doce affeição, que iam filtrando n'ella os olhos
do extrangeiro.

Desejava abrigal-o contra todo o perigo, recolhel-o em si como em um
asylo impenetravel. Acompanhado o pensamento, seus braços cingiam a
cabeça do guerreiro, e a apertavam ao seio.

Mas quando passou a alegria de vêr o extrangeiro salvo dos perigos da
noite, entrou-a mais viva a inquietação, com a lembrança dos novos
perigos que iam surgir.

--O amor de Iracema é como o vento dos areaes; mata a flôr das
arvores: suspirou a virgem.

E afastou-se lentamente.



VIII


A alvorada abriu o dia e os olhos do guerreiro branco. A luz da manhã
dissipou os sonhos da noite: e arrancou de sua alma a lembrança do que
sonhara. Ficou apenas um vago sentir, como fica na moita o perfume do
cacto que o vento da serra desfolha na madrugada.

Não sabia onde estava.

Á sahida do bosque sagrado encontrou Iracema: a virgem reclinava n'um
tronco aspero do arvoredo: tinha os olhos no chão: o sangue fugira das
faces; o coração lhe tremia nos labios, como gôtta de orvalho nas
folhas do bambú.

Não tinha sorrisos, nem cores, a virgem indiana; não tem borbulhas,
nem rosas, a acacia que o sol crestou; não tem azul, nem estrellas, a
noite que enluctam os ventos.

--As flôres da matta já abriram aos raios do sol; as aves já
cantaram: disse o guerreiro. Porque só Iracema curva a fronte e
emmudece?

A filha do Pagé estremeceu. Assim estremece a verde palma, quando a
haste fragil foi abalada; rorejam do espato as lagrimas da chuva; e os
leques ciciam brandamente:

--O guerreiro Cauby vae chegar á taba de seus irmãos. O extrangeiro
poderá partir com o sol que vem nascendo.

--Iracema quer vêr o extrangeiro fora dos campos dos Tabajaras; então
a alegria voltará ao seu seio.

--A juruty, quando a arvore secca, abandona o ninho em que nasceu.
Nunca mais a alegria voltará ao seio de Iracema: ella vae ficar, como o
tronco nú, sem ramas, nem sombras.

Martim amparou o corpo tremulo da virgem; ella reclinou languida sobre o
peito do guerreiro, como o tenro pampano da baunilha que enlaça o rijo
galho do anjico.

O mancebo murmurou:

--Teu hospede fica, virgem dos olhos negros: elle fica para ver abrir em
tuas faces a flôr da alegria e para colher, como a abelha, o mel de
teus mimosos labios.

Iracema soltou-se dos braços do mancebo, e olhou-o com tristeza:

--Guerreiro branco, Iracema é filha do Pagé, e guarda o segredo da
jurema. O guerreiro que possuisse a virgem de Tupan morreria.

--E Iracema?

--Pois que tu morrias!

Esta palavra foi sopro de tormenta. A cabeça do mancebo vergou e pendeu
sobre o peito: mas logo se ergueu.

--Os guerreiros de meu sangue trazem a morte comsigo, filha dos
Tabajaras. Não a temem para si, não a poupam para o inimigo. Mas nunca
fóra do combate elles deixaram aberto o camocim da virgem na taba de
seu hospede. A verdade falou pela bôcca de Iracema. O extrangeiro deve
abandonar os campos dos Tabajaras.

--Deve: respondeu a virgem como um ecco.

Depois a sua voz suspirou:

--O mel dos labios de Iracema é como o favo que a abelha fabrica no
tronco da guabiroba: tem na doçura o veneno. A virgem dos olhos azues e
dos cabellos do sol guarda para seu guerreiro na taba dos brancos o mel
da assucena.

Martim afastou-se rapido, e voltou, mas lentamente, A palavra tremia em
seu labio:

--O extrangeiro partirá para que o socego volte ao seio da virgem.

--Tu levas a luz dos olhos de Iracema, e a flôr de sua alma.

Reboa longe na selva um clamor extranho. Os olhos do mancebo alongam-se.

--É o grito de alegria do guerreiro Cauby: disse a virgem. O irmão de
Iracema annuncia a sua boa chegada aos campos dos Tabajaras.

--Filha de Araken, guia teu hospede á cabana. É tempo de partir.

Elles caminharam par a par como dois jovens cervos ao pôr do sol
atravessam a capoeira recolhendo ao aprisco d'onde lhes traz a brisa um
faro suspeito.

Quando passavam entre os joazeiros, viram que atravessava além o
guerreiro Cauby, vergando os hombros robustos ao peso da caça. Iracema
caminhou para elle.

O extrangeiro entrou só na cabana.



IX


O somno da manhã pousava nos olhos do Pagé como nevoas de bonança
pairam ao romper do dia sobre as profundas cavernas da montanha.

Martim parou indeciso; mas o rumor de seu passo penetrou o ouvido do
ancião, e abalou o corpo decrepito.

--Araken dorme! murmurou o guerreiro devolvendo o passo.

O velho ficou immovel:

--O Pagé dorme porque já Tupan voltou o rosto para a terra e a luz
correu os máus espiritos da treva. Mas o somno é leve nos olhos de
Araken, como o fumo do sapé no cocuruto da serra. Se o extrangeiro veiu
para o Pagé, fale; seu ouvido escuta.

--O extrangeiro veiu, para te annunciar que parte.

--O hospede é senhor na cabana de Araken; todos os caminhos estão
abertos para elle. Tupan o leve á taba dos seus.

Vieram Cauby e Iracema:

--Cauby voltou; disse o guerreiro tabajara. Traz a Araken o melhor da
sua caça.

--O guerreiro Cauby é um grande caçador de montes e florestas. Os
olhos de seu pae gostam de vêl-o.

O velho abriu as palpebras e cerrou-as logo:

--Filha de Araken, escolhe para teu hospede o presente da volta, e
prepara o moquem da viagem. Se o extrangeiro precisa de guia, o
guerreiro Cauby, senhor do caminho, o acompanhará.

O somno voltou aos olhos do Pagé.

Emquanto Cauby pendurava no fumeiro as peças de caça, Iracema colheu a
sua alva rede de algodão com franjas de pennas, e accommodou-a dentro
do urú de palha trançada.

Martim esperava na porta da cabana. A virgem veiu para elle:

--Guerreiro, que levas o somno de meus olhos, leva á minha rede tambem.
Quando n'ella dormires, falem em tua alma os sonhos de Iracema.

--A tua rede, virgem dos Tabajaras, será minha companheira no deserto:
venha embora o vento frio da noite, ella guardará para o extrangeiro o
calor e o perfume do seio de Iracema.

Cauby sahiu para ir á sua cabana, que ainda não tinha visto depois da
volta. Iracema foi preparar o moquem da viagem. Ficaram sós na cabana o
Pagé que resonava, e o mancebo com a sua tristeza.

O sol transmontando, já começava a declinar para o occidente, quando o
irmão de Iracema tornou da grande taba.

--O dia vae ficar triste, disse Cauby. A sombra já caminha para a
noite. É tempo de partir.

A virgem pousou a mão de leve no punho da rêde de Araken.

--Elle vae! murmuraram os labios tremulos.

O Pagé levantou-se em pé no meio da cabana e accendeu o cachimbo. Elle
e o mancebo trocaram a fumaça da despedida:

--Bem ido seja o hospede, como foi bem vindo á cabana de Araken.

O velho andou até á porta, para soltar ao vento uma espessa baforada
de tabaco: quando o fumo a dissipou no ar, elle murmurou:

--Jurupary se esconda para deixar passar o hospede do Pagé.

Araken voltou á rêde e dormiu de novo. O mancebo tomou as suas armas
mais pesadas que chegando suspendera ás varas da cabana e se dispôz a
partir.

Adiante seguiu Cauby: a alguma distancia o extrangeiro: logo apóz
d'elle Iracema.

Desceram a colina e entraram na matta sombria. O sabiá do sertão,
mavioso cantor da tarde, escondido nas moitas espessas da ubaia, soltava
já os preludios da suave endeixa.

A virgem suspirou:

--A tarde é a tristeza do sol. Os dias de Iracema vão ser longas
tardes sem manhã, até que venha para ella a grande noite.

O mancebo voltara-se. Seu labio emmudeceu, mas os olhos falaram. Uma
lagrima correu pela face guerreira, como as humidades que durante os
ardores do estio transudam da escarpa dos rochedos.

Cauby avançando sempre, sumira-se entre a densa ramagem.

O seio da filha de Araken arfou, como o ésto da vaga que se franja de
espuma, e soluçou. Mas sua alma, negra de tristura, teve ainda um
pállido reflexo para illuminar a sêcca flôr das faces. Assim em noite
escura vem um fogo fatuo luzir as brancas areias do taboleiro.

--Extrangeiro, toma o ultimo sorriso de Iracema... e foge!

A bôcca do guerreiro pousou na bôcca mimosa da virgem. Ficaram ambas
assim unidas como dois fructos gemeos do araçá, que sahiram do seio da
mesma flôr.

A voz de Cauby chamou o extrangeiro. Iracema abraçou para não cahir o
tronco de uma palmeira.



X


Na cabana silenciosa medita o velho Pagé.

Iracema está apoiada no tronco rudo, que serve de esteio. Os grandes
olhos negros, fitos nos recortes da floresta e rasos de pranto, parece
estão n'aquelles olhares longos e tremulos enfiando e desfiando os
aljofares das lagrimas, que rorejam as faces.

A ará, pousada no girau fronteiro, alonga para sua formosa senhora os
verdes tristes olhos. Desde que o guerreiro branco pisou a terra dos
Tabajaras, Iracema a esqueceu.

Os roseos labios da virgem não se abriram mais para que ella colhesse
entre elles a polpa da fructa ou a papa do milho verde; nem a dôce mão
a affagára uma só vez, alisando a penugem dourada da cabeça.

Se repetia o mavioso nome da senhora, o sorriso de Iracema já não se
voltava para ella, nem o ouvido parecia escutar a voz da companheira e
amiga, que d'antes tão suave era ao seu coração.

Triste d'ella! A gente tupy a chamava jandaia, porque sempre alegre
estrugia os campos com seu canto fremente. Mas agora, triste e muda,
desdenhada de sua senhora, não parecia mais a linda jandaia, e sim o
feio urutão que sómente sabe gemer.

O sol remontou a umbria das serras; seus raios douravam apenas o viso
das eminencias.

A surdina merencoria da tarde, que precede o silencio da noite,
começava de velar os crebros rumores do campo. Uma ave nocturna, talvez
illudida com a sombra mais espessa do bosque, desatou o estridulo.

O velho ergueu a fronte calva:

--Foi o canto da inhuma que accordou o ouvido de Araken? disse elle
admirado.

A virgem estremecêra; já fóra da cabana voltou-se para responder á
pergunta do Pagé:

--É o grito de guerra do guerreiro Cauby!

Quando o segundo pio da inhuma resoou, Iracema corria na matta, como a
corça perseguida pelo caçador. Só respirou chegando á campina, que
recortava o bosque, como um grande lago.

Quem seus olhos primeiro viram, Martim, estava tranquillamente sentado
em uma sapopema, olhando o que passava alli. Contra, cem guerreiros
tabajaras com Irapuam á frente, formavam arco. O bravo Cauby os
affrontava a todos, com o olhar cheio de ira e as armas valentes
empunhadas na mão robusta:

O chefe exigira a entrega do extrangeiro, e o guia respondera
simplesmente:

--Matae Cauby, antes.

A filha do Pagé passara como uma flecha: eil-a deante de Martim oppondo
tambem seu corpo gentil aos golpes dos guerreiros. Irapuam soltou o
bramido da onça atacada na furna.

--Filha do Pagé, disse Cauby em voz baixa. Conduz o extrangeiro á
cabana: só Araken pode salval-o.

Iracema voltou-se para o guerreiro branco:

--Vem!

Elle ficou immovel.

--Se tu não vens, disse a virgem, Iracema morrerá comtigo.

Martim ergueu-se; mas longe de seguir á virgem, caminhou direito a
Irapuam. A sua espada flammejou no ar.

--Os guerreiros do meu sangue, chefe, jamais recusaram combate. Se
aquelle que tu vês não foi o primeiro a provocal-o, é porque seus
paes lhe ensinaram a não derramar sangue na terra hospedeira.

O chefe tabajara rugiu de alegria; sua mão possante brandio o tacape.
Mas os dois campeões mal tiveram tempo de medir-se com os olhos; quando
fendiam o primeiro golpe, já Cauby e Iracema estavam entre elles.

A filha de Araken debalde rogava ao christão, debalde o cingia em seus
braços buscando arrancal-o ao combate. De seu lado Cauby em vão
provocava Irapuam para attrahir a si a raiva do chefe.

A um gesto de Irapuam, os guerreiros afastaram os dois irmãos; o
combate proseguiu.

De repente o rouco som da inubia reboou pela matta; os filhos da serra
estremeceram reconhecendo o estridulo do buzio guerreiro dos Pytiguaras,
senhores das praias, encombradas de coqueiros. O ecco vinha da grande
taba, que o inimigo talvez assaltava já.

Os guerreiros precipitaram-se, levando por deante o chefe. Com o
extrangeiro só ficou a filha de Araken.



XI


Os guerreiros tabajaras, acorridos á taba, esperavam o inimigo deante
da caiçara.

Não vindo elles sahiram a buscal-o.

Bateram as matas em tôrno e percorreram os campos; nem vestigios
encontraram da passagem dos Pytiguaras; mas o conhecido fremito do buzio
das praias tinha resoado ao ouvido dos guerreiros da montanha; não
havia duvidar.

Suspeitou Irapuam que fosse um ardil da filha de Araken para salvar o
extrangeiro; e caminhou direito á cabana do Pagé. Como trota o guará
pela orla da mata, quando vae seguindo o rastro da presa escápula,
assim estugava o passo o sanhudo guerreiro.

Araken viu entrar em sua cabana o grande chefe da nação tabajara, e
não se moveu. Sentado na rede, com as pernas cruzadas, escutava
Iracema. A virgem referia os successos da tarde: avistando a figura
sinistra de Irapuam saltou sobre o arco, e uniu-se ao flanco do joven
guerreiro branco.

Martim a affastou docemente de si, e promoveu o passo.

A protecção, de que o cercava a elle guerreiro a virgem tabajara, o
desgostava.

--Araken, a vingança dos tabajaras espera o guerreiro branco; Irapuam
veiu buscal-o.

--O hospede é amigo de Tupan; quem offender o extrangeiro ouvirá o
rugir do trovão.

--O extrangeiro foi quem offendeu a Tupan, roubando a sua virgem, que
guarda os sonhos da jurema.

--Tua bôcca mente como o ronco da jiboia: exclamou Iracema.

Martim disse:

--Irapuam é vil e indigno de ser chefe de guerreiros valentes!

O Pagé falou grave e lento:

--Se a virgem abandonou ao guerreiro branco a flôr de seu corpo, ella
morrerá; mas o hospede de Tupan é sagrado; ninguem lhe tocará, todos
o servirão.

Irapuam bramio; o grito rouco troou nas arcas do peito, como o fremito
da sucury na profundeza do rio.

--A raiva de Irapuam não pode mais ouvir-te, velho Pagé! Caia ella
sobre ti, se ousas subtrahir o extrangeiro á vingança dos Tabajaras.

O velho Andira, irmão do Pagé, entrou na cabana; trazia no punho o
terrivel tacape e nos olhos uma raiva ainda mais terrivel.

--O morcego vem te chupar o sangue, se é que tens sangue e não mel nas
veias, tu que ameaças em sua cabana o velho Pagé.

Araken affastou o irmão:

--Paz e silencio, Andira.

O Pagé desenvolvera a alta e magra estatura, como a caninana assanhada,
que se enrista sobre a cauda, para affrontar a victima em face. As rugas
affundaram; e repuxando as pelles engelhadas esbugalharam os dentes
alvos e afilados:

--Ousa um passo mais, e as iras de Tupan te esmagarão sob o peso d'esta
mão sêcca e mirrada!

--N'este momento, Tupan não é comtigo! replicou o chefe.

O Pagé rio; e o seu riso sinistro reboou pelo espaço como o regougo da
ariranha.

--Ouve seu trovão, e treme em teu seio, guerreiro, como a terra em sua
profundeza.

Araken proferindo essa palavra terrivel, avançou até o meio da cabana;
alli ergueu a grande pedra e calcou o pé com fôrça no chão: subito,
abriu-se a terra. Do antro profundo sahiu um medonho gemido, que parecia
arrancado das entranhas do rochedo.

Irapuam não tremeu, nem enfiou de susto; mas sentiu turvar-se a luz
nos olhos, e a voz nos labios.

--O senhor do trovão é por ti; o senhor da guerra será por Irapuam.

O torvo guerreiro deixou a cabana; em pouco seu grande vulto
mergulhou-se nas sombras do crepusculo.

O Pagé e seu irmão travaram a pratica na porta da cabana.

Martim ainda surprêso do que vira, não tirava os olhos da funda cava,
que a planta do velho Pagé abrira no chão da cabana. Um surdo sumor,
como o echo das ondas quebrando nas praias, ruidava alli.

O guerreiro christão scismava; elle não podia crêr que o Deus dos
Tabajaras desse ao seu sacerdote tamanho poder.

Araken percebendo o que passava n'alma do extrangeiro, accendeu o
cachimbo e travou do maracá:

--É tempo de applacar as iras de Tupan, e calar a voz do trovão.

Disse e partiu da cabana.

Iracema achegou-se então do mancebo; levava os labios em riso, os olhos
em jubilo:

--O coração de Iracema está como o abaty n'agua do rio. Ninguem fará
mal ao guerreiro branco na cabana de Araken.

--Arreda-te do inimigo, virgem dos Tabajaras; respondeu o extrangeiro
com asperesa de voz.

Voltando brusco para o lado oposto, furtou o semblante aos olhos ternos
e queixosos da virgem.

--Que fez Iracema, para que o guerreiro branco desvie seus olhos d'ella,
como se fôra o verme da terra?

As falas da virgem resoaram docemente no coração de Martim. Assim
resoam os murmurios da aragem nas frondes da palmeira. O mancebo sentiu
raiva de si, e pena d'ella:

Não ouves tu, virgem formosa? exclamou elle apontando para o antro
fremente.

--É a voz do Tupan!

--Teu Deus falou pela bôcca do Pagé. Se a virgem de Tupan abandonar ao
extrangeiro a flôr de seu corpo, ella morrerá!...

Iracema pendeu a fronte abatida:

--Não é voz de Tupan que ouve teu coração, guerreiro de longes
terras, é o canto da virgem branca que te chama!

O rumor extranho que sahia das profundezas da terra, apagou-se de
repente: fez-se na cabana tão grande silencio, que ouvia-se pulsar o
sangue na arteria do guerreiro, e tremer o suspiro no labio da virgem.



XII


O dia ennegreceu; era noite já.

O Pagé tornára á cabana; sopesando de novo a grande lage, fechou com
ella a bôcca do antro. Cauby chegára tambem da grande taba, onde com
seus irmãos guerreiros se recolhera depois que bateram a floresta, em
busca do inimigo Pytiguara.

No meio da cabana, entre as redes armadas em quadro, extendeu Iracema a
esteira da carnauba, e sobre ella serviu os restos da caça, e a
provisão de vinhos da ultima lua. Sé o guerreiro tabajara achou sabor
na ceia, porque o fel do coração que a tristeza expreme não amargava
seu labio.

O Pagé bebia no cachimbo o fumo sagrado de Tupan, que lhe enchia as
arcas do peito: o extrangeiro respirava, ar ás golfadas para
refrescar-lhe o sangue effervescente; a virgem distillava sua alma como
o mel de um favo, nos crebros soluços que lhe estalavam entre os labios
tremulos.

Já partiu Cauby para a grande taba; o Pagé traga as baforadas do fumo,
que prepara o mysterio do sagrado rito.

Levanta-se no resomno da noite um grito vibrante, que remonta ao céo.

Martim ergue a fronte e inclina o ouvido. Outro clamor semelhante resoa.
O guerreiro murmura, que o ouça a virgem e só ella:

--Escutou Iracema, cantar a gaivota?

--Iracema escutou o grito de uma ave que ella não conhece.

--É a atyaty, a garça do mar, e tu és a virgem da serra, que nunca
desceu as alvas praias onde arrebentam as vagas.

--As praias são dos Pytiguaras, senhores das Palmeiras.

Os guerreiros da grande nação que habitava as bordas do mar, se
chamavam a si mesmos Pytiguaras, senhores dos valles; mas os Tabajaras,
seus inimigos, por escarneo os apellidavam Potyuaras, comedores de
camarão.

Iracema não quiz offender o guerreiro branco; por isso falando a
respeito dos Pytiguaras, não lhes recusou o nome guerreiro que elles
haviam tomado para si.

O extrangeiro reteve por um instante a palavra no seu labio prudente,
emquanto reflectia:

--O canto da gaivota é o grito do guerra do valente Poty, amigo de teu
hospede!

A virgem estremeceu por seus irmãos. A fama do bravo Poty, irmão de
Jacaúna, subio das ribeiras do mar ás alturas da serra; rara é a
cabana onde já não rugiu contra elle o grito da vingança, porque em
quasi todas o golpe de seu valido tacape deitou um guerreiro tabajara em
seu camocim.

Iracema cuidou que Poty vinha á frente de seus guerreiros para livrar o
amigo. Era elle sem duvida que fizera retroar o buzio das praias, no
momento do combate. Foi com um tom misturado de doçura e tristeza que
replicou:

--O extrangeiro está salvo; os irmãos de Iracema vão morrer, porque
ella não falará.

--Saia essa tristeza de tua alma. O extrangeiro partindo-se de teus
campos, virgem tabajara, não deixará n'elles rasto de sangue, como o
tigre esfaimado.

Iracema tomou a mão do guerreiro branco e beijou-a.

--Teu sorriso, continúa elle, apagou a lembrança do mal que elles me
querem.

Martim ergueu-se e marchou para a porta.

--Onde vae o guerreiro branco?

--Adeante de Poty.

--O hospede de Araken não pode sahir d'esta cabana, porque os
guerreiros de Irapuam o matarão.

--Um guerreiro só deve protecção a Deus e a suas armas. Não carece
que o defendam os velhos e as mulheres.

--Não vale um guerreiro só contra mil guerreiros; valente e forte é o
tamanduá, que mordem os gatos selvagens por serem muitos e o acabam.
Tuas armas só chegam até onde mede a sombra de teu corpo; as armas
d'elles voam alto e direitos como o anajê.

--Todo o guerreiro tem seu dia.

--Não queres tu que morra Iracema, e queres que ella te deixe morrer!

Martim ficou perplexo:

--Iracema irá ao encontro do chefe Pytiguara e trará a seu hospede as
falas do guerreiro amigo.

O Pagé sahiu emfim de sua contemplação. O maracá rugiu-lhe na
dextra; tiniram os guisos com o passo hirto e lento.

Chamou elle a filha de parte:

--Se os guerreiros de Irapuam vierem contra a cabana, levanta a pedra e
esconde o extrangeiro no seio da terra.

--O hospede não deve ficar só; espera que volte Iracema. Ainda não
cantou a inhuma.

Tornou a sentar-se na rede o velho. A virgem partiu, cerrando a porta da
cabana.



XIII


Avança a filha de Araken nas trevas; pára e escuta.

O grito da gaivota terceira vez resôa ao seu ouvido; ella vae direito
ao logar d'onde partiu; chega á borda de um tanque; seu olhar investiga
a escuridão, e nada vê do que busca.

A voz maviosa, debil como susurro de colibri, resôa no silencio.

--Guerreiro Poty, teu irmão branco te chama pela bôcca de Iracema.

Só o ecco lhe respondeu.

--A filha de teus inimigos vem a ti, porque o extrangeiro te ama, e ella
ama o extrangeiro.

A lisa lace do lago fendeu-se; e um vulto se mostra, que nada para a
margem, e surge fora.

--Foi Martim quem te mandou, pois tu sabes o nome de Poty, seu irmão
na guerra.

--Fala, chefe Pytiguara; o guerreiro branco espera.

--Torna a elle e diz que Poty é chegado para o salvar.

--Elle sabe, mandou-me para te ouvir.

--As falas de Poty sahirão de sua bôcca para o ouvido de seu irmão
branco.

--Espera então que Araken parta e a cabana fique deserta; eu te guiarei
á presença do extrangeiro.

--Nunca, filha dos Tabajaras, um guerreiro Pytiguara passou a soleira da
cabana inimiga, se não foi como vencedor. Conduz aqui o guerreiro do
mar.

--A vingança de Irapuam fareja em roda da cabana de Araken. Trouxe o
irmão do extrangeiro bastantes guerreiros Pytiguaras para o deffender e
salvar?

Poty reflectiu:

--Conta, virgem das serras, o que aconteceu em teus campos depois que a
elles chegou o guerreiro do mar.

Iracema referiu como a colera de Irapuam se havia assanhado contra o
extrangeiro, até que a voz de Tupan, chamada pelo Pagé, tinha
apasiguado seu furor.

--A raiva de Irapuam é como a andira; foge da luz e voa na treva.

A mão de Poty cerrou súbito os labios da virgem; sua fala parecia um
sopro.

--Suspende a voz e o respiro, virgem das florestas; o ouvido inimigo
escuta na sombra.

As folhas crepitavam de manso, como se por ellas passasse a fragueira
nambú. O rumor partido da orla da matta, vinha discorrendo pelo valle.

O valente Poty, resvallando pela relva, como o ligeiro camarão. de que
elle tomara o nome e a viveza, desappareceu no lago profundo. A agua
não soltou um murmurio, e cerrou sobre elle sua limpida onda.

Iracema voltou á cabana; em meio do caminho seus olhos perceberam as
sombras de muitos guerreiros que rojavam pelo chão, como a intanha.

Araken vendo-a entrar, partiu.

A virgem tabajara contou a Martim o que ouvira de Poty; o guerreiro
christão ergueu-se de um impeto para correr á defeza de seu irmão
Pytiguara. Cingiu-lhe o collo Iracema com os lindos braços:

--O chefe não carece de ti; elle é filho das aguas; as aguas o
protegem. Mais tarde o extrangeiro ouvirá em seus ouvidos as falas
amigas.

--Iracema, é tempo que teu hospede deixe a cabana do Pagé e os campos
dos Tabajaras. Elle não tem medo dos guerreiros de Irapuam, tem medo
dos olhos da virgem de Tupan.

--Elles fugirão de ti.

--Fuja d'elles o extrangeiro, como o oitibó da estrella da manhã.

Martim promoveu o passo.

--Vae, guerreiro ingrato; vae matar teu irmão primeiro, depois a ti.
Iracema te seguirá até aos campos alegres onde vão as sombras dos que
foram.

--Matar meu irmão, dizes tu, virgem cruel?

--Teu rasto guiará o inimigo aonde elle se occulta.

O christão estacou em meio da cabana; e alli permaneceu mudo e quedo.
Iracema receosa de fital-o, tinha os olhos postos na sombra do
guerreiro, que a chamma do fogo projectava na vetusta parede da cabana.

O cão felpudo, deitado no borralho, deu signal de que se approximava
gente amiga. A porta entretecida dos talos de carnaúba foi aberta por
fora. Cauby entrou.

--O cauim perturbou o espirito dos guerreiros; elles vem contra o
extrangeiro.

A virgem ergue-se de um impeto.

--Levanta a pedra que fecha a garganta de Tupan, para que ella esconda o
extrangeiro.

O guerreiro tabajara, sopesando a lage enorme, emborcou-a no chão.

--Filho de Araken, deita na porta da cabana, e nunca mais te levantes da
terra, se um guerreiro passar por cima do teu corpo.

Cauby obedeceu: a virgem cerrou a porta.

Decorreu breve trato. Resoa perto o estrupido dos guerreiros; travam-se
as vozes iradas de Irapuam e Cauby.

--Elles vêm; mas Tupan salvará seu hospede.

N'esse instante, como se o Deus do trovão ouvisse as palavras de sua
virgem, o antro mudo em principio retroou surdamente.

--Ouve! É a voz de Tupan.

Iracema cerra a mão do guerreiro, e o leva á borda do antro. Somem-se
ambos nas entranhas da terra.



XIV


Os guerreiros tabajaras, excitados com as copiosas libações do
espumante cauim, se inflammam á voz de Irapuam, que tantas vezes os
guiou ao combate, quantas á victoria.

Aplaca o vinho a sêde do corpo; accende outra sêde maior na alma
feroz. Rugem vingança contra o extrangeiro audaz que affrontando suas
armas offende o Deus de seus paes, e o chefe da guerra, o primeiro
varão tabajara.

Lá tripudiam de furor, e arremettem pelas sombras; a luz vermelha do
ubiratan, que brilha ao longe, os guia á cabana de Araken. De espaço
em espaço erguem-se do chão os que primeiro vieram para vigiar o
inimigo.

--O Pagé está na floresta! murmuram elles.

--O extrangeiro? pergunta Irapuam.

--Na cabana com Iracema.

O grande chefe lança o terrivel salto; já é chegado á porta da
cabana, e com elle seus valentes guerreiros.

O vulto de Cauby enche o vão da porta; suas armas guardam deante d'elle
o espaço de um bote do maracajá.

--Vis guerreiros são aquelles que atacam em bando como os caetetús. O
jaguar, senhor da floresta, e o anajê, senhor das nuvens, combatem só
o inimigo.

--Morda o pó a bocca torpe que levanta a voz contra o mais valente
guerreiro dos guerreiros tabajaras.

Proferidas estas palavras, ergue o braço de Irapuam o rigido tacape,
mas estaca no ar; as entranhas da terra outra vez rugem, como rugiram,
quando Araken accordou a voz tremenda de Tupan.

Levantam os guerreiros medonho alarido; e cercando seu chefe o arrebatam
ao funesto lugar e á colera de Tupan, contra elles concitado.

Cauby extende-se de novo na soleira da porta; seus olhos adormecem; mas
seu ouvido vella no somno.

A voz de Tupan emmudeceu.

Iracema e o christão perdidos nas entranhas da terra, descem a gruta
profunda. Subito uma voz que vinha reboando pela crasta, encheu seus
ouvidos:

--O guerreiro do mar escuta a falla de seu irmão?

--É Poty, o amigo de teu hospede: disse o christão para a virgem.

Iracema estremeceu:

--Elle fala pela bôcca de Tupan.

Martim respondeu emfim ao Pytiguara.

--As falas de Poty entram n'alma de seu irmão.

--Nenhum outro ouvido escuta?

--Os da virgem que duas vezes em um sol defendeu a vida de teu irmão!

--A mulher é fraca; o tabajara traidor; e o irmão de Jacaúna
prudente.

Iracema suspirou: e pousou a cabeça no peito do mancebo:

--Senhor de Iracema, cerra seus ouvidos, para que ella não ouça.

Martim repelliu docemente a gentil fronte:

--Falle o chefe Pytiguara; só o escutam ouvidos amigos e fieis.

--Tu ordenas, Poty fala. Antes que o sol se levante na serra, o
guerreiro do mar deve partir para as margens do ninho das garças; a
estrella morta o guiará ás alvas praias. Nenhum tabajara o seguirá,
porque a inubia dos Pytiguaras rugirá da banda da serra.

--Quantos guerreiros Pytiguaras acompanham seu chefe valente?

--Nenhum; Poty veiu só, com suas armas. Quando os espiritos máus da
floresta separaram o guerreiro do mar de seu irmão, Poty veiu em
seguimento do rastro. Seu coração não deixou que voltasse para chamar
os guerreiros da sua taba; mas expediu seu cão fiel ao grande Jacaúna.

--O chefe Pytiguara está só; não deve rugir a inubia que chamará
contra si todos os guerreiros tabajaras.

--É preciso para salvar o irmão branco; Poty zombará de Irapuam, como
zombou quando combatiam cem contra ti.

A filha do Pagé, que ouvira callada, debruçou-se ao ouvido do
christão:

--Iracema quer-te salvar e a teu irmão; ella tem seu pensamento. O
chefe Pytiguara é valente e audaz; Irapuam é manhoso e traiçoeiro
como a acauan. Antes que chegues á floresta, cahirás; e teu irmão da
outra banda cahirá comtigo.

--Que fará a virgem tabajara para salvar o extrangeiro e seu irmão?
perguntou Martim.

--Mais um sol e outro, e a lua das flores vae nascer. É o tempo da
festa, em que os guerreiros tabajaras passam a noite no bosque sagrado,
e recebem do Pagé os sonhos alegres. Quando estiverem todos
adormecidos, o guerreiro branco deixará os campos do Ipú, e os olhos
de Iracema, mas não sua alma.

Martim estreitou a virgem ao seio; mas logo a repelliu. O toque de seu
corpo, doce como a assucena da mata, e quente como o ninho do beija
flôr, espinhou seu coração; porque lhe recordou as palavras terriveis
do Pagé.

A voz do christão disse a Poty o pensamento de Iracema; o chefe
Pytiguara, prudente como o tamanduá, pensou e respondeu:

--A sabedoria fallou pela bôcca da virgem tabajara Poty espera o
nascimento da lua.



XV


Nasceu o dia e expirou.

Já brilha na cabana de Araken o fogo, companheiro da noite. Correm
lentas e silenciosas no azul do céo, as estrellas, filhas da lua, que
esperam a volta da sua mãe ausente.

Martim se emballa docemente; e como a alva rêde que vae e vem, sua
vontade oscilla de um a outro pensamento. Lá o espera a virgem loura
dos castos affectos; aqui lhe sorri a virgem morena dos ardentes amores.

Iracema recosta-se langue ao punho da rêde; seus olhos negros e
fulgidos, ternos olhos de sabiá, buscam o extrangeiro, e lhe entram
n'alma. O christão sorri; a virgem palpita; como o sahy, fascinado pela
serpente, vae declinando o lascivo talhe, que se prostra sobre o peito
do guerreiro.

Já o extrangeiro a prime ao seio; e o labio avido busca o labio que o
espera, para celebrar n'esse adyto d'alma, o hymineo do amor.

No recanto escuro o velho Pagé, immerso em sua contemplação e alheio
ás cousas d'este mundo, soltou um gemido doloroso. Pressentira o
coração o que não viram os olhos? Ou foi algum funesto presagio para
a raça de seus filhos, que assim echoou n'alma de Araken?

Ninguem o soube.

O christão repelliu do seio a virgem indiana. Elle não deixará o
rastro da desgraça na cabana hospedeira. Cerra os olhos para não vêr;
e enche sua alma com o nome e a veneração do seu Deus:

--Christo!... Christo!...

A serenidade volta ao seio do guerreiro branco, mas todas as vezes que
seu olhar pousa sobre a virgem tabajara, elle sente correr-lhe pelas
veias uma scentelha de ardente chamma. Assim quando a creança
imprudente revolve o brasido de intenso fogo, saltam as faúlhas
inflammadas que lhe queimam o corpo.

Fecha os olhos o christão, mas na sombra de seu pensamento surge a
imagem da virgem, talvez mais bella. Em balde chama elle o somno ás
palpebras fatigadas; ellas se abrem, máu grado seu.

Desce-lhe do céo ao atribulado pensamento uma inspiração:

--Virgem formosa do sertão, esta é a ultima noite que teu hospede
dorme na cabana de Araken, onde nunca viera, para teu bem e seu. Faze
que seu somno seja alegre e feliz.

--Manda; Iracema te obedece. Que pode ella para tua alegria?

O christão falou submisso, para que não o ouvisse o velho Pagé:

--A virgem de Tupan guarda os sonhos da jurema que são doces e
saborosos!

Um triste sorriso pungiu os labios de Iracema:

--O extrangeiro vae viver para sempre á cintura da virgem branca; nunca
mais seus olhos verão a filha de Araken; e elle quer que o somno já
feche suas palpebras, e o sonho o leve á terra de seus irmãos!

--O somno é o descanço do guerreiro, disse Martim; e o sonho a alegria
d'alma. O extrangeiro não quer levar comsigo a tristeza da terra
hospedeira, nem deixal-a no coração de Iracema!

A virgem ficou immovel.

--Vae e torna com o vinho de Tupan.

Quando Iracema foi de volta, já o Pagé não estava na cabana; tirou do
seio o vaso que alli trazia occulto sob a carioba de algodão
entretecida de pennas. Martim lh'o arrebatou das mãos, e libou as
gottas poucas do verde e amargo licor. Não tardou que a rede recebesse
seu corpo desfallecido.

Agora podia viver com Iracema, e colher nos seus labios o beijo, que
alli viçava entre sorrisos, como o fructo na corolla da flor. Podia
amal-a, e sugar d'esse amor o mel e o perfume, sem deixar veneno no seio
da virgem.

O goso era vida, pois o sentia mais vivo e intenso; o mal era sonho e
illusão, que da virgem elle não possuia mais que a imagem.

Iracema se affastara oppressa e suspirosa.

Abriram-se os braços do guerreiro e seus labios; o nome da virgem
resoou docemente.

A juruty, que divaga pela floresta, ouve o terno arrulho do companheiro;
bate as azas e vôa a conchegar-se ao tepido ninho. Assim a virgem do
sertão, aninhou-se nos braços do guerreiro.

Quando veiu a manhã, ainda achou Iracema ali debruçada, qual borboleta
que dormiu no seio do formoso cacto. Em seu lindo semblante accendia o
pejo vivos rubores; e como entre os arrebões da manhã scintilla o
primeiro raio do sol, em suas faces incendidas rutilava o primeiro
sorriso da esposa, aurora de fruido amor.

Martim vendo a virgem unida ao seu coração, cuidou que o sonho
continuava; cerrou os olhos para tornal-os a abrir.

A pocema dos guerreiros, troando pelo valle, o arrancou ao doce engano;
sentiu que já não sonhava, mas vivia. Sua mão cruel abafou nos labios
da virgem o beijo que alli se espanejava.

--Os beijos de Iracema são doces no sonho; o guerreiro branco encheu
d'elles sua alma. Na vida, os labios da virgem de Tupan, amargam e doem
como o espinho da jurema.

A filha de Araken escondeu no coração a sua alegria. Ficou timida e
inquieta, como a ave que presente a borrasca no horisonte. Affastou-se
rapida, e partiu.

As aguas do rio depuraram o corpo casto da recente esposa.

A jandaia não tornou á cabana.

Tupan já não tinha sua virgem na terra dos Tabajaras.



XVI


O alvo disco da lua surgiu no horisonte.

A luz brilhante do sol empallidece a virgem do céo como o amor do
guerreiro desmaia a face da esposa.

--Jacy!... Mãe nossa!... exclamaram os guerreiros tabajaras.

E brandindo os arcos lançaram ao céo com a chuva das flechas o canto
da lua nova:

"Veiu no céo a mãe dos guerreiros; já volta o rosto para vêr seus
filhos. Ella traz as aguas, que enchem os rios e a polpa do cajú.

"Já veiu a esposa do sol; já sorri ás virgens da terra filhas suas. A
doce luz accende O amor no coração dos guerreiros e fecunda o seio da
joven mãe."

Cae a tarde.

Folgam as mulheres e os meninos na vasta ocara; os mancebos, que ainda
não ganharam nome de guerra por algum feito brilhante, discorrem no
valle.

Os guerreiros seguem Irapuam ao bosque sagrado, onde os espera o Pagé e
sua filha para o mysterio da jurema. Iracema já accendeu os fogos da
alegria. Araken está immovel e extactico no seio de uma nuvem de fumo.

Cada guerreiro que chega depõe a seus pés uma offerenda a Tupan. Traz
um a succulenta caça; outro a farinha d'agua; aquelle, o saboroso
piracem da trahira. O velho Pagé, para quem são estas dadivas, as
recebe com desdem.

Quando foram todos sentados em torno do grande fogo, o ministro de Tupan
ordena o silencio com um gesto, e tres vezes clamando o nome terrivel,
enche-se do Deus, que o habita:

--Tupan!... Tupan!... Tupan!...

Tres vezes o echo ao longe repercutio.

Vem Iracema com a igaçaba cheia do verde licor.

Araken decreta os sonhos a cada guerreiro, e destribue o vinho da
jurema, que transporta ao céo o valente tabajara.

Este, grande caçador, sonha que os veados e as pacas correm ao deante
de suas flechas paras e traspassarem nellas; fatigado alfim de ferir,
cava na terra o bucan, e assa tamanha quantidade de caça, que mil
guerreiros em um anno não acabarão.

Outro, fogoso em amores, sonha que as mais bellas virgens dos tabajaras
deixam a cabana de seus paes e o seguem captivas do seu querer. Nunca a
rêde de chefe algum embalou mais voluptuosas caricias, que elle as frue
n'aquelle extase.

O heroe sonha tremendas lutas, e horriveis combates de que sahe
vencedor, cheio de gloria e fama. O velho renasce, na prole numerosa, e
como o secco tronco donde rebenta nova e robusta sebe, cobre-se ainda de
flôres.

Todos sentem a felicidade tão viva e continua, que no espaço da noite
cuidam viver muitas luas. As boccas murmuram; o gesto falla; e o Pagé,
que tudo escuta e vê, colhe o segredo das almas desnudas.

Iracema, depois que offereceu aos guerreiros o licor de Tupan, sahio do
bosque. Não permittia o rito que ella assistisse ao somno dos
guerreiros e ouvisse falar os sonhos.

Foi d'ali direito á cabana, onde a esperava Martim.

--Toma as tuas armas, guerreiro branco. É tempo de partir.

--Leva-me onde está Poty, meu irmão.

A virgem caminhou para o valle; o christão a seguio. Chegaram á falda
do rochedo, que ia morrer á beira do tanque, em um massiço de verdura.

--Chama teu irmão!

Martim soltou o grito da gaivota. A pedra que fechava a entrada da gruta
cahio; e o vulto do guerreiro Poty appareceu na sombra.

Os dois irmãos encostaram a fronte na fronte e o peito no peito, para
exprimir que não tinham ambos mais que uma cabeça e um coração.

--Poty está contente porque vê seu irmão, que o máo espirito da
floresta arrebatou de seus olhos.

--Feliz é o guerreiro que tem ao flanco um amigo como o bravo Poty;
todos os guerreiros o invejarão.

Iracema suspirou, pensando que a affeição do Pytiguara bastava á
felicidade do extrangeiro:

--Os guerreiros tabajaras dormem. A filha de Araken vae guiar os
extrangeiros.

A virgem seguio adeante; os dois guerreiros apóz. Quando tinham andado o
espaço que transpõe a garça de um vôo, o chefe Pytiguara tornou-se
inquieto, e murmurou ao ouvido do christão:

--Manda á filha do Pagé que volte á cabana de seu pae. Ella demora a
marcha dos guerreiros.

Martim entristeceu; mas a voz da prudencia e da amizade penetrou em seu
coração. Avançou para Iracema; e tirou do seio uma voz doce para
acalentar a saudade da virgem:

--Mais affunda a raiz da planta na terra, mais custa arrancal-a. Cada
passo de Iracema no caminho da partida, é uma raiz que lança no
coração de seu hospede.

--Iracema quer-te acompanhar até onde acabam os campos dos Tabajaras,
para voltar com o socego em seu peito.

Martim não respondeu. Continuaram a caminhar, e com elles caminhava a
noite; as estrellas desmaiaram e a frescura da alvorada alegrou a
floresta. As roupas da manhã, alvas como o algodão, appareceram no
céo.

Poty olhou a mata e parou. Martim comprehendeu e disse a Iracema:

--Teu hospede já não pisa os campos dos Tabajaras. É o instante de
separar-te d'elle.



XVII


Iracema pousou a mão no peito do guerreiro branco:

--A filha dos Tabajaras já deixou os campos de seus paes; agora pode
falar.

--Que guardas tu em teu seio, virgem formosa do sertão?

Ella pôz os olhos cheios no christão:

--Iracema não pode mais separar-se do extrangeiro.

--Assim é preciso, filha de Araken. Torna á cabana de teu velho pae,
que te espera.

--Araken já não tem filha.

Martim tornou com gesto rudo e severo:

--Um guerreiro da minha raça jamais deixou a cabana do hospede, viuva
de sua alegria. Araken abraçará sua filha, para não amaldiçoar o
extrangeiro ingrato.

A virgem pendeu a fronte; velando-se com as longas tranças negras que
se esparziam pelo collo, cruzando ao gremio os lindos braços, recolheu
em seu pudor. Assim o roseo cacto, que já desabrochou em formosa flôr,
cerra em botão o seio perfumado.

--Tua escrava te acompanhará, guerreiro branco: porque teu sangue dorme
em seu seio.

Martim estremeceu.

--Os máos espiritos da noite turbaram o espirito de Iracema.

--O guerreiro branco sonhava, quando Tupan abandonou sua virgem, porque
ella trahio o segredo da jurema.

O christão escondeu as faces á luz.

--Deus!... clamou seu labio tremulo.

Permaneceram ambos mudos e quedos.

Afinal disse Poty:

--Os guerreiros tabajaras despertam.

O coração da virgem como o do extrangeiro, ficou surdo á voz da
prudencia. O sol levantou-se no horisonte; e seu olhar magestoso desceu
dos montes á floresta. Poty de pé como um tronco decepado esperou que
seu irmão quizesse partir.

Foi Iracema quem primeiro falou:

--Vem: emquanto não pisares as praias dos Pytiguaras, tua vida corre
perigo.

Martim seguiu silencioso a virgem, que fugia entre as arvores, como a
selvagem acoty. A tristeza lhe roia o coração; mas a onda de perfumes
que deixava na brisa a passagem da formosa tabajara, açulava o amor no
seio do guerreiro. Seu passo era tardo, o peito lhe offegava.

Poty scismava. Em sua cabeça de mancebo morava o espirito de um
abaeté. O chefe pytiguara pensava que o amor é como o cauim, o qual
bebido com moderação fortalece o guerreiro, e tomado em excesso abate
a coragem do heroe. Elle sabia quanto veloz era o pé do tabajara; e
esperava o momento de morrer defendendo o amigo.

Quando as sombras da tarde entristeciam o dia, o christão parou no meio
da mata. Poty accendeu o fogo da hospitalidade. A virgem desdobrou a
alva rêde de algodão franjada de pennas de tucano e suspendeu-a aos
ramos de arvore.

--Esposo de Iracema, tua rêde te espera.

A filha de Araken foi sentar-se longe, na raiz de uma arvore, como a
cerva solitaria, que o ingrato companheiro afugentou do aprisco. O
guerreiro pytiguara desappareceu na espessura da folhagem.

Martim ficou mudo e triste, semelhante ao tronco d'arvore a que o vento
arrancou o lindo cipó que o entrelaçava. A brisa perpassando levou um
murmurio:

--Iracema!

Era o balido do companheiro; a cerva arrufando-se ganhou o doce aprisco.

A floresta distillava suave fragrancia e exhalava harmoniosos arpejos;
os suspiros do coração se difundiram nos murmures do deserto. Foi a
festa do amor e o canto do hymeneo.

Já a luz da manhã coou na selva densa. A voz grave e sonora de Poty
repercutio no susurro da mata:

--O povo tabajara caminha na floresta!

Iracema arrancou-se dos braços que a cingiam e mais do labio que a
tinha captiva: saltando da rede como a rapida zabelé, travou das armas
do esposo, e levou-o atravez da mata.

De espaço a espaço o prudente Poty escutava as entranhas da terra; sua
cabeça movia-se pesada de um a outro lado, como a nuvem que se
embalança no cocuruto do rochedo, aos varios lufos da proxima borrasca.

--O que escuta o ouvido do guerreiro Poty?

--Escuta o passo veloz do povo tabajara. Elle vem como o tapyr, rompendo
a floresta.

--O guerreiro pytiguara é a ema que vôa sobre a terra; nós o
seguiremos, como suas azas; disse Iracema.

O chefe sacudio de novo a fronte:

--Emquanto o guerreiro do mar dormia, o inimigo correu. Os que primeiro
partiram já avançam além como as pontas do arco.

A vergonha mordeu o coração de Martim.

--Fuja o chefe Poty e salve Iracema. Só deve morrer o guerreiro máo,
que não escutou a voz de seu irmão e o pedido de sua esposa.

Martim arripiou o passo.

--A alma do guerreiro branco não escutou sua bocca Poty e seu irmão
só tem uma vida.

O labio de Iracema não fallou: sorrio.



XVIII


Treme a selva com o estrupido da carreira do povo tabajara.

O grande Irapuam, primeiro, assoma entre as arvores. Seu olhar rubido
viu o guerreiro branco entre nuvens de sangue; o grito rouco do tigre
rompe de seu peito cavernoso.

O chefe tabajara e seu povo, vão precipitar-se sobre os fugitivos, como
a vaga encapelada que rebenta no Mocoribe.

Eis late o cão selvagem.

Poty solta o grito da alegria:

--O cão de Poty guia os guerreiros de sua taba em soccorro teu.

O rouco buzio dos Pytiguaras estruge pela floresta. O grande Jacaúna,
senhor das praias do mar, chegava do rio das garças com seus melhores
guerreiros.

Os Pytiguaras recebem o primeiro impeto do inimigo nas pontas erriçadas
de suas flechas, que elles despedem do arco aos molhos, como o coandú
os espinhos do seu corpo. Logo apóz sôa a pocema, estreita-se o
espaço, e a luta se trava face a face.

Jacaúna atacou Irapuam. Prosegue o horrivel combate que bastára a dez
bravos, e não esgotou ainda a força dos grandes chefes. Quando os dois
tacapes se encontram, a batalha toda estremece como um só guerreiro
até ás entranhas.

O irmão de Iracema veio direito ao extrangeiro, que arrancara a filha
de Araken á cabana hospedeira; o faro da vingança o guia; a vista da
irmã assanha a raiva em seu peito. O guerreiro Cauby assalta com furor
o inimigo.

Iracema, unida ao flanco de seu guerreiro e esposo, vio de longe Cauby e
fallou assim:

--Senhor de Iracema, ouve o rogo de tua escrava; não derrama o sangue
do filho de Araken. Se o guerreiro Cauby tem de morrer, morra elle por
esta mão, não pela tua.

Martim pôz no rosto da selvagem olhos de horror:

--Iracema matará seu irmão?

--Iracema antes quer que o sangue de Cauby tinja sua mão que a tua;
porque os olhos de Iracema vêem a ti, e a ella não.

Travam a luta os guerreiros. Cauby combate com furor, o christão
defende-se apenas; mas a seta embebida no arco da esposa guarda a vida
do guerreiro contra os botes do inimigo.

Poty já prostrou o velho Andira e quantos guerreiros topou na luta seu
valido tacape. Martim lhe abandona o filho de Araken, e corre sobre
Irapuam.

--Jacaúna é um grande chefe; seu collar de guerra dá tres voltas ao
peito. O tabajara pertence ao guerreiro branco.

--A vingança é a honra do guerreiro, e Jacaúna ama o amigo de Poty.

O grande chefe Pytiguara levou além o formidavel tacape. O combate
renhio-se entre Irapuam e Martim. A espada do christão. batendo na
clava do selvagem fez-se pedaços. O chefe tabajara avançou contra o
peito inerme do adversario.

Iracema silvou como a boicininga, e se arremessou ante a furia do
guerreiro tabajara. A arma rigida tremeu na dextra possante e o braço
cahio desfallecido.

Soava a pocema da victoria. Os guerreiros pytiguaras conduzidos por
Jacaúna e Poty varriam a floresta. Os tabajaras, fugindo, arrebataram
seu chefe ao odio da filha de Araken que o podia abater, como a jandaia
abate o procero coqueiro roendo-lhe o cerne.

Os olhos de Iracema estendidos pela floresta, viram o chão juncado de
cadaveres de seus irmãos; e longe o bando dos guerreiros tabajaras que
fugiam em nuvem negra de pó. Aquelle sangue que enrubecia a terra era
o mesmo sangue brioso que lhe ardia as faces de vergonha.

O pranto orvalhou seu lindo semblante.

Martim affastou-se para não envergonhar a tristeza de Iracema. Deixou
que sua dor núa se banhasse nas lagrimas.



XIX


Poty voltou de perseguir o inimigo. Seus olhos se encheram de alegria
vendo salvo o guerreiro branco.

O cão fiel o seguia de perto, lambendo ainda nos pellos do focinho, a
marugem do sangue tabajara de que se fartára; o senhor o acariciava
satisfeito de sua coragem e dedicação. Fora elle quem salvara Martim,
alli trazendo com tanta deligencia os guerreiros de Jacaúna.

--Os máos espiritos da floresta podem separar outra vez o guerreiro
branco de seu irmão Pytiguara. O cão te seguirá d'aqui em deante, para
que mesmo de longe Poty acuda a teu chamado.

--Mas o cão é teu companheiro e amigo fiel.

--Mais amigo e companheiro será de Poty, servindo a seu irmão que a
elle. Tu o chamarás Japy, e elle será o pé ligeiro com que de longe
corramos um para o outro.

Jacaúna deu o signal da partida.

Os guerreiros pytiguaras caminharam para as margens alegres do rio onde
bebem as garças: alli se erguia a grande taba dos senhores das varzeas.

O sol deitou-se, e de novo se levantou no céo. Os guerreiros chegaram
aonde a serra quebrava para o sertão; já tinham passado aquella parte
da montanha, que por ser despida de arvoredo e tosquiada corno a
capivara, a gente de Tupan chamava Ibyapina.

Poty levou o christão aonde crescia um frondoso jatobá, que affrontava
as arvores do mais alto pincaro da serrania, e quando batido pela rajada
parecia varrer o céo com a immensa copa.

--N'este logar nasceu teu irmão, disse o pytiguara: Martim estreitou o
peito ao tronco enorme:

--Jatobá, que viste nascer meu irmão Poty, o extrangeiro te abraça.

--O raio te decepe arvore do guerreiro Poty, quando seu irmão o
abandonar.

Depois o chefe assim falou:

--Ainda Jacaúna não era um guerreiro, Jatobá, o maior chefe, conduzia
os Pytiguaras á victoria. Logo que as grandes aguas correram, elle
caminhou para a serra. Aqui chegando, mandou levantar a taba, para estar
perto do inimigo e vencêl-o mais vezes. A mesma lua que o vio chegar,
alumiou a rêde onde Sahy sua esposa, lhe deu mais um guerreiro de seu
sangue. O luar passava por entre as folhas do jatobá; e o sorriso pelos
labios do varão possante, que tomara seu nome e robustez.

Iracema aproximou-se.

A rôla, que marisca na areia, se o companheiro se afasta, adeja
inquieta de ramo em ramo e arrulla para que lhe responda o ausente
amigo. Assim a filha da floresta errara pela encosta, modulando o
singelo canto mavioso.

Martim a recebeu com a alma no semblante; e levando a esposa do lado do
coração e o amigo do lado da força, voltou ao rancho dos pytiguaras.



XX


A lua cresceu.

Tres sóes havia que Martim e Iracema estavam nas terras dos Pytiguaras,
senhores das margens do Camocim e Acaraú. Os extrangeiros tinham sua
rêde na vasta cabana do grande Jacaúna. O valente chefe guardou para
si a alegria de hospedar o guerreiro branco.

Poty abandonou sua taba, para acompanhar seu irmão de guerra na cabana
de seu irmão de sangue, e gosar dos instantes que sobejavam do amor de
Iracema para a amisade, no coração do guerreiro do mar.

A sombra já se retirou da face da terra: e Martim vio que ella não se
retirara ainda da face da esposa, desde o dia do combate.

--A tristeza mora na alma de Iracema!

--A alegria para a esposa só vem de ti; quando teus olhos a deixam as
lagrimas enchem os seus.

--Porque chora a filha dos Tabajaras?

--Esta é a taba dos Pytiguaras, inimigos do meu povo. A vista de
Iracema já conheceu o craneo de seus irmãos espetado na caiçara; o
ouvido já escutou o canto de morte dos captivos tabajaras; a mão já
tocou as armas tintas do sangue de seus paes.

A esposa pousou as duas mãos nos hombros do guerreiro, e reclinou ao
peito d'elle:

--Iracema tudo soffre por seu guerreiro e senhor. A ata é doce e
saborosa; quando a machucam azeda. Tua esposa não quer que seu amor
azede teu coração; mas que te encha das doçuras do mel.

--Volte o socego ao seio da filha dos Tabajaras; ella vae deixar a taba
dos inimigos de seu povo.

O christão caminhou para a cabana de Jacaúna. O grande chefe
alegrou-se vendo chegar seu hospede; mas a alegria fugio logo de sua
fronte guerreira. Martim dissera:

--O guerreiro branco parte de tua cabana, grande chefe.

--Alguma cousa te faltou na taba de Jacaúna?

--Nada faltou a teu hospede. Elle era feliz aqui; mas a voz do coração
o chama a outros sitios.

--Então parte, e leva o que é preciso para a viagem. Tupan te
fortaleça, e traga outra vez á cabana de Jacaúna, para que elle
festeje tua boa vinda.

Poty chegou: sabendo que o guerreiro do mar ia partir, falou:

--Teu irmão te acompanha.

--Os guerreiros de Poty precisam de seu chefe.

--Se tu não queres que elles vão com Poty, Jacaúna os conduzira á
victoria.

--A cabana de Poty ficará deserta e triste.

--Deserto e triste será o coração de teu irmão longe de ti.

O guerreiro do mar deixou as margens do rio das garças, e caminhou para
as terras onde o sol se deita. A esposa e o amigo seguem sua marcha.
Passaram além da fertil montanha, onde a abundancia dos fructos creava
grande quantidade de mosca, do que lhe veio o nome de Meruoca.

Atravessam os corregos que levam suas aguas ao rio das garças, e
avistam longe rio horisonte uma alta serrania. Expira o dia; nuvem negra
voa das bandas do mar: são os urubus que pastam nas praias a carniça
que o oceano arroja, e com a noite tornam ao ninho.

Os viajantes dormem em Uruburetama. Quando o sol voltou, chegaram ás
margens do rio, que nasce na quebrada da serra e desce a planicie
enroscando-se como uma cobra. Suas voltas continuas enganam a cada passo
o peregrino, que vae seguindo o tortuoso curso: por isso foi chamado
Mundahú.

Perlongando as frescas margens, viu Martim no seguinte sol os verdes
mares e as alvas praias onde as ondas murmurosas, ás vezes soluçam e
outras raivam de furia, rebentando em frocos de espuma.

Os olhos do guerreiro branco se dilataram pela vasta immensidade; seu
peito suspirou. Esse mar beijava tambem as brancas areias do Potengi,
seu berço natal, onde elle vira a luz americana. Arrojou-se nas ondas
e pensou banhar seu corpo nas aguas da patria, como banhara sua alma nas
saudades d'ella.

Iracema sentiu chorar-lhe o coração; mas não tardou que o sorriso de
seu guerreiro o acalentasse.

Entretanto Poty, do alto do coqueiro, flexava o saboroso camoropim que
brincava na pequena bahia do Mundahú; e preparava o moquem para a
refeição.



XXI


Já descia o sol das alturas do céo.

Chegam os viajantes á foz do rio onde se criam em grande abundancia as
saborosas trahiras; suas praias são povoadas pela tribu dos pescadores,
da grande nação dos Pytiguaras.

Elles receberam os extrangeiros com a hospitalidade generosa, que era
uma lei de sua religião; e Poty com o respeito que merecia tão grande
guerreiro, irmão de Jacaúna, maior chefe da forte gente pytiguara.

Para repousar os viajantes, e acompanhal-os na despedida, o chefe da
tribu recebeu Martim, Iracema e Poty na jangada, e abrindo a vela á
brisa, levou-os até muito longe na costa. Todos os pescadores em suas
jangadas seguiam o chefe e atroavam os ares com o canto de saudade, e os
murmures do uraçá, que imita os soluços do vento.

Além da tribu dos pescadores estava mais entrada para as serras a tribu
dos caçadores. Elles occupavam as margens do Soipé, cobertas de
matas, onde os veados, as gordas pacas e os macios jacús abundavam.
Assim os habitadores d'essas margens lhe deram o nome de paiz da caça.

O chefe dos caçadores, Jaguarassú, tinha sua cabana á beira do lago,
que forma o rio perto do mar. Ahi acharam os viajantes o mesmo agasalho
que haviam recebido dos pescadores.

Depois que partiram do Soipé, os viajantes atravessaram o rio Pacoty,
em cujas margens cresciam as frondosas bananeiras balançando os verdes
pennachos; mais longe o Iguape, onde a agua faz cintura em torno dos
comoros de areia.

Além assomou no horisonte um alto morro de areia que tinha a alvura da
espuma do mar. O cabo sobranceiro aos coqueiros parece a cabeça calva
do condor, esperando alli a borrasca, que vem dos confins do oceano.

--Poty conhece o grande morro das areias? perguntou o christão.

--Poty conhece toda a terra que tem os Pytiguaras desde as margens do
grande rio, que forma um braço do mar, até á margem do rio onde
habita o jaguar. Elle já esteve no alto do Mocoribe, e de lá viu
correr no mar as grandes igaras dos guerreiros brancos, teus inimigos,
que está o no Mearim.

--Porque chamas tu Mocoribe, o grande morro das areias?

--O pescador da praia, que vae nas jangadas, lá onde voa a aty, fica
triste, longe da terra e de sua cabana, onde dormem os filhos de seu
sangue. Quando elle volta e que seus olhos primeiro avistam o morro das
areias, a alegria volta ao seio do homem. Então elle diz que o morro
das areias dá alegria!

--O pescador diz bem; porque teu irmão ficou contente como elle, vendo
o monte das areias.

Martim subiu com Poty ao cimo do Mocoribe. Iracema seguindo com os olhos
o esposo, divagava como a jaçanan em tôrno do lindo seio, que alli fez
a terra para receber o mar. De passagem ella colhia os doces cajús, que
aplacam a sede aos guerreiros, e apanhava as mimosas conchas para ornar
seu collo.

Os viajantes estiveram em Mocoribe tres sóes. Depois Martim levou seus
passos além. A esposa e o amigo o seguiram até á embocadura de um rio
cujas margens eram alagadas e cobertas de mangue. O mar entrando por
elle formava uma bacia de agua christalina, que parecia cavada na pedra
como um camocim.

O guerreiro christão. ao percorrer essa paragem, começou de scismar.
Até alli elle caminhava sem destino, movendo seus passos ao acaso; não
tinha outra intenção mais que affastar-se das tabas dos Pytiguaras
para arrancar a tristeza do coração de Iracema. O christão sabia por
experiencia que a viagem acalenta a saudade, porque a alma pára
emquanto o corpo se move. Agora sentado na praia pensava.

Poty veiu:

--O guerreiro branco pensa; o seio do irmão está aberto para receber
seu pensamento.

--Teu irmão pensa que este lugar é melhor do que as margens do
Jaguaribe para a taba dos guerreiros de sua raça. N'estas aguas as
grandes igaras que vem de longes terras se esconderiam do vento e do
mar; d'aqui ellas iriam ao Mearim destruir os brancos tapuias alliados
dos Tabajaras, inimigos de tua nação.

O chefe pytiguara meditou e respondeu:

--Vae buscar teus guerreiros. Poty plantará sua taba junto da mayr de
seu irmão.

Aproximava-se Iracema. O christão mandou com um gesto o silencio ao
chefe Pytiguara.

--A voz do esposo se calla, e seus olhos se abaixam quando chega
Iracema. Queres tu que ella se affaste?

--Quer teu esposo, que chegues mais perto, para que sua voz e seus olhos
penetrem mais dentro de tua alma.

A formosa selvagem desfez-se em risos como se desfaz a flor do fructo
que desponta, e foi debruçar-se na espadua do guerreiro.

--Iracema te escuta.

--Estes campos são alegres, e mais serão quando Iracema n'elles
habitar. Que diz teu coração?

--O coração da esposa está sempre alegre junto de seu senhor e
guerreiro.

O christão, seguindo pela margem do rio, escolheu o logar para levantar
a cabana. Poty cortou esteios dos troncos da carnaúba; a filha de
Araken ligava os leques da palmeira para vestir o tecto e as paredes:
Martim cavou a terra com a espada e fabricou a porta das fasquias da
taquára.

Quando veiu a noite os dois esposos armaram a rede em sua nova cabana; e
o amigo no copiar que olhava para o nascente.



XXII


Poty saudou o amigo e faltou assim:

--Antes que o pae de Jacaúna e Poty, o valente guerreiro Jatobá,
mandasse a todos os guerreiros pytiguaras, o grande tacape da nação
estava na dextra de Batuireté, o maior chefe, pae de Jatobá. Foi elle
que veiu pelas praias do mar até o rio do jaguar, e expulsou os
tabajaras para dentro das terras, marcando a cada tribu seu logar;
depois entrou pelo sertão até á serra que tomou seu nome.

Quando suas estrellas eram muitas, e tantas que em seu camocim já não
cabiam as castanhas que marcavam o numero, o corpo vergou para a terra,
o braço endureceu como o galho do ubiratan que não verga; seus olhos
se escureceram.

Chamou então o guerreiro Jatobá e disse:--Filho, toma o tacape da
nação pytiguara. Tupan não quer que Batuireté o leve mais á guerra,
pois tirou a força de seu corpo, o movimento do seu braço e a luz de
seus olhos. Mas Tupan foi bom para elle, pois lhe deu um filho como o
guerreira Jatobá.

Jatobá empunhou o tacape dos Pytiguaras. Batuireté tornou o bordão de
sua velhice e caminhou. Foi atravessando os vastos sertões, até os
campos viçosos onde correm as aguas que vem das bandas da noite. Quando
o velho guerreiro arrastava o passo pelas margens, e a sombra de seus
olhos não lhe deixava que visse mais os fructos nas arvores ou os
passaros no ar, elle dizia em sua tristeza:--Ah! meus tempos passados!

A gente que o ouvia chorava a ruina do grande chefe; e desde então
passando por aquelles logares repetia suas palavras; d'onde veiu
chamar-se o rio e os campos, Quixeramobim.

Batuireté veiu pelo caminho das garças até áquella serra que tu
vês longe, onde primeiro habitou. Lá no pincaro o velho guerreiro fez
seu ninho alto como o gavião, para encher o resto de seus dias,
conversando com Tupan. Seu filho já dorme embaixo da terra, e elle
ainda na outra lua scismava na porta de sua cabana, esperando a noite
que traz o grande somno. Todos os chefes Pytiguaras, quando acordam á
voz da guerra, vão pedir ao velho que lhes ensine a vencer, porque
nenhum outro guerreiro jamais soube como elle combater. Assim as tribus
não o chamam mais pelo nome, senão o grande sabedor da guerra,
Maranguab.

O chefe Poty vae á serra vêr seu grande avô; mas antes que o dia
morra elle estará de volta na cabana de teu irmão. Teus tu outra
vontade?

--O guerreiro branco te acompanha. Elle quer abraçar o grande chefe dos
Pytiguaras, avô de seu irmão; e dizer ao velho que renasce em seu
neto.

Martim chamou Iracema; e partiram ambos guiados pelo Pytiguara para a
serra, do Maranguab, que se levantava no horisonte. Foram seguindo o
curso do rio até onde n'elle entrava o ribeiro da Pirapora.

A cabana do velho guerreiro estava junto das formosas cascatas, onde
salta o peixe no meio dos borbotões de espuma. As aguas alli são
frescas e macias, como a brisa do mar, que passa entre as palmas dos
coqueiros, nas horas da calma.

Batuireté estava sentado sobre uma das lapas da cascata; e o sol
ardente cahia sobre sua cabeça núa de cabellos e cheia de rugas como o
genipapo. Assim dorme o jaburú na borda do lago.

--Poty é chegado á cabana do grande Maranguab, pae de Jatobá, e
trouxe seu irmão branco para vêr o maior guerreiro das nações.

O velho soabriu as pesadas palpebras, e passou do neto ao extrangeiro um
olhar baço. Depois o peito arquejou e os labios murmuraram:

--Tupan quiz que estes olhos vissem antes de se apagarem o gavião
branco junto da narseja.

O abaeté derrubou a fronte aos peitos, e não falou mais, nem mais se
moveu.

Poty e Martim julgaram que elle dormia e se afastaram com respeito para
não perturbar o repouso de quem tanto obrára na longa vida. Iracema
que se banhava na proxima cachoeira, veiu-lhes ao encontro, trazendo na
folha da taioba favos do mel purissimo.

Discorreram os amigos pelas floridas encostas até que as sombras da
montanha se extenderam pelo valle. Tornaram então ao logar onde tinham
deixado o Maranguab.

O velho ainda lá estava na mesma attitude, com a cabeça derrubada ao
peito e os joelhos encostados á fronte. As formigas subiam pelo seu
corpo; e os tuins adejavam em torno e pousavam-lhe na calva.

Poty poz a mão no craneo do velho e conheceu que era finado: morrera
de velhice. Então o chefe pytiguara entoou o canto da morte; e depois
foi á cabana buscar o camocim, que transbordava com as castanhas do
cajú. Martim contou cinco vezes cinco mãos.

Entanto Iracema colhia na floresta a andiroba, de que foi ungido o corpo
do velho no camocim, onde a mão piedosa do neto o encerrou. O vaso
funebre ficou suspenso ao tecto da cabana.

Depois que plantou ortiga em frente á porta, para deffender contra os
animaes a oca abandonada, Poty despediu-se triste d'aquelles logares, e
tornou com seus companheiros á borda do mar.



XXIII


Quatro luas tinham alumiado o ceu depois que Iracema deixara os campos
do Ipú; e tres depois que ella habitava nas praias do mar a cabana de
seu esposo.

A alegria morava em sua alma. A filha dos sertões era feliz, como a
andorinha, que abandona o ninho de seus paes, e emigra para fabricar
novo ninho no paiz onde começa a estação das flôres. Tambem Iracema
achara ali nas praias do mar um ninho do amor, nova patria para o
coração.

Ella discorria as amenas campinas, como o colibri borboleteando entre as
flôres da acacia. A luz da manhã já a encontrava suspensa ao hombro
do esposo e sorrindo, como a enrediça, que entrelaça o tronco e todas
as manhãs o coroa de nova grinalda.

Martim partia para a caça com Poty. Ella separava-se então d'elle,
para mais sentir o desejo de tornar a elle.

Perto havia uma formosa lagoa no meio de verde campina. Para lá volvia
a selvagem o ligeiro passo. Era a hora do banho da manhã; atirava-se á
agua, e nadava com as garças brancas e as vermelhas jaçanans. Os
guerreiros pytiguaras, que appareciam por aquellas paragens chamavam
essa lagoa da belleza, porque n'ella se banhava Iracema, a mais bella
filha da raça de Tupan.

E desde esse tempo as mães vinham de longe mergulhar suas filhas nas
aguas da Porangaba que tinham a virtude de tornar as virgens formosas e
amadas pelos guerreiros.

Depois do banho Iracema discorria até ás faldas da serra do Maranguab,
onde nascia o ribeiro das marrecas. Ali cresciam na frescura e sombra as
fructas mais saborosas de todo o paiz; d'ellas fazia copiosa provisão,
e esperava, embalando-se nas ramas do maracujá, que Martim tornasse da
caça.

Outras vezes não era a Jererahú que a levava sua vontade, mas do
opposto lado, junto da lagoa da Sapiranga, cujas aguas diziam que
inflammavam os olhos. Cerca d'ahi havia um bosque frondoso de muritys,
que formavam no meio do taboleiro uma grande ilha de formosas palmeiras.
Iracema gostava do Murityapuá, onde o vento suspirava docemente; ali
espolpava ella o vermelho côco, para fabricar a bebida refrigerante,
endossada com o mel da abelha, que os guerreiros amavam durante a maior
calma do dia.

Uma manhã Poty guiou Martim á caça. Caminharam para uma serra, que se
levanta ao lado da outra do Maranguab sua irmã. O alto cabeço se curva
á semelhança do bico adunco da arara; pelo que os guerreiros a
chamaram Aratanha. Elles subiram pela encosta da Guaiuba por onde as
aguas descem para o valle, e foram até o corrego habitado pelas pacas.

Só havia sol no bico da arara quando os caçadores desceram de Pacatuba
ao taboleiro. De longe viram Iracema, que viera esperal-os á margem de
sua lagoa da Porangaba. Caminhou para elles com o passo altivo da garça
que passeia á beira d'agua: por cima da cariola trazia uma cintura das
flores da maniva que era o simbolo da fecundidade. Collar das mesmas
cingia-lhe o collo e ornava os rijos seios palpitantes.

Travou da mão do esposo, e a impoz no regaço:

--Teu sangue já vive no seio de Iracema. Ella será mãe de teu filho!

--Filho, dizes tu? exclamou o christão em jubilo.

Ajoelhou ali e cingindo-o com os braços, beijou o ventre fecundo da
esposa.

Quando se ergueu, Poty falou:

A felicidade do mancebo é a esposa e o amigo, a primeira dá alegria; o
segundo dá força: o guerreiro sem a esposa é como a arvore sem folhas
nem dores; nunca ella verá o fructo: o guerreiro sem amigo é como a
arvore solitaria no meio do campo que o vento embalança; o fructo
d'ella nunca amadura. A felicidade do varão é a prole, que nasce
d'elle e faz seu orgulho; cada guerreiro que sahe de suas veias é mais
um galho que leva seu nome ás nuvens, como a grimpa do cedro. Amado de
Tupan é o guerreiro que tem uma esposa, um amigo e muitos filhos; elle
nada mais deseja senão a morte gloriosa.

Martim unio o peito ao peito de Poty.

--O coração do esposo e do amigo falou por tua boca. O guerreiro
branco é feliz, chefe dos Pytiguaras, senhores das praias do mar; e a
felicidade nasceu para elle na terra das palmeiras, onde reacende a
baunilha, e foi gerada do sangue de tua raça, que tem no rosto a côr
do sol. O guerreiro branco não quer mais outra patria, senão a patria
de seu filho e de seu coração.

Ao romper d'alva Poty partiu para colher as sementes de crajurú que
dão a mais bella tinta vermelha, e a casca do angico de onde sae a cor
negra mais lustrosa. De caminho sua flecha certeira abateu o pato
selvagem que planeava nos ares: e elle arrancou das azas as longas
penas. Subindo ao Mocoribe, rugiu a inubia. A refega que vinha do mar
levou longe o ronco som. O buzio dos pescadores do Trahiry, e a trombeta
dos caçadores do Soipé, responderam.

Martim banhou-se na agua do rio, e passeou na praia para secar o corpo
ao vento e ao sol. Ao seu lado ia Iracema e apanhava o ambar amarello
que o mar arrojava. Todas as noites a esposa perfumava seu corpo e a
alva rede, para que o amor do guerreiro se deleitasse n'ella.

Voltou Poty.



XXIV


Foi costume da raça, filha de Tupan, que o guerreiro trouxesse no corpo
as cores de sua nação. Traçavam em principio negras riscas, sobre o
corpo, á semelhança do pello do coaty de onde procedeu o nome d'essa
arte da pintura guerreira. Depois variaram as cores; e muitos e muitos
guerreiros costumaram escrever os emblemas de seus feitos.

O extrangeiro tendo adoptado a patria da esposa e do amigo, devia passar
por aquella ceremonia, para tornar-se um guerreiro vermelho, filho de
Tupan. N'essa intenção fora Poty prover-se dos objectos necessarios.

Iracema preparou as tintas. O chefe, embebendo as ramas da pluma,
traçou pelo corpo os riscos vermelhos e pretos, que ornavam a grande
nação pytiguara. Depois pintou na fronte uma flecha e disse:

--Assim como a seta traspassa o duro tronco, assim o olhar do guerreiro
penetra n'alma dos povos.

No braço um gavião:

--Assim como o anajê cahe das nuvens, assim cae o braço do guerreiro
sobre o inimigo.

No pé esquerdo a raiz do coqueiro.

--Assim como a pequena raiz agarra na terra o alto coqueiro, o pé firme
do guerreiro sustenta seu corpo.

No pé direito pintou uma aza:

--Assim como a aza da majoy rompe os ares o pé veloz do guerreirro não
tem igual na corrida.

Iracema tomou a rama da penna e pintou uma folha com uma abelha sobre:
sua voz resoou entre sorrisos:

--Assim como a abelha fabrica mel no coração negro do jacarandá, a
doçura está no peito do mais valente guerreiro.

Martim abriu os braços e os labios para receber corpo e alma da esposa,

--Meu irmão é um grande guerreiro da nação pytiguara; elle precisa
de um nome na lingua de sua nação.

--O nome de teu irmão está em seu corpo, onde o poz tua mão.

--Coatiyabo! exclamou Iracema.

--Tu disseste; eu sou o guerreiro pintado; o guerreiro da esposa e do
amigo.

Poty deu a seu irmão o arco e o tacape, que são as armas nobres do
guerreiro. Iracema havia tecido para ella o cocar e a arassoia, ornatos
dos chefes illustres.

A filha de Araken foi buscar á cabana as iguarias do festim e os vinhos
de genipapo e mandioca. Os guerreiros beberam copiosamente e trançaram
as dansas alegres. Durante que volviam em torno dos fogos da alegria,
resoavam as canções.

Poty cantava:

--Como a cobra que tem duas cabeças em um só corpo, assim é a amisade
de Coatyabo e Poty.

Acudiu Iracema.

--Como a ostra que não deixa o rochedo, ainda depois de morta, assim é
Iracema junto a seu esposo.

Os guerreiros disseram:

--Como o jatobá na floresta, assim é o guerreiro Coatyabo entre o
irmão e a esposa: seus ramos abraçam os ramos do ubiratan, e sua
sombra protege a relva humilde.

Os fogos da alegria arderam até que veio a manhã; e com elles durou o
festim dos guerreiros.



XXV


A alegria ainda morou na cabana, todo o tempo que as espigas de milho
levaram a amarellecer.

Uma alvorada, caminhava o christão pela borda do mar. Sua alma estava
cançada.

O colibri sacia-se de mel e perfume; depois adormece em seu branco ninho
de cotão até que volta rio outro anno a lua das flores. Como o
colibri, a alma do guerreiro tambem se satura de felicidade, e carece de
somno e repouso.

A caça e as excursões pelas montanhas em companhia do amigo, as
caricias da terna esposa que o esperavam na volta, o doce carbeto no
copiar da cabana já não acordavam n'elle as emoções d'outrora. Seu
coração resonava.

Iracema brincava pela praia: os olhos d'elle tiravam-se d'ella para se
estenderem pela immensidade dos mares.

Viram umas azas brancas, que adejavam pelos campos azues. Conheceu o
christão que era uma grande igara de muitas velas, como construiam seus
irmãos; e a saudade da patria apertou em seu seio.

Alto ia o sol; e o guerreiro, na praia seguia com os olhos as azas
brancas que fugiam. Debalde a esposa o chamou á cabana, debalde
offereceu a seus olhos, as graças d'ella e os fructos melhores do
campo. Não se moveu o guerreiro, senão quando a vella se sumiu no
horisonte.

Poty voltou da serra, onde pela vez primeira fora só. Tinha deixado a
serenidade na fronte de seu irmão e achava alli a tristeza. Martim
saiu-lhe ao encontro:

--A igara grande do branco tapuia passou no mar. Os olhos de teu irmão
a viram voar para as margens do Mearim, alliados dos Tupinambás,
inimigos de tua e minha raça.

--Poty é senhor de mil arcos; se é teu desejo elle te acompanhará com
seus guerreiros ás margens do Mearim para vencer o Tapuytinga e seu
amigo o traidor Tupinambá.

--Quando for tempo teu irmão te dirá.

Os guerreiros entraram na cabana, onde estava Iracema. A maviosa
canção n'esse dia tinha emudecido nos labios da esposa. Ella tecia
suspirando a franja da rede materna, mais larga e espessa que a rede do
hymeneo.

Poty, que a viu tão occupada, fallou:

--Quando a sabiá canta é o tempo do amor; quando emmudece, fabrica o
ninho para sua prole; é o tempo do trabalho.

--Meu irmão falla como a ran quando annuncia a chuva; mas a sabiá que
faz seu ninho, não sabe se dormirá n'elle.

A voz de Iracema gemia. Seu olhar buscou o esposo. Martim pensava: as
palavras de Iracema passaram por elle, como a brisa pela face lisa da
rocha, sem echo nem rumores.

O sol brilhava sempre sobre as praias do mar, e as areias reflectiam os
raios ardentes; mas nem a luz que vinha do ceu, nem a luz que ia da
terra, espancaram a sombra n'alma do christão. Cada vez o crepusculo
era maior em sua fronte.

Chegou das margens do Acaraú um guerreiro pytiguara, mandado por
Jacaúna a seu irmão Poty. Elle veio seguindo o rastro dos viajantes
até o Trahiry, onde os pescadores o guiaram á cabana.

Poty estava só no copiar; ergueu-se e abaixou a fronte para escutar com
respeito e gravidade as palavras que lhe mandava seu irmão pela boca do
mensageiro.

--O Tapuytinga, que estava no Mearim, veio pelas matas até o principio
da Ibyapaba, onde fez alliança com Irapuam, para combater a nação
pytiguara. Elles vão descer da serra ás margens do rio em que bebem as
garças, e onde tu levantaste a taba de teus guerreiros. Jacaúna te
chama para deffender os campos de nossos paes: e teu povo carece de seu
maior guerreiro.

--Volta ás margens do Acaraú o teu pé não descance emquanto não
pisar o chão da cabana de Jacaúna. Quando ahi estiveres dize ao grande
chefe:--"Teu irmão é chegado á taba de seus guerreiros." E tu não
mentirás.

O mensageiro partiu.

Poty vestiu suas armas, e caminhou para a varzea, guiado pelo passo de
Coatyabo. Elle o encontrou muito além, vagando entre os canaviaes que
bordam as margens de Jacarehy.

--O branco tapuia, está na Ibyapaba para ajudar os Tabajaras a combater
contra Jacaúna. Teu irmão corre a deffender a terra de seus filhos, e
a taba onde dormem os camocins de seus paes. Elle saberá vencer
depressa para voltar á tua presença.

--Teu irmão parte contigo. Nada separa dois guerreiros amigos quando
troa a inubia da guerra.

--Tu és grande, como o mar e bom como o céo.

Os dois amigos abraçaram-se; e seguiram com o rosto para as bandas do
nascente.



XXVI


Caminhando, caminhando, chegaram os guerreiros á margem de um lago, que
havia nos taboleiros.

O christão parou de repente e voltou o rosto para as bandas do mar: a
tristeza sahiu de seu coração e subiu á fronte.

--Meu irmão, disse o chefe, teu pé creou raiz na terra do amor; fica,
Poty voltará breve.

--Teu irmão te acompanha; elle disse, e sua palavra é como a seta de
teu arco; quando soa, é chegada.

--Queres tu que Iracema te acompanhe ás margens do Acaraú?

--Nós vamos combater seus irmãos. A taba dos Pytiguaras não terá
para ella mais que tristeza e dôr. A filha dos Tabajaras deve ficar.

--Que esperas tu então?

--Teu irmão se afflige porque a filha dos Tabajaras pode ficar triste e
abandonar a cabana, sem esperar pela sua volta. Antes de partir elle
queria socegar o espirito da esposa.

Poty reflectia:

--As lagrimas da mulher amollecem o coração do guerreiro, como o
orvalho da manhã amollece a terra.

--Meu irmão é um grande sabedor. O esposo deve partir sem ver Iracema.

O christão avançou. Poty mandou-lhe que esperasse; da alvaja do setas
que Iracema emplumara de pennas vermelhas e preta e suspendera aos
hombros do esposo, tirou uma.

O chefe pytiguar vibrou o arco: a seta rapida atravessou um goiamum que
discorria pelas margens do lago, e só parou onde a pluma não a deixou
mais entrar.

Fincou o guerreiro no chão a flecha, com a presa atravessada e tornou
para Coatyabo.

--Tu podes partir agora. Iracema seguirá teu rastro; chegando aqui
verá tua seta, e obedecerá á tua vontade.

Martim sorriu; e quebrando um ramo do maracujá, a flôr da lembrança,
o entrelaçou na haste da seta, e partiu alfim seguido por Poty.

Breve desappareceram os dois guerreiros entre as arvores. O calor do sol
já tinha seccado seus passos na beira do lago. Iracema inquieta veio
pela varzea seguindo o rastro do esposo até o tabuleiro. As sombras
doces vestiam os campos quando ella chegou á beira do lago.

Seus olhos viram a seta do esposo fincada no chão, o goiamum
trespassado, o ramo partido, e encheram-se de pranto.

--Elle manda que Iracema ande para traz, como o goiamum, e guarde sua
lembrança, como o maracujá guarda sua flôr todo o tempo até morrer.

A filha dos Tabajaras retrahiu os passos lentamente, sem volver o corpo,
nem tirar os olhos da seta de seu esposo, e tornou á cabana. Ahi
sentada á soleira, com a fronte nos joelhos esperou, até que o somno
acalentou a dôr em seu peito.

Apenas alvorou o dia, ella moveu o passo rapido para a lagoa, e chegou
á margem. A flecha lá estava como na vespera: o esposo não tinha
voltado.

Desde então á hora do banho, em vez de buscar a lagoa da belleza, onde
outrora tanto gostara de nadar; caminhava para aquella, que vira seu
esposo abandonal-a. Sentava-se junto á flecha, até que descia a noite,
então recolhia á cabana.

Tão rapida partia de manhã, como lenta voltava á tarde. Os mesmos
guerreiros que a tinham visto alegre nas aguas da Porangaba, agora
encontrando-a triste e só, como a garça viuva, na margem do rio,
chamavam aquelle sitio da Mocejana, a abandonada.

Uma vez que a formosa filha de Araken se lamentava á beira da lagoa da
Mocejana, uma voz estridente gritou seu nome do alto da carnaúba:

--Iracema! Iracema!...

Ergueu ella os olhos e viu entre as folhas da palmeira sua linda
jandaia, que batia as azas, e arrufava as pennas com o prazer de vêl-a.

A lembrança da patria, apagada pelo amor, resurgiu em seu pensamento.
Viu os formosos campos do Ipú; as encostas da serra onde nascera, a
cabana de Araken; e teve saudades; mas ainda n'aquelle instante, não se
arrependeu de os ter abandonado.

Seu labio gaseou em canto. A jandaia abrindo as azas, esvoaçou-lhe em
torno e pousou no hombro. Alongando fagueira o collo, com o negro bico
alisou-lhe os cabellos e beliscou a bocca vermelha como uma pitanga.

Iracema lembrou-se que tinha sido ingrata para a jandaia esquecendo-a no
tempo da felicidade; e agora ella vinha para a consolar no tempo da
desventura.

Essa tarde não voltou só á cabana. Durante o dia seus dedos ágeis
teceram o formoso urú de palha que forrou da felpa macia da monguba
para agasalhar sua companheira e amiga.

Na seguinte alvorada foi a voz da jandaia que a despertou. A linda ave
não deixou mais sua senhora; ou porque depois da longa ausencia não se
fartasse de a vêr, ou porque advinhasse que ella tinha necessidade de
quem a acompanhasse em sua triste solidão.



XXVII


Uma tarde Iracema viu de longe dois guerreiros que avançavam pelas
praias do mar. Seu coração palpitou mais apressado.

Instantes depois ella esquecia nos braços do esposo tantos dias de
saudade, e abandono que passara na solitaria cabana. Outra vez sua
graça encheu os olhos do christão; a alegria voltou a habitar em sua
alma.

Como a secca varzea, com a vinda do nevoeiro, reverdece e matisa-se de
flôres, a formosa filha do sertão com a volta do esposo reanimou-se; e
sua belleza esmaltou-se de meigos e ternos sorrisos.

Martim e seu irmão haviam chegado á taba de Jacaúna, quando soava a
inubia; elles guiaram ao combate os mil arcos de Poty. Ainda d'essa vez
os Tabajaras, apesar da alliança dos brancos tapuias do Mearim, foram
levados de vencida pelos valentes Pytiguaras.

Nunca tão disputada victoria e tão renhida pugna, se pelejou nos
campos que regam o Acaraú e o Camocim; o valor era igual de parte a
parte, e nenhum dos dois povos fora vencido, se o Deus da guerra não
tivesse decidido dar estas plagas á raça do guerreiro branco, alliada
dos Pytiguaras.

Logo apóz a victoria o christão tornára ás praias do mar, onde
construira sua cabana. De novo sentiu em sua alma a sede do amor; e
tremia de pensar que Iracema houvesse partido, deixando ermo aquelle
sitio tão povoado outrora pela felicidade.

O christão amou outra vez a filha do sertão, como da primeira vez,
quando parece que o tempo não poderá exhaurir o coração. Mas breves
sóes bastaram para murchar aquellas flôres de um coração exilado da
patria.

O imbú, filho da serra, se nasceu na varzea porque o vento ou as aves
trouxeram a semente, vingou, achando boa terra e fresca sombra; talvez
um dia copou a verde folhagem e enflorou. Mas basta um sopro do mar,
para tudo murchar. As folhas lastram o chão; as flôres leva-as a
brisa.

Iracema tambem foge dos olhos do esposo, porque já percebeu que esses
olhos tão amados se turbam com a vista d'ella, e em vez de se encherem
de sua belleza como outrora, a despedem de si. Mas seus olhos d'ella
não se cançam de acompanhar á parte e de longe o guerreiro senhor,
que os fez captivos.

Ai d'ella!... Sentiu já o golpe no coração e como a copaiba ferida no
amago, distilla lagrimas em fio.



XXVIII


Uma vez o christão ouviu dentro em sua alma o soluço de Iracema: seus
olhos buscaram em torno e não a viram.

A filha de Araken estava além, entre as verdes moitas de ubaia, sentada
na relva. O pranto desfiava de seu bello semblante; e as gotas que
rolavam a uma e uma cabiam sobre o regaço, onde já palpitava e crescia
o filho do amor. Assim cahem as folhas da arvore viçosa antes que
amadureça o fructo.

--O que espreme as lagrimas do coração de Iracema!

--Chora o cajueiro quando fica tronco secco e triste. Iracema perdeu sua
felicidade, depois que te separaste d'ella.

--Não estou eu junto a ti?

--Teu corpo está aqui; mas tua alma vôa á terra de teus pais, e busca
a virgem branca, que te espera.

Martim doeu-se. Os grandes olhos negros que a indiana pousara n'elle o
tinham ferido no amago.

--O guerreiro branco é teu esposo: elle te pertence.

A formosa tabajara sorriu em sua tristeza:

--Quanto tempo ha que retiraste de Iracema teu espirito? Antes teu passo
te guiava para as frescas serras e os alegres taboleiros; teu pé
gostava de pisar a terra da felicidade e seguir o rastro da esposa.
Agora só buscas as praias ardentes, porque o mar que lá murmura vem
dos campos em que nasceste; e o morro das areias, porque do alto se
avista a igara que passa.

--É a ancia de combater o tupinambá que volve o passo do guerreiro
para as bordas do mar: respondeu o christão.

Iracema continuou:

--Teu labio seccou para a esposa, como a canna quando ardem os grandes
sóes; perde o grato mel e as folhas murchas não podem mais brincar
quando passa a brisa. Agora só fallas ao vento da praia para que elle
leve tua voz á cabana de teus paes.

--A voz do guerreiro branco chama seus irmãos para deffender a cabana de
Iracema e a terra de seu filho, quando o inimigo vier.

A esposa meneou a cabeça: do fructo do genipapo e buscam a flôr do
espinheiro; a fructa é saborosa, mas tem a côr dos Tabajaras; a flôr
tem a alvura das faces da virgem branca. Se cantam as aves, teu ouvido
não gosta já de escutar o canto mavioso da graúna; mas tua alma se
abre para o grito do japim, porque elle tem as pennas douradas como os
cabellos d'aquella que tu amas!

--A tristeza escurece a vista de Iracema e amarga seu labio. Mas a
alegria ha de voltar á alma da esposa, como volta á arvore a verde
rama.

--Quando teu filho deixar o seio de Iracema, ella morrerá, como o abaty
depois que deu seu fructo. Então o guerreiro branco não terá mais
quem o prenda na terra extrangeira.

--Tua voz queima, filha de Araken, como o sopro que vem dos sertões do
Icó, no tempo dos grandes calores. Queres tu abandonar teu esposo?

--Vêem teus olhos lá o formoso jacarandá, que vae subindo ás nuvens;
a seus pés ainda está a secca raiz da murta frondosa, que todos os
invernos se cobria de rama e bagos vermelhos, para abraçar o tronco
irmão. Se ella não morresse, o jacarandá não teria sol para crescer
áquella altura. Iracema é a folha escura que faz sombra em tua alma;
deve cahir, para que a alegria alumie teu seio.

O christão cingio o talhe da formosa indiana e a estreitou ao peito.
Seu labio levou ao labio da esposa um beijo, mas aspero e amargo.



XXIX


Poty voltou do banho.

Segue na areia o rastro de Coatyabo, e sobe ao alto da Jacarécanga. Ahi
encontra o guerreiro em pé no cabeço do monte com os olhos alongados e
os braços estendidos para os largos mares.

Volve o Pytiguara as vistas e descobre uma grande igara, que vem
sulcando os verdes mares, impedida pelo vento:

--É a grande igara dos irmãos de meu irmão que vem buscal-o!

O christão suspirou:

--São os guerreiros brancos inimigos de minha raça, que buscam as
praias da valente nação pytiguara, para a guerra da vingança: elles
foram derrotados com os Tabajaras nas margens do Camocim; agora vem com
os seus amigos os Tupinambás pelo caminho do mar.

--Meu irmão é um grande chefe. Que pensa elle que deve fazer seu
irmão Poty.

--Chama os caçadores de Soipé e os pescadores do Trahiry. Nós iremos
ao seu encontro.

Poty accordou a voz da inubia: e os dois guerreiros partiram ambos para
o Mocoribe. Pouco alem viram os guerreiros da Jaguarassú e Camoropim
que corriam ao grito de guerra. O irmão de Jacaúna os avisou da vinda
do inimigo.

O grande maracatim corre nas ondas, ao longo da terra que se dilata
até ás margens do Parnahyba. A lua começava a crescer quando elle
deixou as aguas do Mearim; ventos contrarios o tinham arrastado para os
altos mares, muito alem do seu destino.

Os guerreiros pytiguaras, para não espantar o inimigo se occultam entre
os cajueiros; e vão seguindo pela praia a grande igara: durante o dia
avultam as brancas velas; de noite os fogos atravessam a negrura do mar,
como vaga lumes perdidos na mata.

Muitos sóes caminharam assim. Passam alem do Camocim, e afinal pisam as
lindas ribeiras da enseada dos papagaios.

Poty manda um guerreiro ao grande Jacaúna e se prepara para o combate.
Martim, que subiu ao morro de areia, conhece que o maracatim vem
recolher no seio da terra; e avisa seu irmão.

O sol já nasceu; os guerreiros guaraciabas e os tupinambás seus
amigos, correm sobre as ondas nas ligeiras pirogas e pojam na praia.
Formam o grande arco, e avançam como o cardume do peixe quando corta a
correnteza do rio.

No centro estão os guerreiros do fogo, que trazem o raio; nas azas os
guerreiros do Mearim que brandem o tacape.

Mas nação alguma jamais vibrou o arco certeiro, como a grande nação
pytiguara; e Poty é o maior chefe, de quantos chefes empunharam a
inubia guerreira. Ao seu lado caminha o irmão, tão grande chefe como
elle, e sabedor das manhas da raça branca dos cabellos do sol.

Durante a noite os Pytiguaras fincam na praia a forte caiçara de
espinho: e levantam contra ella um muro de areia, onde o raio esfria e
se apaga. Ahi esperam o inimigo. Martim manda que outros guerreiros
subam á copa dos mais altos coqueiros; alli defendidos pelas largas
palmas, esperam o momento do combate.

A setta de Poty foi a primeira que partiu, e o chefe dos guaraciabas o
primeiro heroe que mordeu o pó da terra extrangeira. Rugem os trovões
na dextra dos guerreiros brancos; mas os raios que desferem mergulham-se
na areia, ou se perdem nos ares.

As settas dos pytiguaras, já cahem do céo, já voam da terra, e se
embebem todas no seio do inimigo. Cada guerreiro tomba crivado de muitas
flechas, como a presa que as piranhas disputam nas aguas do lago.

Os inimigos embarcam outra vez nas pirogas, e voltam ao maracatim em
busca dos grandes e pesados trovões, que um homem só, nem dois, podem
manejar.

Quando voltam, o chefe dos pescadores, que corre nas aguas do mar como o
veloz camoropim, de que tomou o nome, se arroja nas ondas, e mergulha.
Ainda a espuma não se apagára, e já a piroga inimiga se afundou,
parecendo que a tragára uma baleia.

Veiu a noite, que trouxe o repouso.

Ao romper d'alva, o maracatim fugia no horisonte para as margens do
Mearim. Jacaúna chegou, não mais para o combate e sim para o festim da
victoria.

N'essa hora em que o canto guerreiro dos pytiguaras celebrava a derrota
dos guaraciabas, o primeiro filho que o sangue da raça branca gerara
n'essa terra da liberdade, via a luz nos campos da Porangaba.



XXX


Iracema cuidou que o seio se lhe rompia: e buscou a margem do rio, onde
crescia o coqueiro.

Estreitou-se com a haste da palmeira. A dôr lacerou suas entranhas;
porém logo o choro infantil inundou todo o seu ser de jubilo.

A joven mãe, orgulhosa de tanta ventura, tomou o tenro filho nos
braços e com elle se arrojou ás aguas limpidas do rio. Depois
suspendeu-o á teta mimosa; seus olhos então o envolviam de tristeza e
amor.

--Tu és Moacyr, o nascido de meu soffrimento.

A ará, pousada no olho do coqueiro, repetiu Moacyr; e desde então a
ave amiga em seu canto unia ao nome da mãe, o nome do filho.

O innocente dormia; Iracema suspirava.

--A jaty fabrica o mel no tronco cheiroso do assasfraz; toda a lua das
flores vôa de ramo em ramo, colhendo o suco para encher os favos; mas
ella não prova sua doçura, porque a irara devora em uma noite toda a
colmeia. Tua mãe tambem, filho de minha angustia, não beberá em teus
labios o mel do sorriso.

A joven mãe passou aos hombros a larga faxa de macio algodão, que
fabricara para trazer o filho sempre unido ao flanco; e seguiu pela
areia o rastro do esposo, que ha tres sóes partira. Ella caminhava
docemente para não despertar a creancinha adormecida como o passarinho
sob a aza materna.

Quando chegou junto ao grande morro das areias, viu que o rastro de
Martim e Poty seguia ao longo da praia; e adivinhou que elles eram
partidos para a guerra. Seu coração suspirou; mas seus olhos sêccos
buscaram o semblante do filho.

Volve o rosto para o Mocoribe.

--Tu és o morro da alegria; mas para Iracema tu não tens senão
tristeza.

Tornando, a recente mãe pousou a creança sempre dormida na rêde de
seu pae, viuva e solitaria em meio da cabana; ella deitou-se ao chão,
na esteira onde repousava, desde que os braços do esposo se não tinham
aberto mais para recebel-a.

A luz da manhã entrava pela cabana, e Iracema viu entrar com ella a
sombra de um guerreiro.

Cauby estava em pé na porta.

A esposa de Martim ergueu-se de um impeto e saltou ávante para proteger
o filho. Seu irmão levantou da rêde a ella uns olhos tristes, e falou
com a voz ainda mais triste:

--Não foi a vingança que arrancou o guerreiro Cauby aos campos dos
Tabajaras; elle já perdoou. Foi a vontade de ver Iracema, que trouxe
comsigo toda a sua alegria.

--Então bemvindo seja o guerreiro Cauby na cabana de seu irmão:
respondeu a esposa abraçando-o.

--O nascido de teu seio dorme n'essa rede; os olhos de Cauby gostariam
de vêl-o.

Iracema abriu a franja de pennas; e mostrou o lindo semblante da
creança. Cauby depois que o contemplou por muito tempo, entre risos,
disse:

--Elle chupou tua alma.

E beijou nos olhos da joven mãe, a imagem da creança, que não se
animava tocar com receio de offender.

A voz tremula da filha resoou:

--Ainda vive Araken sobre a terra?

--Pena ainda; depois que tu o deixaste sua cabeça, vergou para o peito
e não se ergueu mais.

--Dize-lhe que Iracema é morta já, para que elle se console.

A irmã de Cauby preparou a refeição para o guerreiro, e armou no
copiar a rêde da hospitalidade para que elle repousasse das fadigas da
jornada. Quando o viajante satisfez o appetite, ergueu-se com estas
palavras:

--Dize onde está teu esposo e meu irmão, para que o guerreiro Cauby
lhe dê o abraço da amizade.

Os labios suspirosos da misera esposa moveram-se como as petalas do
cacto que um sopro amarrota, e ficaram mudas. Mas as lagrimas debulharam
dos olhos e cahiram em bagas.

O rosto de Cauby annuviou-se:

--Teu irmão pensava que a tristeza ficara nos campos que abandonaste;
porque comtigo trouxeste todo o riso dos que te amavam!

Iracema seccou os olhos:

--O esposo de Iracema partiu com o guerreiro Poty para as praias do
Acaraú. Antes que tres sóes tenham allumiado a terra elle voltará e
com elle a alegria á alma da esposa.

--O guerreiro Cauby o espera para saber o que elle fez do sorriso que
morava em teus labios.

A voz do tabajara enrouquecera; seu passo inquieto volveu a esmo pela
cabana.



XXXI


Iracema cantava docemente, embalando a rêde para acalentar o filho.

A areia da praia crepitou sob o pé forte e rijo do guerreiro tabajara,
que vinha das bordas do mar depois da abundante pesca.

A joven mãe cruzou as franjas da rede, para que as moscas não
inquietassem o filho acalentado, e foi ao encontro do irmão:

--Cauby vae tornar ás montanhas dos Tabajaras! disse ella com brandura.

O guerreiro annuviou-se:

--Tu despedes teu irmão da cabana para que elle não veja a tristeza
que a enche.

--Araken teve muitos filhos em sua mocidade; uns a guerra levou e
morreram como valentes; outros escolheram uma esposa, e geraram por sua
vez numerosa prole: filhos de sua velhice, Araken só teve dois. Iracema
é para elle como a rôla que o caçador tirou do ninho. Só resta o
guerreiro Cauby ao velho Pagé, para suster seu corpo vergado, e guiar
seu passo tremulo.

--Cauby partirá quando a sombra deixar o rosto de Iracema.

--Como vive a estrella da noite, vive Iracema em sua tristeza. Só os
olhos do esposo podem apagar a sombra em seu rosto. Parte, para que
elles não se turvem com tua vista.

--Teu irmão parte para agradar tua vontade; mas elle voltará todas as
vezes que o cajueiro florescer para sentir em seu coração o filho de
teu ventre.

Entrou na cabana. Iracema tirou da rêde a creança; e ambos, mãe e
filho, palpitaram sobre o peito do guerreiro tabajara. Depois Cauby
passou a porta, e sumio-se entre as arvores.

Iracema, arrastando o passo tremulo, o acompanhou de longe até que o
perdeu de vista na orla da mata. Ahi parou: quando o grito da jandaia de
envolta com o choro infantil, a chamou á cabana, a areia fria onde
esteve sentada, guardou o segredo do pranto que em bebera.

A joven mãe suspendeu o filho á teta; mas a bocca infantil não
emmudeceu. O leite escasso não apojava o peito.

O sangue da infeliz diluia-se todo nas lagrimas incessantes que não
estancavam dos olhos; nenhum chegava aos seios, onde se forma o primeiro
licor da vida.

Ella dissolveu a alva cariman e preparou ao fogo o mingáo para nutrir o
filho. Quando o sol dourou a crista dos montes, partiu para a mata,
levando ao collo a creança adormecida.

Na espessura do bosque está o leito da irara ausente; os tenros
caxorrinhos grunhem enrolando-se uns sobre os outros. A formosa tabajara
approxima-se de manso. Prepara para o filho um berço da macia rama do
maracujá; e senta-se perto.

Põe no regaço um por um os filhos da irara; e lhes abandona os seios
mimosos, cuja teta rubra como a pitanga ungio do mel da abelha. Os
caxorrinhos famintos precipitam-se gulosos e sugam os peitos avaros de
leite.

Iracema curte dôr, como nunca sentiu; parece que lhe exhaurem a vida;
mas os seios vão-se entumecendo; apojaram afinal, e o leite, ainda
rubro do sangue, de que se formou, esguicha.

A feliz mãe arroja de si os caxorrinhos, e cheia de jubilo mata a fome
ao filho. Elle é agora duas vezes filho de sua dôr, nascido d'ella e
tambem nutrido.

A filha de Araken sentiu afinal que suas veias se estancavam; e comtudo
o labio amargo de tristeza recusava o alimento que devia restaurar-lhe
as forças. O gemido e o suspiro tinham crestado com o sorriso o sabor
em sua bocca formosa.



XXXII


Descamba o sol.

Japy sae do mato e corre para a porta da cabana.

Iracema sentada com o filho no collo, banha-se nos raios do sol e
sente o frio arripiar-lhe o corpo. Vendo o animal, fiel mensageiro do
esposo, a esperança reanimou seu coração; quiz erguer-se para ir ao
encontro de seu guerreiro e senhor, mas os membros debeis se recusaram
á sua vontade.

Cahiu desfallecida contra o esteio. Japy lambia-lhe a mão desfallecida,
e pulava travesso para fazer sorrir a creança, soltando uns doces
latidos de prazer. Por vezes, afastou-se para correr até á orla da
mata, e latir chamando o senhor, logo tornava á cabana para festejar a
mãe e o filho.

Por esse tempo pisava Martim os campos amarellos do Tauape: seu irmão
Poty, o inseparavel, caminhava a seu lado.

Oito luas havia que elle deixara as praias da Jacarecanga. Depois de
vencidos os Guaraciabas na bahia dos papagaios, o guerreiro christão
quiz partir para as margens do Mearim, onde habitava o barbaro alliado
dos Tupinambás.

Poty e seus guerreiros o acompanharam. Depois que transpuzeram o braço
corrente do mar que vem da serra de Tauatinga e banha as varzeas onde se
pesca o piau, viram emfim as praias do Mearim, e a velha taba do barbaro
tapuia.

A raça dos cabellos do sol cada vez ganhava mais a amizade dos
Tupinambás: crescia o numero dos guerreiros brancos, que já tinham
levantado na ilha a grande itaoca, para despedir o raio.

Quando Martim viu o que desejava, tornou aos campos da Porangaba, que
elle agora trilha. Já ouve o ronco do mar nas praias do Mocoribe; já
lhe bafeja o rôsto o sopro vivo das vagas do oceano.

Quanto mais seu passo o aproxima da cabana, mais lento se torna e
pesado. Tem medo de chegar: e sente que sua alma vae soffrer, quando os
olhos tristes e maguados da esposa, entrarem n'ella.

Ha muito que a palavra desertou seu labio secco; o amigo respeita este
silencio, que elle bem entende. É o silencio do rio quando passa nos
logares profundos e sombrios.

Tanto que os dois guerreiros tocaram as margens do rio, ouviram o latir
do cão, que os chamava, e o grito da ará, que se lamentava. Eram mui
proximos á cabana, apenas occulta por uma lingua de mato. O christão
parou calcando a mão no peito para soffrear o coração, que saltava
como o poraquê.

--O latido de Japy é de alegria, disse o chefe.

--Porque chegou; mas a voz da jandaia é de tristeza. Achará o
guerreiro ausente a paz no seio da esposa solitaria, ou terá a saudado
matado em suas entranhas o fructo do amor?

O christão moveu o passo vacillante. De repente, entre os ramos das
arvores, seus olhos viram sentada, á porta da cabana, Iracema, com o
filho no regaço e o cão a brincar. Seu coração o arrastou de um
impeto, e toda a alma lhe estalou nos labios.--Iracema!...

A triste esposa e mãe sôabrio os olhos, ouvindo a voz amada. Com
esforço grande, poude erguer o filho nos braços, e apresental-o ao
pae, que o olhava extactico em seu amor.

--Recebe o filho de teu sangue. Vieste a tempo; meus seios ingratos já
não tinham alimento para dar-lhe!

Pousando a creança nos braços paternos, a desventurada mãe
desfalleceu como a jetyca se lhe arrancam o bulbo. O esposo vio então
como a dôr tinha murchado seu bello corpo; mas a formosura ainda morava
n'ella, como o perfume na flôr cabida do manacá.

Iracema não se ergueu mais da rêde onde a pousaram os afflictos
braços de Martim. O esposo, em quem o amor renascera com o jubilo
paterno, a cercou de caricias que encheram sua alma de alegria, mas não
a poderam tornar á vida; o estame de sua flôr se rompera.

--Enterra o corpo de tua esposa ao pé do coqueiro que tu amaste. Quando
o vento do mar soprar nas folhas, Iracema pensará que é tua voz que
fala entro seus cabellos.

O labio emmudeceu para sempre; o ultimo lampejo despediu-se dos olhos
baços.

Poty amparou o irmão em sua grande dôr. Martim, sentiu que um amigo
verdadeiro é precioso na desventura; é como o outeiro que abriga do
vendaval o tronco forte e robusto do ubiratan, quando o broca o copim.

O camocim recebeu o corpo de Iracema, embebido de resinas odoriferas; e
foi enterrado ao pé do coqueiro, á borda do rio. Martim quebrou um
ramo de murta, a folha da tristeza, e deitou-o no jazigo de sua esposa.
A jandaia pousada no olho da palmeira repelia tristemente:--Iracema!

Desde então os guerreiros pytiguaras que passavam perto da cabana
abandonada e ouviam resoar a voz plangente da ave amiga, se afastavam,
com a alma cheia de tristeza, do coqueiro onde cantava a jandaia. E foi
assim que veiu a chamar-se Ceará o rio onde crescia o coqueiro, e os
campos onde serpeia o rio.



XXXIII


O cajueiro floresceu quatro vezes depois que Martim partiu das praias do
Ceará, levando no fragil barco o filho e o cão fiel. A jandaia não
quiz deixar a terra onde repousava sua amiga e senhora.

O primeiro cearense, ainda no berço, emigrava da terra da patria. Seria
a predestinação de uma raça?

Poty com os seus guerreiros esperava na margem do rio. O christão lhe
promettera voltar; todas as manhãs subia ao morro das areias e volvia
os olhos ao mar a vêr se branqueava ao longe a vela amiga.

Afinal volta Martim de novo ás terras, que foram de sua felicidade, e
são agora de amarga saudade. Quando seu pé sentiu o calor das brancas
areias, derramou-se por todo o seu ser um fogo ardente, que lhe
requeimou o coração: era o fogo das recordações accesas.

A chamma só applacou quando elle tocou a terra onde dormia sua esposa;
porque n'esse instante seu coração transudou, como o tronco do jetahy
nos ardentes calores, e refrescou sua pena de lagrimas abundantes.

Muitos guerreiros de sua raça acompanharam o chefe branco, para fundar
com elle a mayri dos christãos. Veio tambem um sacerdote de sua
religião, de negras vestes, para plantar a cruz na terra selvagem.

Poty foi o primeiro que ajoelhou aos pés do sagrado lenho: não soffria
elle que nada mais o separasse de seu irmão branco; por isso quiz que
tivessem ambos um só Deus, como tinham um só coração.

Elle recebeu com o baptismo o nome do santo, cujo era o dia; e o do rei,
a quem ia servir, e sobre os dois o seu, na lingua dos novos irmãos.
Sua fama cresceu e ainda hoje é o orgulho da terra, onde elle viu a luz
primeiro.

A mayri que Martim erguera á margem do rio, nas praias do Ceará,
medrou. A palavra do Deus verdadeiro germinou na terra selvagem; e o
bronze sagrados resoou nos valles onde rugia o maracá.

Jacaúna veio habitar nos campos da Porangaba para estar perto de seu
amigo branco; Camarão assentou a taba de seus guerreiros nas margens da
Mocejana.

Tempo depois, quando veiu Albuquerque, o grande chefe dos guerreiros
brancos, Martim e Camarão partiram para as margens do Mearim a castigar
o feroz tupinambá e expulsar o branco tapuia.

Era sempre com emoção que o esposo de Iracema revia as plagas onde
fora tão feliz, e as verdes folhas a cuja sombra dormia a formosa
tabajara.

Muitas vezes ia sentar-se n'aquellas doces areias, para scismar e
acalentar no peito a agra saudade.

As jandaias cantavam ainda no olho do coqueiro; mas não repetiam já o
mavioso nome de Iracema.

Tudo passa sobre a terra.



FIM



NOTAS


Pag. 10.--_Argumento historico._--Em 1603, Pero Coelho, homem nobre da
Parahyba, partiu como capitão-mór de descoberta, levando uma força de
80 colonos e 800 indios. Chegou á foz do Jaguaribe e ahi fundou o
povoado que teve nome de _Nova-Lisboa_.

Foi esse o primeiro estabelecimento colonial do Ceará.

Como Pero Coelho se visse abandonado dos socios, mandaram-lhe João
Soromenho com soccorros. Esse official, auctorisado a fazer captivos
para indemnisação das despezas, não respeitou os proprios indios do
Jaguaribe, amigos dos Portuguezes.

Tal foi a causa da ruina do nascente povoado. Retiraram-se os colonos,
pelas hostilidades dos indigenas; e Pero Coelho ficou ao desamparo,
obrigado a voltar a Parahyba por terra, com sua mulher e filhos
pequenos.

Na primeira expedição foi do Rio-Grande do Norte um moço de nome
Martim Soares Moreno, que se ligou de amizade com Jacaúna, chefe dos
indios do littoral e seu irmão Poty. Em 1608 por ordem de D. Diogo
Menezes voltou a dar principio á regular colonisação d'aquella
capitania: o que levou a effeito fundando o presidio de Nossa Senhora do
Amparo em 1611.

Jacaúna, que habitava as margens do Acaracú, veiu estabelecer-se com
sua tribu nas proximidades do recente povoado, para o proteger contra os
indios do interior e os francezes que infestavam a costa.

Poty recebeu no baptismo o nome de Antonio Fillippe Camarão, que
illustrou na guerra hollandeza. Seus serviços foram remunerados com o
foro de fidalgo, a commenda de Christo e o cargo de capitão-mór dos
indios.

Martim Soares Moreno chegou a mestre de campo e foi um dos excedentes
cabos portuguezes que libertaram o Brazil da invasão hollandeza. O
Ceará deve honrar sua memoria como de um varão prestante e seu
verdadeiro fundador, pois que o primeiro povoado á foz do rio Jaguaribe
foi apenas uma tentativa frustrada.

Este é o argumento historico da lenda; em notas especiaes se indicarão
alguns outros subsidios recebidos dos chronistas do tempo.

Ha uma questão historica, relativa a este assumpto; fallo da patria do
Camarão, que um escriptor pernambucano quiz pôr em duvida, tirando a
gloria ao Ceará para a dar á sua provincia.

Este ponto aliás somente contestado nos tempos modernos pelo Sr.
commendador Mello em suas _Biographias_, me parece sufficientemente
elucidado já, depois da erudita carta do Sr. Basilio Quaresma Torreão,
publicada no Mercantil n.° 26 de 26 de Janeiro de 1860, 2.ª pagina.

Entretanto farei sempre uma observação.

Em primeiro logar a tradicção oral é uma fonte importante da
historia, e ás vezes a mais pura e verdadeira. Ora na provincia de
Ceará em Sobral não só se referiam entre gente do povo noticias do
Camarão, como existia lima velha mulher que se dizia d'elle sobrinha.
Essa tradicção foi colhida por diversos escriptores, entre elles o
conspicuo auctor da _Corographia Brasilica_.

O auctor do Valoroso Lucideno é dos antigos o unico que positivamente
affirma ser Camarão filho de Pernambuco; mas além de encontrar essa
asserção a versão de outros escriptores de nota, accresce que Berredo
explica perfeitamente o dito d'aquelle escriptor, quando falla da
expedição de Pero Coelho de Souza a Jaguaribe, _sitio d'aquelle tempo
e tambem no de hoje da jurisdicção de Pernambuco_.

Outro ponto é necessario esclarecer para que não me censurem de infiel
á verdade historica. É a nação de Jacaúna e Camarão que alguns
pretendem ter sido a tabajara. Ha n'isso manifesto engano.

Em todas as chronicas se falla das tribus de Jacaúna e Camarão, como
habitantes do littoral, e tanto que auxiliam a fundação do Ceará,
como já haviam auxiliado a da Nova-Lisboa em Jaguaribe. Ora a nação,
que habitava o littoral entre o Parnahyba e o Jaguaribe ou Rio-Grande,
era a dos Pytiguaras, como attesta Gabriel Soares. Os Tabajaras.
habitavam a serra de Ibyapa, e portanto o interior.

Como chefes dos Tabajaras são mencionados Mel Redondo no Ceará e Grão
Deabo em Piauhy. Esses chefes foram sempre inimigos irreconciliaveis e
rancorosos dos portuguezes, e alliados dos francezes do Maranhão, que
penetraram até Ibyapaba. Jacaúna e Camarão são conhecidos pela sua
alliança firme com os portuguezes.

Mas o que solve a questão é o seguinte texto. Lê-se nas _memorias
diarias_ da guerra brasilica do conde de Pernambuco:--1834, Janeiro, 18:
"Pelo bom procedimento com que havia servido A. Ph. Camarão o fez
El-rei capitão-mór de todos os indios não somente de sua nação, que
era _Pytiguar_, mas das outras residentes em varias aldeias."

Esta auctoridade, além de contemporanea, testemunhal, não pode ser
recusada, especialmente quando se exprime tão positiva e
intencionalmente a respeito do ponto duvidoso.

Pag. 19.--_Onde canta a jandaia._--Diz a tradicção que Ceará
significa na lingua indigena--_canto de jandaia_.

Ayres do Casal, Corographia Brasilica, refere essa tradicção. O
senador Pompêo, em seu excellente diccionario topographico, menciona
uma opinião, nova para mim, que pretende vir _Siará_ da palavra
_saia_-caça, em virtude da abundancia de caça que se encontrava nas
margens do rio. Essa etymologia é forçada. Para designar quantidade,
usava a lingua tupy da desinencia _iba_; a desinencia _ára_ junta aos
verbos designa o sujeito que exercita a acção actual; junta aos nomes
o que tem actualmente o objecto--exp. _Coatyara_--o que
pinta.--_Jussara_--o que tem espinho.

Ceará é nome composto de _cemo_--cantar forte, clamar, e _ará_,
pequena arara ou periquito. Essa é a etymologia verdadeira, e não só
conforme com a tradicção, mas com as regras da lingua.

Pag. 20.--I. _Giráu._--Na jangada é uma especie de estrado onde
accommodam os passageiros: e ás vezes o cobrem de palha. Em geral é
qualquer estiva elevada do solo e suspensa em forquilhas.

II. _Iracema._--Em guarany significa labios de mel--de _ira_--mel e
_tembe_ labios. _Tembe_ na composição altera-se em _ceme_, como na
palavra _ceme-yba_.

III. _Graúna_ é o passaro conhecido de cor negra luzidia.--Seu nome
vem por corrupção de _guira_ passaro e _una_, abreviação de _pixuna_
de preto.

IV. _Jaty._--Pequena abelha que fabrica delicioso mel.

Pag. 21.--I. _Ipú._--Chamam ainda hoje no Ceará certa qualidade de
terra muito fertil, que fórma grandes corôas ou ilhas no meio dos
taboleiros e sertões, e é de preferencia procurada para a cultura.
D'ahi se deriva o nome d'essa comarca da provincia.

II. _Tabajaras._--Senhores das aldeias--de
_taba_--aldeia--e--_jara_--senhor. Essa nação dominava o interior da
provincia, especialmente a Serra da _Ibyapaba_.

III. _Oitycica._--Arvore frondosa, apreciada pela deliciosa frescura que
derrama sua sombra.

IV. _Gará._--Ave palludal, muito conhecida pelo nome de _guará_. Penso
eu que esse nome anda corrompido de sua verdadeira origem, que é--_ig_,
agua e _ará_, arara; arara d'agua, pela bella côr vermelha.

V. _Ará._--periquito. Os indigenas como augmentativo usavam repetir a
ultima sillaba da palavra e ás vezes toda a palavra--como _murémuré_.
_Muré_, frauta--_murémuré_, grande frauta. _Arára_ vinha a ser pois
o augmentativo de _ará_, e significaria a especie maior do genero.

VI. _Urú._--Cestinho que servia de cofre ás selvagens para guardar
seus objectos de mais preço e estimação.

VII. _Crautá._--Bromelia vulgar, de que se tiram fibras tão ou mais
finas que as do linho.

VIII. _Jussara._--Palmeira de grandes espinhos, das quaes se servem
ainda hoje para dividir os fios da renda.

Pag. 22.--I. _Uiraçaba._--aljava--de _uira_ seta e a
desinencia--_caba_--cousa propria.

II. _Quebrar a flecha._--Era entre os indigenas a maneira symbolica de
estabelecerem a paz entre as diversas tribus, ou mesmo entre dois
guerreiros inimigos. Desde já advertimos que não se extranhe a maneira
porque o extrangeiro se exprime falando com os selvagens: ao seu
perfeito conhecimento dos usos e lingua dos indigenas, e sobretudo a
ter-se conformado com elles a ponto de deixar os trajos europeus e
pintar-se, deveu Martim Soares Moreno a influencia que adquiriu entre os
indios do Ceará.

Pag. 23.--I. _Ibyapaba._--Grande serra que se prolonga ao norte da
provincia e a extrema com Piauhy. Significa terra aparada. O Dr. Martins
em seu _glossario_ lhe attribue outra etymologia. _Iby_-terra--e
_pabe_--tudo. A primeira porém tem a auctoridade de Vieira.

II. _Igaçaba._--de _ig_--agua e a desinencia _çaba_--cousa propria.

Pag. 24.--I. _Vieste._--A saudação usual da hospitalidade era
esta:--_Erc ioubé_--tu vieste? _pa-aiotu_, vim sim. _Auge-be_, bem
dito. Veja-se Lery, pag. 286.

II. _Jaguaribe._--maior rio da provincia; tirou o nome da quantidade de
onças que povoavam suas margens. _Jaguar_--onça--_iba_--desinencia
para exprimir copia, abundancia.

III. _Martim._--Da origem latina de seu nome, procedente de Marte, deduz
o extrangeiro a significação que lhe dá.

IV. _Pytiguaras._--Grande nação de indios que habitava o littoral da
provincia e estendia-se desde o Parnahyba até o Rio Grande do Norte. A
orthographia do nome anda mui viciada nas differentes versões, pelo que
se tornou difficil conhecer a etymologia.

_Iby_ significava terra; _iby-tira_ veiu a significar serra, ou terra
alta. Aos valles chamavam os indigenas _iby-tira-cua_--cintura das
montanhas. A desinencia _jara_ senhor, accrescentada, formou a palavra
_Ibyticuara_--que por corrupção deu _Pytiguara_--senhores dos valles.

V. _Mau espirito da floresta._--Os indigenas chamavam a esses espiritos
_caa-pora_, habitantes da mata, d'onde por corrupção veiu a palavra
caipora, introduzida na lingua portugueza em sentido figurado.

Pag. 25.--I. _As mais bellas mulheres._--Este costume da hospitalidade
americana é attestado pelos chronistas. A elle se attribue o bello
rasgo de virtude de Anchieta, que para fortalecer a sua castidade,
compunha nas praias de Iperoig o poema da _Virgindade de Maria_, cujos
versos escrevia nas areias humidas, para melhor os polir.

II. _Jurema._--Arvore mean, de folhagem espessa; dá um fructo
excessivamente amargo, de cheiro acre, do qual juntamente com as folhas
e outros ingredientes preparavam os selvagens uma bebida, que tinha o
effeito do hatchis, de produzir sonhos tão vivos e intensos, que a
pessoa fruia n'elles melhor do que na realidade. A fabricação d'esse
licor era um segredo, explorado pelos Pagés, em proveito de sua
influencia. _Jurema_ é composto de _ju_-espinho e _rema_ cheiro
desagradavel.

Pag. 26.--I. _Irapuam._--de _ira_-mel e _apuam_ redondo: é o nome dado
a uma abelha virulenta e brava, por causa da forma redonda de sua
colmeia. Por corrupção reduziu-se esse nome actualmente a _arapuá_. O
guerreiro de que se trata aqui é o celebre Mel-redondo, assim chamado
pelos chronistas do tempo, que traduziam seu nome ao pé da lettra.
Mel-redondo, chefe dos Tabajaras da serra Ibyapaba, foi encarniçado
inimigo dos portuguezes, e amigo dos francezes.

II. _Acaracú._--O nome do rio é _Acaracú_--de _acará_
garça--_co_--buraco, toca, ninho, e _y_--som dubio entre _i_ e _u_, que
os portuguezes, ora exprimiam de um, ora de outro modo, significando
_agua_. Rio do ninho das garças é pois a traducção de _Acaracú_; e
o rio das garças a de _Acaraú_. Usou-se aqui da liberdade horaciana
para evitar em uma obra litteraria, obra de gosto e artistica, um som
aspero e ingrato. De resto quem sabe se o nome primitivo não foi
realmente _Acaraú_, que se alterou como tantos outros, pela
introducção da consoante?

III. _Estrella morta._--A estrella polar, por causa da sua immobilidade;
orientavam-se por ella os selvagens durante a noite.

IV. _Boicininga._--é a cobra cascavel--de _boia_, cobra e _cininga_
chocalho.

V. _Oitibó._--é uma ave nocturna, especie de coruja.

Pag. 27.--I. _Espiritos da treva._--A esses espiritos chamavam os
selvagens _curupira_, meninos máus--de _curumim_, menino, e _pira_
máu.

II. _Boré._--frauta de bambú,--o mesmo que muré.

III. _Ocara._--praça circular que ficava no centro da taba, cercada
pela estacada, e para a qual abriam todas as casas. Composto de _oca_,
casa e a desinencia _ara_, que tem; aquillo que tem a casa, ou onde a
casa está.

IV. _Potyuara._--comedor de camarão; de _poty_--e _uara_. Nome que por
desprêso davam os inimigos aos Pytiguaras, que habitavam as praias e
viviam em grande parte de pesca.

Este nome dão alguns escriptores aos Pytiguaras. porque o receberam de
seus inimigos.

Pag. 28.--I. _Pocema._--grande alarido que faziam os selvagens nas
occasiões solemnes, como em começo de batalha, ou nas expansões da
alegria; é palavra adoptada já na lingua portugueza e inserida no
diccionario de Moraes. Vem de _po_-mão e _cemo_ clamar; clamor das
mãos, porque os selvagens acompanhavam o vozear com o bater das palmas
e das armas.

II. _Andira._--morcego: é em allusão a seu nome que Irapuam dirige
logo palavras de despreso ao velho guerreiro.

Pag. 29.--_Aracaty._--Significava este nome bom tempo de _ara_ e
_catú_. Os selvagens do sertão assim chamavam as brisas do mar que
sopram regularmente ao cahir da tarde, e correndo pelo valle do
Jaguaribe se derramam pelo interior e refrigeram da calma abrasadora do
verão. D'ahi resultou chamar-se _Aracaty_ o logar de onde vinha a
monção. Ainda hoje no Icó o nome é conservado á brisa da tarde, que
sopra do mar.

Pag. 32.--I. _Afflar._--Sobre este verbo que introduzi na lingua
portugueza do latim _afflo_, já escrevi o que entendi em nota de uma
segunda edição da _Diva_ que brevemente ha de vir á luz.

II. _Anhanga._--Davam os indigenas este nome ao espirito do mal;
compõe-se de _anho_ atrito, só e _anga_ alma. Espirito só, privado do
corpo, phantasma.

Pag. 36.--I. _Camocim._--vaso onde encerravam os indigenas os corpos dos
mortos e lhes servia de tumulo; outros dizem _camotim_, e talvez com
melhor orthographia, porque se não me engano o nome corrupção da
phrase _co_ buraco, _ambyra_ defuncto, _anhotim_ enterrar--buraco para
enterrar o defuncto--_c'am'otim_. O nome dava-se tambem a qualquer pote.

II. _Guabiroba._--Deve ler-se _Andiroba_. Arvore que dá um azeite
amargo.

III. _Cabellos do sol._--Em tupy _guaraciaba_. Assim chamavam aos
europeus que tinham os cabellos louros.

Pag. 38.--I. _Moquem._--Do verbo _mocaém_ assar na labareda. Era a
maneira por que os indigenas conservavam a caça para não apodrecer,
quando a levavam em viagem. Nas cabanas a tinham ao fumeiro.

II. _Senhor do caminho._--assim chamavam os indigenas ao guia--de
_py_, caminho e _guara_, senhor.

Pag. 39.--I. _O dia vae ficar triste._--Os tupys chamavam a tarde
_carúca_, segundo o diccionario: Segundo Lery, _che caruc
acy_, significa--"estou triste." Qual d'estes era o sentido figurado da
palavra? Tiraram a imagem da tristeza, da sombra da tarde, ou a imagem
do crepusculo do torvamento do espirito?

II. _Jurupary._--demonio; de _juroboca_ e _apara_ torto, aleijado. O
bocca torta.

III. _Ubaia._--fructa conhecida da especie engenia. Significa fructa
saudavel, de _uba_-fructa e _aia_ saudavel.

Pag. 41.--I. _Jandaia._--Este nome que anda escripto por diversas
maneiras _nhendaia_, _nhandaia_ e em todas alterado é apenas um
adjectivo qualificativo do substantivo _ará_. Deriva-se elle das
palavras _nheng_--falar--_antan_, duro, forte, aspero, e _ara_
desinencia verbal que exprime o agente--_nh' ant' ara_; substituido o
_t_ por _d_--e o _r_ por _i_, tornou-se nhandaia, d'onde jandaia, que se
traduzirá por periquito grasnador.

Do canto d'esta ave, como se viu, é que vem o nome de Ceará, segundo a
etymologia que lhe dá a tradicção.

II. _Inhuma._--Ave nocturna palamedea. A especie de que se fala aqui é
a palamedea chavaria, que canta regularmente á meia noite. A
orthographia melhor creio ser _anhuma_, talvez de _anho_, só, e _anum_,
ave agoureira conhecida. Significaria então assim _anum solitario_,
assim chamado pela tal ou qual semelhança do grito desagradavel.

Pag. 42.--_Inubia._--Trombeta de guerra. Os indigenas, segundo Lery, as
tinham tão grandes que mediam um diametro na abertura.

Pag. 43.--_Guará._--Cão selvagem, lobo brazileiro. Provêm esta
palavra do verbo _u_ comer, do qual se forma com o relativo _G_ e a
desinencia _ara_ o verbal _g-u-ára_ comedor. A syllaba final longa é a
particula propositiva _ã_ que serve para dar fôrça á palavra.

_G-u-ára-ã_ realmente comedor, voraz.

Pag. 44.--I. _Jiboia._--Cobra conhecida: de _gi_ machado e _boia_ cobra.
O nome foi tirado da maneira porque a serpente lança o bote, semelhante
ao golpe do machado; pode traduzir-se bem cobra de arremesso.

II. _Sucury._--A serpente gigante que habita nos grandes rios e engole
um boi. De _Suu_, animal e _cury_ ou _curu_ roncador. Animal roncador,
porque de feito o rouco da sucury é medonho.

III. _Se é que tens sangue e não mel._--Allusão que faz o velho
Andira ao nome de Irapuam, o qual como se disse significa mel redondo.

IV. _Ouve seu trovão._--Todo esse episodio do rugido da terra é uma
astucia, como usavam os pagés e os sacerdotes de toda a nação
selvagem para imporem á imaginação do povo. A cabana estava assentada
sobre um rochedo, onde havia uma galeria subterranea que communicava com
a varzea por estreita abertura; Araken tivera o cuidado de tapar com
grandes pedras as duas aberturas, para occultar a gruta dos guerreiros.
N'essa occasião a fenda inferior estava aberta e o Pagé o sabia;
abrindo a fenda superior, o ar encanou-se pelo antro espiral com
estridor medonho, e de que pode dar uma idéa o sussurro dos
caramujos.--O facto é pois natural; a apparencia sim maravilhosa.

Pag. 45.--_Abaty n'agua._--Abaty--arroz; Iracema serve-se da imagem do
arroz que só viça no alagado, para exprimir sua alegria.

Pag. 53.--I. _Ubiratan._--Páo ferro, de _ubira_--páo e _antan_ duro.

II. _Maracajá._--Gato selvagem.

III. _Caetetus._--Porco do mato, especie de javali brazileiro. Do
_caeté_--mato grande e virgem--e _suu_ caça, mudado o _s_ em _t_ na
composição pela euphonia da lingua. Caça do mato virgem.

IV. _Jaguar._--Vimos que guará significa voraz. Jaguar tem
inquestionavelmente a mesma etymologia; é o verbal _guara_ e o pronome
_ja_ nós. Jaguar era pois para os indigenas todos os animaes que os
devoravam. _Jaguareté_ o grande devorador.

V. _Anajê._--Gavião.

Pag. 55.--_Acauan_, ave inimiga das cobras--de _caa_ pão e _uan_--do
verbo _u_, que come pão.

Pag. 56.--_Sahy._--Lindo passaro azul.

Pag. 57.--I. _Carioba._--Camisa de algodão, de _cary_ branco e _oba_
roupa. Tinham tambem a _arassoia_ de _arára_, e _oba_, vestido de
pennas de arara.

II. _Á cintura da virgem._--Os indigenas chamavam a amante possuida
_aguaçaba_, de _aba_, homem, _cua_, cintura, _çaba_ cousa propria; a
mulher que o homem cinge, ou traz á cintura. Fica pois claro o
pensamento de Iracema.

Pag. 59.--I. _Jacy._--A lua. De _já_--pronome, nós, e _cy_--mãe.--A
lua exprimia o mez para os selvagens; e seu nascimento era sempre por
elles festejado.

II. _Fogos da alegria._--Chamavam os selvagens _tory_, os fachos ou fogos;
e _toryba_, a alegria, a festa, a grande copia dos fachos.

Pag. 60.--_Bucan._--Significa uma especie de grelha que os selvagens
faziam para assar a caça; d'ahi vem o verbo francez _boucaner_. A
palavra é da lingua tupy.

Pag. 63.--I. _Acoty._--cotia.

II. _Abaeté._--varão abalisado; de _aba_--homem e _eté_--forte,
egregio.

Pag. 66.--I. _Jacaúna._--jacarandá preto--de _jaca_, abreviação de
jacarandá, e _una_, preto. Este Jacaúna é o celebre chefe, amigo de
Martim Soares Moreno.

II. _Coandú._--porco espinho.

III. _Seu collar de guerra._--O collar que os selvagens faziam dos
dentes dos inimigos vencidos era um brazão e tropheu de valentia.

Pag. 68.--I. _Japy._--significa, nosso pé, de _ja_--pronome, nós e
_py_ pé.

II. _Ibyapina._--De _Iby_-terra, e _apino_, tosquiar.

III. _Jatobá._--grande arvore real. O logar da scena é o sitio da hoje
Villa Viçosa, onde diz a tradição ter nascido Camarão.

Pag. 71.--I. _Meruoca._ De _mera_, mosca, e _oca_, casa. Serra junto do
Sobral, fertil em mantimentos.

II. _Uruburetama._--patria ou ninho de urubus: serra bastante alta.

III. _Mundahú._--rio muito tortuoso, que nasce na serra de Uruburetama.
_Mandé_, cilada, e _hu_ rio.

IV. _Potengi._--rio que rega a cidade do Natal, d'onde era filho Soares
Moreno.

Pag. 72.--I. _As saborosas trahiras._--É o rio Trahiry trinta leguas ao
norte da capital. De _trahira_, peixe e _y_, rio. Hoje é povoação e
districto de paz.

II. _Soipé._--paiz da caça. De _Sôo_ caça, e _ipé_ lugar onde.
Diz-se hoje Siupé, rio e povoação pertencente a freguezia e termo da
Fortaleza, situada á margem dos alagados chamados Jaguarassú na
embocadura do rio.

III. _Pacoty._--Rio das pacobas. Nasce na serra de Baturité e lança-se
no Oceano duas leguas ao norte de Aquirás.

IV. _Iguape._--Enseada distante duas leguas de Aquirás. De _Ig_, agua,
_cua_, cintura e _ipé_, onde.

Pag. 73--I. _Mocoribe._--morro de areia na enseada do mesmo nome a uma
legua da Fortaleza; diz-se hoje Mucuripe. Vem de _Corib_ alegrar e _mo_,
particula ou abreviatura do verbo _monhang_ fazer, que se junta aos
verbos neutros e mesmo activos para dar-lhes significação
passiva--exp. _caneon_ affligir-se, _mocaneon_ fazer alguem afflicto.

II. _Rio que forma um braço de mar._--É o _Parnahyba_, rio de Piauhy.
Vem de Pará. mar, _nhanhe_, correr e _hyba_, braço; braço corrente do
mar. Geralmente se diz que _Pará_ significa rio e _Paraná_ mar; é
inteiramente o contrario.

Pag. 74.--I. _Mayr._--cidade. Talvez provenha o nome de _mayr_
extrangeiro, e fosse applicado aos povoados dos brancos em opposição
ás tabas dos indios.

II. _Brancos tapuias._--em tupy, _tapuitinga_. Nome que os Pytiguaras
davam aos francezes para differença-los dos Tupinambás. _Tapuia_,
significa barbaro, inimigo. De _taba_, aldeia e _puyr_, fugir,--os
fugidos da aldeia.

Pag. 75.--I. _Batuireté._--narseja illustre, de _batuira_ e _eté_.
Appellido que tomara o chefe pytiguara, e que na linguagem figurada
valia tanto como valente nadador. É o nome de uma serra fertilissima e
da comarca que ella occupa.

II. _Suas estrellas eram muitas._--Contavam os indigenas os annos pelo
nascimento das pleiades no oriente; e tambem costumavam guardar uma
castanha de cada estação de cajú. para marcar a idade.

III. _Jatobá._--arvore frondosa, talvez de _jetahy_, _oba_, folha e
_a_, augmentativo; jetahy de grande copa. É nome de um rio e de uma
serra em S. Quiteria.

Pag. 76.--I. _Quixeramobim._--segundo o Dr. Martins traduz-se por essa
exclamação de saudade. Compõe-se de _Qui_, ah! _xere_, meus,
_amôbinhé_, outros tempos.

II. _Caminho das garças._--Em tupy _Acarape_, povoação na freguezia
de Baturité a nove leguas da capital.

III. _Maranguab._--A serra de Maranguape distante cinco leguas da
capital, e notavel pela sua fertilidade e formosura. O nome indigena
compõe-se de _maran_ guerrear e _coaub_ sabedor; _maran_ talvez seja
abreviação de _maramonhang_, fazer guerra, se não é, como eu penso,
o substantivo simples guerrear, de que se fez o verbo composto. O Dr.
Martins traz etymologia diversa. _Mara_, arvore, _angai_, de nenhuma
maneira, _guabe_, comer. Esta etymologia nem me parece propria ao
objecto, que é uma serra, nem conforme com os preceitos da lingua.

IV. _Pirapora._--Rio do Maranguape, notavel pela frescura do suas aguas
e excellencia dos banhos chamados da Pirapora, no lugar das cachoeiras.
Provem o nome de _Pira_, peixe, pore, salto: salto do peixe.

Pag. 78.--_O gavião branco_--Batuireté chama assim o guerreiro branco,
ao passo que trata o neto por narseja: elle prophetisa n'esse parallelo
a destruição de sua raça pela raça branca.

Pag. 79. II. _Porangaba._--significa belleza. É uma lagoa distante da
cidade uma legua em sitio aprasivel. Hoje a chamam Arronches: e nas suas
margens está a decadente povoação de mesmo nome.

II. _Jererahu._--rio das marrecas; de _jerere_--ou irêrê, marreca, e
_hu_ agua. Este lugar ainda hoje é notavel pela excellencia da fructa,
com especialidade as bellas laranjas conhecidas por _laranjas de
Jererahu_.

III. _Sapiranga._--lagoa no sitio Alagadiço Novo, a cerca de 2 leguas
da capital. O nome indigena significa olhos vermelhos, de _ceça_, olhos
e _piranga_ vermelhos. Esse mesmo nome dão usualmente no norte a certa
ophtalmia.

IV. _Murytiapuá._--de _murity_--nome da palmeira mais vulgarmente
conhecida por burity, e _apuam_, ilha. Logarejo no mesmo sitio referido.

V. _Aratanha._--de _arára_, ave e _tanha_, dente. Serra mui fertil e
cultivada em continuação da de Maranguape.

VI. _Pacatuba._--de _paca_ e _tuba_, leito ou couto das pacas. Recente,
mas importante povoação, em um bello valle da serra da Aratanha.

VII. _Guayúba._--De _goaia_, valle, _y_, agua, _jur_, vir, _be_ por
onde; por onde vem as aguas do valle. Rio que nasce na serra da Aratanha
e corta a povoação do mesmo nome a seis leguas da capital.

Pag. 81.--I. _Ambar._ As praias do Ceará eram n'esse tempo muito
abundantes de ambar que o mar arrojava. Chamavam-lhe os indigenas, _Pira
repoti_ esterco de peixe.

II. _Coatyá._--pintar. A historia menciona esse facto de Martim Soares
Moreno se ter coatyado quando vivia entre os selvagens do Ceará.

Pag. 82.--_Coatyabo._--A desinencia _abo_ significa o objecto que
soffreu a acção do verbo, e talvez provenha de _aba_, gente, creatura.

Pag. 90.--_Imbú._--Fructa da Serra do Araripe que não vem do littoral.
É saborosa e semelhante ao cajá.

Pag. 93.--I. _Tupinambás._--Nação formidavel, ramo primitivo da
grande raça tupy. Depois de uma resistencia heroica, não podendo
expulsar os portuguezes da Bahia emigraram até o Maranhão onde fizeram
alliança com os francezes que já então infestavam aquellas paragens.
O nome que elles se davam significava--gente parente dos Tupys--de
_Tupy_--_anama_--ba.

II. _Maracatim._--Grande barco que levava na proa _tim_--um _maracá_.
Aos barcos menores ou canoas chamavam _igara_--de _ig_--agua--e _jara_,
senhor; senhora d'agua.

Pag. 95.--_Moacyir._--Filho do soffrimento--de _moacy_, dôr e _ira_,
desinencia, que significa sahido de.

Pag. 96.--_Faxa._--É o que chamam vulgarmente _typoia_; rejeitou-se o
termo proprio do texto por andar degradado no estylo chulo.

Pag. 97.--_Chupou tua alma._--Creança em tupy é _pitanga_, de _piter_
chupar e _anga_ alma; chupa alma. Seria porque as creanças attrahem e
deleitam aos que as vêem; ou porque absorvem uma porção d'alma dos
paes? Cauby fala n'esse ultimo sentido.

Pag. 99.--_Cariman._--Uma conhecida preparação de mandioca. _Caric_,
correr, _mani_, mandioca. Mandioca escorrida.

Pag. 100.--_Tauape_, lugar de barro amarello, de _tauá_ e _ipé_. Fica
no caminho de Maranguape.

Pag. 103.--_Copim._--Insecto conhecido. O nome compõe-se de _co_ buraco
e _pim_ ferrão.

Pag. 104.--_Albuquerque._--Jeronymo d'Albuquerque chefe da expedição
do Maranhão em 1612.

Pag. 117.--_Colibri._--D'esse lethargo do colibri no inverno fala Simão
de Vasconcellos.

Pag. 125--_Mocejana._--Lagoa e povoação a 2 leguas da capital. O verbo
_cejar_ significa--abandonar; a desinencia _ana_ indica a pessoa que
exercita a acção do verbo. _Cejana_--significa o que abandona. Junta a
particula _mo_ do verbo _monhang_, fazer, vem a palavra a significar o
que fez abandonar ou que foi lugar e occasião de abandonar.



CARTA
AO DR. JAGUARIBE


Eis-me de novo, conforme o promettido.

Já leu o livro e as notas que o acompanham; conversemos pois.

Conversemos sem cerimonia, em toda a familiaridade, como se cada um
estivesse recostado em sua rede, ao vaivem do languido balanço, que
convida á doce pratica.

Se algum leitor curioso se puzer á escuta, deixal-o. Não havemos por
isso de mudar o tom rasteiro da intimidade pela phrase garrida das
salas.

Sem mais.

Ha de recordar-se você de uma noite que entrando em minha casa, quatro
annos a esta parte, achou-me rabiscando um livro. Era isso em uma quadra
importante, pois que uma nova legislatura, filha de nova lei, fazia sua
primeira sessão; e o paiz tinha os olhos n'ella, de quem esperava
iniciativa generosa para melhor situação.

Já estava eu meio descrido das cousas, e mais dos homens; e por isso
buscava na litteratura diversão á tristeza que me infundia o estado da
patria entorpecida pela indifferença. Cuidava eu porém que você,
politico de antiga e melhor tempera, pouco se preoccupava com as cousas
litterarias, não por menos preço, sim por vocação.

A conversa que tivemos então revelou meu engano; achei um cultor e
amigo da litteratura amena; e juntos lemos alguns trechos da obra, que
tinha, e ainda não perdeu, pretenções a um poema.

É, como viu o como então lhe esbocei a largos traços, uma heroida que
tem por assumpto as tradicções dos indigenas brazileiros e seus
costumes. Nunca me lembrara eu de dedicar-me a esse genero de
litteratura, de que me abstive sempre, passados que foram os primeiros e
fugaces arroubos da juventude. Supporta-se uma prosa mediocre, e
estima-se pelo quilate da idéa; mas o verso mediocre é a peor triaga
que se possa impingir ao pio leitor.

Commetti a imprudencia quando escrevi algumas cartas sobre a
_Confederação dos Tamoyos_ dizer: "as tradições dos indigenas dão
materia para um grande poema que talvez um dia alguem apresente sem
ruido nem apparato, como modesto fructo de suas vigilias."

Tanto bastou para que suppozessem que o escriptor se referia a si, e
tinha já o poema em mão; varias pessoas perguntaram-me por elle.
Metteu-me isto em brios litterarios; sem calcular das forças minimas
para empresa tão grande, que assoberbou dois illustres poetas, tracei o
plano da obra, e comecei-a com tal vigor que a levei quasi de um folego
ao quarto canto.

Esse folego susteve-se cêrca de cinco mezes, mas amorteceu; e vou-lhe
confessar o motivo.

Desde cedo, quando começaram os primeiros pruridos litterarios, uma
especie de instincto me impellia a imaginação para a raça selvagem
indigena. Digo instincto, porque não tinha eu então estudos bastantes
para apreciar devidamente a nacionalidade de uma litteratura; era
simples prazer que me deleitava na leitura das chronicas e memorias
antigas.

Mais tarde, discernindo melhor as cousas, lia as producções que se
publicavam sobre o thema indigena; não realisavam ellas a poesia
nacional, tal como me apparecia no estudo da vida selvagem dos
autoctonos brazileiros. Muitas pecavam pelo abuso dos termos indigenas
accumulados uns sobre outros, o que não só quebrava a harmonia da
lingua portugueza, como perturbava a intelligencia do texto. Outras eram
primorosas no estylo e ricas de bellas imagens; porém certa rudez
ingenua de pensamento e expressão, que devia ser a linguagem dos
indigenas, não se encontrava ali.

Gonçalves Dias é o poeta nacional por excellencia ninguem lhe disputa
na opulencia da imaginação, no fino lavor do verso, no conhecimento da
natureza brazileira e dos costumes selvagens. Em suas poesias americanas
aproveitou muitas das mais lindas tradicções dos indigenas; e em seu
poema não concluido dos _Timbiras_, propoz-se a descrever a epopea
brazileira.

Entretanto, os selvagens de seu poema falam uma linguagem classica, o
que lhe foi censurado por outro poeta de grande estro, o dr. Bernardo
Guimarães; elles exprimem idéas proprias do homem civilisado, e que
não é verosimil tivessem no estado da natureza.

Sem duvida que o poeta brazileiro tem de traduzir em sua lingua as
idéas, embora rudes e grosseiras, dos indios; mas n'essa traducção
está a grande difficuldade; é preciso que a lingua civilisada se molde
quanto possa á singeleza primitiva da lingua barbara; e não represente
as imagens e pensamentos indigenas senão por termos e phrases que ao
leitor pareçam naturaes na bôcca do selvagem.

O conhecimento da lingua indigena é o melhor criterio para a
nacionalidade da litteratura. Elle nos dá não só o verdadeiro estylo,
como as imagens poeticas do selvagem, os modos de seu pensamento, as
tendencias de seu espirito, e até as menores particularidades de sua
vida. É n'essa fonte que deve beber o poeta brazileiro; é d'ella que
ha de sahir o verdadeiro poema nacional, tal como eu o imagino.

Commettendo portanto o grande arrojo, aproveitei o ensejo de realisar as
idéas que me vagueavam no espirito, e não eram ainda plano fixo; a
reflexão consolidou-as e robusteceu.

Na parte escripta da obra foram ellas vasadas em grande copia. Se a
investigação laboriosa das bellezas nativas feita sobre imperfeitos e
espurios diccionarios exhauria o espirito; a satisfação de cultivar
essas flores agrestes da poesia brazileira, deleitava. Um dia porém
fatigado da constante e aturada meditação ou analyse para descobrir a
etymologia d'algum vocabulo, assaltou-me um receio.

Todo este improbo trabalho que ás vezes custava uma só palavra, me
seria levado á conta? Saberiam que esse escropulo de ouro fino, tinha
sido desentranhado da profunda camada, onde dorme uma raça extincta? Ou
pensariam que fôra achado na superficie e trazido ao vento da facil
inspiração?

E sobre esse, logo outro receio.

A imagem ou pensamento com tanta fadiga esmerilhados, seriam apreciados
em seu justo valor, pela maioria dos leitores? Não os julgariam
inferiores a qualquer das imagens em voga, usadas na litteratura
moderna?

Occorre-me um exemplo tirado d'este livro. Guia chamavam os indigenas,
senhor do caminho, _pyguara_. A belleza da expressão selvagem em sua
traducção litteral e etymologica, me parece bem saliente. Não diziam
sabedor do caminho, embora tivessem termo proprio, _coaub_, porque essa
phrase não exprimiria a energia de seu pensamento. O caminho no estado
selvagem não existe; não é cousa de saber. O caminho faz-se na
occasião da marcha atravez da floresta ou do campo, e em certa
direcção: aquelle que o tem e o dá, é realmente senhor do caminho.

Não é bonito? Não está ahi uma joia da poesia nacional?

Pois talvez haja quem prefira a expressão rei do caminho, embora os
brasis não tivessem rei, nem idéa de tal instituição. Outros se
inclinarão á palavra guia, como mais simples e natural em portuguez,
embora não corresponda ao pensamento do selvagem.

Ora escrever um poema que devia alongar-se para correr o risco de não
ser entendido, e quando entendido não apreciado, era para desanimar o
mais robusto talento, quanto mais a minha mediocridade. Que fazer?
Encher o livro de gryphos que o tornariam mais confuso e de notas que
ninguem lê? Publicar a obra parcialmente para que os entendidos
proferissem o veredicto litterario? Dar leitura d'ella a um circulo
escolhido, que emittisse juizo illustrado?

Todos estes meios tinham seu inconveniente, e todos foram repellidos: o
primeiro afeiava o livro; o segundo o truncava em pedaços; o terceiro
não lhe aproveitaria pela ceremoniosa benevolencia dos censores. O que
pareceu melhor e mais acertado foi desviar o espirito d'essa obra e
dar-lhe novos rumos.

Mas não se abandona assim um livro começado, por peor que elle seja;
ahi n'essas paginas cheias de rasuras e borrões dorme a larva do
pensamento, que pode ser nympha de azas douradas, se a inspiração
fecundar o grosseiro casulo. Nas diversas pausas de suas preoccupações
o espirito volvia pois ao album, onde estão ainda incubados e estarão
cerca de dois mil versos heroicos.

Conforme a benevolencia ou severidade de minha consciencia ás vezes os
acho bonitos e dignos de verem a luz; outras me parecem vulgares,
monotonos, e somenos a quanta prosa charra tenho eu estendido sobre o
papel. Se o amor de pae abranda afinal esse rigor, não desvanece porem
nunca o receio de "perder inutilmente meu tempo a fazer versos para
cabocolos."

Em um d'esses volveres do espirito á obra começada, lembrou-me da
experiencia _in anima prosaico_. O verso pela sua dignidade e nobreza
não comporta certa flexibilidade de expressão, que entretanto não vae
mal á prosa mais elevada. A elasticidade da phrase permittiria então
que se empregassem com mais careza as imagens indigenas, de modo a não
passarem desapercebidas. Por outro lado conhecer-se-hia o effeito que
havia de ter o verso pelo effeito que tivesse a prosa.

O assumpto para a experiencia, de antemão estava achado. Quando em 1848
revi a nossa terra natal, tive a idéa de aproveitar suas lendas e
tradições em alguma obra litteraria. Já em S. Paulo tinha começado
uma biographia do Camarão. A mocidade d'elle, a amisade heroica que o
ligava a Soares Moreno, a bravura e lealdade de Jacaúna, alliado dos
portuguezes, e suas guerras contra o celebre Mel Redondo; ahi estava o
thema. Faltava-lhe o perfume que derrama sobre as paixões do homem a
belleza da mulher.

Sabe você agora o outro motivo que eu tinha de lhe endereçar o livro;
precisava dizer todas estas cousas, contar o como e porque escrevi
_Iracema_. E com quem melhor conversaria sobre isso do que com uma
testemunha de meu trabalho, a unica, das poucas, que respira agora as
auras cearenses?

Este livro é pois um ensaio ou antes amostra. Verá realisadas n'elles
as minhas idéas a respeito da litteratura nacional; e achará ahi
poesia inteiramente brazileira, haurida na lingua dos selvagens. A
etymologia dos nomes das diversas localidades, e certos modos de dizer
tirados da composição das palavras, são de cunho original.

Comprehende você que não podia eu derramar em abundancia essa riqueza
no livrinho agora publicado, porque ellas ficariam desfloradas na obra
de maior vulto, a qual só teria a novidade da fabula. Entretanto ha ahi
de sobra para dar materia á critica, e servir de base ao juizo dos
entendidos.

Se o publico ledor gostar d'essa forma litteraria, que me parece ter
algum attractivo e novidade, então se fará um esforço para levar ao
cabo o começado poema, embora o verso pareça na época actual ter
perdido a sua influencia e prestigio. Se porém o livro fôr acoimado de
serdiço e tedioso, ou se Iracema encontrar a usual indifferença, que
vae acolhendo o bom e o mau com a mesma complacencia, quando não é o
silencio desdenhoso e ingrato; então o auctor se desenganará de mais
esse genero de litteratura, como já se desenganou do theatro; e os
versos como as comedias passarão para a gaveta dos papeis velhos,
reliquias autobiographicas.

Depois de concluido o livro e quando o reli apurado na estampa, conheci
me tinham escapado senões que poderia corrigir se não fosse a pressa
com que o fiz editar; noto algum excesso de comparações, certa
semelhança entre algumas imagens, e talvez desalinho no estylo dos
ultimos capitulos que desmerecem dos primeiros. Tambem me parece devia
conservar aos nomes das localidades sua actual versão, embora
corrompida. Se a obra tiver segunda edição será escoimada d'estes e
de outros defeitos, que lhe descubram os entendidos.

         Agosto de 1995.

                             J. DE ALENCAR.



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