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Title: A Mãe
Author: Gorki, Maximo
Language: Portuguese
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  MAXIMO GORKI

  A MÃE

  Romance traduzido do manuscripto
  por S. PERSKY


  VERSÃO PORTUGUEZA DE AUGUSTO DE LACERDA


  1907

  ANTIGA CASA BERTRAND
  José Bastos & C.ᵃ

  73, RUA GARRETT, 75
  LISBOA



PREFÁCIO


_A Mãe_ não é uma obra de pura imaginação. É, antes de tudo, uma
pintura exacta--poderia até dizer-se uma vista cinematographica--do
movimento revolucionario na Russia. Este bello livro introduz na
litteratura russa typos que faltavam n’ella quasi por completo: os
revolucionarios operarios e camponezes, cujo papel tem sido tão
importante nas ultimas tempestades politicas do paiz dos tsars.

Graças aos escriptores que se teem succedido de Tourguenev a Leão
Tolstoi, o revoltado sahido da classe intellectualmente cultivada é
mais ou menos conhecido.

Por que motivo não havia ainda um retrato completo do seu irmão oriundo
das obscuras camadas do povo? Principalmente porque os revolucionarios
d’esta categoria são de recente data.

Prepararam-se durante muito tempo nas mysteriosas profundezas das
massas, recrutando-se em silencio, multiplicando-se pouco a pouco, até
ao dia em que, na sequencia dos acontecimentos de que a Russia acaba de
ser o theatro, os viram surgir de chofre por toda a parte, tanto nas
aldeias as mais reconditas da provincia, como nas grandes cidades.

O povo desperta do seu somno secular, como de sobresalto, e este
despertar abre uma era nova na historia do movimento da libertação
russa. Entre os intellectuaes e os illettrados, até hoje distanciados
uns dos outros, forma-se um laço solido, e um mesmo ideal inflamma o
exercito dos que marcham á conquista da liberdade.

Descrever esta nova fase da revolução russa, evocar os heroes obscuros
que se votaram á grande tarefa da emancipação, analisar nas suas
manifestações as mais variadas, e até as mais inesperadas, esta
resurreição da consciencia popular,--eis o que Maximo Gorki se propoz
nas paginas que ides lêr. Tarefa ardua como poucas, mas de molde
a tentar a alma ardente do auctor. Raras vezes Gorki attingiu tal
acuidade de observação, uma variedade mais completa no descriptivo,
uma tão perfeita certeza d’analyse psichologica. Mais do que nunca,
foi o homem identificado com a sua obra. Filho do povo, ascendendo das
mais sordidas camadas sociaes, revolucionario unicamente dedicado ao
seu puro ideal de justiça (sempre protestou contra a violencia, viesse
ella d’onde viesse) Gorki tinha, mais do que outrem, os requisitos para
escrever esta pagina tragica da historia contemporanea.

No personagem tão profundamente humano da mãe, Gorki mostra como
uma mulher cheia de doçura e de timidez, espancada pelo pae, pelo
marido, esmagada impiedosamente pela sorte, immersa na ignorancia e no
desbragamento, vae adquirindo pouco a pouco a consciencia da sua misera
situação, se alevanta sob a influencia do seu filho, até tornar-se como
elle revolucionaria enthusiastica, sacrificando por fim as suas mais
queridas affeições, a propria vida mesmo, á causa do povo.

Em torno da mãe e do filho--os dois heroes principaes--agita-se
um amontoado de outros personagens. D’uma parte, os amigos: um
russo-menor--alma d’abnegação e de commovente simplicidade,--raparigas
sacrificando felicidade e riqueza para soffrerem a prisão e as
provações de toda a especie; operarios robustos e safados reclamando,
com o direito á vida, algumas liberdades; camponezes que, depois de
seculos de cega submissão, se recusam finalmente a considerar os
representantes das auctoridades como enviados do céo. D’outra parte, os
inimigos: officiaes de policia, guardas e espiões, instrumentos doceis
do poder. Toda esta gente, tão estranha e tão viva, estas luctas,
estes julgamentos, estes martyrios, episodios d’uma guerra cruel e
sem clemencia movida contra os apostolos do ideal novo, tudo isto é a
realidade, a realidade de hontem, de hoje, de ámanhã, tudo isto existe
e existirá, emquanto na Russia durar a lucta libertadora.

De muitas paginas d’este livro emana uma emmoção profunda.

No decurso de uma conversa com os seus companheiros, André, o
russo-menor, exclama:

--Que importam os meus soffrimentos, as minhas desgraças! Quando penso
em que um dia a patria será livre, o meu coração dilata-se de jubilo...
tenho vontade de chorar, tão feliz me sinto!

E quando Pavel diz, falando de um seu amigo desgraçado mas sempre bem
disposto d’espirito:

--Sabes? aquelles que mais riem são aquelles cujo coração soffre
incessantemente.

Um companheiro responde:

--Qual historia! Se assim fôsse, toda a Russia morreria de riso!

       *       *       *       *       *

O principe Ouroussof, antigo ministro adjunto do Interior, na Russia,
conta nas suas _Memorias_ que a rainha da Rumania, falando-lhe dos
escriptores russos contemporaneos, collocava a muito alto a obra de
Gorki, que ella conhecia perfeitamente. «Sabe captar a attenção do
leitor, declarava ella, e introduziu processos absolutamente novos na
litteratura moderna.»

Carmen Sylva alludia provavelmente ao dom que Gorki possue de fascinar
o leitor com o poder das scenas que descreve. Taes são, n’este
romance, a morte do revolucionario Iégor, a prisão do camponez Rybine,
a audiencia do tribunal a que comparecem Pavel e os seus amigos, a
scena final em que as mãos dos guardas espancam a pobre mãe. Quantas
passagens poderiamos citar ainda! Por exemplo, aquella em que Sophia
toca uma symphonia de Grieg. O auctor não diz o nome d’aquelle trecho,
mas qualquer musico o reconhecerá immediatamente pela rapida e
flagrante descripção que d’elle faz Gorki.

       *       *       *       *       *

O governo russo entendeu dever apprehender _A Mãe_ em todo o imperio.
Poucos dias depois da apparição da obra, a policia fazia buscas em
todas as livrarias tanto de S. Petersburgo como da provincia. Chegou
muito tarde e só poude apprehender poucos exemplares, por estar já
vendida a parte maxima de uma larga edição.

Ao mesmo tempo, as auctoridades entregavam aos tribunaes Gorki e o seu
editor, sob a accusação de «excitação á revolta» e de «achincalhamento
das coisas santas», crimes que ellas dizem existirem n’este romance.
Segundo a lei russa, sob os culpados impende a pena de trez a cinco
annos de prisão ou de exilio na Siberia.

Ha trez annos somente, Gorki foi encarcerado na fortaleza de S. Pedro
e S. Paulo, por motivos analogos.

A opinião publica sentiu-se abalada em todo o mundo: de todos os paizes
civilisados affluiram petições colossaes, reclamando a libertação do
mestre. Gorki foi posto em liberdade.

Soffrendo do peito, o auctor da _Mãe_ está desde ha muitos mezes em
Capri. Regressará em breve ao seu paiz.

A prisão estará esperando novamente um dos melhores filhos da Russia?

       *       *       *       *       *

 París, novembro, 1907.

  S. PERSKY



 A Mãe



 PRIMEIRA PARTE



I


Todos os dias, na atmosphera esfumaçada e grave do bairro operario,
o apito da fabrica lançava aos ares o seu grito estridulo. Então,
creaturas toscas, com os musculos ainda fatigados, sahiam rapidamente
das pequenas casas pardacentas e corriam como baratas assustadas. Na
fria meia-luz, iam pela rua estreita em direcção aos altos muros da
fabrica que os esperava implacavel e cujos inumeros olhos quadrados,
amarellos e viscosos illuminavam a calçada lamacenta. A lama estalava
sob os seus pés. Vozes estremunhadas resoavam com roucas exclamações;
pragas cortavam o ar; e uma onda de ruidos vagos acolhia os operarios:
a pesada traquinada das maquinas, o regougar do vapor. Sombrias e mal
encaradas como sentinellas, as altas chaminés negras prefilavam-se
acima do bairro, semelhantes a grossos bastões.

Á tarde, quando o sol ia no poente, os seus raios vermelhos illuminavam
as vidraças das casarias, a officina vomitava das suas entranhas de
pedra todas as escorias humanas, e os operarios enegrecidos pelo fumo,
espalhavam-se novamente pelas ruas, deixando atraz de si exhalações
lentas da gordura das maquinas; os seus dentes esfaimados reluziam.
Então havia na sua voz animação e até alegria: os trabalhos forçados
tinham concluido por algumas horas; em casa aguardava-os a refeição e o
descanço.

A fabrica absorvia o dia, as maquinas sugavam nos musculos dos homens
todas as forças de que ellas precisavam. O dia fôra riscado do computo
da vida, sem deixar vestigios; o homem tinha dado mais um passo para
o tumulo, sem d’isso se aperceber; mas podia entregar-se ao goso do
descanço, aos prazeres da sordida taverna, e estava satisfeito.

Nos dias santificados, dormia-se até quasi ás dez horas da manhã;
depois a gente séria e casada vestia o seu melhor fato e ia á missa,
censurando aos novos a sua indifferença em materia religiosa. Ao
regressarem da egreja, comiam tortas de massa, e deitavam-se de novo
até á tarde.

A fadiga accumulada durante longos annos tirava o appetite; para
poderem comer, era preciso beberem muito, excitarem o estomago
preguiçoso com a ardencia do alcool.

Pela tarde, passeavam indolentemente pelas ruas; os que possuiam capas
de borracha punham-nas, ainda que o tempo estivesse secco; os que
tinham um guarda-chuva, com elle sahiam, ainda que fizesse sol. Não é
dado a toda a gente possuir um impermeavel ou um guarda-chuva, mas cada
qual ambiciona superiorisar-se ao seu visinho, seja de que maneira fôr.

Quando se formavam grupos, conversava-se acerca da fabrica, das
maquinas, dizia-se mal dos contramestres. As palavras e os pensamentos
não se referiam a mais do que a coisas relacionadas ao trabalho. A
intelligencia desastrada e impotente lançava apenas umas scentelhas
isoladas, um tenue clarão na monotonia dos dias. Ao voltarem para
casa os maridos buscavam questões para discutirem com as mulheres,
batendo-lhes muitas vezes, sem pouparem as suas forças. Os novos
ficavam na taverna ou organisavam pequenas reuniões em casa d’um ou
d’outro, tocavam harmonio, cantavam canções estupidas e ignobeis,
dançavam, contavam historias obscenas e bebiam em excesso. Extenuados
pelo trabalho, estes homens embriagavam-se facilmente, e em cada peito
desenvolvia-se uma excitação doentia, incompreensivel que precisava de
encontrar sahida. Então, pelo mais futil pretexto, atiravam-se uns aos
outros como animaes selvagens. Havia contendas sangrentas.

Nas relações dos operarios entre si, dominava este mesmo sentimento
d’animosidade encubada; inveterara-se n’elles, tanto como a fadiga
dos musculos. Estes seres nasciam com a doença da alma, herança de
seus paes; e como uma sombra negra acompanhava-os até ao tumulo,
impellindo-os á realisação de actos repellentes pela sua inutil
crueldade.

Nos dias santificados, os novos regressavam tarde a casa, com os fatos
esfarrapados, cobertos de lama e de poeira; com as caras esmurradas,
gabavam-se dos murros que tinham dado nos companheiros; as injurias
soffridas encolerisavam-nos ou faziam-nos chorar; eram lastimaveis na
sua embriaguez, desgraçados e repugnantes. Por vezes, os paes levavam
para casa os filhos que haviam encontrado a cahir de bêbedos na rua ou
na taverna; as injurias e os murros choviam nos rapazes embrutecidos
ou excitados pela aguardente; depois mettiam-nos na cama com tal ou
qual precaução, e pela manhã accordavam-nos, apenas o silvo do apito da
fabrica cortava os ares.

Embora repreendessem os rapazes e lhes batessem, a sua embriaguez e as
suas contendas eram coisas naturaes para a familia; quando os paes
eram ainda novos tinham bebido tambem e entrado em desordens, sendo
egualmente castigados pelos paes e pelas mães. A vida decorria sempre
assim; continuava a decorrer, não se sabia até onde, regular e lenta
como um rio lodoso.

Appareciam por vezes no bairro creaturas estranhas, que a principio
despertavam a attenção, simplesmente porque eram desconhecidas;
mas dentro em pouco habituavam-se a ellas, e acabavam por passar
despercebidas. Das suas conversas concluia-se que a vida do operario
era em toda a parte a mesma coisa. E desde que era assim, para que
falar sobre tal assumpto?

Havia porem alguns que diziam coisas novas para o bairro. Não
discutiam com elles, não prestavam mais do que uma attenção incredula
ás suas palavras extravagantes, que excitavam n’uns uma irritação
cega, n’outros uma especie d’inquietação, ao passo que outros ainda
sentiam-se perturbados por uma vaga esperança, e desatavam a beber
ainda mais que de costume para afastarem tal impressão.

Se o recemchegado apresentava algum traço caracteristico
extraordinario, os moradores do bairro punham-no em rigorosa
quarentena, tratavam-no com instinctiva repulsão, como se receassem
vel-o trazer para a existencia de todos o que quer que fosse
perturbador do rame-rame penoso, mas tranquillo. Acostumados a serem
opprimidos pela vida, aquella gente considerava todas as transformações
possiveis como proprias somente a tornarem o seu jugo ainda mais pezado.

Resignados, faziam o vacuo em torno d’aquelles que pronunciavam
palavras estranhas. Então estes desappareciam não se sabe para onde;
se ficavam na fabrica, viviam á parte, não conseguindo confundir-se na
multidão uniforme dos operarios.

Depois de ter vivido assim uns cincoenta annos, o homem morria.



II


D’esta maneira vivia o serralheiro Mikhaíl Vlassof, homem sombrio,
de pequeninos olhos desconfiados e maus, protegidos por espessas
sobrancelhas. Era o melhor serralheiro da fabrica e o hercules do
bairro. Tinha porem modos grosseiros para o chefe; por isto ganhava
pouco; todos os domingos sovava algum; todos o temiam e ninguem o
estimava. Por varias vezes, haviam tentado dar-lhe uma tareia, mas
nunca conseguiram. Quando Vlassof previa uma agressão, agarrava n’uma
pedra, n’uma taboa, n’um bocado de ferro, e, solidamente firme nas
pernas abertas, esperava em silencio o inimigo.

Com a cara coberta, desde as orelhas até ao pescoço d’uma barba negra,
as suas mãos pelludas despertavam um terror geral. Principalmente
tinham medo dos seus olhos penetrantes que atravessavam o proximo como
pontas d’aço; quando lhe encontravam o olhar, sentiam-se em presença
d’uma força selvagem, inaccessivel ao terror, prestes ao ataque
impiedoso.

--Eh lá! Vá d’aqui, canalha! dizia elle roucamente.

Na espessa tez do seu rosto, os dentes amarellos brilhavam ferozes. Os
seus adversarios recuavam, invectivando-o.

--Canalha! gritava elle ainda, e os seus olhos disparavam sarcasmos
acerados como sovelas. Depois, erguendo a cabeça com ares provocadores,
seguia os seus inimigos, berrando de quando em quando:

--Então! quem quer morrer?

Ninguem queria.

Falava pouco. A sua expressão favorita era: «canalha». Qualificava
assim os chefes da fabrica e da policia; empregava o mesmo epitheto
quando se dirigia á mulher.

--Ó canalha, não vês que as minhas calças estão rôtas?

Quando o seu filho Pavel tinha quatorze annos, Vlassof sentiu ainda uma
vez o desejo de levantal-o ao ar pelos cabellos. Mas Pavel, deitando a
mão a um martello, disse resumidamente:

--Não me toques!

--O quê? perguntou o pae, encaminhando-se para o pequeno de fôrmas
esbeltas e delicadas. Dir-se-ia uma sombra cahindo sobre uma betula.

--Basta! exclamou Pavel. Não te deixarei continuar...

E agitou o martello, abrindo desmedidamente os grandes olhos negros.

O pae olhou para elle, pôz as mãos pelludas atraz nas costas, e disse
em ar de troça:

--Está bem...

Depois accrescentou com um profundo sorriso:

--Ah! canalha!

Logo declarou á mulher:

--Nunca me peças mais dinheiro para os sustentar, a ti e ao Pavel.

--Vaes gastar tudo na bebida? ousou ella perguntar.

Deu um murro na meza, exclamando:

--Que tens tu com isso, canalha? Vou arranjar uma amante!

Não a arranjou; mas a partir d’aquelle dia até á morte, durante cerca
de dois annos, nunca mais olhou para o filho nem lhe dirigiu palavra.

Tinha um cão tão forte e pelludo como elle. Todas as manhãs o animal o
acompanhava até á porta da fabrica, onde o esperava á tarde. Nos dias
santificados, Vlassof ia para a taverna. Andava sem dizer palavra, e
como se procurasse o que quer que fosse, lançando olhares furtivos aos
que passavam. Durante todo o dia, o cão seguia-o, com a espessa cauda
descahida. Quando Vlassof, bêbedo, entrava em casa, ceava e dava de
comer ao cão no seu proprio prato. Nunca batia no animal, assim como
não lhe ralhava nem o acariciava. Depois da refeição, se a mulher não
conseguia levantar a meza no momento opportuno, atirava com a louça
ao chão, punha na sua frente uma garrafa de aguardente e, com as
costas contra a parede, com a bôca muito aberta e os olhos fechados,
cantava em voz roufenha uma canção melancólica. Os sons discordantes
baralhavam-se-lhe no bigode, do qual cahiam migalhas de pão; os seus
dedos grossos alizavam os pellos da barba. As palavras da canção eram
incompreensiveis, arrastadas, a melodia recordava os urros dos lobos no
inverno. Cantava emquanto durava a aguardente; depois estirava-se no
banco ou encostava a cabeça á meza e dormia assim até que o apito da
fabrica o chamava. O cão deitava-se ao seu lado.

Morreu d’uma hernia, apoz longa agonia. Durante cinco dias, enegrecido
pelo soffrimento, agitou-se incessantemente no leito, com as palpebras
cerradas, com a bôca em contorsões. De quando emquando, dizia para a
mulher:

--Dá-me arsenico. Envenena-me! Ella chamou o medico, que receitou
cataplasmas, informando de que seria indispensavel uma operação, e de
que era preciso levar o doente para o hospital immediatamente.

--Vae para o diabo, canalha! Morro bem, sósinho! respondeu elle.

Quando o medico sahiu, a mulher lavada em lagrimas, quiz resolvel-o a
submetter-se á operação; Milkhaíl declarou-lhe ameaçando-a de punho
cerrado:

--Não experimento. Se eu ficasse bom, haverias de pagal-o caro!

Uma manhã, morreu, emquanto o apito da fabrica chamava os operarios ao
trabalho. Deitaram-no no caixão; tinha o sobrolho franzido e a bôca
aberta. Foi levado á ultima morada pela mulher, pelo filho, pelo cão,
e por Danilo Vessoftchikof, velho ladrão e bêbedo expulso da fabrica,
e por alguns miseraveis do bairro. A mulher chorou um pouco. Pavel
tinha os olhos sêccos. Os que encontraram o prestito funebre pararam e
persignaram-se, dizendo:

--Com certeza que Pélagué está satisfeita com a morte do marido.

Alguem emendou:

--Não morreu: rebentou.

Depois do caixão descer á terra, os que o acompanharam voltaram para
casa; o cão ficou deitado na terra humida, farejando por muito tempo.
Decorridos alguns dias, mataram-no; não se soube quem.



III


Certo domingo, uns quinze dias depois da morte do pae, Pavel entrou em
casa embriagado. Parou cambaleando na primeira divisão, e gritou para a
mãe, dando um murro na meza, como fazia Mikhaíl:

--A ceia!

Pélagué approximou-se, assentou-se ao seu lado; enlaçando-o com
os braços, puxou para o peito a cabeça do filho. Elle repelliu-a,
pondo-lhe o braço no hombro, e disse:

--Depressa, mamã!

--Patetinha! respondeu ella com voz triste e carinhosa.

--Tambem quero fumar! Dá-me o cachimbo do pae... rosnou, movendo a
custo a lingua rebelde.

Era a primeira vez que se embriagava.

O alcool tinha enfraquecido o seu corpo, mas não lhe extinguira a
consciencia; perguntava a si proprio:

--Estou bêbedo?... Estarei bêbedo?

As caricias da mãe vexavam-no; estava commovido pela tristeza do olhar
d’ella. Tinha vontade de chorar; e para vencer este desejo fingiu-se
ainda mais embriagado.

E a mãe acariciava-lhe os cabellos em desordem e cobertos de suor,
dizendo suavemente:

--Não devias ter feito isso...

Pavel começava a sentir nauseas.

A seguir aos vomitos, foi levado para a cama pela mãe, que lhe collocou
uma toalha humida na fronte pálida. Repoz-se um pouco; mas tudo lhe
andava á roda; as palpebras pezavam-lhe; tinha na bôca um gôsto
repugnante e amargo; olhava para o rosto da mãe e tinha pensamentos sem
nexo.

--É ainda cedo para mim... Os outros bebem sem ficarem doentes; eu
tenho nauseas.

A doce voz da mãe chegava-lhe aos ouvidos como se viesse de muito longe:

--Como poderás sustentar-me, se te entregas á bebida?

Respondeu, fechando os olhos:

--Todos bebem...

Pélagué suspirou profundamente. O filho tinha razão. Ella bem sabia
que os homens não encontrariam outro sitio senão a taverna para se
divertirem, que não tinham outro prazer senão o alcool. No entretanto,
retorquiu:

--Tu não precisas de beber! O teu pae bebeu á farta por ti; e bastante
me atormentou... Deves ter piedade da tua mãe.

Ouvindo estas palavras melancólicas e resignadas, Pavel pensou na
existencia silenciosa e apagada d’aquella mulher, esperando sempre os
espancamentos do marido. Nos ultimos tempos, Pavel pouco se demorava em
casa, para não ver o pae; desprezava um tanto a mãe; regressando ao seu
estado normal, examinava-a.

Era alta e levemente corcovada; o seu corpo pesado, abatido
por incessante trabalho e por maus tratos, movia-se sem ruido,
obliquamente, como se ella receasse topar n’alguma cousa. O largo rosto
oval, sulcado de rugas e ligeiramente empapuçado, tinha a dar-lhe
brilho uns olhos negros, de uma expressão triste e inquieta como o
de quasi todas as mulheres do bairro. Na testa uma cicatriz profunda
fazia-lhe subir um pouco o sobrolho direito; parecia tambem que a
orelha direita estava mais acima do que a outra, o que dava ao rosto
um ar receoso. Tinha no cabello espesso e negro madeixas grisalhas
semelhantes a nodoas resultantes de violentas pancadas. Toda ella
transpirava suavidade, uma resignação dolorosa.

E ao longo das faces corriam-lhe lentamente as lagrimas.

--Olha! não chores! supplicou Pavel em voz baixa. Dá-me de beber!

--Vou buscar agua gelada...

Quando voltou, elle dormia. Ficou immovel por um instante, retendo a
respiração; a bilha tremia-lhe nas mãos, os pedaços de gelo tintilavam
dentro. Depois de collocal-a na meza, Pélagué ajoelhou diante das
imagens santas e orou silenciosamente. Os vidros das janellas tremiam
sob as ondas sonoras da vida obscura e alcoolica do exterior. Nas
trevas e na humidade d’aquella noite d’outomno, ouviam-se os rangidos
de um harmonio; alguem cantava de guella aberta; passavam nas ruas
palavras abjectas e obscenas; vozes de mulheres vibravam, assustadiças
ou irritadas.

       *       *       *       *       *

Na pequena habitação de Vlassof, a vida decorria uniforme, mas mais
tranquilla e em paz do que outrora, distinguindo-se assim da existencia
geral do bairro. A casa era situada na extremidade da rua direita, no
cimo d’um pequeno alto, nos baixos do qual havia um pantano.

A cozinha occupava o terço da habitação; um delgado tabique, que não
chegava ao tecto, separava-a de um pequeno quarto onde dormia a mãe.
O resto formava uma casa quadrada, com duas janellas; a um canto, a
cama de Pavel, no outro, dois bancos e uma meza. Algumas cadeiras, uma
comoda onde guardavam a roupa, um pequenino espelho, uma mala para o
fato, um relogio e duas imagens de santos, era tudo.

Pavel tentava viver como os outros. Fazia quanto era proprio a um
rapaz; comprou um harmonio, uma camisa de peitilho engomado, uma
gravata vistosa, galochas e capa de borracha, e uma bengala. Na
apparencia assemelhava-se a todos os adolescentes da sua idade. Ia ás
reuniões, aprendia a dançar a quadrilha e a polka; ao domingo entrava
em casa embriagado. Nas manhãs seguintes, doia-lhe a cabeça, a febre
consumia-o, o seu rosto estava palido e desfigurado.

Um dia, a mãe perguntou-lhe:

--E então, divertiste-te hontem á noute?

Respondeu com sombria irritação:

--Aborreci-me atrozmente! Os meus companheiros são umas maquinas!...
Prefiro ir á pesca ou comprar uma espingarda.

Trabalhava com zelo; nunca era multado, nem gazeteava. Andava
taciturno. Os seus olhos azues, grandes como os da mãe, tinham uma
expressão de descontentamento. Não comprou a espingarda nem foi á
pesca; mas abandonou o caminho que seguiam os companheiros, frequentava
cada vez menos as reuniões, e, embora continuasse a sahir ao domingo,
voltava para casa em seu juizo. Pélagué observava-o sem dizer palavra
e via o rosto moreno de Pavel tornar-se dia a dia mais magro, o olhar
sempre mais grave e os labios cerrarem se com aspera severidade.
Parecia soffrer de qualquer doença ou de qualquer colera misteriosa.
Antigamente, os companheiros visitavam-no, mas como elle deixara de
permanecer em casa, não voltavam. A mãe via com prazer que o filho não
imitava os rapazes da fabrica; mas quando notou aquella obstinação
em afastar-se da torrente obscura da vida monotona, a sua alma foi
invadida por vaga inquietação.

Pavel trazia livros para casa; a principio, tentava lel-os a occultas.
Por vezes, copiava alguns trechos n’um pedaço de papel.

--Não andas bem, meu filho? perguntou-lhe uma vez Pélagué.

--Vou bem, vou! respondeu.

--Estás tão magro! suspirou ella.

Ficou silencioso.

Falavam pouco, e apenas se viam. Pela manhã, o rapaz tomava em silencio
o chá e ia para o trabalho; ao meio-dia vinha jantar; á meza não
trocavam mais do que palavras insignificantes; depois desapparecia até
á tarde. Findo o dia, lavava-se cuidadosamente, ceava e lia os seus
livros. Ao domingo, sahia de manhãsinha e só voltava á noite. A mãe
sabia que elle passeava na cidade, que ia ao theatro; mas da cidade
ninguem vinha vêl-o. Parecia-lhe que, quantos mais dias passavam, menos
o seu filho lhe dirigia a palavra; e ao mesmo tempo notava que dia a
dia maior era o numero de termos novos, incomprehensiveis para ella, e
que Pavel empregava em substituição das expressões grosseiras, outrora
habituaes no seu falar.

Passára a ligar mais cuidado ao asseio do seu corpo e do seu fato;
movia-se com mais ligeireza e facilidade; tornou-se mais simples
na apparencia, mais docil; preoccupava-se de sua mãe. Tratava-a de
uma maneira nova; ás vezes, varria o sobrado do quarto, fazia elle
mesmo a sua cama, ao domingo; em geral, sem frases, sem ostentação,
diligenciava auxiliar a mãe no trabalho caseiro. Ninguem fazia isto lá
no bairro...

Um dia, trouxe comsigo um quadro que pendurou na parede e que
representava trez personagens tendo impressas nas feições a resolução,
a coragem.

--É o Christo ressuscitado dirigindo-se a Emmaús! explicou.

O quadro agradou a Pélagué; ella pensou porem:

--Respeitas o Christo e não vaes á egreja...

Depois vieram mais quadros adornar as paredes, o numero de livros
augmentou na prateleira ali collocada por um marceneiro, companheiro de
Pavel. O quarto ia tomando um aspecto agradavel.

O rapaz dizia a miudo «a sr.ᵃ» quando se dirigia á mãe, a quem tambem
chamava «mamã». Era até mais prodigo em palavras, embora breves.

--Mãe, não fique em cuidado, peço-lhe; esta noite venho tarde.

E ao ouvil-o assim, ella sentia que se passava o que quer que fosse
forte e serio, que lhe agradava.

Mas a sua anciedade augmentava dia a dia, e como não entrava em
explicações com Pavel, adquiria o presentimento de alguma coisa
extraordinaria que lhe apertava o coração. Pensava até:

--Os outros vivem como creaturas humanas, mas elle é como um frade...
Tão grave!... Não é proprio da sua idade...

Perguntava a si mesma:

--Terá uma amiga?

Mas para ser amado pelas pequenas, é preciso dinheiro, e elle
entregava-lhe quasi toda a feria.

Assim se passaram semanas, mezes, quasi dois annos, n’uma vida
extravagante, cheia de pesares, de vagos receios cada vez maiores.



IV


Uma noite, á ceia, Pavel, tendo fechado as cortinas das janellas,
assentou-se a um canto e pôz-se a lêr, depois de ter pendurado na
parede, por cima da cabeça, uma lampada de metal.

A mãe tinha acabado o serviço da cozinha; approximou-se d’elle. Pavel
ergueu a fronte e fixou-a com olhar interrogador.

--Não é nada... mesmo nada! disse ella rapidamente.

E afastou-se, pestanejando, a modos confuza. Mas depois de ter ficado
immovel por um instante, no meio da cozinha, lavou as mãos e voltou,
pensativa, preoccupada.

--Olha: queria perguntar-te o que andas sempre a lêr... declarou com
simpleza.

Elle pôz o livro nos joelhos.

--Assenta-te, mamã.

Pélagué sentou-se pesadamente ao seu lado, apurou o ouvido, na
espectativa de alguma coisa grave.

Sem olhar para ella, a meia voz, muito rudemente, Pavel falou.

--Leio livros prohibidos. Prohibem a sua leitura porque dizem a verdade
da nossa vida, da vida do povo. São impressos ás escondidas, e se os
encontrassem em minha casa, eu seria prezo... prezo por ter querido
saber a verdade. Percebeste?

Ella sentiu de subito a respiração oppressa, e fixou o olhar esgazeado
no filho, que lhe pareceu outro, um estranho. Tinha outra voz, mais
grossa, mais cava, mais sonora. Com os dedos adelgaçados torcia as
sedosas guias do bigode e para ella descia o olhar enigmatico. Pélagué
teve medo, por elle.

--Para que é isso, Pavel?

Elle ergueu a cabeça, observou-a e respondeu tranquillamente:

--Quero saber a verdade.

A sua voz era em tom baixo, mas firme; brilhava-lhe no olhar um desejo
obstinado. Pélagué comprehendeu que o filho se consagrára para sempre
ao que quer que fôsse misterioso e terrivel. Tudo lhe parecera sempre
inevitavel; estava acostumada a submetter-se sem reflectir; por isto
começou de chorar baixinho, sem encontrar palavras no seu coração
confrangido pela angustia e pela dôr.

--Não chores! disse-lhe Pavel, carinhosamente--e á mãe parecia que
elle lhe dizia um adeus--reflecte! Que vida a nossa! Tu tens quarenta
annos, e, francamente, podes dizer que tenhas vivido? O pae batia-te...
compreendo agora que era o seu pezar da vida o que elle desabafava
assim nas pancadas que te dava... o pezar da vida que o opprimia, e
que elle nem mesmo sabia d’onde lhe vinha. Trabalhou durante trinta
annos; começou quando o edificio da fabrica não tinha mais do que dois
predios, e hoje tem sete! As fabricas desenvolvem-se e nós morremos
trabalhando para ellas...

Pélagué ouvia-o, com receio e ao mesmo tempo com avidez. Os bellos
olhos azues do rapaz luziam; com o peito apoiado á mesa, approximou-se
da mãe, e tocando quasi no seu rosto banhado de lagrimas, dizia-lhe o
seu primeiro discurso sobre a verdade, tal como elle a compreendia.
Com a ingenuidade da juventude e com o ardor d’um collegial orgulhoso
dos seus conhecimentos e sinceramente convicto de importancia d’elles,
falava de tudo que lhe parecia tão evidente, falava tanto para se
avaliar a si mesmo como para convencer sua mãe. Detinha-se por vezes
quando lhe faltavam as palavras, e então via o rosto inquieto no qual
brilhavam aquelles bons olhos velados pelas lagrimas, cheios de terror,
de preplexidade. Apiedou-se de sua mãe e novamente falou d’ella.

--Que alegrias tens tu conhecido? perguntou. Que tiveste no passado que
fosse bom?

Ella meneou a cabeça tristemente; invadia-a um sentimento novo,
desconhecido ainda, doloroso e alegre ao mesmo tempo, que lhe
acariciava deliciosamente o coração dolorido. Pela primeira vez,
falavam-lhe d’ella e da sua propria existencia; vagos pensares,
adormecidos havia muito, despertavam no seu ser, reanimavam os
sentimentos extinctos com um vago descontentamento, as recordações, as
saudades da sua mocidade longinqua.

Falou da sua vida, dos seus amigos, de todo o passado; mas, como os
outros, não sabia mais do que lamentar-se; ninguem explicava o motivo
da sua vida tão penosa e ardua. E agora, com o filho sentado a seu
lado, tudo quanto os olhos de Pavel, o seu rosto, as suas palavras
lhe diziam, tudo lhe falava captivantemente ao coração, enchendo-a de
altivez: era o seu filho quem compreendera a vida da mãe e quem lhe
apresentava a verdade sobre os soffrimentos, quem a lamentava.

Em geral, não ha quem lamente as mães.

Ella bem o sabia. Não compreendia que Pavel não falava d’ella só, mas
tudo o que elle dissera da vida feminina era a verdade, verdade nua e
crua. Eis porque lhe parecia que no seu peito se agitava um sem-numero
de sensações que a aqueciam como desconhecida caricia.

--O que queres tu fazer? perguntou-lhe, interrompendo-a.

--Aprender e depois ensinar aos outros. Devemos aprender, sim, devemos
saber, devemos compreender a razão porque a vida nos é tão penosa.

Era consolador para a mãe ver os olhos azues do seu filho, sempre serio
e severo, brilharem ternamente, illuminando n’elle o que quer que fosse
raro. Um sorriso de satisfação pairou nos labios de Pélagué, embora
houvesse ainda lagrimas nas rugas das suas faces.

Um duplo sentimento dividiu o seu ser: era uma irmã do filho que queria
a felicidade de todos os homens, que os lastimava a todos e que via a
dôr da vida; e ao mesmo tempo não podia esquecer que elle era um rapaz,
que não falava como os seus companheiros, que resolvera entrar sósinho
em lucta contra a vida rotineira que ella e os outros tinham.

Sentiu desejos de dizer-lhe:

--Meu querido! o que podes tu fazer? Esmagar-te-ão. E morrerás!

Mas temeu deixar de admirar o rapaz que de subito se lhe revelara, tão
intelligente, tão transformado...

Pavel via o sorriso nos labios da mãe, a attenção que ella lhe
prestava, o amor expandindo-se-lhe no olhar; julgou ter-lhe feito
compreender a verdade que elle tinha descoberto, e o juvenil orgulho
da força da sua palavra exhaltava a sua mesma fé. Cheio d’excitação,
falava sempre, ora rindo, ora franzindo o sobrolho; por momentos o odio
transparecia na sua voz, e quando Pélagué lhe ouvia estes tons rudes,
meneava timidamente a cabeça, perguntando baixinho:

--E tens a certeza de que isso é assim?

--Tenho! respondia elle com a voz forte e firme.

E falava-lhe dos que queriam o bem do povo, dos que semeavam a verdade
e que por isto eram perseguidos como feras, mettidos em prisões,
exilados para o degredo pelos inimigos da vida.

--Tenho visto d’estas creaturas! exclamava com ardor. São as melhores
almas deste mundo!

Estes seres excitavam o terror da mãe, que tinha vontade de perguntar
ainda:

--E tens a certeza de que isso é assim?

Mas não se atrevia, preferindo ouvir exhaltar creaturas que ella não
compreendia e que tinham ensinado ao seu filho uma maneira de pensar e
de falar tão perigosa para elle.

--Pouco falta para nascer o dia. Se tu te deitasses, se dormisses... É
preciso ires para o trabalho ámanhã.

--Vou deitar-me, vou, concordou.

E abeirando-se d’ella, perguntou-lhe:

--Compreendeste-me?

--Sim! suspirou a mãe.

De novo lhe rebentáram as lagrimas, e acrescentou entre soluços:

--Morrerás!...

Elle ergueu-se e entrou de passear pelo quarto.

--Bem! Sabes agora o que faço, aonde vou! Disse-te tudo! Supplico-te,
mãe, que se me amas, não me detenhas!

--Meu querido filho! exclamou ella. Teria sido melhor nada me haveres
dito!

Pavel pegou-lhe na mão, apertando-a fortemente entre as suas.

Ella ficára impressionada por aquella palavra «mãe» pronunciada com
ardor juvenil, e por aquelle aperto de mão tão novo e raro.

--Nada farei para te contrariar, disse em tom saccudido. Recommendo-te
apenas: toma cuidado! toma cuidado!

E sem bem saber em que elle devia tomar cuidado, accrescentou
tristemente:

--Estás cada vez mais magro.

E envolvendo n’um olhar caricioso o corpo robusto e harmonico do filho,
disse em voz baixa:

--Que Deus esteja comtigo! Vive como quizeres, não te impedirei! Só
te peço uma coisa: não fales levianamente. É conveniente desconfiar
dos mais, que mutuamente se odeiam! Vivem d’avidez, vivem d’inveja!
Todos se sentem felizes quando fazem mal. Quando quizeres accusal-os,
julgal-os, odiar-te-ão, levar-te-ão á morte!

De pé, no limiar da porta, Pavel ouvia estas palavras dolorosas, ás
quaes respondeu sorrindo:

--O proximo é mao, sim. Mas quando aprendi que havia na terra uma
verdade, o proximo pareceu-me melhor.

Sorriu ainda e continuou:

--Eu mesmo nem sei como isto me veio. Na minha infancia, tinha medo
de todos e de tudo... Quando cresci, comecei a odiar, a uns pela sua
covardia; a outros... nem sei porquê. Mas agora já não acontece o
mesmo: creio que tenho piedade d’elles. Não comprehendo como, mas o meu
coração tornou-se mais terno quando soube que havia uma verdade para os
homens e que elles não são todos culpados da ignominia da sua vida.

Calou-se por um instante, como para escutar o que quer que fosse dentro
d’elle, e depois concluiu pensativo:

--É assim que a verdade transpira!

Ella, tendo-lhe lançado um olhar rapido, murmurou:

--Transformaste-te d’uma maneira perigosa! Meu Deus!

Quando elle adormeceu, Pélagué levantou-se cautelosamente e
approximou-se-lhe do leito. O rosto moreno, de feições severas e
obstinadas desenhava-se distinctamente sobre o travesseiro branco.
Com as mãos juntas no peito, com os pés descalços, em camisa, a mãe
permanecia immovel; os seus labios moviam-se em silencio, e de seus
olhos desciam lentamente fartas e tôrvas lagrimas.



V


A vida recomeçou para elles; novamente se encontravam proximos e
afastados.

Uma vez, n’um dia santo, no meio da semana, Pavel disse á mãe, quando
ia sahir:

--No sabbado ha de vir gente cá a casa.

--Que gente?

--Gente d’aqui... e gente da cidade.

--Da cidade...? repetiu a mãe, meneando a cabeça. E desatou a chorar.

--Porque choras, mamã?! exclamou Pavel contrariado. Porquê?

Respondeu com froixa voz, limpando as lagrimas:

--Não sei... Porque sim.

Elle deu alguns passos pelo quarto, e parando deante d’ella:

--Tens medo?

--Tenho! confessou. Essa gente da cidade... sabe-se lá quem é!

Inclinou-se para ella e disse com a voz irritada, como o pae:

--É por causa d’esse medo que todos nós morremos! E os que mandam em
nós aproveitam-se d’esse medo e ainda mais nos amedrontam. Comprehenda
de uma vez para sempre: emquanto houver medo, apodreceremos como as
bétulas nos pantanos.

Afastou-se, exclamando:

--Deixal-o! Nós nos reuniremos cá em casa...

A mãe atalhou, chorando:

--Não me queiras mal! Como não hei de eu ter medo? Passei entre sustos
toda a minha vida... tenho a alma cheia d’elles.

Pavel retorquiu a meia voz, mas brandamente:

--Desculpe. Não tenho outro meio ao meu alcance. E sahiu.

Durante trez dias, Pélagué tremia: o coração parecia-lhe parar
quando pensava em que gente extranha entraria em sua casa. Não podia
fantasial-os, mas afiguravam se-lhe terriveis. Eram elles quem
apontaram ao seu filho o caminho que elle seguia agora...

No sabbado á tarde, Pavel voltou da fabrica, lavou-se, mudou de fato e
saíu, dizendo sem olhar para a mãe:

--Se alguem vier, dize que não me demoro, que me esperem. E não tenhas
medo, se fazes favor... São pessoas como as outras.

Ella deixou-se cahir sobre o banco. O filho contemplou-a franzindo o
sobrolho, e propoz--Talvez seja melhor saíres; an?

Ella offendeu-se. Disse que não com a cabeça, murmurando:

--Seria o mesmo. Para que sairia eu?

Estava-se no fim de novembro. Durante o dia tinha caído na terra gelada
um nevão fino e secco, que Pavel triturava sob seus passos. Ás vidraças
apegavam-se espessas trevas. A mãe, desalentada, ia esperando, com os
olhos fixos na porta.

Parecia-lhe que, na obscuridade, creaturas silenciosas, de trajos não
vulgares, se dirigiam para a casa, vindos de pontos varios, que se
adiantavam occultando-se, corcovados, e olhando para um e outro lado.
Junto da porta, encostado á parede, havia já alguem.

Ouviu-se um assobio que vibrou no silencio como um fio, melodioso
e triste; errava no deserto da noite, approximava-se... De subito,
calou-se mesmo junto á janella, como se tivesse penetrado atravez da
parede.

Soou o ruido de passos; Pélagué ergueu-se trémula, com os olhos
dilatados.

Abriu-se a porta. Appareceu primeiro uma cabeçôrra com um boné de
pelles, depois um corpo acurvado que se esgueirou lentamente, que se
endireitou, que levantou o braço direito vagarosamente, arrancando do
peito em suspiro ruidoso:

--Boa noite.

Pélagué cumprimentou em silencio.

--O Pavel ainda não veio?

O homem tirou com vagar um casaco de pelles, levantou um pé, saccudiu
com o boné a neve que lhe cobria as botas, atirou depois com o boné
para um canto e entrou no quarto bamboleando-se nas suas altas pernas.
Approximou-se d’uma cadeira, examinou-a como, para certificar-se de que
era sólida, assentou-se por fim e pôz-se a bocejar, tapando a bôca com
a mão. Tinha a cabeça redonda e o cabello cortado á escovinha, a barba
feita, e grosso bigode de guias compridas e pendentes. Depois de ter
examinado o quarto com os grandes olhos bojudos e acinzentados, cruzou
as pernas e perguntou balouçando-se na cadeira:

--O casebre pertence-lhes ou é alugado?

Pélagué, sentada em frente delle, respondeu:

--Alugamol-o.

--Não é grande coisa! observou o homem.

--O Pavel não se demora; queira esperar, disse froixamente.

--É o que estou fazendo! replicou tranquillamente.

A sua tranquillidade, a sua voz suave, a simpleza da sua fisionomia
deram coragem a Pélagué. Elle contemplava-a com olhar franco, com um
ar bondoso; no fundo dos seus olhos transparentes luzia um brilho
alegre, e havia um tanto de divertido e de simpatico n’aquella creatura
angulosa e acurvada como n’um poleiro feito das proprias pernas. Trazia
vestidas calças pretas, cujas extremidades estavam mettidas quasi
dentro das botas; em vez de casaco, bluza azul. Pélagué tinha vontade
de perguntar-lhe quem elle era, d’onde vinha, se conhecia o seu filho
de ha muito tempo, quando, de chofre, elle moveu-se e perguntou:

--Ó tiasinha, quem foi que lhe abriu essa brécha na testa?

Falava meigamente e sorria com o olhar. Mas a pergunta irritou-a.
Mordeu os labios, e apóz curto silencio, perguntou com fria delicadeza:

--E o que tem o tiosinho com isso?

Elle voltou-se de todo.

--Ah! não se zangue. Se lhe fiz esta pergunta, foi porque a minha mãe
adoptiva tinha tambem uma brécha na testa, exactamente como a sr.ᵃ.
Uma sova que lhe deu o marido, com uma fôrma de botas. Era sapateiro.
Ella era lavadeira. Tinha-me adoptado já, quando, por sua desgraça,
encontrou aquelle bêbedo não sei onde. O patife batia-lhe; digo-lhe só
isto! Eu tinha tanto medo d’elle, que a pelle estalava-me.

Pélagué sentiu-se desarmada perante aquella franqueza, e pensou de si
para si que talvez Pavel não ficasse contente, se ella fosse menos
delicada para com aquelle original. Por isso disse com um sorriso
envergonhado:

--Eu não me zango... O sr. é que me deixou surpreza com a pergunta. Foi
um presente do meu marido, que Deus tenha! O sr. não é tartaro?

O homem mexeu as pernas, e teve um sorriso tão aberto, que até as
orelhas pareciam chegar-lhe á nuca. Depois disse gravemente:

--Ainda não... ainda não sou tartaro.

--É que não fala exactamente como um russo! explicou ella sorrindo,
porque lhe compreendera o gracejo.

--A minha lingua vale mais do que o russo! exclamou com um meneio
importante. Sou russo-menor, da cidade de Kanief.

--E ha muito tempo que está por cá?

--Vivi na cidade, perto de um anno, e ha um mez que vim aqui para a
fabrica. Travei conhecimento com excellentes pessôas... o seu filho...
e mais alguns... não muitos. Quero fixar-me por cá, accrescentou,
torcendo o bigode.

Estava agradando a Pélagué que, para agradecer o elogio feito ao filho,
lhe perguntou:

--Quer chá?

--O quê? sósinho? observou, encolhendo os hombros. Faça o offerecimento
quando estivermos todos juntos.

Ouviram-se passos outra vez, a porta abriu-se de chofre; Pélagué
levantou-se. Com grande espanto seu, quem entrou na cosinha foi uma
rapariga, de vestido leve e pobre, baixa, com cara de camponeza. A
recemchegada, cujos cabellos eram loiros e espessos, perguntou:

--Ainda venho a tempo?

--Ah! vem! respondeu o russo-menor, que permanecia no quarto. Veio a pé?

--Podera! A sr.ᵃ é a mãe do Pavel Mikhaílovitch? Bôa noite! Eu
chamo-me Natacha.

--E o seu pae? perguntou Pélagué.

--Vassilievna. E a sr.ᵃ?

--Pélagué Milovna.

--Bello! Estamos apresentados!

--Sim, estamos... concordou Pélagué, com um ligeiro suspiro.

E sorrindo observou a rapariga.

O russo-menor perguntou:

--Faz frio?

--Se faz! e muito, lá pelos campos; uma ventania!...

Tinha a voz pastosa, clara; a bôca era pequena e redonda; e toda ella
era gorducha e cheia de frescura. Depois de tirar a capa, esfregou
energicamente as faces coradas com as mãosinhas avermelhadas pelo
frio; e, passeando pelo quarto com passos rapidos, batia no sobrado com
os tacões.

--Não tem galochas de borracha! pensou Pélagué.

--Que frio! E arrastando muito as palavras: Estou entorpecida! gelada!

--Vou já, já, preparar o samovar! disse rapidamente a dona da casa.

E saíu para a cozinha.

Dir-se-ia que conhecia aquella rapariga de ha muito tempo e que a
estimava como sua filha. Estava satisfeita por vêl-a; vindo-lhe á ideia
os olhos pardos e piscos do russo-menor, sorriu satisfeita tambem;
prestou attenção á conversa.

--Porque está triste, André? perguntou a rapariga.

--Porque sim! A viuva tem um olhar bondoso e lembra-me que talvez seja
como o da minha mãe... Penso muito na minha mãe, sabe? Parece-me sempre
que ella vive.

--Ouvi-lhe dizer que ella tinha morrido...

--Não! Falava da minha mãe adoptiva, e agora falo da minha verdadeira
mãe. Imagino que ella pede esmola, algures, em Kief e que bebe
aguardente...

--Porquê?

--Sei lá! E que quando está embriagada, os policias a esbofeteiam.

--Pobre homem! pensou Pélagué, suspirando.

Natacha passou a falar rapidamente, a meia-voz. Depois, tornou a
ouvir-se a voz sonora do russo-menor:

--É ainda nova! não tem experiencia! Todos teem mãe, e apesar d’isso
quantas creaturas más!... É difficil dar á luz, mas é muito mais
difficil ensinar o bem ao homem.

--Isso! isso! exclamou lá de dentro Pélagué.

Desejava poder responder que ella, por exemplo, se consideraria feliz
ensinando o bem a seu filho, mas que não sabia d’essas coisas; a porta
porem abriu-se vagarosamente dando entrada a Vessoftchikof, filho do
velho ladrão Danilo, o misantropo celebre em todo o bairro. Mantinha-se
sempre afastado dos outros, que por este facto chasqueavam d’elle.
Pélagué perguntou admirada:

--O que é que tu queres?

Fitou n’ella os olhos pardos, limpou com a palma da mão a cara bexigosa
e de maçãs salientes, e, sem responder ao cumprimento de Pélagué,
perguntou em tom cavo.

--O Pavel está em casa?

--Não.

Relanceou a vista pelo quarto e entrou, dizendo:

--Boa noite, companheiros.

--Tambem este!... Será possivel? pensou ella hostilmente.

E mais se admirou vendo Natacha estender a mão ao recemchegado com modo
alegre e amigavel.

Vieram em seguida dois rapazes, duas creanças quasi. A dona da casa
conhecia um d’elles: era o sobrinho de Fédor Sizof, velho operario
da fabrica; tinha feições d’arguto, fronte elevada e cabellos
encaracolados. O outro, de cabello corredio, era-lhe desconhecido, mas
não a assustava, parecia modesto.

Afinal Pavel chegou, acompanhado de dois amigos, que ella reconheceu
logo: eram dois operarios tambem da fabrica.

Amavelmente, o filho disse-lhe:

--Preparaste o chá? obrigado!

--Queres que vá comprar aguardente? perguntou, não sabendo como
exprimir-lhe o seu reconhecimento pelo que quer que fosse que ella
ainda não compreendia.

--Não. Não é preciso! respondeu, tirando a capa, e sorrindo
bondosamente para a mãe.

De subito, veio-lhe á idéa de que o filho tinha exagerado
propositadamente o perigo da reunião para brincar com ella.

--É então esta a tal gente perigosa?

--Esta mesma! disse Pavel entrando no quarto.

--Ah! e seguiu-o com o olhar caricioso.

Mas, no seu intimo:

--E elle é a mesma creança!...



VI


Quando a agua do samovar entrou em ebolição levou-o para o quarto. As
visitas estavam sentadas em de redor da meza; Natacha tinha nas mãos um
livro e ficára n’uma quina da mesa sob a luz da candeia.

--Para compreender por que as creaturas vivem tão mal... dizia Natacha

--... e porque são tão más... interveio o russo-menor.

--... é preciso ver primeiro como começaram a viver...

--Então, meus filhos, então!... murmurou Pélagué, preparando o chá.

Calaram-se todos.

--O que diz, mamã? perguntou Pavel franzindo o sobrolho.

--Eu?

Vendo todos os olhares cravados n’ella, explicou, embaraçada:

--Falava comigo mesmo... Dizia: então!...

Natacha desatou a rir assim como Pavel; o russo-menor exclamou:

--Obrigado, mãesinha, obrigado pelo chá!

--Ainda não o bebeu e já agradece?! replicou ella.

E, olhando para o filho:

--Não os incommodo?

Foi Natacha quem respondeu:

--Como pode incommodar os seus hospedes, se é a dona da casa?

E n’um tom infantil e lamentoso:

--Boa alma! dê-me chá depressa! Estou a tremer com frio... tenho os pés
gelados...

--É para já! é para já!

Depois de ter bebido, Natacha suspirou á larga, atirou a trança para
as costas e abriu um livro volumoso, illustrado e de capa amarella.
Pélagué enchia os copos, deligenciando não os fazer retenir, e, com
toda a attenção de que era capaz o seu cerebro pouco acostumado a
trabalhar, escutava a leitura que a rapariga fazia com a sua voz
harmoniosa, que se misturava ao murmurio da agua a ferver no samovar,
semelhante a longinqua canção.

No quarto desenrolava-se tremente, como uma fita de côres magnificas,
a historia simples e clara dos selvagens que viviam nas cavernas e
atacavam com pedras os animaes. Era uma como lenda; por varias vezes,
Pélagué olhava de soslaio para o filho, desejava saber o que haveria
n’aquella historia de selvagens que a tornasse leitura prohibida. Mas
a bréve trecho deixou de escutar e, sem que dessem por tal, começou a
observar os seus hospedes.

Pavel estava sentado junto de Natacha; era bello entre todos os outros.
A rapariga, inclinada sobre o livro, levantava a miudo os cabellos
finos e encaracolados que lhe cahiam para a testa. Por vezes, sacudia
a cabeça, e, com um olhar amigo, accrescentava algumas observações,
abaixando a voz. O russo-menor tinha encostado o peito ao canto da
meza, torcia o bigode, cujas guias deligenciava vêr, mettendo um olho
por outro. Vessoftchikof, estava sentado n’uma cadeira, empertigado
como um manequim, com as mãos nos joelhos; o seu rosto bexigoso, sem
sobrolhos e de bigode muito raro, era immovel como uma mascara.

Sem desviar o olhar, contemplava obstinadamente a sua fisionomia
reflectida no cobre brilhante do samovar; dir-se-ia que nem respirava.
O pequeno Fédia escutava a leitura, movendo os beiços, repetindo
para si as palavras do livro; o seu companheiro, o dos cabellos
encaracolados, curvava-se, com os cotovellos nos joelhos, e sorria
pensativamente, tendo a cara apoiada nas mãos. Um dos rapazes vindos
com Pavel era ruivo e delgado; os olhos verdes tinham expressão alegre;
parecia desejoso de dizer alguma coisa e fazia gestos de impaciencia; o
outro, de cabellos loiros e curtos, passava a mão pela cabeça olhando
para o sobrado, o que não permittia ver-se-lhe o rosto.

O quarto estava quente, n’uma temperatura especialmente agradavel
n’aquella noite. No meio do murmurio da voz de Natacha, misturada á
canção tremula do samovar, Pélagué recordava as noites tumultuosas da
sua mocidade, as palavras grosseiras dos rapazes que cheiravam mal
a alcool, os seus gracejos cinicos. Perante taes recordações, o seu
coração humilhado confrangia-se compadecido d’ella propria.

Reviveu em pensamento o dia em que o marido pedira a sua mão. Foi
durante uma reunião, á noite; elle detivera-a n’um corredor obscuro,
obrigava-a á viva força a encostar-se á parede, dizendo-lhe n’um tom
cavo e irritado:

--Queres casar comigo?

Ella sentira-se ultrajada; molestavam-na aquelles dedos grosseiros
apertando-lhe os seios, aquella respiração offegante que lhe enviava ao
rosto um hálito quente e humido. Tentou libertar-se d’aquelle abraço,
fugir-lhe...

--Aonde vaes? urrou elle. Responde primeiro!

Ficara silenciosa, cheia de vergonha e de colera.

--Não te finjas embaraçada, pateta! Conheço-as, a todas! No teu intimo,
estás satisfeitissima.

Porque alguem tivesse aberto uma porta, elle largara a rapariga, sem
grande pressa, dizendo:

--No domingo mandarei pedir a tua mão.

Cumpriu.

Pélagué fechou os olhos e suspirou longamente.

--Não preciso saber como os homens viveram, mas sim como se deve viver!
exclamou de subito Vessoftchikof num tom de surdo aborrecimento.

--Tem razão! concordou o rapaz de cabello ruivo, erguendo-se.

--Não estou d’acôrdo! disse Fédia. Se queremos caminhar para a frente,
devemos saber tudo!

--Exacto! opinou o outro, a meia voz.

Veio em seguida uma discussão animada. Pélagué não comprehendia por
que todos elles gritavam, com os rostos cheios de excitação. Mas
ninguem estava irritado; nem mesmo se ouviam as palavras concludentes e
obscenas ás quaes ella estava acostumada.

--Não se sentem á vontade na presença da pequena... pensou.

Sentia-se encantada pela fisionomia grave de Natacha, que parecia tomar
conta em todos, como se fossem creanças para ella.

--Basta, companheiros! basta! disse de subito.

E todos se calaram, volvendo para ella o olhar.

--Os que affirmam que devemos saber tudo affirmam uma verdade. Devemos
illuminar-nos a nós mesmos com a chamma da razão, para que as creaturas
obscuras nos vejam; devemos responder a tudo com honestidade, com
verdade. É preciso conhecer toda a verdade e toda a mentira.

O russo-menor meneava a cabeça ao rythmo das palavras de Natacha.
Vessoftchikof, o rapaz ruivo e o operario que viera com Pavel formavam
um grupo distincto; desagradavam a Pélagué, sem que ella soubesse
porquê.

Quando Natacha concluiu, Pavel ergueu-se e perguntou tranquillamente:

--O que queremos nós ser? Apenas creaturas que comem e bebem? Não!
queremos ser homens. Devemos mostrar aos que nos exploram e nos fecham
os olhos, que vemos tudo, que não somos idiotas, nem brutos, que não
queremos só comer, mas tambem viver como é proprio dos homens. Devemos
mostrar aos inimigos que a vida de degredo que elles nos arranjaram não
impede que possamos medir-nos com elles pela intelligencia e excedel-os
pelo espirito...

Pélagué ouvia, estremecendo de orgulho por ser o seu filho quem assim
falava.

--Ha muita gente farta, mas ninguem entre ella que seja honesto! disse
o russo-menor. Construamos uma ponte que atravesse o pantano da nossa
vida infecta e que nos conduza ao reino futuro da bondade sincera, eis
a nossa tarefa, companheiros!

--Em tempo de guerra não se limpam armas! replicou soturnamente
Vessoftchikof.

--Aliás fazem-nos os ossos n’um feixe, antes da batalha! exclamou
alegremente o russo-menor.

Tinha passado meia noite quando o grupo dispersou.

O rapaz ruivo e Vessoftchikof foram os primeiros a saír, o que não
agradou a Pélagué.

--Como vão apressados! pensou, cumprimentando-os.

--Acompanha-me, André? perguntou Natacha.

--Ora essa!

Emquanto Natacha se vestia na cosinha, Pélagué disse-lhe:

--Tem umas meias tão finas, com um tempo d’estes!... Se me dá licença,
hei de fazer-lhe um par, de lã.

--Obrigado, mas as meias de lã arranham a pelle! respondeu, rindo.

Descanse, que, feitas por mim, não arranharão.

Natacha observou-a com os olhos semi-cerrados, e este olhar fixo
embaraçou-a.

--Desculpe se é tolice, mas creia ser de bôa vontade!

--Sim. A sr.ᵃ é bôa! exclamou Natacha a meia voz, apertando-lhe a mão.

--Bôa noite, mãesinha! disse o russo-menor encarando n’ella; saíu,
depois de beijal-a, acompanhando Natacha.

Pélagué olhou para o filho que no limiar da porta do quarto, sorria.

--Porque sorris? perguntou, como envergonhada.

--Ora! porque estou contente.

--Sou velha e tôla, bem sei, mas compreendo aquillo que fica bem.

--E tem razão. Vá deitar-se, vá, que são horas.

--E tu tambem deves ir. Eu é n’um instante.

Á roda da meza d’onde retirava os copos, sentia-se feliz: tudo se tinha
passado sem novidade e terminado em paz.

--Tiveste uma bôa idéa, meu filho: é uma bella gente. O russo-menor...
acho-o interessante. E a rapariga... Ah! que intelligente que é! Quem é
ella?

--Professora de primeiras lettras, respondeu resumidamente, passeando
ao comprimento do quarto.

--Por isso é tão pobre! Que mal vestida!...

Vae apanhar um frio!... Onde vivem os paes?

Em Moscou.

E Pavel, parando junto da mãe, disse em voz baixa e gravemente:

--O pae é muito rico, negociante de ferro, e possue varios
estabelecimentos. Expulsou-a porque ella entrou neste caminho... Foi
educada no luxo, toda a familia a amimava, dando-lhe quanto queria... E
n’este momento é obrigada a andar a pé, sósinha, sete kilometros.

Estes pormenores impressionaram Pélagué. No meio do quarto, olhava para
o filho sem dizer palavra, os sobrolhos erguidos n’uma expressão de
assombro.

Depois perguntou a meia voz:

--Vae para a cidade?

--Vae.

--Ah! e não tem medo?

--Não, não tem medo! respondeu, sorrindo.

--Não tem?!... Poderia passar a noite cá em casa... Dormiria comigo.

--Impossivel. Vêl-a iam saír ámanhã pela manhã; e devemos evitar
isso... Ella primeiro ainda.

Pélagué caíu em si, e tendo olhado para a janella, passeando, disse
meigamente:

--Não percebo o que possa haver perigoso, e que torne prohibidas estas
coisas. Que mal pode haver? Ella não sentia absoluta convicção e
desejava obter do filho uma resposta negativa. Elle fitou-a, sereno, e
respondeu com firmeza:

--Não fazemos nem faremos mal algum. Todavia, sabe que é a prisão o que
nos espera.

As mãos de Pélagué tremeram. Foi com a voz enfraquecida que perguntou:

--Talvez... Queira Deus que tal não succeda!

Pavel, carinhoso, mas resoluto:

--Não! não quero enganar-te! O que te disse ha de succeder.

Acrescentou, sorrindo:

--Olha: vae deitar-te! Estás fatigada! Bôa noite!

Sósinha, a mãe approximou-se da janella e olhou para a rua. O vento
passava, varrendo a neve dos telhados das casinhas adormecidas, batendo
contra as paredes, murmurando não se sabe o quê, e baixando á terra
para fazer correr ao longo das ruas nuvens brancas de flócos seccos.

--Jesus Christo, tende piedade de nós! supplicou baixinho.

As lagrimas accumulavam-se-lhe, a espectativa da desgraça da qual o
filho falava com tanta tranquilidade e certeza, agitava-se dentro
d’ella como uma borboleta nocturna. Perante os seus olhos desenrolou-se
uma planicie coberta de gelo. O vento levando os flócos de neve,
redemoinhava assobiando. No meio da planicie, um pequenino perfil de
rapariga caminhava, solitario e vacillante. O vento enrolava-se-lhe nas
pernas, enchia-lhe as saias, atirava-lhe ao rosto flócos aggressivos.
O caminho era difficil para aquelles pequeninos pés que se enterravam
na neve. Fazia frio e as trevas eram de metter medo. A rapariga
inclinava-se para a frente como debil haste sacudida pelo sopro rapido
do vento do outomno.

Á sua direita, no pantano, uma floresta erguia a sua sombra compacta
onde as bétulas e os frageis pinheiros tremiam e gemiam tristemente.

Muito ao longe, na sua frente, scintillavam as luzes da cidade.

--Senhor! tende piedade de nós! disse ainda a pobre mãe, tremendo de
frio e de medo.



VII


Os dias succediam-se; como as contas de um rosario, addiccionavam-se
em semanas e em mezes. Todos os sabbados, os companheiros reuniam-se
em casa de Pavel; e cada sessão era como um degrau da longa escadaria
em suave declive que conduzia a muito distante, não se sabia aonde,
elevando lentamente os que por ella subiam, e da qual se não via o fim.

Novas caras appareciam constantemente. O pequeno quarto dos Vlassof
ia-se tornando apertado. Natacha continuava a comparecer, transida de
frio, fatigada, mas sempre alegre e bem disposta. Pélagué tinha-lhe
feito as taes meias que ella propria lhe calçou. A principio, Natacha
tinha rido, depois calou-se, e, reflectindo por um momento:

--Tive uma creada, disse baixinho, que tambem me era
extraordinariamente dedicada! Olhe, Pélagué Nilovna é muito para pensar
este caso: o povo que tem uma vida tão ardua, tão cheia de humilhações,
possue mais coração, mais bondade do que os outros!

Tinha erguido o braço, designando um ponto muito afastado d’ali.

--E a menina?--disse-lhe a mãe de Pavel--que sacrificou seus paes e o
resto...

Não chegou a concluir o seu pensamento, suspirou e calou-se olhando
para Natacha. Sentia-se-lhe reconhecida, sem bem saber de quê, e
deixara-se ficar sentada no chão, diante da rapariga, que sorria
pensativa, com a cabeça descaída para o peito.

--Sacrifiquei os meus paes... tinha repetido Natacha. Mas não é isto
o peor. O meu pae é tão estupido e ordinario, o meu irmão tambem, e
demais costuma beber! A minha irmã mais velha é uma desgraçada, causa
compaixão. Casou com um homem muito mais idoso do que ella, muito rico,
mas avarento e repugnante. De quem eu tenho mais saudades é da mamã!

--Coitadinha! lamentou a mãe de Pavel, com um triste movimento de
cabeça.

A rapariga endireitou-se de subito e exclamou:

--Ah! não! Ha momentos em que a minha alegria, a minha felicidade não
tem limites!

O seu rosto empallideceu, e saíam chispas de seus olhos azues. Pondo a
mão no hombro de Pélagué, disse em voz profunda, n’um tom que parecia
vindo do coração:

--Se soubesse... se podesse compreender a obra brilhante e enorme que
estamos realisando!... Havia de sentil-a!

Uma impressão, não muito afastada da inveja, apoderou-se do coração de
Pélagué, que disse tristemente, erguendo-se:

--Estou muito velha para essas coisas... sou ignorante... estou muito
velha...

... Pavel falava muito, discutia cada vez com maior ardor, e emagrecia.
Pélagué julgava notar que, quando elle conversava com Natacha ou para
ella olhava demoradamente, o seu olhar severo se tornava suave, que
a sua voz vibrava com mais carinho, que elle se revelava ainda mais
simples.

--Deus o queira!... pensava. Sorria á ideia de que Natacha podesse vir
a ser sua nora.

Quando, nas reuniões, a discussão tomava mais calor, o russo-menor
levantava-se, e bamboleando como o badalo d’um sino, soltava com a
sua voz sonora palavras claras e simples que faziam voltar o socego.
O taciturno Vessoftchikof levava constantemente os companheiros a
actos mal definidos; era sempre elle e Samoílof, o rapaz ruivo, quem
esquentava as discussões. Tinham por partidario Ivan Boukine, o rapaz
de cabeça redondinha, de sobrolhos brancos, e que parecia deslavado
como o sol. Jacob Somof, sempre modesto, asseado e bem penteado, falava
pouco e breve, em voz baixa e grave. Como Fédia Mazine, o adolescente
de fronte alta, era sempre da opinião de Pavel e do russo-menor.

Por vezes, em logar de Natacha, era Nicolao Ivanovitch quem vinha da
cidade. Usava occulos e tinha barbicha loira. Natural d’uma provincia
distante, as inflexões da sua voz eram especiaes e cantantes, falando
quasi sempre sobre themas simples, a vida em familia, as creanças,
o commercio, a policia, o preço da carne e do pão, emfim a vida de
todos os dias. E em tudo descobria êrros, confusão, coisas estupidas,
divertidas ás vezes, mas sempre prejudiciaes para os homens. Parecia
a Pélagué que Nicolao Ivanovitch viera de longe, d’outro paiz onde a
existencia era facil e honesta, e que ali, onde ella vivia tudo lhe
desagradava. Era de côr amarelenta; pequenas rugas lhe circumdavam
os olhos, a voz era grossa, e tinha as mãos sempre quentes. Quando
cumprimentava a mãe de Pavel, agarrava-lhe a mão por completo com os
dedos vigorosos, e tal aperto era como um consolo para a alma d’ella.

Da cidade vinham ainda outras pessôas, por exemplo uma rapariga
esbelta, de olhos grandes e rosto magro e pallido. Chamavam-lhe
Sachenka. Havia o que quer que fosse masculo nos seus gestos e no
andar; franzia os sobr’olhos negros como irritada; quando falava, as
delicadas narinas estremeciam.

Foi ella que um dia disse primeiro que os outros:

--Nós, socialistas...

Quando Pélagué ouviu esta palavra, olhou para a rapariga com mudo
terror.

Sabia que os socialistas tinham assassinado um tzar. Fôra durante a
sua mocidade; dissera-se então que os proprietarios ruraes, indignados
contra o imperador por ter libertado os servos, haviam jurado não
cortar os cabellos emquanto elle não fosse morto. Por isso não podia
compreender a rasão por que o seu filho e a companheira se tinham feito
socialistas.

Quando todos se retiraram, perguntou a Pavel:

--Pavloucha, é verdade que és socialista?

--É! respondeu firme e franco como sempre.

Pélagué deu um profundo suspiro e disse, baixando os olhos:

--Parece-te bem, meu filho?... Elles são contra o tzar... já mataram
um!...

Pavel entrou de passear pelo quarto, passando a mão pela cara, até que
respondeu com um sorriso:

--Nós não precisamos d’isso!

Falou-lhe muito tempo a serio. Ella chorava e reflectia. Depois, a
terrivel palavra foi repetida cada vez mais a miudo, e tornou-se tão
familiar aos ouvidos de Pélagué como um amontoado d’outros termos
incompreensiveis para ella. Mas Sachenka não lhe agradava; quando a
via, sentia-se pouco á vontade, anciosa...

Uma noite, disse ao russo-menor, com um tregeito de mal-estar:

--É muito rispida a Sachenka! Está sempre a mandar: façam isto! façam
aquillo!

O russo-menor riu ruidosamente.

--É a pura verdade! nem mais nem menos! Não é assim, Pavel?

E, piscando o olho, disse em tom escarninho:

--A nobreza!

Pavel replicou seccamente:

--É uma rapariga decidida!

E ficou-se com ar de mal disposto.

--Não ha duvida tambem! concordou o russo-menor. Ha apenas uma
differença: não compreende que é ella quem deve e que somos nós que
queremos e podemos.

Pélagué notara tambem que a severidade de Sachenka caía mais em
particular sobre Pavel a quem por vezes chegava a repreender. Elle
sorria, ficava silencioso, e contemplava a rapariga com o olhar suave
que outrora tinha para Natacha. E isto não agradava a Pélagué.

Reuniam-se duas vezes por semana; e quando a mãe de Pavel via a
attenção apaixonada com que os novos escutavam as falas do filho e do
russo-menor, as interessantes narrativas de Natacha, de Sachenka, de
Nicolao Ivanovitch e dos outros que vinham da cidade, esquecia as suas
inquietações, e recordando-se dos fastidiosos dias da sua mocidade,
meneava tristemente a cabeça.

Muitas vezes, Pélagué ficava surpreendida dos accessos de alegria
ruidosa que os atacavam de subito. O facto dava-se geralmente quando
tinham lido nos jornaes noticias da classe operaria estrangeira. Era
uma alegria estravagante, como infantil; riam todos com um riso limpido
e muito alegre, e batiam amigavelmente no hombro do companheiro mais
proximo.

--Teem trabalhado a valer, os nossos companheiros allemães! annunciava
qualquer d’elles, como embriagado de extasi.

--Vivam os nossos companheiros italianos! gritava outra voz.

E quando enviavam estas exclamações ao longe, aos amigos desconhecidos,
pareciam convencidos de que elles os ouviam e participavam do seu
enthusiasmo.

O russo-menor, cheio de um amor que abrangia a todos os seres,
declarava:

--Deveriamos escrever-lhes, não acham, para que saibam que teem na
Russia, tão distante, amigos, operarios que professam a mesma religião
que elles, companheiros que teem o mesmo fim, e rejubilam com as suas
victorias...

E, com o sorriso nos labios, falava-se durante muito tempo dos
francezes, dos inglezes, dos suecos, como de entes queridos, em cujas
felicidades e soffrimentos se tomava parte.

No pequeno quarto nascia assim o sentimento do parentesco espiritual,
unindo os operarios de aquella terra da qual elles eram ao mesmo tempo
os senhores e os escravos. Esta confraternidade, que lhes dava uma só
alma, impressionava Pélagué, e embora ella lhe fosse inaccessivel,
fazia-a elevar se sob a influencia d’aquella força alegre, triunfante,
embriagadora e cheia de mocidade, acariciadora e cheia de esperanças.

--No meio de tudo, como os srs. são! disse ella um dia ao russo-menor.
Para os srs., todos são companheiros: os judeus, os armenios, os
austriacos... Falam d’elles como se falassem de amigos, entristecem-se
e alegram-se com o mundo inteiro!

--Sim, mãesinha! exclamou elle. O mundo é nosso! o mundo é dos
operarios! Para nós não ha nações, nem raças! ha somente companheiros
e... inimigos. Todos os operarios são nossos amigos; todos os ricos,
todos os que teem auctoridade, são nossos inimigos. Quando se olha
para a terra com bons olhos, quando se vê quanto nós, os operarios,
somos numerosos, que poder espiritual nós representamos, sente-se o
coração invadido pela alegria e pela felicidade, como na celebração de
uma festa solemne. O francez e o allemão teem o mesmo sentimento, e
os italianos tambem rejubilam. Somos todos nascidos da mesma mãe, da
grande, da invencivel idéa da fraternidade operaria, em todos os paizes
da terra. Desenvolve-se, aquece-nos com o seu calor, é o segundo sol
no ceo da justiça; e este ceo está no coração do operario. Qualquer
que elle seja, seja qual fôr o seu nome, o socialista é nosso irmão em
espirito, agora e para sempre, por todos os seculos dos seculos!

Esta exuberancia infantil, esta fé luminosa e inabalavel manifestava-se
de mais em mais no pequeno grupo, n’uma força crescente.

E quando Pélagué via esta alegria, sentia instinctivamente que na
verdade viera ao mundo o que quer que fosse grande e resplendente, como
um sol semelhante ao que via no ceo.

Ás vezes, cantavam, alegremente e a plenos pulmões, canções familiares;
por outras, aprendiam novas canções, tambem melodiosas, mas com musica
melancólica e fóra do vulgar. Então, abaixavam a voz, as fisionomias
tornavam-se graves, pensativas, como ao som de um hymno religioso. Os
rostos tornavam-se pallidos, os que cantavam animavam-se, e sentia-se
que uma grande força se occultava sob as palavras sonoras.

Uma d’aquellas canções principalmente perturbava e inquietava Pélagué.
Não traduzia os gemidos, as preplexidades da alma ultrajada que vagueia
solitaria nos atalhos obscuros das incertezas dolorosas nem dos gritos
da alma incolor e informe assaltada pela miseria, embrutecida pelo
medo. Não repetia os languidos suspiros do ser avido de espaço, nem
os gritos de provocação da audacia fogosa prestes a destruir o mal e
o bem, indifferentemente. O cego sentimento da vingança e do odio,
capaz de aniquilar tudo, impotente para crear, não apparecia então; não
havia em taes canções qualquer vestigio do antigo mundo, do mundo dos
escravos.

As palavras rispidas, a melodia austera não agradavam a Pélagué, mas
havia n’aquellas canções uma como força immensa que abafava o som e
as palavras, despertando no coração o presentimento de alguma coisa
grandiosa para o pensamento. Pélagué via isto nos rostos, no olhar dos
novos, e, cedendo áquelle poder misterioso, escutava sempre a canção,
duplamente attenta, com inquietação profunda.

--Já é tempo de a cantarmos pelas ruas! dizia o sombrio Vessoftchikof,
em principios da primavera.

Quando o pae mais uma vez foi prezo, declarou tranquillamente:

--Agora poderiamos reunirmo-nos em minha casa...

Quasi todas as tardes, depois do trabalho, um ou outro dos
companheiros ia a casa de Pavel; liam juntos, copiavam trechos das
brochuras. Andavam preoccupados e nem já tinham tempo de se lavarem.
Ceavam juntos e tomavam o seu chá sem pôrem de lado os livros; e as
suas conversas cada vez se tornavam mais incompreensiveis para Pélagué.

--Precisamos de um jornal! repetia Pavel, a miude.

A vida tornava-se febril e agitada; dirigiam-se uns aos outros com mais
celeridade, era com mais rapidez que passavam d’um livro a outro, como
abelhas voando de flôr para flôr.

--Começa-se a falar de nós! disse uma noite Vessoftchikof.
Provavelmente, acabamos por ser presos, dentro em pouco.

--Quem não quer ser lobo não lhe veste a pelle! observou o russo-menor.

Cada vez agradava mais a Pélagué. Quando elle lhe chamava mãesinha,
parecia-lhe que uma suave mão de creança lhe afagava o rosto. Ao
domingo, se Pavel tinha que fazer, era elle quem rachava a lenha; um
dia appareceu carregado com uma grande taboa, pegou na ferramenta e
substituiu com habilidade um degrau pôdre da porta d’entrada; doutra
vez, recompoz a varanda que ameaçava ruina. Emquanto trabalhava,
assobiava musicas melancólicas.

Pélagué disse um dia ao filho:

--Se nós fizessemos do russo-menor nosso hospede? Seria mais commodo
para ambos, que não precisariamos de andar sempre a correr de casa d’um
para casa do outro.

--Para que ha de ir arranjar mais esse trabalho? perguntou Pavel,
encolhendo os hombros.

--Ora! Durante toda a minha vida tenho sido atormentada com trabalho
sem saber para quê; posso perfeitamente fazer isto hoje em favor de tão
bom homem.

--Faça o que quizer! Se elle acceitar, dar-me-á satisfação.

E o russo-menor passou a viver com elles.



VIII


A pequena casa na extrema do bairro despertava a attenção: as suas
paredes já tinham sido como que atravessadas por olhares suspeitosos.
As azas do rumor publico agitavam-se por cima della; tentava-se
descobrir o misterio que ali se occultava. Á noite, havia quem fosse
espreitar pela janella; por vezes, alguem havia que batesse na vidraça,
fugindo logo.

Certo dia, na rua, o taverneiro Bégountzef fez parar a mãe de Pavel.
Era um bonito velhote que tinha sempre um lenço de seda preta á roda do
pescoço vermelho e enrugado. O nariz brilhante e agudo era adornado por
lunetas de aro d’escama de peixe, o que lhe tinha grangeado a alcunha
de «Olhos d’osso».

Sem tomar a respiração nem esperar resposta, surpreendera Pélagué com
uma torrente de palavras sêccas e vivissimas:

--Como vae, Pélagué Nilovna? E o seu filho? Ainda não acha tempo de
o casar? O rapaz já está afinal na devida idade para ter uma mulher.
Quando os paes casam cedo os filhos ficam mais tranquillos. O homem
que vive em familia tem mais saude, tanto de corpo como de espirito,
conserva-se como um cogumello em vinagre. No seu logar, eu já o tinha
casado. Os tempos que vão correndo exigem que abramos os olhos no que
respeita ao ente humano; ha quem se entregue a uma vida a seu modo,
deixando-se arrastar a toda a casta d’acções censuraveis. Já se não
vêem os rapazes no templo de Deus; afastam-se dos logares publicos, mas
reunem-se ás escondidas pelos cantos, a cochichar. Porque andam elles a
cochichar? se me permitte a pergunta. Porque se occultam? O que é que
um homem não póde dizer em publico, na taverna, por exemplo? Misterios!
Mas o logar dos misterios é a nossa santa egreja apostolica! Todos
os outros misterios, realisados a occultas, vem da desorientação do
espirito. Muitos bons dias lhe desejo.

E tirou o boné com um gesto pretencioso, agitou-o no ar, e foi-se,
deixando Pélagué immersa na perplexidade.

D’outra vez, Maria Korsounova, visinha dos Vlassof, viuva d’um
ferreiro, e que vendia comestiveis na fabrica, disse a Pélagué ao
encontral-a no mercado:

--Não percas de vista o teu filho, Pélagué!

--Porquê?

--Correm uns boatos a seu respeito... segredou com ares misteriosos.
Coisas feias! Diz-se que está organisando uma especie de corporação, no
genero dos flagelantes. Chama-se a isto uma seita. Fustigar-se-ão uns
aos outros como os flagelantes.

--Não digas mais tolices, Maria!

--Vae ralhar com elle que é quem as faz, e não comigo, que te dou parte
do caso! replicou a vendedeira.

Pélagué contou a conversa ao filho, que encolheu os hombros sem
responder. Quanto ao russo-menor, desatou a rir, com as suas
gargalhadas benevolas.

--As raparigas tambem estão zangadas! Sois todos aptos para vos
tornardes bons maridos, trabalhaes bem, não bebeis... e nem olhaes para
ellas! Diz-se que da cidade vem visitar-vos pessoas de má reputação...

--Já cá faltava! exclamou Pavel, fazendo uma cara de nojo.

--N’um pantano tudo cheira a pôdre! disse André suspirando. Seria
melhor, mãesinha, que explicasse a essas patetinhas o que é o
casamento. Talvez não ficassem com a mesma pressa de caír na asneira!

--Ah! exclamou Pélagué. Ellas bem sabem, mas como hão de passar sem
casarem?

--Falta-lhes a compreensão, aliás achariam outra coisa em que se
occuparem! disse Pavel.

Ella dirigiu o olhar para o rosto irritado do filho, balbuciando:

--É a vós que cabe ensinal-as! Convidem para isso as mais intelligentes.

--Impossivel! respondeu Pavel, seccamente.

--Se tu experimentasses!... arriscou André.

Depois de um silencio, Pavel respondeu:

--Começariam a passear aos pares, alguns acabariam por casar, e prompto!

Pélagué caíu em meditações. A austeridade monacal do filho atordoava-a.
Via que elle era obedecido pelos companheiros, até pelos mais velhos,
como o russo-menor, mas parecia-lhe que todos o temiam e que não
gostavam da frieza dos seus modos.

Uma vez que ella estava na cama e Pavel e André ainda liam, apurou o
ouvido ás suas palavras que lhe chegavam atravez do tabique.

--Gosto da Natacha, sabes? disse de repente o russo-menor, a meia voz.

--Sim, sei.

Pavel não respondera logo.

Pélagué ouviu o russo-menor levantar-se, vagaroso, e começar a passear
pelo quarto, com os pés descalsos. Assobiou uma triste canção; depois
tornou a falar:

--Ella terá notado?...

Pavel ficou silencioso.

--Que te parece? perguntou de novo o companheiro, baixando a voz.

--Tem notado! respondeu Pavel. E é por isso que já não vem.

André voltou a passear, assobiando; até que:

--E se eu lho dissesse?...

--O quê?

--Que...

--Para quê?

Pélagué ouviu André rir.

--Eu cá, sim, parece-me que quando se ama uma rapariga, devemos
dizer-lho, se não é o mesmo que nada!...

Pavel fechou o livro com ruido e perguntou:

--E que resultado esperas?

Estiveram calados durante alguns minutos.

--E então? perguntou André.

--É preciso ver claramente o que se quer... disse emfim Pavel com
vagar. Supponhamos que ella tambem te ama. Não creio. Mas supponhamos.
Casam. É uma união interessante, na verdade, a d’uma rapariga com um
operario!... Vem os filhos... serás obrigado a trabalhar sósinho... e
muito. A vossa vida será a de toda a gente, luctareis para ter com que
vos sustentardes, para terdes casa onde viver com os filhos. E afinal
ambos ficareis perdidos para a obra.

Houve um silencio, até que Pavel concluiu:

--Deixa-te d’isso, André! Cala-te. Não a perturbes.

--Mas Nicolao Ivanovitch prégava a necessidade de viver a vida
integral, com todas as forças da alma e do corpo... Lembras-te?

--Prégava, mas não para nós. Como atingirias tu a integridade? Não
existe para ti. Quando se ama o futuro, temos que renunciar a tudo no
presente, a tudo, irmão!

--É custoso! replicou André em voz abafada.

--E como poderia não ser assim? reflecte!

Houve novo silencio. Ouvia-se apenas a pendula do relogio,
compassadamente, dividindo o tempo em segundos.

O russo-menor disse:

--Metade do coração ama; a outra odeia... E é isto coração, an?

--E como poderia não ser assim?

Seguiu-se o folhear d’um livro: por certo Pavel voltava á leitura.
Pélagué permanecia deitada com os olhos fechados, sem se atrever a
fazer nem um movimento. Sentia-se profundamente apiedada de André,
mas ainda mais do seu filho. Dizia comsigo: «Meu querido filho... meu
martyr! meu sacrificado!»

De subito, André perguntou:

--Devo então calar-me, não é isso?

--É o mais honesto, André...

--Bem! entrarei n’esse caminho! decidiu o outro.

Mas accrescentou tristemente, decorrido um instante:

--Has de soffrer, Pavel, quando chegar a tua vez.

--Chegou. Já soffro... e cruelmente.

--Tu tambem?

Lá fóra o vento soprava em torno da casa.

--Não tem nenhuma graça isto!... disse André lentamente.

Pélagué metteu a cabeça debaixo da roupa para poder chorar.

Na manhã seguinte, André pareceu-lhe como fisicamente amesquinhado,
e sentiu-o mais proximo do seu coração. Como sempre, o filho tinha o
porte secco, silencioso, rigido. Até então ella tratava o russo-menor
por André Onissimovitch; d’aquelle dia em diante, sem querer, sem dar
por tal, disse-lhe:

--Deve concertar as suas botas, meu André, senão tem frio nos pés.

--Hei de comprar outras, quando receber a féria.

Depois desatou a rir e perguntou-lhe de chofre, pondo-lhe no hombro a
sua pesada mão:

--Talvez a senhora seja a minha verdadeira mãe, mas que não queira
confessal-o, porque me ache muito feio! Será assim?

Sem falar, ella deu-lhe uma pancadinha na mão. Desejaria dizer-lhe
palavras carinhosas, mas o coração confrangia-se apiedado, e a sua
lingua recusava-se a obedecer-lhe...



IX


No bairro começavam a occupar-se dos socialistas que espalhavam por
toda a parte folhas de papel escriptas a tinta azul. Eram papeis
que falavam malevolamente dos regulamentos impostos aos operarios,
das gréves de Petersburgo e da Russia meridional; exhortavam os
trabalhadores a formarem uma liga e a luctarem na defeza dos seus
interesses.

As pessoas de certa idade que occupavam bons logares na fabrica,
irritavam-se e diziam:

--Seria conveniente dar uma sova mestra n’estes agitadores!

E levavam os papeis aos seus chefes.

Os rapazes, enthusiasmados com taes escriptos, exclamavam ardentemente:

--O que elles dizem é a verdade!

A maioria dos operarios, alquebrados pelo trabalho, indifferentes a
tudo, pensavam indolentemente:

--Aquillo não dá nada.

No entanto as folhas volantes interessavam a todos e, quando não
appareciam, diziam uns para os outros:

--Hoje não ha; deixaram de publical-as...

Mas quando, á segunda-feira, reappareciam, os operarios de novo se
agitavam ruidosamente.

Na fabrica e na taverna eram vistas umas pessoas que ninguem conhecia.
Interrogavam, examinavam, farejavam, e impressionavam a todos com a sua
prudencia suspeita.

Pélagué sabia que toda aquella agitação era obra do seu filho. Via-os
cercarem-no, elle porém não era só, o que tornava o caso menos
perigoso. E o orgulho de ter tal filho juntava-se n’ella á anciedade
que o futuro lhe inspirava: eram os trabalhos misteriosos do rapaz a
misturarem-se como um limpido ribeiro á torrente lamacenta da vida...

Uma tarde, Maria Korsounova bateu á vidraça e, quando Pélagué a
entreabriu, a visinha cochichou:

--Que te dizia eu, Pélagué? Prepara-te! Os teus passarinhos acabaram de
rir! Esta noite hão de vir fazer uma busca em tua casa, na de Mazine e
na de Vessoftchikof.

Não ouviu mais do que as primeiras palavras; as ultimas fundiram-se
n’um rumor vago e melancolico.

Os labios espessos de Maria vibravam com rapidez, o seu nariz carnudo
dilatava-se, os olhos tornavam-se piscos, e moviam-se vagamente para um
e outro lado, como em procura de alguem na rua.

--E olha que eu não sei nada, nada te disse, minha querida, nem mesmo
te vi ainda hoje... Percebes?

Desappareceu.

Pélagué fechou a janella e deixou-se caír n’uma cadeira, com a cabeça
como vasia, sem forças. Mas a consciencia do perigo que ameaçava o
seu filho fêl-a erguer de subito; vestiu-se á pressa, envolveu a
cabeça n’um chale e correu a casa de Fédia Mazine, que estava doente.
Quando entrou, viu-o sentado junto da janella, a lêr, e como que
acalentando com a mão esquerda a direita, cujo pollegar se mantinha
afastado dos outros dedos. Ao ouvir a má nova, elle pôz-se logo de pé,
empallidecendo.

--Que historia esta!... E eu com um abcesso n’este dedo! resmungou.

--Que devemos fazer? perguntou Pélagué alimpando tremulamente o suor do
rosto.

--Espere... não tenha medo! respondeu passando pelos cabellos
encaracolados a mão válida.

--Mas se o senhor é o primeiro a ter medo!...

--Eu?

Córou de repente, e disse a sorrir, com embaraço:

--Sim, é verdade, c’os demonios! Precisamos de prevenir o Pavel. Vou
mandar-lhe alguem... Volte para casa... Isto não ha de ser nada. Então!
ninguem ha de bater-nos!

Apenas chegou a casa, Pélagué reuniu em monte os livros, metteu-os
debaixo do braço e pôz-se á busca de um canto onde occultal-os. Olhou
para o fogão, para o forno, para o canudo do samovar e até para o
barril cheio d’agua. Dizia comsigo que Pavel largaria d’ali a pouco o
trabalho e voltaria para casa; elle porem demorava-se. Por fim, vencida
de cansaço, sentou-se n’um banco da cosinha, escondeu os livros debaixo
da saia e ficou immovel até que apparecessem o filho e André.

--Já sabem?! disse sem se levantar, apenas os viu.

--Já sabemos! respondeu Pavel com sorriso calmo. Tens medo?

--Tenho, muito!

--Não deves ter medo. Não serviria de nada. Nem sequer preparaste o
samovar?!

Ella ergueu-se, e, mostrando os livros, explicou, embaraçadamente:

--Era por causa delles...

O russo-menor e Pavel desataram a rir, o que a tranquillisou em parte.
Depois, o filho pegou em alguns dos volumes e saíu para ir escondel-os
no pateo; André dispoz-se a accender o samovar, e foi dizendo:

--Nada ha terrivel n’isto; o que faz envergonhar uma pessoa é pensar
que haja quem se occupe d’estas coisas. Hão de vir por ahi uns homens
vestidos de cinzento, com um sabre á cinta, esporas nos calcanhares,
e rebuscarão por toda a parte. Espreitam para debaixo das camas, e do
fogão; se ha adega, descem á adega; se ha sotão, sobem ao sotão. As
teias d’aranha caem-lhes nos focinhos, e elles espinoteiam. Enfadam-se,
envergonham-se, e por isto fingem-se muito maos e mostram-se furiosos
contra a gente. O seu emprego é porco, e elles bem o sabem. Uma vez,
foram dar busca á minha casa, não encontraram coisa alguma e... elles
ahi vão! D’outra vez, levaram-me comsigo. Metteram-me depois na cadeia,
onde estive quatro mezes. De tempos a tempos, iam buscar-me e faziam-me
atravessar as ruas no meio de uma escolta de soldados. Perguntavam-me
toda a casta de coisas. Não são creaturas intelligentes, não sabem
falar com criterio. Depois diziam aos soldados que me levassem outra
vez para a cadeia. E aqui está como fazem de nós gato sapato. Emfim,
teem que ganhar os seus ordenados!... Acabaram por pôr-me na rua. E
prompto!

--Que maneira de falar, meu André! exclamou Pélagué mal-disposta.

Ajoelhado em frente do samovar, o russo-menor soprava com toda a força
pelo canudo; levantou a cabeça, mostrando a cara avermelhada pelo
esforço e perguntou alisando com as duas mãos o bigode:

--Como é então que eu falo?

--Como se nunca o tivessem offendido.

Elle ergueu-se, approximou-se de Pélagué, e, tendo abanado a cabeça,
disse, sorrindo:

--Ha por acaso alguem n’este mundo que não tenha sido offendido? É
que tanto me ultrajaram já, que me cansei de encolerisar-me. Que
fazer, se os mais não podem proceder d’outra maneira? Os ultrages
incommodam-me muito, impedem-me de realisar a minha obra... mas não os
podemos evitar, e, se pensamos n’isso, perdemos o nosso tempo. A vida
é assim! D’antes zangava-me contra essa gente; depois, quando me veio
a reflexão, vi que todos elles tinham o coração despedaçado. Cada qual
tem medo de ser o primeiro a atacar. A vida é assim, mãesinha!

As palavras soltavam-se-lhe tranquillamente e faziam extinguir-se a
anciedade de Pélagué. Os olhos polpudos d’elle sorriam, luminosos
e tristes; todo o seu corpo era flexivel, elastico, embora como
desengonçado.

Ella suspirou e disse com calor:

--Deus o faça feliz, meu André!

O russo-menor voltou para o samovar, ajoelhou-se outra vez e murmurou:

--Se me derem a felicidade, não a recusarei; mas não a peço e nunca
irei buscal-a.

E pôz-se a assobiar.

Pavel voltou do pateo.

--Não encontrarão coisa alguma! affirmou, convencido.

Começou a lavar-se. Depois accrescentou, limpando cuidadosamente as
mãos:

--Se lhes mostrar que tem medo, mamã, dirão que alguma coisa ha para
despertar desconfiança. E nós nada fizemos ainda... nada! Bem o sabe,
nada queremos que seja mao; a verdade e a justiça estão do nosso lado,
trabalharemos por ellas toda a vida: eis o nosso crime! Porque havemos
de tremer?

--Terei coragem, Pavel! prometteu.

Mas logo disse, angustiada:

--Se ao menos «elles» viessem depressa!

«Elles» porem não vieram n’aquella noite.

No dia seguinte, prevendo que Pavel e André iriam chasquear dos seus
terrores, foi a primeira a rir-se de si mesma.



X


«Elles» chegaram quando menos os esperavam, quasi um mez depois.
Vessoftchikof, André e Pavel estavam reunidos e falavam do seu
jornal. Era tarde, perto da meia noite. Pélagué já estava deitada, ia
adormecendo e ouvia-lhes vagamente as vozes receosas e em tom baixo.
André levantou-se de chofre, atravessou a cosinha nos bicos dos pés
e fechou de mansinho a porta apoz elle. No corredor ouviu-se o ruido
d’uma celha que tombára. André disse em voz alta:

--Oiçam: é o ruido de esporas, na rua!

Pélagué levantou-se de salto, pegou n’uma saia, tremula; mas Pavel
appareceu no limiar e disse-lhe tranquillamente:

--Fique deitada... Não está bôa...

Ouviu-se depois um deslisar furtivo sob o telheiro.

Pavel approximou-se da porta, e batendo nella com a mão, perguntou:

--Quem está ahi?

Rapido como um relampago, um corpo d’homem alto surgiu entre os
umbraes; e outro ainda. Os dois guardas repelliram o rapaz, puxando-o
depois para entre elles. Uma voz grave e irritada disse:

--Não é quem esperavas, un?

Quem falava era um official ainda novo, alto e magro, de bigode preto.
Fédiakine, agente da policia do bairro, dirigiu-se para a cama de
Pélagué; levando a mão ao boné, em continencia, indicou com a outra a
mulher, dizendo com um olhar terrivel:

--A mãe é esta, meu Senhor!

Depois, apontando para Pavel:

--E o filho é aquelle!

--Pavel Vlassof? perguntou o official, franzindo os olhos.

O rapaz respondeu affirmativamente com a cabeça.

Passando a mão pelo bigode, o official informou:

--Venho fazer uma busca em tua casa... A velha que se levante! Quem
está ali?

E, tendo olhado para o quarto, entrou n’elle a passos largos.

Ouviram-no perguntar:

--O seu nome?

Outros dois personagens appareceram ainda: o velho fundidor Tvériakof e
o seu inquilino, o fogueiro Rybine, um homem de cabelleira negra e de
bom porte. Tinham sido trazidos pela policia como testemunhas:

Rybine disse com voz grossa e possante:

--Boa noite, Pélagué!

Ella vestia-se, e, para se dar coragem, murmurava:

--Esta agora! Virem de noite!... quando uma pessôa está na cama!...

O quarto parecia pequeno e por elle se espalhara um cheiro activo a
graxa. Os dois guardas e o commissario de policia do bairro, Riskine,
tiravam da estante os livros com ruido, e empilhavam-nos diante do
official. Os outros davam pancadas nas paredes, olhavam para debaixo
das cadeiras; um trepou com custo ao cano do fogão. O russo-menor e
Vessoftchikof, unidos um ao outro, conservavam-se a um canto; o rosto
bexigoso do segundo estava coberto de manchas vermelhas, e os seus
olhinhos pardos não podiam desfitar-se do official. André retorcia
o bigode, e quando Pélagué entrou no quarto, fez-lhe com a cabeça um
movimento amigavel.

Para occultar o terror, mexia-se não de lado, como de costume, mas com
o peito deitado para a frente, o que lhe dava um aspecto d’importancia
affectada e risivel. Andava ruidosamente e as palpebras tremiam-lhe.

O official ia pegando rapidamente nos livros com as pontas dos dedos
brancos e delgados, folheava-os, saccudia-os, e rapidamente atirava-os
para o lado. Alguns volumes caíram no chão. Todos estavam callados; não
se ouvia mais do que o respirar dos guardas esbofados, o tintilar das
suas esporas; de quando em quando um d’elles perguntava:

--Já viste aqui?

Pélagué collocou-se junto do filho, encostada á parede; como elle,
cruzou os braços no peito e quiz observar o official. As pernas
vacillaram-lhe, um nevoeiro toldava-lhe a vista.

De subito, a voz de Vessoftchikof soltou-se concludente:

--Para que serve deitar os livros ao chão?

Pélagué estremeceu. Tvériakof abanou a cabeça como lhe tivessem batido
na nuca; Rybine resmungou e fitou attentamente o audacioso.

O official franziu os olhos e cravou-os no rosto bexigoso e immovel do
rapaz... Depois os seus dedos folhearam o livro com mais rapidez.

De quando em quando, os olhos pardos de Vessoftchikof abriam-se tanto
que dir-se-ia elle estar soffrendo atrozmente e prestes a gritar,
furioso e impotente contra a dôr.

--Soldado! exclamou de subito. Apanha os livros!

Os guardas voltaram-se para elle, e olharam depois para o official.
Este levantou a cabeça, e olhando rapidamente de soslaio para o rapaz,
ordenou por entre dentes:

--Vá lá, apanhem os livros.

Um dos guardas abaixou-se, e observando furtivamente Vessoftchikof
poz-se a apanhar os livros esfarrapados.

--Teria feito melhor estando calado... disse baixinho Pélagué para o
filho.

Elle encolheu os hombros. O russo-menor estendeu o pescoço.

--Que cochichar é esse? Façam favor de estar calados! Quem é que lê
aqui a Biblia?

--Eu! respondeu Pavel.

--Ah!... E de quem são estes livros?

--Meus.

--Está bem!... commentou o official apoiando-se ás costas da cadeira.

Fez estalar os nós dos seus dedos finos e brancos, estendeu as pernas
debaixo da meza, cofiou o bigode, e perguntou a Vessoftchikof:

--És tu que te chamas André Nakhodka?

--Sou eu! respondeu o bexigoso avançando.

O russo-menor deitou-lhe a mão a um hombro e obrigou-o a recuar.

--Enganou-se! o André sou eu.

O official levantou a mão, e ameaçando Vessoftchikof com o dedo
indicador erguido:

--Toma cuidado!...

Começou a remexer nos seus papeis.

A noite luminosa e clara olhava indifferentemente pela janella. Alguem
ia e vinha em frente da casa e a neve estalava sob os seus passos.

--Já foste perseguido por delictos politicos, Nakhodka? perguntou o
official.

--Já: em Rostof e em Saratof... Com a differença de que ali as
auctoridades não me tratavam por «tu.»

O official franziu o olho direito, esfregou-o e disse depois, mostrando
os dentitos:

--N’esse caso, Nakhodka, conhece talvez... Sim... deve conhecer
os scelerados que espalham pela fabrica folhetos e proclamações
prohibidas?...

O russo-menor teve um estremecimento, ia dizer o que quer que fosse
com um sorriso aberto, quando se ouviu de novo a excitante voz de
Vessoftchikof:

--É a primeira vez que vemos scelerados!

Houve um instante de silencio.

O rosto de Pélagué tornou-se pálido até na cicatriz, emquanto o
sobrolho direito lhe era repuxado para cima. A barba negra de Rybine
entrou de tremer de uma maneira estupenda; baixou a cabeça e passou a
mão vagarosamente pelo bigode.

--Ponham fóra d’aqui essa besta! ordenou o official.

Dois guardas agarraram o rapaz por debaixo dos braços e arrastaram-no
para a cosinha. Quando lá chegou, conseguiu parar, e apegando-se ao
chão com toda a força de que os seus pés eram susceptiveis, gritou:

--Esperem! Quero pôr a minha capa!

O commissario de policia, que estivera a rebuscar no pateo, appareceu
dizendo:

--Nada encontrámos. Vimos todos os cantos.

--Está claro! exclamou o official ironicamente. Já o esperava! Estamos
a contas com homens já muito experientes.

Pélagué ouviu aquella voz fraca, tremula e imperiosa; e ao observar
aquelle rosto amarellento sentia estar ali um inimigo, um inimigo
implacavel, com o coração cheio de desprezo pelo povo. D’antes
poucas pessoas assim ella tinha visto, e nos ultimos annos chegára a
esquecer-se de que ellas existiam.

--É a estes que nós causamos inquietações!... pensava.

--Senhor André Onissimof Nakhodha, filho de pae incognito, está preso!

--Porquê? perguntou tranquillo.

--Depois lhe direi! respondeu o official com malevola delicadeza.

E voltando-se para Pélagué, berrou-lhe:

--Sabes ler e escrever?

--Não! interveiu Pavel.

--Não falo comtigo! disse o official com severidade. Responde, velha,
sabes ler e escrever?

Invadida de um sentimento de instinctivo odio contra aquelle homem,
Pélagué aproximou-se de súbito, muito trémula, como se tivesse caído
n’um rio gelado; a cicatriz fez-se escarlate, e o sobrolho baixou-lhe.

--Não grite! exclamou, estendendo o braço para o official. É ainda
novo, não sabe o que seja o soffrimento...

--Socegue, mamã... interrompeu Pavel.

--É melhor uma pessoa abafar o coração e calar-se! aconselhou André.

--Espera, Pavel! exclamou ainda Pélagué, n’um arranco para a meza.
Porque é que o sr. anda prendendo a gente?

--Isso não é da sua conta. Cale-se! berrou o official, erguendo-se.
Tragam cá o Vessoftchikof.

E pôz-se a ler um papel que collocara á altura do rosto.

Trouxeram o rapaz.

--Tira o boné! disse-lhe o official, interrompendo a leitura.

Rybine approximou-se de Pélagué e dando-lhe um encontrão:

--Não se apoquente, tiasinha!

--Como hei-de eu tirar o boné, se tenho as mãos agarradas?

O official atirou com o auto para cima da meza, dizendo simplesmente:

--Assignem!

Pélagué viu os assistentes assignarem o documento, a sua excitação
desapparecera, faltava-lhe a coragem; affluiam-lhe aos olhos amargas
lagrimas de humilhação e de consciencia da sua fraqueza. Durante
os vinte annos da sua vida de casada, tinha chorado lagrimas como
aquellas; mas esquecera-lhe o ardor quasi por completo desde que
enviuvára. O official olhou para ella e commentou com uma expansão
desdenhosa:

--Foi cedo para tanto alarde, minha prenda! Creia que é capaz de ficar
sem lagrimas... para o futuro.

Respondeu-lhe, outra vez irritada:

--Ás mães nunca faltam as lagrimas!... Se tem mãe, ella deve saber
isto, com certeza!

O official metteu rapidamente os seus papeis na carteira, que era nova
e de feixos brilhantes; e dirigindo-se ao commissario de policia:

--Todos elles denotam uma independencia revoltante!

--Que insolencia! murmurou o commissario.

--A caminho! ordenou o official.

--Até á vista, André! até á vista, Nicolao! disse Pavel apertando
calorosamente a mão dos companheiros.

--Está claro... até á vista! repetiu o official com ironia.

Sem dizer palavra, Vessoftchikof apertava a mão de Pélagué entre
os seus dedos curtos. Respirava a custo; o pescoço robusto estava
congestionado, os olhos brilhavam-lhe de raiva. André sorria e meneava
a cabeça; disse algumas palavras a Pélagué, que fez o signal da cruz
sobre elle, respondendo-lhe:

--Deus conhece os justos!

Emfim o bando de homens de capotes cinzentos desappareceu dobrando a
esquina da casa, com um tintilar de esporas. Rybine foi o ultimo a
saír; com o seu negro olhar prescrutou Pavel; em tom meio abstracto
disse:

--Adeus, an...?

E foi-se, sem pressas, tossindo, de cabeça baixa.

Com as mãos cruzadas nas costas, Pavel entrou de passear de um para
outro lado, por entre as trouxas de roupa e os livros espalhados no
chão, até que perguntou em tom sombrio:

--Viste como é?

Sem deixar de olhar para a desordem em que ficára o quarto, ella disse
baixinho, afflicta:

--Prender-te-ão tambem... tambem, a ti! Para que foi tão grosseiro o
Vessoftchikof?

--Teve medo, provavelmente!... respondeu Pavel tambem em voz baixa. Não
se deve falar áquella gente... nada se consegue d’elles! são incapazes
de compreender...

--Vieram! prenderam-no! levaram-no! murmurou, com os braços erguidos.

Só lhe restava o filho. O coração de Pélagué começou a pulsar mais
vagaroso; o seu pensamento immobilisava-se perante um facto que ella
não podia admittir como real.

--Faz pouco de nós, aquelle homem amarello: ameaça-nos... e...

--Basta, mãe! disse de repente Pavel com decisão. Anda cá, arrumemos
tudo isto.

Tinha dito aquelle «mãe» e tratara-a por tu como era seu costume
quando se tornava mais communicativo. Ella approximou-se, encarou-o e
perguntou em voz baixa:

--Humilharam-te?

--Sim! Custou-me muito! Preferia ir com elles.

Pareceu a Pélagué que elle tinha os olhos lacrimosos; e para o consolar
d’aquelle desgosto que ella vagamente adivinhava, disse, suspirando:

--Tem paciencia... um dia virá em que tambem sejas preso!

--Bem sei... respondeu.

Decorridos uns instantes, ella accrescentou com tristeza:

--Como és cruel, meu filho! Se ao menos me tranquillisasses... Mas não!
se eu digo coisas terriveis, o que tu me respondes é peor ainda!

Elle olhou de relance, approximou-se, e baixando a voz:

--Não sei que responder-lhe, mamã. Não posso mentir. Tem que
acostumar-se...

Pélagué suspirou e calou-se; depois, estremecendo:

--Será verdade? Dizem que elles torturam os presos, que lhes retalham o
corpo em tiras, e lhes quebram os ossos... Quando penso n’isto, tenho
medo, Pavel, meu querido filho!

--Torturam a alma e não o corpo. É ainda mais doloroso do que a tortura
tocarem-nos na alma com as mãos emporcalhadas!



XI


Soube-se na manhã seguinte que Boukine, Samoílof, Somof e mais cinco
pessoas tambem tinham sido presos. Á noite, Fédia Mazine veio de
corrida: haviam feito uma busca em sua casa; estava radiante por isso,
e considerava-se como um heroe.

--Tiveste medo, Fédia? perguntou Pélagué.

Empallideceu, encovou-se-lhe o rosto, as narinas estremeceram-lhe.

--Tive medo de que o official me batesse! Tinha barba negra e era
forte; os dedos cabelludos; usava lunetas de vidros pretos; parecia que
lhe faltavam os olhos. Gritou, batendo com o pé: «Faço-te apodrecer na
cadeia!» Em mim nunca ninguem bateu, nem o meu pae, nem a minha mãe,
porque eu era filho unico, e elles queriam-me muito. Toda a gente tem
levado pancada; eu, nunca.

Fechou por um instante os olhos avermelhados e apertou os beiços; com
um gesto rapido, atirou para traz com os cabellos e disse, encarando em
Pavel:

--Se alguem me bater, enterro-me n’elle como uma navalha, retalho-o com
os dentes. É preferivel que me estendam de vez!

--Tão magrito e fraco!... exclamou Pélagué. Como poderias luctar?

--Pois luctarei! respondeu em voz baixa.

Quando elle saiu, ella disse para o filho:

--Será esmagado primeiro do que os outros.

Pavel não respondeu.

Minutos depois, a porta da cosinha abriu-se devagar, e Rybine entrou.

--Bôa noite! disse, sorrindo. Sou eu outra vez. Hontem á noite,
obrigaram-me a cá vir; hoje venho por minha conta.

Apertou com vigor a mão de Pavel, e pondo a mão no hombro de Pélagué:

--Dás-me chá?

Pavel observou em silencio o amplo rosto atrigueirado do seu visitante,
a sua espessa barba negra e os seus olhos intelligentes. Havia um tanto
de gravidade no seu olhar tranquillo; todo o aspecto do recemchegado,
de athletica corpolencia, inspirava simpathia pela sua decidida firmeza.

A mãe foi á cosinha preparar o samovar.

Rybine sentou-se, afagou o bigode, e, encostando-se á meza, envolveu
Pavel n’um olhar.

--Com que então... Assim começou, como se reatasse o fio de uma
conversa. Devo falar-te abertamente. Observei-te por muito tempo antes
de vir á tua casa. Somos quasi visinhos, via que recebias muita gente e
que ninguem se embriagava nem fazia escandalos. Isto dava nas vistas.
Quando alguem se porta bem, é logo notado, vê-se logo quem é. Eu
proprio chamo as attenções para a minha pessoa porque vivo á parte, sem
praticar porcarias.

Falava vagarosamente, com ripanso; tinha inflexões que inspiravam
confiança.

--Com que então, toda a gente fala de ti. O meu senhorio chama-te
«herético» porque não vaes á egreja. Eu tambem lá não vou. Depois
appareceram essas fôlhas, esses papeis... A idéa foi tua?

--Foi! respondeu Pavel sem desviar o olhar da fisionomia de Rybine, que
tambem o fitava.

--Ora vamos! exclamou Pélagué, sobresaltada, e saíndo da cosinha. Não
foste só tu...

Pavel sorriu. Rybine tambem.

--Ah!... murmurou este.

A velha fungou e saíu, um tanto irritada por não terem prestado
attenção ás suas palavras.

--Era uma bôa idéa. Perturbam o povo. Quantas foram ao todo? Umas
dezenove, não?

--Isso mesmo.

--Então li-as todas! Bem... bem... Ha por lá coisas incompreensiveis,
superfluas. Quando o homem fala muito, acontece-lhe falar para nada.

Sorriu; tinha os dentes brancos e sãos.

--Depois, a busca que fizeram em tua casa... Foi o que me dispoz a teu
favor. Tu, o russo-menor e Vessofchikof mostraram-se muito... muito...

Como não encontrava a palavra, calou-se, olhou pela janella, e bateu
com um dedo na mesa:

--Mostraram-se decididos. Foi como se dissessem: «Faça a sua obra,
Excellencia, que nós faremos a nossa!» O russo-menor tambem é um rapaz
como se quer. Ás vezes, na fabrica, quando o ouvia falar, pensava:
«Este não é para se deixar esborrachar, não! Só a morte poderá
vencel-o. Tem um bigode, o typo!» Não acha, Pavel?

--Acho! respondeu, movendo a cabeça affirmativamente.

--Ora bem... Tenho quarenta annos, o dobro da tua edade; tenho visto
vinte vezes mais do que tu. Fui soldado durante mais de trez annos;
fui casado duas vezes; morreu-me a primeira mulher; deixei a segunda.
Estive no Caucaso, vi os Doukhobors... Não souberam vencer a vida,
irmão! oh! não souberam!

Pélagué escutava avidamente estas palavras; era-lhe agradavel vêr um
homem de edade respeitavel procurar o filho como para confessar-se.
Achava, porém, que Pavel o tratava com demasiada seccura, e para
destruir esta impressão, perguntou a Rybine:

--Talvez tenhas vontade de comer alguma coisa, Mikhaíl Ivanovitch?

--Não, obrigado. Já ceei. Com que então, Pavel, pensas que a vida não
vae por bom caminho?

O rapaz levantou-se e passeando, com as mãos atraz nas costas:

--Qual! Por magnifico caminho! E tanto assim que elle o trouxe até mim,
agora que tem a sua alma francamente aberta. N’este caminho, a vida
une-nos, pouco a pouco, a todos nós que trabalhamos incessantemente; e
tempo virá em que ha de unir-nos a todos! As coisas acham-se dispostas
de uma maneira injusta e penosa para nós; mas é a propria vida que nos
abre os olhos, descobrindo-nos o que encerra amargo; é ella propria que
mostra ao homem como lhe deve dirigir a norma.

--É verdade! Mas espera! É preciso renovar o homem. N’isto creio eu!
Quando se apanha sarna, a gente toma banhos, lava-se, veste-se com
asseio e fica bom, não é assim? Mas se a sarna ataca o coração, podemos
por acaso arrancar-lhe a pelle, ainda que ficasse sangrando? podemos
laval-o, vestil-o de novo? an? Então, como purificar o homem por
dentro? O quê?

Pavel falou calorosamente de Deus, do imperador, das auctoridades, da
fabrica, da resistencia que os trabalhadores do estrangeiro oppunham
áquelles que queriam limitar os seus direitos. Rybine sorria por vezes;
depois batia com o dedo na meza, como para pontuar o discurso de
Pavel, sem comtudo deixar de dizer de quando em quando:

--É isso mesmo!

Todavia, commentou a meia voz com um sorrisinho:

--Ah! és ainda novo. Não conheces o proximo!

Pavel, de pé diante d’elle, explicou gravemente:

--Não falemos de novos nem de velhos! Vejamos antes qual é a melhor
opinião.

--Portanto, em tua opinião até se teem servido de Deus para nos
enganarem? Concordo. Tambem creio em que a nossa religião é nociva e
erronea.

Pélagué interveiu. Quando o filho falava de Deus, das coisas sagradas
e queridas que se ligavam á fé que ella tinha no seu Creador, tentava
sempre encontrar o olhar de Pavel para pedir-lhe tacitamente que não
lhe despedaçasse o coração com palavras de incredulidade, cortantes e
aceradas. Ella porém sentia que, apezar de mostrar-se sceptico, o seu
filho era crente; e isto tranquilisava-a.

--Como poderia eu compreender os seus pensamentos? dizia a si mesma.

Pensava que devia ser desagradavel e ultrajante para Rybine, um homem
d’idade, ouvir taes palavras de Pavel. Mas quando Rybine dirigira
aquella pergunta perdeu, de todo a paciencia.

--Sêde mais prudentes falando de Deus! disse resumidamente, mas com
obstinação. Façam o que quizerem, mas...

E tendo tomado a respiração, continuou com mais vigor:

--Mas em que me hei de apoiar, no meio dos meus desgostos, eu que estou
velha, se me tirarem o meu Deus?

Os olhos encheram se-lhe de lagrimas. Com as mãos trémulas, continuou
lavando a loiça.

--Não nos compreendeu, mamã! disse Pavel com suavidade.

--Desculpe-nos! accrescentou Rybine em tom vagaroso, lançando um olhar
risonho a Pavel. Esquecia-me de que estás muito velha para ser ainda
tempo de te cortarem as verrugas!...

--Eu não falava, de maneira alguma, do Deus bom e misericordioso no
qual a mãe acredita, mas sim d’aquelle com que os padres nos ameaçam
como se fosse um flagello, e em nome do qual exigem que a grande
maioria dos homens se submetta á vontade malevola d’alguns.

--Exactamente! Isso é que é! exclamou Rybine, batendo com o dedo na
meza. Transformaram-nos até Deus. Os nossos inimigos lançam mão de
tudo quanto lhes sirva para abater-nos. Recordo-te, Pélagué, que Deus
creou o homem á sua imagem e semelhança e portanto parece-se com o
homem, visto que o homem se parece com Elle. Nós, porém, não nos
assemelhamos a Deus, mas sim aos animaes selvagens... Na egreja, o que
nos mostram, em logar de Deus, é um espantalho. É mister transformar
Deus, purifical-o! Revestiram-no de mentira e de calumnia, mutilaram o
seu rosto para matarem a nossa alma...

Falava baixo, mas com espantosa nitidez; cada uma das suas palavras era
para Pélagué um golpe doloroso. Sentiu-se assustada por aquella grande
cara taciturna enquadrada n’uma barba negra, e o brilho sombrio dos
seus olhos tornava-se-lhe insupportavel.

--Ah! Prefiro ir-me embora! disse, sacudindo a cabeça. Não tenho
coragem de ouvir taes coisas... Não posso!

E fugiu para a cosinha, emquanto Rybine dizia:

--Vês, Pavel? Não é pela cabeça, mas sim pelo coração que se deve
começar. O coração é um logar da alma humana no qual não brota mais do
que...

--Do que a razão! acabou Pavel com firmeza. Será só a razão que
libertará o homem!

--A razão não dá o poder! replicou Rybine, vibrante e obstinado. É o
coração que dá a força e não o cerebro!

Pélagué despira-se e deitara-se sem haver resado. Tinha frio e
sentia-se pouco bem. Rybine, que lhe parecera tão sensato, tão
correcto, ao principio, excitava-lhe uma reservada hostilidade.

--Herético! agitador! pensava, prestando o ouvido á voz sonora que saía
com facilidade d’aquelle peito amplo e forte. Para que veio elle cá?!...

E Rybine ia dizendo, tranquillo e firme:

--Um logar santo não póde ficar vasio. O logar onde Deus vive dentro de
nós é atacado; se Elle caír da alma, ficará uma chaga! Ora ahi está! É
preciso inventar uma fé nova, Pavel. É preciso crear um Deus justo para
todos, um Deus que não seja nem juiz, nem guerreiro, mas sim o amigo
dos homens.

--E que outra coisa foi Jesus?! exclamou Pavel.

--Espera!... Jesus não era firme d’espirito... «Affastem de mim este
calice...» disse elle. E reconhecia o poder do Cezar. Deus não pode
reconhecer uma auctoridade humana reinando sobre os homens, porque elle
é que é a omnipotencia! Elle não dividiu a sua alma n’uma parte divina
e em outra humana, e visto que confirmou a sua divindade, não carece de
coisa alguma humana. Jesus reconheceu tambem como legitimos o commercio
e o casamento. Foi injustamente que condemnou a figueira. Que culpa
tinha ella da sua esterilidade? Não é por sua culpa que a alma não dá
bons frutos. Fui eu que semeei n’ella o mal?

As duas vozes vibravam sem interrupção no quarto, como se se arrojassem
uma á outra, combatendo-se em lucta animada e apaixonada. Pavel ia e
vinha, a passos largos, e o sobrado rangia sob os seus pés. Quando
falava, todos os sons se fundiam no ruido da sua voz; quando Rybine
replicava, calmo, tranquilo, ouvia-se o tic-tac da pendula do relogio
e o sêcco estalido da neve que roçava com as suas garras agudas nas
paredes da casa.

--Vou falar-te como authentico fogueiro que sou: Deus parece-se com o
fogo. É isto, sim! Não consolida coisa alguma, não o pode. Queima e
funde, illuminando. Illumina as egrejas, mas não as constroe. Vive no
coração. Disse se: «Deus é o Verbo»; e o Verbo é o espirito.

--A razão! emendou Pavel, obstinado.

--Isso! Portanto, Deus está no coração, e na razão, e não na egreja.
E eis d’onde vem as desgraças, as dores, os infortunios do homem: é
que todos nós somos arrancados de nós mesmos! O coração é repellido
pela razão, e a razão foi-se! O homem não é uno. Deus une o homem em
um todo, em um globo. Deus creou sempre coisas redondas: a terra, as
estrellas; tudo o que é visivel, o que é agudo, foi o homem quem o fez.
Quanto á egreja, é o tumulo de Deus e do homem.

Pélagué adormeceu, não tendo ouvido saír Rybine.

Elle voltou a apparecer muitas vezes. Quando qualquer companheiro
de Pavel estava em casa d’este, o fogueiro sentava-se a um canto e
continha-se em silencio; de tempos a tempos, dizia:

--Isso! Exactamente!

Uma vez, espraiou o seu negro olhar pelos assistentes, e disse, nada
satisfeito:

--Deve-se falar do que é; o que será não sabemos nós. Quando o povo
fôr livre, elle proprio verá o que tiver de melhor a fazer. Já lhe
metteram na cabeça muitas coisas que elle não queria! Basta! Elle que
se examine! Talvez elle repilla tudo, toda a vida e todas as sciencias;
talvez veja que tudo lhe é hostil, como por exemplo: Deus e a egreja.
Dêem-lhe para a mão todos os livros, e elle responderá. Mas para isto,
seria necessario que elle compreendesse que quanto mais apertada é a
colleira, mais penoso é o trabalho.

Quando Pavel e Rybine estavam a sós, punham-se logo a discutir,
tranquillamente, por muito tempo. A velha escutava-os inquieta,
seguia-os com o olhar silencioso, deligenciando compreender. Por
vezes, parecia-lhe que ambos tinham cegado. Nas trevas, entre as
paredes do pequeno quarto, os dois vagueavam d’um para outro lado,
como em busca d’uma saída ou d’uma luz; agarravam-se a tudo com as
suas mãos vigorosas, mas inhabeis; agitavam, revolviam tudo, deixando
caír por terra coisas que depois espezinhavam. Esbarravam em tudo,
tateavam e repelliam tudo, sem pressas, sem perderem a esperança nem
a fé. Tinham-na acostumado a ouvir uma palavras terriveis pela sua
simplicidade e audacia; estas palavras já não a opprimiam com a mesma
violencia. Rybine não era simpático á velha, mas a repulsão, que a
principio lhe inspirára, tinha desapparecido.

Uma vez por semana, Pélagué ia á cadeia levar roupa e livros a
André; um dia obteve licença de vêl-o; e ao voltar para casa, contou
enternecidamente:

--Continúa sendo o mesmo. Amavel para com todos. Todos brincam com
elle. Parece que tem sempre o coração em festa. Custa-lhe a vida,
soffre, mas não quer dal-o a perceber.

--E é assim que devem fazer todos! replicou Rybine. Todos nós estamos
envolvidos em desgostos como n’uma segunda pelle... Respiramos
desgostos... vestimo-nos de desgostos... Não temos de que nos gabar.
Nem toda a gente tem os olhos furados, e muitos ha que os fecham de
motu-proprio... Quando se é parvo, então sim, não ha remedio senão
esperar o soffrimento...



XII


A velha casa parda dos Vlassof attraía de mais em mais as attenções do
bairro. Ás vezes um operario apparecia por lá, e depois de ter olhado
para todos os lados, cautelosamente, dizia a Pavel:

--Irmão, tu que lês nos livros, deves conhecer as leis. Portanto,
explica-me.

E contava qualquer arbitrariedade da polícia ou da administração da
fabrica. Nos casos complicados, Pavel remettia o consulente, com duas
palavras de recommendação, a um advogado dos seus amigos, e, quando
podia, elle proprio dava conselhos.

Pouco a pouco, os frequentadores do bairro foram nutrindo um sentimento
de respeito por aquelle rapaz tão commedido, que falava de tudo com
simplicidade e afoiteza, que raras vezes ria, que encarava e escutava
todos os assuntos com attenção, mettendo-se na embrulhada de qualquer
negocio particular e descobrindo sempre o fio que ligava as creaturas
umas ás outras por milhares de nós tenazes.

Pélagué via ampliar-se a influencia do seu filho, começava a aprender o
sentido dos trabalhos de Pavel, e quando o compreendia, invadia-a uma
alegria infantil.

Pavel tornou-se maior na opinião publica por occasião da historia do
«_kopeck_[1] do pantano».

Um grande pantano com pinheiros e bétulas cercava a fabrica como
um fosso infecto. No verão, vinham d’elle exhalações amarellentas,
opacas, de mistura com nuvens de mosquitos que se espalhavam no bairro
produzindo febres. O pantano pertencia á fabrica; o novo director,
querendo tirar partido d’elle, concebeu o projecto de esgotal-o,
extraíndo-lhe ao mesmo tempo o nateiro. Esta operação, disse aos
operarios, tornaria salobras as circumvisinhanças e melhoraria as
condições de vida a todos; portanto ordenou que fosse descontado um
kopeck por cada rublo, nas ferias, quantia que seria destinada ao
saneamento do pantano.

Nos operarios houve uma agitação; irritava-os principalmente o facto de
não reverter para os empregados o imposto.

No sabbado em que foi publicada a decisão do director, Pavel estava
doente e não fôra trabalhar; nada sabia. Na manhã seguinte, depois da
missa, o fundidor Sizof, um bom velho, o serralheiro Makhotine, homem
alto, muito irrascivel, foram a casa d’elle para lhe dizer o que se
passava.

--Os mais velhos d’entre nós reuniram-se, disse rudemente Sizof;
discutimos; os nossos companheiros mandaram-nos cá para te
perguntarmos--visto seres um homem de espirito lucido--se ha alguma lei
que permitta ao director extinguir os mosquitos á nossa custa.

--Nota, accrescentou Makhotine, revolvendo os olhos, que ha quatro
annos aquelles ladrões nos apanharam dinheiro para construirem um
estabelecimento de banhos... Que é d’elle?

Pavel explicou que o imposto era injusto, que a fabrica tiraria uma
grande vantagem do projecto. Assim, os dois operarios retiraram-se com
ares de poucos amigos. Depois de os haver acompanhado até á porta,
Pélagué disse sorrindo:

--Vem então os velhos a tua casa aprender comtigo, Pavel!...

Sem responder, o rapaz sentou-se e começou de escrever, preoccupado.
Decorridos instantes:

--Peço-te que vás immediatamente á cidade e entregues este bilhete...

--É coisa arriscada?

--Sim. É para onde imprimem o nosso jornal. Esta historia do kopeck
deve apparecer, sem falta, no proximo numero.

--Está bem! está bem! respondeu ella, vestindo-se á pressa. Eu vou.

Era o primeiro recado importante de que o filho a encarregava.
Sentia-se feliz por vêr que elle lhe dizia francamente do que se
tratava, e por poder ser-lhe util na sua obra.

--Compreendo, Pavel! Vou n’um momento. Como se chama elle? Iégor
Ivanovitch, não?...

Regressou de noite, já tarde, fatigada, mas satisfeita.

--Vi a Sachenka. Manda-te recommendações. Como é divertido o Iégor!
sempre de brincadeira!...

--Muito folgo com que elle seja do teu agrado.

--Que simpleza de gente! São tão simpaticas as pessoas simples!... E
olha que todos elles te estimam muito.

Na segunda-feira, Pavel não poude ir á fabrica, doia-lhe a cabeça. Mas
ao meio dia, Fédia Mazine appareceu-lhe, em grande excitação, radiante:
participou esbofado:

--Toda a fabrica está em revolta! Mandaram-me vir á tua procura. Sizof
e Makhotine dizem que tu explicarás a coisa melhor do que os outros. Se
visses o que por lá vae!

Pavel vestiu-se sem dizer palavra.

--As mulheres estão reunidas e fazem uma gralhada!...

--Vou ter com ellas! disse Pélagué. Tu não estás bom, talvez seja
perigoso... Os outros para que servem, então? Eu irei falar com elles...

--Vamos! disse Pavel simplesmente.

Saíram rapidamente, em silencio. Pélagué, offegante e commovida,
presentia o que quer que fosse grave. Á entrada da fabrica, uma
multidão de mulheres berrava e discutia. Pélagué via que todos os
rostos estavam voltados para o mesmo lado, para a parede das forjas.
Ali, Sizof, Makhotine, Valof e mais cinco operarios influentes e idosos
tinham trepado para um montão de velha ferragem.

--Ahi vem o Vlassof! gritou alguem.

--Vlassof! Tragam-no cá!

Levaram Pavel, de roldão. Pélagué ficou só.

--Silencio! ordenaram muitas vozes a um tempo.

Proximo de Pélagué ouviu-se a voz monotona de Rybine:

--Não é pelo kopeck que se deve mostrar resistencia, mas sim pelo
principio da justiça. Não é o kopeck o que nos custa, não é mais
redondo do que os outros, mas é para nós mais pesado: ha n’elle mais
sangue humano do que só em um rublo do director!

Estas palavras caíam sobre a multidão com energia e provocavam ardentes
exclamações.

--É verdade! Bravo, Rybine!

--Silencio, seus diabos!

--Tens razão, fogueiro!

--Olhem o Vlassof!

As vozes confundiram-se n’um turbilhão tumultuoso, abafando o ruido
surdo das maquinas e os suspiros do vapor. De toda a parte corria gente
que começava a discutir, agitando os braços, excitando-se mutuamente
com palavras febris e causticas. A irritação que dormia nos peitos
fatigados, despertava; escapava dos labios e tomava o vôo, triunfante.
Ao de cima da multidão pairava uma nuvem de poeira e ferrugem; os
rostos cobertos de suor estavam em fogo, a pelle das faces vertia
lagrimas negras. No fundo sombrio das fisionomias, brilhavam os olhos e
os dentes.

Afinal, Pavel appareceu ao lado de Sizof e de Makhotine; ouviram-no
gritar:

--Companheiros!

Pélagué viu que o filho estava palido e que os seus labios tremiam;
involuntariamente, quiz avançar, abrindo caminho, á força; mas
disseram-lhe com mao modo:

--Ó velha, deixa-te estar!

Empurraram-na. Mas não desanimou, com os hombros e os cotovellos
afastava toda a gente e approximava-se do filho, pouco a pouco,
impellida pelo desejo de ir ficar a seu lado.

Pavel, depois de haver soltado frases a que costumava dar um sentido
profundo, sentiu as guellas apertadas pelo espasmo resultante da grande
alegria de combater. Invadiu-o o desejo de entregar-se á força da sua
crença, de arrojar áquella gente o seu coração consumido pelo ardente
sonho da justiça.

--Companheiros! repetiu, dando a esta palavra todo o enthusiasmo e
vigor. Somos nós que construimos as egrejas e as fabricas, que fundimos
o dinheiro, que forjamos os grilhões... Somos nós a força viva que
nutre e diverte o mundo inteiro, desde que nascemos até á morte...

--Isso! isso! exclamou Rybine.

--Sempre e em toda a parte, somos os primeiros no trabalho, emquanto
nos atiram para os ultimos logares na vida. Quem se preoccupa de nós?
quem nos quer bem? quem nos considera como homens? Ninguem!

--Ninguem! repetiu uma voz como se fosse um écco.

Senhor de si, Pavel passou a falar com mais simplicidade e mais calmo.
A multidão avançava lentamente para elle, como um corpo sombrio de mil
cabeças. Olhava para o rapaz com centenas de olhos attentos, respirava
as suas palavras. O ruido decrescia.

--Não teremos melhor quinhão emquanto não nos sentirmos solidarios,
emquanto não formarmos uma unica familia de amigos, estreitamente
ligados pelo mesmo desejo--o de luctarmos pelos nossos direitos.

--Entra no assumpto! disse uma voz perto de Pélagué.

--Não o interrompam! Calem-se! replicaram de varios pontos.

Quasi todas aquellas caras tinham uma expressão de incredulidade soez;
poucos olhares estavam fixados em Pavel com gravidade.

--É um socialista, mas não tem nada de tolo! disse um.

--É um revolucionario! accudiu outro.

--Fala com tezura! afirmou um operario, forte e vesgo, dando um
empurrão em Pélagué.

--Companheiros! Chegou o momento de resistirmos á força ávida que vive
do nosso trabalho; chegou o momento de nos defendermos. Deve cada qual
compreender que ninguem virá em nosso auxilio, se não nós mesmos. Um
por todos, todos por um--deverá ser a nossa lei, se quizermos vencer o
inimigo.

--Elle diz a verdade, irmãos! exclamou Makhotine. Escutem a verdade!

E com um gesto largo, ergueu o punho cerrado.

--É indispensavel mandar chamar o director, immediatamente! continuou
Pavel. É preciso perguntar-lhe...

De subito, dir-se-ia que um furacão caíra sobre todo o povo. Toda
aquella massa de gente ondeou como o oceano sob uma rajada; dezenas de
vozes berraram a um tempo:

--Venha o director!

--Elle que s’explique!

--Vão buscal-o!

--Mandemos-lhe delegados!

--Não!

Tendo conseguido chegar á frente, Pélagué olhava para o filho,
sentindo-se dominada por elle. Estava replecta de orgulho: o seu Pavel,
no meio dos velhos operarios mais queridos, sendo escutado e apoiado
por toda a gente!... Admirava o seu sangue-frio, a sua simplicidade e o
seu falar sem fastio e sem pragas, como era o dos outros.

As exclamações, os gritos de revolta, as invectivas choviam como
saraivada grossa em telhados de zinco. Pavel encarava na multidão, e
parecia procurar o que quer que fosse entre os grupos.

--Delegados!

--Fale o Sizof!

--O Vlassof!

--O Rybine, que tem uns dentes terriveis!

Afinal, escolheram Pavel, Sizof e Rybine para parlamentarios, e
iam mandar chamar o director, quando de chofre se ouviram algumas
hesitantes exclamações:

--Vem ahi, sem ser chamado...

--O director...

--Ah!... Ah!...

A multidão abriu caminho a um figurão alto, sêcco, de rosto comprido, e
barba em bico.

--Com licença! dizia, afastando o povo com um movimento ligeiro, mas
sem lhe tocar. Tinha os olhos semi-cerrados, e, como experiente em
lidar com os homens, ia observando as fisionomias dos operarios.

Estes inclinavam-se, tiravam o boné, cumprimentando-o. Elle não
respondia a estas demonstrações de respeito, semeava o silencio e o
constrangimento por onde ia passando; sentia-se já, sob os sorrisos
contrafeitos e o tom abafado das palavras, o como arrependimento da
creança, conscia de ter feito uma tolice.

O director passou em frente de Pélagué, lançou-lhe um olhar severo e
parou junto do montão de ferragem. De cima, alguem estendeu-lhe a mão:
não a acceitou. Com um movimento vigoroso e agil, subiu, ficou á frente
e perguntou em tom frio e auctoritario:

--Que significa esta reunião? Porque abandonaram o trabalho?

O silencio foi completo por alguns instantes. As cabeças dos operarios
balouçavam como espigas. Sizof agitou o boné, encolheu os hombros e
baixou a cabeça.

--Respondam! berrou o director.

Pavel abeirou-se a elle e disse-lhe em voz alta, apontando para Sizof e
Rybine:

--Nós trez fômos encarregados pelos nossos companheiros de exigir que
reconsiderasse na sua resolução relativamente ao desconto do kopeck.

--Porquê? perguntou o director sem olhar para Pavel.

--Porque reputamos injusto este imposto! replicou com voz sonora.

--Portanto, não vêem no meu projecto senão o desejo de explorar os
operarios, e não o cuidado de melhorar a sua existencia, não é verdade?

--Exacto!

--E o sr. tambem? perguntou, dirigindo-se a Rybine.

--Somos todos da mesma opinião.

--E o sr.? perguntou ainda, voltando-se para Sizof.

--Eu cá... tambem lhe peço que não nos tire o nosso kopeck.

Depois, baixando outra vez a cabeça, Sizof sorriu contrafeito.

O director passou vagarosamente o olhar pela multidão e encolheu os
hombros. Em seguida olhou perscrutadoramente para Pavel, e disse:

--O sr. é, segundo creio, um homem instruido. Não compreende todas as
vantagens da minha medida?

Pavel respondeu distinctamente:

--Ninguem deixaria de compreendel-as, se a fabrica exgotasse o pantano
á sua custa.

--A fabrica não trata de filantropias! replicou. Ordeno-lhes, a todos,
que voltem immediatamente para o trabalho.

E preparou-se para descer, tateando cautelosamente os ferros com a
ponta da bota, sem olhar para ninguem.

Ouviu-se um rumor de desapprovação.

--Que é isso? perguntou o director, parando.

Calaram-se todos; apenas, a distancia, replicou uma unica voz:

--Trabalha, tu!

--Se dentro de um quarto d’hora não voltarem para o trabalho,
multal-os-ei, a todos! declarou seccamente.

E seguiu o seu caminho por entre a multidão, emquanto atraz d’elle se
ia levantando um surdo murmurio. Quanto mais elle se afastava, mais o
ruido se tornava intenso.

--Vão lá falar-lhe!

--São então estes os nossos direitos! Estupor de sorte!

Dirigiam-se a Pavel, gritando:

--Olá! jurisconsulto! que devemos fazer agora?

--Emquanto se tratou de falar, falaste; mas elle appareceu e mudaram os
ventos!

--Então, Vlassof! O que fazemos?

As perguntas eram cada vez mais insistentes. Pavel respondeu emfim:

--Companheiros, proponho que abandoneis o trabalho até que o director
renuncie ao injusto desconto.

Ergueram-se logo frases irritadas:

--Julgas que somos parvos?

--É o que se deve fazer!

--A gréve?!

--Por causa de um kopeck?!

--Pois façamos gréve!

--Vamos todos para o olho da rua!

--E quem trabalharia?

--Encontrariam outros operarios!

--Onde? Traidores?!


NOTAS DE RODAPÉ:

[1] _Kopeck_, moeda de cobre, a centesima parte do rublo. O seu valor
approximado é de cinco réis.



XIII


Pavel desceu e collocou-se ao lado da mãe. Em volta delles, todos
começaram a falar ruidosamente, a discutir, a agitarem-se, gritando.

--Não se fará a gréve! disse Rybine approximando-se de Pavel: o povo
embora seja sovina em se tratando de dinheiro, é muito poltrão. Não
encontrarás mais de trezentos que tenham opinião igual á tua. Não se
pode revolver semelhante esterco só com uma forquilha.

Pavel ficou silencioso. Perante elle, a multidão com a sua enorme
cara negra movia-se e observava-o como se elle lhe tivesse feito uma
exigencia. O seu coração pulsava violento. Parecia-lhe que as suas
palavras tinham desapparecido, sem deixarem vestigios naquelles homens,
taes como gottas de chuva tenue, esparsas em terreno gretado por uma
longa estiagem. Uns após outros, os operarios approximaram-se d’elle,
felicitaram-no pelo seu discurso, mas duvidavam do exito da gréve, e
lamentavam que o povo não compreendesse nem a sua força nem os seus
interesses.

O sentimento de desillusão apoderava-se de Pavel, que tambem já não
acreditava na sua força. Doía-lhe a cabeça, sentia-se como vasio!
D’antes, nos momentos em que elle fantasiava o triunfo da verdade
que tão querida lhe era, o enthusiasmo de que se enchia o seu coração
dava-lhe vontade de chorar. E agora, tendo exprimido a sua fé diante do
povo, apparecera-lhe mais pálida, impotente, incapaz de tocar no que
quer que fosse. Accusava-se, a si proprio; tinha a impressão de haver
adornado o seu sonho com vestimentas informes, sombrias, e miseras, e
que por isto ninguem lhe descobrira a belleza.

Voltou para casa triste e fatigado. A mãe e Sizof seguiam-no.

--Falas bem, dizia Rybine, mas não chegas ao coração. É o que é!
Precisa-se lançar a faísca até ao fundo dos corações. Não será pela
razão que os captarás. É calçado muito fino e muito apertado para o
povo; não lhe serve nos pés. E ainda que servisse, o sapato ficaria
acalcanhado em pouco tempo!

Sizof dizia a Pélagué:

--Chegou o momento de nós, os velhos, irmos a caminho do cemiterio!
Levanta-se um povo novo. Como temos vivido? Arrastando-nos de joelhos,
constantemente curvados para a terra. E hoje não se sabe ao certo se
ha consciencia do que se faz ou se o caminho novo é mais errado do que
o nosso... Em todo o caso, os de hoje não se parecem comnosco. Vejam
lá: os novos falando ao director como de igual para igual!... Ah! se
o meu filho fosse vivo!... Até á vista, Pavel Mikhaílovitch... És um
bello rapaz, tomas a defesa do povo... Queira Deus que encontres o bom
caminho, a bôa saída... Deus queira!

E foi-se.

--Pois! que todos morram! resmungou Rybine. Já agora, não sois homens,
sois uma argamassa, bôa apenas para tapar as fendas das paredes!
Reparaste, Pavel, nos que mais gritaram para que tu fosses designado
como nosso delegado? Eram os que dizem que tu és um revolucionario, um
perturbador. Ora ahi tens! Pensaram que serias expulso da fabrica; era
isto o que elles queriam.

--Sob o seu ponto de vista, teem razão.

--Os lobos tambem teem as suas razões quando se despedaçam uns aos
outros.

Rybine estava rabugento, a voz tremia-lhe.

--Os homens não teem confiança na palavra nua e crua... É preciso
mergulhal-a no sangue...

Durante o dia todo, Pavel sentiu-se desgraçado, como se tivesse perdido
alguma coisa e presentisse a sua propria perda sem compreender no que
ella consistiria.

De noite, quando a mãe já dormia e elle ainda estava lendo na cama, a
policia voltou para revolver raivosamente em toda a casa, no pateo e no
sotão. O official amarellento portou-se, como da primeira vez, d’uma
maneira impliquenta e offensiva, sentindo prazer em melindrar Pavel e a
mãe. Assentada a um canto, Pélagué mantinha-se em silencio, com o olhar
fixo no rosto do filho. Este tentava occultar a perturbação, mas quando
o official ria, os dedos do rapaz tinham movimentos não vulgares; a
mãe percebia quanto elle estava soffrendo por não poder responder á
letra aos gracejos do officialsito. Sentia-se menos assustada do que
na primeira busca, mas era maior o seu odio por aquelles visitantes
nouturnos, vestidos de cinzento, de esporas tintilantes.

Pavel conseguiu dizer-lhe baixinho:

--Vão levar-me.

Baixando a cabeça ella respondeu:

--Percebo...

Compreendia: iam mettel-o na cadeia pelas frases que elle dirigira aos
operarios. Mas estes tinham-nas apoiado, e todos iriam tomar a defeza
de Pavel, que só por pouco tempo ficaria preso.

Tinha vontade de chorar, de abraçar o filho; mas ao seu lado o
official observava-a com olhar malevolo, os labios tremiam-lhe assim
como o bigode, e Pélagué sentiu que aquelle homem esperava com alegria
que ella se desfizesse em lagrimas, em supplicas, em lamentações.
Reunindo todas as suas forças, falando o menos possivel, apertou a mão
do filho e disse em voz baixa, retendo a respiração:

--Até á vista, Pavel. Levas comtigo tudo que precisas?

--Levo. Não te dê cuidado.

--O Senhor vá comtigo.

Quando o levaram, a mãe deixou-se caír n’um banco e soluçou docemente
com as palpebras abaixadas. Encostada á parede, como seu marido fazia
outrora, torturada pela angustia e pelo sentimento da sua impotencia
em semelhante transe, chorou durante muito tempo, fazendo passar ás
lagrimas a dôr do seu coração ferido. Via na sua frente, como se fosse
uma mancha immovel, uma fisionomia amarella, de bigode delgado, olhos
semi-cerrados, aspecto feliz. No seu peito contorciam-se, como em negro
torvelinho, o desespero e a colera contra quem roubava um filho a sua
mãe, só porque elle procurava a verdade.

Estava frio: as gottas de chuva batiam nas vidraças, ao longo das
paredes deslisava o que quer que fosse; dir-se-ia que nas trevas,
silhuetas pardas, de grandes caras sem olhos, e de braços compridos,
rondavam, espiando. E as suas esporas tintilavam fracamente.

--Seria melhor que me tivessem levado tambem! pensou.

O apito da fabrica vibrou, na sua ordem de começar o trabalho.
N’aquella manhã, foi um apito vago, e hesitante. A porta abriu-se,
Rybine entrou. Approximou-se de Pélagué, e limpando as gottas de chuva
que se lhe haviam espalhado pela barba:

--Levaram-no?

--Sim. Malditos!

--Bonita coisa! A mim, revistaram-me, rebuscaram tudo...
Injuriaram-me... mas afinal não me prenderam. Com que então, levaram o
Pavel?! O director deu o signal, a policia obedeceu, e aqui está como
se prende um homem! Entendem-se bem uns aos outros, como os gatunos nas
feiras. Uns encarregam-se de ordenhar o povo, emquanto outros o seguram
pelo focinho.

--Devem tomar a defeza do Pavel! exclamou ella, erguendo-se. Foi por
causa de todos que elle se comprometteu.

--Mas quem deve tomar essa defeza?

--Todos vós!

--Que idéa! Não conte com isso! Foram precisos milhares de annos para
reunir a sua força. Cravaram-nos um sem numero de pregos no coração...
Como seria possivel ajuntarem-nos de subito? Necessitamos primeiro de
arrancar os nossos espinhos de ferro... São estes espinhos que impedem
os nossos corações de reunirem-se n’uma massa compacta.

E com um risinho, foi-se lentamente. As suas palavras crueis e
desesperadas tinham augmentado o desgosto de Pélagué.

--Podem matal-o, tortural-o...

E imaginou o corpo do filho crivado de pancadas, despedaçado,
ensanguentado; e, como uma camada d’argila gelada, suffocava-a o medo
caído no seu coração. A luz fazia-lhe mal aos olhos.

Não accendeu o fogão, não preparou o jantar, não tomou o chá; só muito
tarde, á noite, comeu um pouco de pão. Quando se deitou, reconheceu
que nunca na sua vida se sentira tão humilhada, tão isolada, como nua.
Nos ultimos annos, acostumara-se a viver na constante espectativa do
que quer que fosse importante, feliz. Em torno d’ella, a gente nova
movia-se, ruidosa e decidida, dominada pelo seu filho de rosto grave,
seu filho, o senhor e o creador d’aquella vida cheia d’inquietação, mas
bôa. E n’aquelle momento em que já não o via, tudo tinha desapparecido.



XIV


O dia decorreu lentamente, seguido de uma noite sem somno. O dia
seguinte pareceu-lhe ainda mais comprido. Esperava não sabia o quê, mas
ninguem veio. Caíu a tarde, depois a noite. A chuva glacial tombava
roçando pelas paredes, o vento soprava pela chaminé, o madeiramento
da casa rangia. Ouvia-se apenas a melodia melancólica e dolorosa das
gottas d’agua caíndo do telhado, como lagrimas. Parecia que toda a casa
vacilava e que uma surda angustia gelava o ambiente.

Bateram de manso á vidraça. Pélagué estava acostumada a este
signal; não se assustou; estremeceu como se lhe tivessem despertado
bondosamente, o coração. Vaga esperança fêl-a levantar-se de prompto.
Atirando um chale para os hombros, abriu a porta. Samoílof entrou,
seguido d’outra pessoa que occultava a cara na gola erguida da capa;
tinha o boné descaído para os olhos.

--Viemos accordal-a? perguntou Samoílof sem mais cumprimentos.

Fóra do costume, o seu ar não era tranquillo.

--Não; eu não estava a dormir.

E olhou inquiridoramente para os recemchegados.

Com um suspiro abafado e profundo, o companheiro de Samoílof tirou o
boné e estendeu a Pélagué a mão forte e de dedos grossos.

--Bôa noite, mãesinha! Não me reconheceu? disse-lhe amigavelmente como
a um velho conhecimento.

--Ora?! exclamou ella com alegria. Iégor Ivanovitch! o sr.?!

--Eu, sim!

Tinha o cabello comprido como um menino de côro. Illuminava-lhe a
fisionomia um sorriso de bondade; os seus olhitos pardos fitavam-se em
Pélagué com expressão carinhosa. Assemelhava-se a um samovar no seu
corpito redondo, no pescoço grosso e nos braços curtos. A pelle da cara
reluzia; no seu peito parecia pesar e rostilhar alguma coisa...

--Vão para aquelle quarto; eu vou vestir-me! propôz ella.

--Temos que dizer-lhe! respondeu Samoílof, preoccupado e olhando-a de
soslaio.

Iégor passou para a divisão do lado, dizendo:

--Mãesinha, esta manhã um dos nossos amigos saíu da cadeia, onde esteve
trez mezes e onze dias. Viu por lá o russo-menor e Pavel que lhe envia
muitas recommendações; o seu filho pede-lhe que não se apoquente por
causa d’elle, e manda-lhe dizer que no caminho que elle escolheu, a
cadeia é o logar que serve para o descanço; assim o resolveram as
nossas auctoridades sempre interessadas pelo nosso bem-estar... Vamos
agora ao que importa: Sabe quantas pessoas foram presas hontem?

--Não. Pavel não foi o unico?

--Foi o quadragesimo nono... declarou Iégor tranquillamente. E
espera-se que ainda sejam presos uns dez... Entre outros este
cavalheiro aqui presente.

--Eu mesmo! disse Samoílof, sombrio.

Pélagué respirava mais facilmente.

--Não está então sosinho!...

Quando acabou de vestir-se, passou ao outro quarto, sorrindo, bem
disposta.

--Não os conservarão presos por muito tempo se elles são muitos.

--Diz bem! E se conseguirmos torcer o jogo dos nossos adversarios, não
terão adiantado mais do que d’antes. Se deixarmos de propagar agora os
nossos folhetos, os patifes da policia notarão o caso, e perceberão
que a propaganda era feita pelo Pavel e pelos companheiros, agora seus
companheiros na cadeia.

--Como? não percebo...

--Nada mais simples, mãesinha. Ás vezes a gente da policia chega a
raciocinar com acerto... Repare: emquanto o Pavel era livre appareciam
os folhetos; mettido na cadeia, desappareceram. Logo era elle quem os
espalhava.

--Percebo!... murmurou ella tristemente. Que fazer? Ah! Deus do ceo!

A voz de Samoílof veiu da cosinha:

--Diabos me levem! Prenderam quasi todos os nossos! É preciso continuar
a trabalhar como d’antes, não só pela nossa causa, mas tambem para
salvar os companheiros.

--E ninguem para trabalhar!... suspirou Iégor. Temos folhetos
magnificos... Fui eu mesmo que os fiz. Mas como introduzil-os na
fabrica? Eu cá não sei:

--Agora, toda a gente é revistada á entrada... explicou Samoílof.

Pélagué adivinhava que lhe queriam alguma coisa.

--Então que fazer? perguntou vivamente.

Samoílof parou e perguntou:

--Pélagué Nilovna, conhece a vendedeira Korsounova?

--Conheço. Porquê?

--Fale-lhe. Talvez que ella se encarregue dos nossos folhetos.

Ella ergueu logo o braço n’um movimento negativo:

--Ah! não! É uma tagarella! Não! Saber-se-ia logo que fui eu... que foi
coisa vinda da nossa casa... Não!

E de subito, illuminada por uma idéa repentina, exclamou com alegria:

--Dêem-me os folhetos! Dêem-mos! Eu acharei um meio... Deixem isso por
minha conta! Pedirei á Maria que me tome ao seu serviço. Tenho que
trabalhar, se quizer comer. Levarei tambem os jantares á fabrica, aos
operarios... Deixem isso por minha conta.

Com as mãos unidas no peito, affirmava que saberia proceder sem que a
descobrissem, e concluiu com uma exclamação triunfante:

--Ah! Hão de ver que mesmo com Pavel na cadeia, a sua mão os attinge!

Todos trez se sentiam de novo animosos. Iégor sorria, esfregando
rapidamente as mãos, dizendo:

--Bravo, mãesinha! Se soubesse como isso lhe fica bem! como é para
enthusiasmar!

--Se fôr bem succedida, sentir-me-ei tão feliz na cadeia como se
estivesse sentado n’uma cadeira estofada! declarou Samoílof, rindo:

--É um thesouro, mãesinha! exclamou Iégor roufenhamente.

Pélagué sorriu. Era simples: se conseguisse introduzir na fabrica os
folhetos, diriam que não era Pavel quem os distribuia. Sentindo-se
capaz de desempenhar-se de tal compromisso, Pélagué estremecia jubilosa.

--Quando fôr visitar o Pavel, diga-lhe que elle tem uma boa mãe!

--Hei de vêl-o mesmo antes do dia da visita! prometteu Samoílof,
sorrindo.

--Diga-lhe abertamente que hei de fazer quanto fôr necessario. Que elle
o fique sabendo!

--E se o Samoílof não fôr preso, como ha de sabel-o o Pavel? perguntou
Iégor.

--Paciencia! Temos que nos resignar!

E ambos entraram de rir. Quando ella compreendeu a sua tolice, riu
tambem, mas um tanto contrafeita.

--Quando olhamos para os nossos, não vemos bem os que lhe ficam por
detraz... murmurou ella, a justificar-se.

--É natural! concordou Iégor. A proposito de Pavel: não se inquiete nem
se entristeça. Ha de saír da cadeia ainda melhor do que quando para lá
entrou. Por lá descansa-se, ha tempo para adquirir instrucção, o que
não nos acontece quando estamos á solta. Estive preso tres vezes, sem
grande vontade, mas o meu coração e a minha razão aproveitaram sempre...

--Custa-lhe respirar... disse Pélagué olhando para elle affectuosamente.

--Por motivos especiaes... respondeu levantando um dedo para o ar.

--Portanto, está combinado, mãesinha. Ámanhã trazemos-lhe o que sabe, e
outra vez entrará em movimento a roda que aniquila as trevas seculares.
Viva a liberdade da palavra, mãesinha! e viva o coração materno! Até
ámanhã!

--Até ámanhã! disse tambem Samoílof apertando com força a mão de
Pélagué. Eu não posso dizer palavra d’isso tudo á minha mãe.

Quando elles saíram, Pélagué fechou a porta e ajoelhando-se no meio do
quarto, pôz-se a resar, ao ruido da chuva. Rezou sem soltar dos labios
uma só palavra; era como um pensamento muito longo e intenso; rezou
por todos aquelles que Pavel associára á sua vida. Via os passar entre
ella e as imagens dos santos; eram simples, tão extraordinariamente
approximados uns dos outros, e tão isolados na vida.

Logo muito cedo, foi a casa de Maria Korsounova.

A ruidosa vendedeira, com o fato engordurado como sempre, acolheu-a
compassivamente:

--Aborreces-te? perguntou, batendo-lhe com a mão no hombro. Consola-te!
Agarraram-no, levaram-no? Grande coisa! Que mal ha n’isso? D’antes
mettiam uma pessôa na cadeia, quando roubava; agora é quando se diz
a verdade. Pavel disse naturalmente coisas que não se devem dizer.
Mas foi para defender os companheiros, e isto toda a gente o percebe.
Não tenhas medo. Todos sabem que elle é um bello rapaz... embora não
o digam. Eu queria ir a tua casa, mas não tive tempo. Estou sempre a
cosinhar, esgótto o meu artigo, e afinal estou certa de que virei a
morrer pobre. Os amantes arruinam-me! os sacripantas! Comem! comem!...
parecem baratas a devorar um pão. Apenas tenho uns dez rublos,
apparece-me um d’esses hereticos e rouba-mos! É isto! Má coisa ser
mulher! que estupida vida! É difficil viver só, e ainda mais viver
acompanhada!

--Pois olha eu vim pedir-te que me acceites como ajudante... disse
Pélagué, pondo um dique á catadupa das palavras.

--O quê?!

Mas quando a sua amiga lhe expoz todo o seu pensamento, meneou a cabeça
em signal de approvação.

--Está dito. Lembras-te quantas vezes me déste esconderijo quando o
meu marido andava á minha procura? Pois serei eu agora que te furtarei
á miseria. Cada qual deve correr em teu auxilio porque o teu filho
está soffrendo por causa de todos. É um bom rapaz! toda a gente o
diz; e todos o lastimam. Eu, cá por mim, penso que estas prisões não
trazem nenhum bem á fabrica. Se soubesses o que por lá se diz!... Os
chefes imaginam que não ha de ir longe o homem que elles morderam no
calcanhar. Mas por cada um que elles atacam, ha cem que se revoltam.
Deve-se ter cuidado quando se quizer tocar no povo, porque elle vae
aturando por muito tempo, mas, n’um bello dia, estoira!



XV


Os operarios logo notaram a velha. Alguns dirigiram-se a ella
amigavelmente:

--Encontraste trabalho, Pélagué?

E consolavam-na, affirmando-lhe que Pavel seria posto em liberdade
dentro em breve, pois tinha este direito. Outros commoviam o seu
coração dolorido com prudentes palavras de compaixão; outros ainda
invectivavam abertamente o director e a policia e despertavam n’ella um
ecco sincero. Havia tambem quem para ella olhasse com certa satisfação
malevola; Isaías Gorbof, operario apontador, disse por entre dentes:

--Se eu governasse, mandava enforcar o teu filho, para lhe ensinar a
não desnortear o povo.

Estas palavras gelaram-na mortalmente. Não respondeu, lançou apenas um
olhar áquelle rosto coberto de sardas, e baixou a fronte, suspirando.

Percebia que havia no ar certa agitação; os operarios ajuntavam-se
em pequenos grupos, discutiam a meia voz, mas animadamente; os
contramestres, desconfiados, rondavam por toda a parte; de vez em
quando, ouviam-se invectivas, risos irritados.

Viu então dois guardas da policia levarem Samoílof. Uns cem operarios
seguiram-no, injuriando ou troçando dos guardas.

--Vaes dar um passeio, amigo? gritou alguem.

--Honra seja ao nosso companheiro! disse outro. Dão-lhe uma escolta!...

E resoou uma saraivada de pragas.

--Ao que parece, é menos rendoso agarrar os ladrões! berrou muito
irritado o vesgo. Mettem-se com a gente de bem!

--Se ao menos, isto fosse de noite! Mas qual! Esta canalha não tem
vergonha da luz do dia!

Os guardas iam andando depressa e com ar carrancudo, buscando não verem
nada, nem ouvirem os insultos que de toda a parte lhes atiravam. Trez
operarios avançaram para elles, com uma barra de ferro, gritando:

--Cuidado, peccadores!

Quando passou diante de Pélagué, Samoílof abanou a cabeça, rindo e
dizendo:

--Vão arrastando um humilde servo de Deus!...

Ella ficou silenciosa e curvou-se profundamente commovida pelo
espectaculo d’aquelles rapazes honrados, intelligentes e modestos que
iam para a cadeia com o sorriso nos labios. Sem dar por tal, começava
a consagrar-lhes um compadecido amor de mãe. E era-lhe agradavel ouvir
as frases de censura para os directores, porque n’ellas sentia a
influencia do filho.

Quando saíu da fabrica, passou o dia em casa de Maria, ajudando-a,
dando attenção á sua tagarellice. Só tarde voltou para a sua casa
vasia, fria, hostil. Por muito tempo vagueou de um canto para o outro,
sem saber que fazer nem onde sentar-se. Estava inquieta vendo que Iégor
ainda não viéra, como promettera.

Lá fóra, caíam pesados flócos pardos d’uma neve de outomno. Collavam-se
aos vidros, deslisavam sem ruido e derretiam-se deixando rastos
humidos. Pélagué pensava em Pavel.

Porque batessem cautelosamente á porta, accorreu logo a puxar pelo
ferrolho: era Sachenka. Pélagué não a via desde muito tempo; chamou-lhe
logo a attenção a gordura da rapariga.

--Bôa noite! Tem estado muito longe d’aqui?

--Não. Na cadeia! respondeu, sorrindo. Ao mesmo tempo com o Nicolao
Ivanovitch. Lembra-se d’elle?

--Como havia d’esquecel-o? O Iégor disse-me que o tinham posto em
liberdade, mas de si não me falou, nem elle, nem ninguem.

--E para que serviria isso? Deixe-me despir antes que o Iégor venha.

--Está toda molhada!

--Trouxe os folhetos...

--Dê cá! dê cá!

--Prompto!

Entreabriu a capa, saccudiu-a e logo caíram no chão pacotes de folhetos.

Pélagué apanhava-os, rindo.

--E eu, que ao vêl-a tão roliça, imaginei que tivesse casado e
esperasse um menino! Ah! mas que quantidade que trouxe! E veio a pé?

--Vim.

A rapariga estava outra vez magra e esbelta. Pélagué notou-lhe até as
faces um tanto encovadas, e que os olhos bem rasgados eram assombreados
por fundas olheiras.

--Pozeram-na na rua, e em logar de ir repoisar, faz uma caminhada de
sete kilometros com tudo isto em cima de si!...

--Assim era preciso. Diga-me: como está o Pavel Mikaílovitch? Não lhe
custou muito?...

Falava sem olhar para Pélagué, abaixando a cabeça para arranjar o
cabello com os dedos tremulos.

--Não! respondeu Pélagué. Oh! Aquelle não se traírá!

--Tem uma saude de ferro, não é verdade? perguntou ainda em voz baixa e
ligeiramente tremelitante.

--Nunca esteve doente. Mas como está tremendo!... Espere; vou tratar do
chá; tambem tenho uma compota de framboezas...

--Não será máo! disse Sachenka com um leve sorriso. Mas para que ha-de
ter esse trabalho? É tarde; deixe que seja eu quem faça o chá.

--Mas está tão fatigada!... replicou em tom de censura; e pôz-se a
accender o samovar.

Sachenka seguiu-a até á cosinha, sentou-se n’um banco e enclavinhando
os dedos em cima da cabeça:

--Estou fatigada, estou. Apezar de tudo, a prisão esgota. Que maldita
inacção! Não ha coisa mais penosa! Fica-se para ali uma semana, um mez,
sem nada que fazer... Ha quem conte comnosco para receber instrucção,
sabemos que podemos dar-lha... e vemo-nos metidos n’uma jaula como
animaes ferozes!... É de resequir o coração!

--E quem vos recompensará?... suspirou Pélagué. Mas logo accrescentou:
Ninguem, se não Deus! Tambem... a sr.ᵃ não acredita n’elle,
naturalmente...

--Não!

--E eu não acredito em si nem nos outros! exclamou, animando-se de
subito.

Alimpando ao avental as mãos sujas de carvão, continuou com convicção
profunda:

--Não compreendeis a nossa crença... Como pode alguem dedicar-se a
semelhante vida sem acreditar em Deus?

Sob o telheiro ouviram-se passos e o resmungar d’alguem. Pélagué
estremeceu; a rapariga poz-se logo de pé e disse baixinho:

--Não abra! Se fôr a policia, diga que não me conhece... que bati a
esta porta por engano... que entrei aqui por acaso, que desmaiei e que
a sr.ᵃ me despiu para pôr-me á vontade, encontrando então em mim os
folhetos. Percebe?

--E para que hei de dizer isso? perguntou enternecida.

--Espere!... Parece-me que é o Iégor...

Era elle, a escorrer agua, estafado.

--Ah! o samovar está prompto!... exclamou. É o que ha de melhor n’este
mundo, mãesinha! Já cá está, Sachenka?

Enchia a cosinha com os sons gutturaes da sua voz; tirou vagarosamente
o casacão e continuou:

--Ora ahi tem, mãesinha, uma rapariga muito desagradavel para as
auctoridades! Como um dos carcereiros a tivesse insultado, declarou
terminantemente que se deixaria morrer de fome, se elle não lhe pedisse
desculpa. E durante oito dias não comeu coisa alguma, estando em riscos
de abalar d’esta para melhor. É bonito, não acha? E o que me diz á
minha barriguinha?

Saccudiu o ventre postiço, feito de massos de folhetos e passou ao
quarto, fechando a porta.

--O quê? Pois esteve oito dias sem comer? perguntou Pélagué, admirada.

--Se era indispensavel que elle me pedisse desculpa!... respondeu, com
uma tremura d’hombros friorenta.

Esta tranquillidade e esta obstinação austeras levaram ao animo de
Pélagué o que quer que fosse semelhante a uma censura. «Ah! é assim, é
assim!...» pensou.

E perguntou ainda:

--E se tivesse morrido?

--Estaria morta, naturalmente. Afinal, o homem acabou por pedir
desculpa. Ninguem deve perdoar os ultrajes.

--Sim... Mas nós, as mulheres, somos ultrajadas durante toda a nossa
vida...

--Prompto! Já larguei a carga! informou Iégor, apparecendo. O samovar
está prompto? Se me dá licença...

Pegou n’elle e passando-o para o quarto:

--O meu papá bebia pelo menos vinte copos de chá por dia; por isso
passou n’este mundo setenta e trez annos socegadamente e sem nunca
estar doente. Pesava mais de cem kilos e era sacristão da aldeia de
Vosskressensky...

--É filho do tio Ivan? perguntou Pélagué.

--Sim, sr.ᵃ. Como o sabe?

--É que eu tambem sou de Vosskressensky!

--Então somos da mesma terra! Que nome era o seu, em rapariga?

--Séréguine... Eramos visinhos...

--É a filha do Nile, o côxo? Não conheci eu outro figurão! Quantas
vezes elle me puxou as orelhas!

Estavam de pé e riam no meio das perguntas. Sachenka olhando para elle
a sorrir, ia preparando o chá. O ruido da loiça chamou Pélagué aos seus
deveres.

--Desculpem. Começo o tagarellar e esqueço-os. É tão agradavel
encontrar um patricio...

--Eu é que peço desculpa de me servir primeiro... disse Sachenka. Mas
já são onze horas e ainda tenho muito que andar.

--Para ir para onde? para a cidade?!

--Sim, para a cidade.

--Mas chove, é noite, está cansada. Deixe-se ficar. O Iégor dorme na
cosinha, e nós, as duas, aqui.

--Não! Tenho forçosamente que partir.

--É verdade, patricio: é forçoso que esta menina desappareça.
Conhecem-na por cá. E se ámanhã a vissem na rua, seria mao.

--E vae-se embora sósinha!

--Vae! disse Iégor com um risinho.

A rapariga deitou ainda mais chá, pegou n’um pedaço de pão de centeio,
salgou-o e entrou de comel-o, olhando pensativamente para Pélagué.

--Admira-me como é capaz de ir sósinha. E a Natacha tambem... Eu cá não
era. Tenho um medo!...

--Mas olhe que ella tambem tem medo. Não é verdade, Sachenka?

--É.

Pélagué lançou-lhe um olhar, murmurando:

--Como são corajosas!

Depois de ter tomado o chá, Sachenka apertou a mão a Iégor sem dizer
palavra e passou á cosinha seguida pela velha.

--Se vir o Pavel, dê-lhe muitas recommendações minhas.

Tinha já a mão no fecho da porta, quando, voltando-se rapidamente,
perguntou:

--Deixa-me beijal-a?

Sem responder, Pélagué abraçou-a effusivamente.

--Obrigada! disse a rapariga, a meia voz.

E saíu, meneando a cabeça.

Ao voltar ao quarto, a velha olhou com anciedade para o lado da
janella. Nas trevas espessas e humidas caíam lentamente flocos de neve
meio derretidos.

Vermelho e suando, Iégor sentara-se, com as pernas afastadas e soprando
ruidosamente ao chá. Sentia-se satisfeito.

A velha sentou-se tambem, e olhando tristemente para elle:

--Pobre Sachenka!... Como chegará ella ao fim do caminho?...

--Cançada! A cadeia serviu-lhe de provação... Era d’antes mais
robusta... Depois, não foi educada como nós, á bruta... Parece-me que
já tem os pulmões atacados.

--Quem é ella?

--Filha d’um proprietario rural. O pae é riquissimo e... canalhissimo.
Naturalmente, mãesinha, já sabe que elles se amam deveras e que querem
casar.

--Quem?

--O Pavel e ella. É isto! Mas afinal não o conseguem. Quando elle está
em liberdade, está ella na cadeia, e _vice-versa_.

--Não sabia, não... Pavel nunca fala da sua pessoa.

E ainda mais se apiedou da rapariga.

--O sr. devia tel-a acompanhado! lembrou com certa hostilidade
involuntaria.

--Impossivel! respondeu tranquillamente. Tenho uma caterva de coisas
que fazer por cá, e para dar conta de tudo hei de andar o dia inteiro.
É uma occupação muito desagradavel quando somos asthmaticos.

--Que bella rapariga! exclamava, pensando vagamente no que Iégor lhe
dissera.

Vexava-a ter sabido aquella noticia por outrem e não pelo seu filho;
mordeu os beiços fortemente e abaixou as palpebras.

--Sim! disse Iégor. Noto que ella lhe causa piedade. Faz mal! se
começa a ter piedade dos revoltados não lhe chega o coração para
todos. Francamente, ninguem tem boa vida... Ha tempos, um dos meus
companheiros regressou do exilio; quando chegou a Nijni, a mulher e o
filho esperavam-no em Smolensk, e quando elle chegou a Smolensk, já
elles estavam presos em Moscou. Agora é a mulher que vae exilada para a
Siberia. Eu tambem tive mulher, tambem, e era uma excellente creatura,
mas cinco annos d’esta vida bastaram para a atirar para a cova.

Bebeu d’um trago o seu copo de chá e continuou a discorrer. Contou os
annos e mezes que passara preso, e no exilio, as suas catastrophes,
a fome na Siberia, os massacres nas prisões... A velha ouvia-o
attentamente, admirando-se da simplicidade tranquilla com que elle
descrevia aquelle viver cheio de perseguições e de torturas.

--Bem! Vamos agora ao nosso negocio...

A voz transformou-se-lhe, a phisionomia tornou-se grave. Perguntou como
imaginava ella poder introduzir na fabrica os folhetos, e Pélagué ficou
surpreendida ao perceber que elle conhecia a fundo todos os meios para
chegar ao desejado fim.

Depois de combinarem tudo, voltaram a falar da sua aldeia; emquanto
Iégor gracejava, a velha ia percorrendo em pensamento o passado,
que lhe parecia semelhante a um pantano com monotonos monticulos, e
com faias, pinheirinhos e bétulas brancas balouçando mansamente ao
vento nas pequeninas collinas. As bétulas cresciam muito de vagar, e
depois de terem vivido cinco ou seis annos n’aquelle sólo pútrido e
movediço, caíam e decompunham-se... A velha considerava este quadro com
indifinivel e misteriosa magoa. Na sua frente ergueu-se uma silhueta
de rapariga de feições accentuadas e cheias de obstinação. Ia, sob os
flocos de néve, fatigada e solitaria... E o seu filho estava encerrado
n’uma pequena casa, cuja janella tinha grades de ferro... Talvez
áquella hora elle não dormisse; pensava, por certo. Mas não estaria
pensando em sua mãe, porque havia alguem que lhe era mais querido...
Como uma nuvem de variegadas côres e informe, avançavam para ella os
dolorosos pensamentos, invadindo-lhe a alma com violencia.

--Deve estar cançada, mãesinha! Vamo-nos deitar! disse Iégor, sorrindo.

Desejou-lhe uma boa noite, e passou á cosinha, caminhando d’esguelha,
com precaução, com o coração cheio de ardente amargura.

Na manhã seguinte, ao tomar o chá, Iégor disse-lhe:

--E se a apanharem, e lhe perguntarem onde adquiriu os folhetos, o que
responde?

--«Isso não é da sua conta!»... Aqui está o que eu respondo.

--Por esse ajuste é que elles não estão! O importante para elles é isso
mesmo, e sobre o assumpto hão-de interrogal-a demoradamente.

--Não direi uma palavra!

--Mettem-na na cadeia!

--Que m’importa! Graças a Deus, terei ao menos servido para alguma
coisa! A quem faço eu falta? A ninguem. E segundo dizem, já não
torturam os presos...

--Hum!... Não a torturarão. Mas uma boa mulher como a sr.ᵃ deve ter
cuidado em si.

--Não me parece que seja comsigo que possam aprender isso. Depois de
ter dado alguns passos, em silencio, Iégor approximou-se d’ella.

--É custoso, patricia! sinto que ha-de custar-lhe muito!

--Todos estamos sujeitos!... Talvez seja mais facil para os que teem uma
compreensão clara... Emfim, eu não compreendo bem, mas alguma coisa sei
do que quer a nossa boa gente.

--E desde que o sabe, mãesinha, é util a todos, a todos!

Pelo meio-dia, Pélagué, tranquilla e importante, metteu um masso de
folhetos no seio. Vendo a destreza com que ella os occultava, Iégor deu
um estalido com a lingua e exclamou satisfeito:

--_Sehr gut!_ como dizem os allemães ao esvasiarem um barril de
cerveja. A litteratura não a transformou: continua sendo uma mulher
como se quer! Os deuses protegem a sua empreza!

Meia hora depois, com o mesmo sangue-frio e acurvada ao peso da comida
que levava para os operarios, Pélagué chegava á porta da fabrica. Dois
guardas, irritados pela troça dos operarios com quem trocavam doestos,
apalpavam sem ceremonias todos os que entravam no pateo. Um agente de
policia passeava não distante d’alli, bem como um homem de olhar vago,
pernas curtas, e cara vermelhaça. A velha observou este, de soslaio,
emquanto passava o fardo para o outro hombro; advinhava que elle era um
espião.

Um rapagão de cabellos encaracolados, com o boné para a nunca, gritava
aos guardas que o revistavam:

--Procurem na cabeça e nas algibeiras, seus diabos!

Um dos guardas respondeu:

--Não és cara para teres na cabeça o que quer que seja... a não ser
piôlhos!

--Pois n’esse caso, catem-nos, que é trabalho digno de vós!

O espião lançou-lhe um máo olhar, e escarrou para o chão.

--Deixem-me passar! pediu Pélagué. Não vêem que a minha carga é pesada?
Trago o corpo quebrado...

--Vá! vá! pode passar mas não grite tanto! respondeu o guarda com máo
modo.

Chegando ao seu logar, Pélagué pôz no chão as panelas da sopa e olhou
em volta, limpando o suor.

Dois serralheiros, os irmãos Goussef, vieram logo; o mais velho,
Vassili, perguntou-lhe em voz retumbante, franzindo o sobrolho:

--Temos hoje empadas?

--Ámanhã! respondeu logo.

Eram as palavras convencionadas. A fisionomia dos dois homens abriu-se.
Incapaz de subjugar-se, Ivan exclamou:

--Ah! como tu és bôa!

Vassili agachou-se, observando uma das panelas, e ao mesmo tempo um
massinho de folhetos deslisou-lhe para o peito.

--Ó Ivan, para que havemos de ir comer a casa? Jantemos aqui! E metteu
os folhetos nos canos das botas. Deve-se proteger a nova vendedeira.

--Dizes bem! E desatou a rir.

Pélagué apregoava de quando em quando, continuando a olhar
prudentemente em volta:

--Quem quer sopa? aletria quente! carne assada!

Pouco a pouco, ia tirando do seio mais folhetos, entregando-os
cautelosamente aos dois irmãos. Sempre que isto acontecia, parecia-lhe
ver de subito na frente o rosto do official da guarda, como uma nódoa
amarella, semelhante á luz d’um fósforo n’um quarto escuro. E, em
pensamento, ella atirava-lhe estas palavras, repassadas de satisfação:

--Chucha, tiosinho!

E ao passar mais folhetos, pensava ainda:

--Anda! chucha mais estes!

Quando os operarios se approximavam, de prato na mão, Ivan Goussef ria
com estrondo; Pélagué suspendia a faina de passar os folhetos, deitava
nos pratos sopa de hervas ou de aletria, emquanto Vassili lhe dirigia
gracejos.

--Olhem que é muito habil, a tia Pélagué!

--A miseria até nos ensina a apanhar ratos... disse em tom sorna um
fogueiro. Tiraram-lhe aquelle que lhe dava o pão... Canalhas! Pois
venham de lá tres kopecks d’aletria. Coragem, boa velha! Tudo ha de
acabar em bem!

--Obrigado por essa consolação! respondeu ella sorrindo.

Ao que elle retorquiu afastando-se:

--Não me custa nada!...

--Mas não vejo a quem ella aproveite! replicou um ferreiro, rindo.

E acrescentou, encolhendo os hombros:

--É isto a vida, rapazes! Ninguem a quem dirigir com proveito palavras
de consolação... ninguem é digno d’ellas... não achas?

Vassili ergueu-se, abotoando cautelosamente o casacão:

--A comida estava quente, e, apezar d’isto, estou com frio.

Afastou-se, assim como o irmão, assobiando.

Pélagué continuava apregoando, sorrindo amavel:

--Sopa quente! Aletria! Sopa d’hervas!

Ia pensando em que contaria ao filho a sua primeira experiencia. A
cara amarellenta do official, irritado e estupefacto, apparecia-lhe
constantemente ao espirito; o bigode negro movia-se confusamente, e
sob o labio superior, contraído por uma expressão de colera, brilhava
o marfim dos seus dentes cerrados. Como um passarinho, no coração da
velha adejava e trinava uma alegria intensa. E continuava dizendo em
pensamento:

--Chucha! chucha ainda mais folhetos!...



XVI


Durante todo o dia um sentimento novo para ella lhe ameigou a alma.
Á noite, concluido o seu trabalho, e quando estava tomando o chá, o
tropel de um cavallo soou sob a janella, e ouviu-se uma voz conhecida.
Pélagué levantou-se, rapida, e correu á cosinha para abrir a porta:
alguem avançava a passos largos. Sentiu-se perturbada, encostou-se ao
umbral e empurrou a porta com o pé.

--Boa noite, mãesinha! E duas mãos magras e compridas poisaram-lhe nos
hombros.

Invadiu-a o desgosto da desillusão e ao mesmo tempo a alegria de tornar
a ver o recemchegado, André. E estes dois sentimentos fundiram-se em
immensa onda ardente que a arrebatou, atirando-a de encontro ao peito
do russo-menor.

Este abraçou-a com força; as mãos tremiam-lhe. Pélagué chorava
brandamente, sem falar emquanto André lhe acariciava os cabellos,
dizendo-lhe com a sua voz sempre cantante:

--Não chore, mãesinha, não fatigue o seu coração! Dou-lhe a minha
palavra d’honra que em breve elle será posto em liberdade. Não teem
nenhuma prova contra elle, os companheiros não deram com a lingua nos
dentes.

E envolvendo com os seus grandes braços os hombros de Pélagué levou-a
para a maior divisão da casa; ella apertava-se contra elle com o
movimento rapido e assustadiço d’um esquilo; depois aspirou com
soffreguidão as palavras de André.

--O Pavel manda-lhe muitas recommendações. Está de saude e satisfeito
quanto é possivel. Na cadeia não se vive á larga. Foram presas mais
de cem pessoas, aqui e na cidade; mettem aos trez e aos quatro em
cada cella. Nada ha a dizer da direcção da cadeia; não são maos; são
apenas coagidos: os diabos da policia dão-lhes tanto que fazer!... Por
consequencia a severidade é pouca. Dizem-nos constantemente: «Estejam
mais socegadinhos, senhores, não nos dêem semsaborias!...» Assim, as
coisas vão ás mil maravilhas. Podiamos falar uns com os outros, trocar
os nossos livros, dividir a nossa comida. Que encantadora cadeia! É
velha e suja, mas suave e levesinha. Os criminosos de direito commum
eram tambem uma boa gente; prestavam-nos muitos serviços. Deram-me a
liberdade e ao Boukine e ainda a mais quatro, porque os logares não
chegavam. E dentro em breve hão de pôr na rua o Pavel. É mais do que
certo. O Vessoftchikof é que ha de ficar por lá mais tempo, porque
estão muito irritados contra elle. Insulta toda a gente, a todo o
momento. Os guardas não o podem ver. Ha de acabar por ser julgado,
se não lhe derem uma sova. O Pavel deligenceia socegal-o: «Cala-te,
Nicolao; para que servem os teus insultos? Não consegues que elles se
façam melhores!» Ao que responde aos berros: «Hei de arrancar da terra
estas chagas!» O Pavel porta-se muito bem: é firme e ao mesmo tempo
commedido com todos. Affianço-lhe que dentro em pouco pôem-no na rua.

--Dentro em pouco!... repetiu ella, sorrindo. Ah! sim! dentro em pouco!

--Verá! Vamos ao chásinho! O que tem feito n’estes ultimos tempos?

André comtemplava-a risonho, muito proximo do coração d’ella. Na
profundeza azul dos seus olhos redondos brilhava uma como estrella de
amor e de tristeza.

--Quero-lhe muito, André! exclamou com um longo suspiro; e ficou-se
olhando para o rosto magro d’elle, coberto de pellos.

--Um poucochinho já me bastaria. Sei que me estima, sim. Tem uma grande
alma, pode estimar a todos.

--Não! Quero-lhe muito em especial. Se o André tivesse mãe, haveriam de
invejar-lhe tal filho.

Elle meneou a cabeça, esfregou vigorosamente as mãos, e disse a
meia-voz:

--Eu tambem tenho mãe... tambem... algures...

--Sabe o que eu fiz hoje?

E, com a voz tremula pela satisfação, contou vivamente como tinha
conseguido metter os folhetos na fabrica.

A principio, elle esbogalhou os olhos, surprezo; depois bateu na testa
com o dedo e exclamou, cheio de alegria:

--Oh! mas isso é serio! o Pavel vae ficar radiante! Muito bem,
mãesinha! Isso é tão util para o Pavel, como para os que foram presos
com elle!

Fazia estalar os nós dos dedos, satisfeitissimo, assobiava,
balouçava-se na cadeira. A sua alegria eccoava poderosamente na alma de
Pélagué.

--Meu querido André, quando penso na minha vida!... Ai! Meu Deus! Para
que tenho eu vivido? Para trabalhar e levar pancada! Não via mais
ninguem senão o meu marido; não conhecia mais nada do que o medo. Não
vi como o Pavel cresceu... nem mesmo sei se o amava emquanto o meu
marido era d’este mundo. Todos os meus pensamentos, todos os meus
cuidados, pertenciam a uma coisa unica: alimentar aquelle animal
selvagem, para que andasse satisfeito e cheio, para que não se zangasse
e me poupasse á pancada, uma vez ao menos. Mas não me recordo de que
elle compreendesse isto. Batia-me com tal violencia, que parecia
estar castigando não a sua mulher, mas sim aquella contra quem andava
irritado. Assim vivi vinte annos. Do que fui antes de casar nem já me
lembro. Quando tento recordar-me, nada vejo: é como se estivesse cega.
Com o Iégor Ivanovitch--somos da mesma aldeia--conversei ultimamente
e a respeito d’estes e d’aquelles... recordava-me das casas, revia as
pessoas, mas não me lembrava da maneira como viviam, o que diziam, o
que lhes acontecera. Lembro-me dos incendios, de dois incendios... O
meu marido tanto me bateu, que de mim saccudiu todas as recordações. A
minha alma era hermeticamente fechada; tornou-se depois cega e muda.

Resfolegou demoradamente, como um peixe fora d’agua; curvou-se para a
frente, e continuou:

--Quando elle morreu, agarrei-me ao meu filho, que começou a
preoccupar-se com essas coisas... Foi então que tive compaixão d’elle.
«Como hei-de viver sósinha, se elle morrer?» perguntava a mim mesma.
Quantos receios! quantas angustias! O meu coração despedaçava-se,
quando eu pensava na sorte do Pavel!

Calou-se por instantes, meneou a cabeça, e continuou:

--É impuro o nosso amor, o das mulheres! Amamos aquillo de que
precisamos... Quando o vejo pensar em sua mãe... Que falta lhe faz
ella? E aquelles que soffrem pelo povo, que são mettidos na cadeia ou
mandados para a Siberia, que morrem ou são enforcados por lá... essas
raparigas que andam sósinhas de noite por cima da neve, da lama, e á
chuva, que andam sete kilometros para virem ver-nos... o que é que as
leva a isto? É o amor, mas um amor puro! Teem a fé... a fé...! Eu não
sei amar assim; amo o que me diz respeito, o que me é próximo!...

--Tem razão! Todos amam o que lhes fica ao alcance, mas, para uma
grande alma como a sua, do longe faz-se perto. Pode amar muito, porque
tem um grande amor materno.

--Deus queira! Sinto que ha-de ser bom viver assim. Por exemplo,
estimo-o, André, talvez mais do que o Pavel... Elle é tão reservado!
Olhe: quer casar com a Sachenka e nunca me disse uma palavra, a mim,
sua mãe!

--Não é verdade! Sei que não é verdade! Ama-a, e ella tambem o ama.
Quanto a casarem, não. Ella quereria, mas o Pavel...

--Ah!... exclamou ficando a olhar tristemente para André. É isso!
Deve-se renunciar a si mesmo.

--O Pavel é um homem extraordinario! Um caracter de ferro.

--E agora... preso! Mas a minha alma transformou-se, abriu os olhos,
vê. Emquanto houver ricos, poderosos, o povo não obterá justiça, nem
alegria, nada! Não é isto, André?

Elle levantara-se pensativo.

--É isso mesmo! Havia em Kertch um rapaz judeu que fazia versos, e que
uma vez disse assim:

  Podem assassinar os innocentes,
  Que a força da verdade os resuscita!

Elle mesmo foi assassinado pela policia, em Kertch, mas isso que
importancia teve? Conhecia a verdade e semeára-a no coração dos homens.
Ah! Pélagué! A sr.ᵃ é tambem uma creatura condemnada á morte...
Resuscitou. O poeta sabia o que dizia.

--Falo, falo, e sinto-me, e não creio nos meus ouvidos. Hoje penso em
todos. Não compreendo talvez muito bem isso em que andam mettidos...
mas todos sinto proximo de mim, e desejo a felicidade de todos, a sua
principalmente, meu André!

Elle approximou-se dizendo:

--Obrigado. Não falemos mais de mim.

E pegando-lhe na mão, apertou-a com força e voltou o rosto para o lado.

Fatigada pela commoção, Pélagué começou de lavar a loiça vagarosamente,
emquanto o russo-menor, passeando pelo quarto, ia falando.

--Mãesinha, deve tratar de amansar o Vessoftchikof! o pae está com elle
na mesma cadeia; é um velhote repellente. Quando o filho o vê, pela
janella, insulta-o. Não é bonito! O rapaz é bom, gosta dos cães, dos
ratos, de todos os seres, menos dos homens! Ora veja até que ponto pode
ser corrompida uma alma humana!

--A mãe desappareceu, sem dar novas nem mandados. O pae é um bêbedo...
disse Pélagué, pensativa.

Quando André foi deitar-se, fez-lhe no peito o signal da cruz, sem que
elle désse por isso. Meia hora depois, perguntava, baixinho:

--Já dorme, André?

--Não. Porque?

--Nada. Boa noite.

--Obrigado, obrigado! respondeu, reconhecido.



XVII


Quando no dia seguinte ella chegou á porta da fabrica, carregada com o
seu fardo, os guardas detiveram-na rudemente, mandaram-na pôr no chão
tudo o que trazia e examinaram-na attentamente.

--Olhem que a sôpa arrefece! disse, tranquilla, emquanto a apalpavam
sem ceremonia.

--Cala-te!

O outro disse, dando levemente com o hombro no camarada.

--Se eu te affirmo que os atiram cá para dentro por cima do muro!...

O velho Sizof foi o primeiro a approximar-se d’ella, perguntando-lhe em
voz baixa:

--Ouviste?

--O quê?

--Os folhetos tornaram a apparecer. As prisões e as buscas não serviram
para nada. O meu sobrinho Mazine está preso, o teu filho tambem, e
afinal os folhetos continuam a ser distribuidos.

E concluiu, passando a mão pela barba:

--O caso não está nas prisões, mas sim nos pensamentos. E os
pensamentos não são coisa que se agarre como quem apanha pulgas. Porque
não vens tu á nossa casa? É aborrecido tomar o chá sósinha.

Agradeceu. Apregoando sempre, ia activando o movimento cheio de
animação que havia na fabrica. Os operarios pareciam contentes;
formavam-se grupos, as vozes eram excitadas; pairava no ar um como
sopro d’audacia. Ora d’um canto, ora d’outro, partiam exclamações
approvativas, gracejos pesados e até ameaças. A figura avantajada do
Goussef apparecia aqui e ali; o irmão seguia-o, rindo. Um mestre
marceneiro chamado Vavilof e o apontador Isaías passaram diante de
Pélagué sem se apressarem. Este ultimo disse vivamente:

--Olha, Ivan Ivanovitch: riem, andam satisfeitos, embora o caso possa
trazer a destruição do imperio, como disse o sr. director. O necessario
não é mondar, mas sim semear.

Vavilof, com os braços cruzados nas costas, apertava fortemente os
dedos.

--Imprimam tudo o que quizerem, cães do diabo! mas não se mettam em
falar da minha pessoa!

Vassili Goussef approximou-se de Pélagué.

--Dá cá de comer. O que tu vendes é bom.

Depois, baixaram a voz:

-- Vê, mãesinha, que o nosso fim está conseguido!

Ella disse que sim com a cabeça. Sentia-se feliz por lhe falar em
segredo aquella creatura que tinha tão má fama no bairro; e ao notar a
efervescencia que ia pela fabrica, dizia a si mesma, satisfeita:

--E pensar que se não fosse eu!...

Trez operarios pararam perto d’ella; um disse, a meia voz:

--Não encontrei...

--Se conseguissemos lêl-o!... Eu nem mesmo sei soletrar; mas percebo
que elle é util.

O terceiro, olhou em volta, e depois propôz:

--Vamos para o pé dos fornos de fundição; eu mesmo o leio.

--Os folhetos vão fazendo o seu effeito!... cochichou Goussef a Pélagué.

Ella voltou para casa, satisfeitissima, pois tinha visto com os seus
olhos que as proclamações attingiam o fim desejado.

--Os operarios lamentavam-se de serem ignorantes. Quando eu era
rapariga, sabia ler, mas depois esqueci tudo.

--É tornar a aprender! disse André.

--Na minha idade! Isso até dava vontade de rir!

Mas André pegou n’um livro e perguntou, apontando para uma lettra.:

--Que é isto?

--Um R! respondeu, rindo.

--E isto?

--Um A.

E depois de compreender que o sorriso d’elle nada tinha humilhante nem
ironico:

--Pensa, na verdade, eu instruir-me, André?

--E porque não? Tentemos. Já que uma vez aprendeu, ser-lhe-á agora
facil. Se o conseguirmos, tanto melhor; se não, paciencia.

E a lição continuou.

Dedicando-se com toda a boa vontade; mexendo os sobrolhos, procurava
recordar-se das letras esquecidas; tanto se mergulhára no estudo, que
não se lembrava de nada mais; os seus olhos fatigaram-se dentro em
pouco, e n’elles se accumularam as lagrimas que o cansaço provocava.

--Aprendo a ler! exclamou, soluçando... na hora em que só devia pensar
na morte.

--Não chore! Ha milhares de creaturas que podiam instruir-se ainda
mais, e todavia vegetam como brutos, embora se gabem de que vivem
bem... E o que ha na sua existencia que seja bom? Sempre a mesma
vida: trabalhar e comer. De vez em quando, fazem filhos: a principio
acham-lhes graça, mas quando elles começam tambem a comer, entram de
embirrar com elles, e dizem-lhes: «Vejam lá se crescem depressa, seus
comilões, e se começam a trabalhar!» Nunca a sua alma é animada por
uma alegria, por um pensamento que dê jubilo ao coração. Uns mendigam
sempre, como os pobres, os outros fazem-se ladrões. Inventaram-se leis
infames, entregaram a guarda do povo a umas creaturas a quem disseram:
«Obriguem a que respeitem as nossas leis, que nos permittem sugar o
sangue humano.» Se o homem não cede quando o comprimem, mettem-lhe á
força, nos miolos, preceitos que brigam com a razão.

Encostado á meza, fitava o olhar em Pélagué, continuando:

--Mas os outros, como o seu filho, são homens que libertam o corpo e o
cerebro. E a mãesinha tambem se consagrou a esse trabalho, dentro das
suas forças.

--Eu?!

--Sim. É como a chuva. Cada gotinha vae alimentar um grão de trigo. E
quando souber lêr...

Levantou-se; e a rir:

--O Pavel é que ha de ficar espantado, quando voltar!...

--Ah! meu André! Tudo é facil emquanto se é novo; mas quando se é
velha...

Á noite, o russo-menor saíu. Pélagué foi fazer meia, mas, de subito,
fechando-se bem por dentro, tirou da estante um livro, encostou-se á
meza, acurvou-se sobre elle, e os seus labios começaram a mover-se...
Quando vinha da rua algum ruido, fechava o livro, a tremer, e punha o
ouvido á escuta. E ficava-se a soletrar, mentalmente:

--L... A... V... I... A...



XVIII


Bateram á porta. Foi pôr o livro na estante.

--Quem é?

--Eu.

Rybine entrou. Tendo trocado os cumprimentos, alizou a barba
demoradamente, olhou para o quarto, e disse:

--D’antes deixavas entrar toda a gente, sem perguntares quem era...
Estás sosinha?

--Estou.

--Julguei que estivesses com o André. Vi-o hoje. A cadeia não corrompe
o homem. O que corrompe mais do que tudo é a estupidez.

Passou ao quarto e sentou-se.

--Venho dizer-te alguma coisa. Tive uma idéa...

A sua gravidade e o seu ar misterioso sobresaltaram Pélagué, que se
sentara diante d’elle.

--Tudo custa dinheiro! começou. Ninguem nasce nem morre gratuitamente.
Ora os folhetos tambem custam dinheiro. Sabes d’onde elle vem para
pagar os folhetos?

--Não sei.

--Nem eu. Em segundo logar: quem os compõe?

--Sabios...

--Gente que está acima de nós. Portanto são os grandes que compõem os
folhetos. Ora se os folhetos são contra elles, que interesse teem elles
em publical-os, gastando para isso o seu dinheiro?

Pélagué fechou os olhos; e ao reabril-os:

--O que pensas? Dize!

--Ah! exclamou, movendo-se na cadeira como um urso. Senti tambem um
calafrio quando me veio este pensamento!...

--O que ha então? Soubeste alguma coisa?

--É tudo um embuste! Entendo que é um embuste! Eu compreendo a
verdade, e não quero entender-me com os ricos. Quando precisam de nós,
atiram-nos para a frente, para que os nossos corpos lhes sirvam de
ponte.

Estas palavras acerbas confrangiam o coração da pobre velha.

--Ó Senhor! exclamava angustiada. E o Pavel que não compreendeu nada
d’isso? Pois dar-se-á o caso de que todos aquelles, que vinham da
cidade, fossem...?

As fisionomias graves de Nicolao Ivanovitch, de Iégor, de Sachenka,
appareceram-lhe na frente.

--Não! não!... Não posso acreditar. São creaturas animadas só pela sua
consciencia, sem más intensões...

--Não é para esses que devemos olhar, mas para mais alto. Os que
mais se nos approximam sabem naturalmente tanto como nós. Crêem que
procedem bem... amam a verdade. Mas talvez que por de traz d’elles haja
outros que não pensem da mesma maneira. O homem não trabalha contra si
proprio, não tendo para isso fortes razões.

E accrescentou, com a tacanha certeza do camponio, eivado de uma
incredulidade secular:

--Das mãos dos grandes e dos illustrados nunca nos virá coisa bôa!

--O que resolves, então?

--Que não devemos alliar-nos aos que estão acima de nós! Ora aqui está!

Tornou a calar-se, como se se dobrasse sobre si mesmo.

--Vou pôr-me a caminho. Desejava ter-me reunido aos companheiros e
trabalhar com elles. Sirvo para isso; sou teimoso, e não muito parvo;
sei lêr e escrever. E principalmente percebo o que se deve dizer a essa
gente... Vou pôr-me a caminho; é o que devo fazer, já que não posso
acreditar. Vou sósinho por essas cidades e aldeias a sublevar o povo, a
quem cumpre correr á conquista da sua liberdade. Se souber compreender,
encontrará para isso uma saída. Tentarei fazel-o compreender que em
ninguem deve ter esperança senão n’elle proprio.

Ella teve piedade de Rybine, a sua sorte assustava-a; parecera-lhe
sempre antipathico; e n’aquelle momento sentia-o mais perto d’ella,
mais familiar.

--O Pavel vae por um caminho... e elle vae por outro. O Pavel terá
menos trabalho... murmurou involuntariamente, accrescentando: Serás
preso!

Rybine olhou para ella e replicou:

--Mas soltar-me-ão!

--A gente do campo será a primeira a entregar-te... e poderás ficar
preso por muito tempo...

--Acabarei por vir para a rua, e voltarei á mesma. Quanto aos
camponios, entregar-me-ão duas ou trez vezes, mas hão de acabar por
compreender que farão melhor escutando-me. Dir-lhes-ei: «Não acreditem
em mim: oiçam-me apenas!» E se me ouvirem, acabarão por acreditar-me.

--Vaes morrer!... disse tristemente a velha, meneando a cabeça.

Elle fitou-a com um olhar cheio de interrogação. O seu corpo vigoroso
estava inclinado para a frente; as mãos apoiavam-se na cadeira; o seu
rosto moreno empallidecera, enquadrado na barba negra.

--Sabe o que Jesus disse do grão de trigo? «Não morrerá, mas
resuscitará em uma nova espiga!» O homem é um grão de verdade... E eu
ainda não estou ás portas da morte...

Levantou-se, vagaroso.

--Vou ate á taverna. Quando o André voltar, repete-lhe o que eu te
disse?

--Sim.

Passaram á cosinha e trocaram algumas frases curtas, sem olharem um
para o outro.

--Adeus...

--Adeus... Quando recebes a tua feria?

--Já a recebi.

--E quando partes?

--Amanhã de manhãsinha. Adeus!

Curvou-se, e saíu um pouco assustado, como contra vontade. Durante uns
momentos, a velha ficou á porta prestando o ouvido ao andar que se
afastava... Depois foi até ao quarto e pôz-se a olhar pela janella.
Densas trevas se apegavam ás vidraças, parecendo esperar o que quer que
fosse que podesse tragar as suas fauces insondaveis.

--Vivo de noite! pensou. Sempre de noite!

André chegou d’ali a pouco, animado, alegre. Quando a velha lhe falou
de Rybine, exclamou:

--Parte?! Pois que vá! que vá espalhar pelas aldeias a verdade, e
accordar o povo. Era-lhe difficil ficar comnosco. Tem na cabeça umas
idéas especiaes, que não lhe deixam adoptar as nossas.

--Falou dos ricos, dos nobres, dos illustrados. Parece haver no caso
alguma coisa torta!... disse ella prudentemente. Oxalá não sejamos
enganados!...

--Isso dá-lhe cuidado, mãesinha? Ah! o dinheiro! não é? Vamos vivendo
por conta d’outrem. O Nicolao Ivanovitch ganha setenta e cinco
rublos por mez, e entrega-me cincoenta. Os outros fazem o mesmo. Os
estudantes, que passam privações, cotisam-se tambem, e conseguem
mandar-nos pequenas quantias, accumuladas kopeck a kopeck. É isto! Ha
homens para tudo: uns enganam-nos, outros não nos deixam avançar; mas
ha os melhores, os que nos acompanham no caminho da victoria!

E esfregando as mãos:

--Mas o triunfo ainda vem longe, ainda! Emquanto não chega, vamos
organisar um primeiro de maiosinho! Ha de ser divertido!

As suas palavras e a sua animação tranquillisaram Pélagué. Elle,
passeando a passos largos continuava:

--Se soubesse que extraordinaria sensação eu tenho ás vezes!...
Parece-me que por toda a parte por onde vou, os homens são
companheiros, incendidos na mesma fé, que todos são bons. Todos se
compreendem sem precisarem de falar, ninguem offende o proximo. Vive-se
em bôa harmonia, cada alma canta a sua canção, e, como regatos, todas
as canções se reunem em um unico rio, que vae avançando, majestoso e
grave, para o mar onde brilham os clarões da vida livre. E digo com os
meus botões que isto ha de realisar se, que isto não póde deixar de
ser, se nós quizermos que seja! E então o meu coração transborda de
alegria; tenho vontade de chorar, tal é a minha felicidade!

A velha nem se movia, para não o interromper. Escutara-o sempre mais
attentamente do que aos seus companheiros porque elle falava com mais
simplicidade, e as suas palavras iam mais fundo á alma. O Pavel tambem
era para a frente que olhava, mas mantinha-se solitario e nunca dizia
o que via. Parecia a Pélagué que André olhava sempre para o futuro
com o coração: a lenda do triunfo de todas as creaturas surgia sempre
nos seus discursos. E aos olhos de Pélagué aquella brilhante lenda
illuminava lhe a compreensão da vida e do trabalho a que o filho e os
seus companheiros se tinham entregado.

--É humilhante isto! exclamou elle de subito. Não se póde acreditar no
homem. Precisamos até de temel-o e de odial-o. O homem desdobra se, a
vida parte-o em dois. Como seria possivel amar somente? Como perdoar
áquelle que se arroja sobre vós, como um animal selvagem? Impossivel!
Não falo por mim. Supportaria todos os ultrages; mas não quero ter
connivencia com os oppressores; não quero que se sirvam dos meus
costados para aprenderem a bater nos outros.

Uma expressão de frieza accudiu ao seu olhar, a voz tornou-se-lhe mais
firme.

--Não devo perdoar o que seja mao, ainda quando não me prejudique. Não
sou só eu na terra. Admittamos que hoje me deixo insultar sem responder
ao insulto; hei de rir talvez, porque não me senti ferido; mas ámanhã
o insultador, que experimentou em mim a sua força, vae tirar a pelle a
outro. Por isto não devemos considerar toda a gente da mesma maneira;
convem reprimir o coração, vêr quem são os inimigos e quem são os
amigos. É justo, embora não seja divertido!

Sem saber porquê, Pélagué pensou em Sachenka e no official. Disse com
um suspiro:

--Como se ha de fazer pão com trigo que não foi semeado?

--Esse é o mal!

No espirito da velha desenhava-se a figura de seu marido, semelhante a
uma grande pedra coberta de musgo. Fantasiou André casado com Natacha,
e o seu filho casado com Sachenka.

O russo-menor e Pélagué tiveram muitas conversas d’este genero. Elle
conseguira metter-se outra vez na fabrica, e entregava todo o seu
dinheiro a Pélagué, que o acceitava naturalmente, como se fosse de
Pavel.

Ás vezes, com um sorriso no olhar, André propunha-lhe:

--Se nós aprendessemos a contar?...

Ella recusava; o sorriso d’André acanhava-a. Pensava, um tanto vexada:
«Se tu ris, para que havemos de falar n’isso?»

Elle notou que a velha era mais frequente em pedir-lhe a significação
de certas palavras; percebia que ella ia-se instruindo ás escondidas, e
por isto deixou de insistir em ensinal-a.

--Vae-me faltando a vista, meu André; sinto-a cançada... disse-lhe, um
dia. Gostava muito de usar uns oculos.

--Está dito! No domingo vamos ambos á cidade consultar um doutor que eu
conheço, e compraremos depois os oculos.



XIX


Já por trez vezes ella sollicitara licença para ver o filho, recebendo
sempre a negativa benevola do chefe dos guardas, um velho de cabellos
brancos, faces escarlates e nariz comprido.

--D’aqui a uma semana, mulhersinha. Antes, não! Para a semana veremos.
Hoje é impossivel.

--É muito delicado! contava ella a André. Sempre a sorrir!... Não me
parece bem. Quando se é chefe, não se deve levar assim as coisas de
brincadeira.

--Sim, sim... São amaveis, sorriem muito... Se lhes dizem: «Vê aquelle
homem intelligente e honrado? É perigoso para nós: enforque-o!» Elles
sorriem, enforcam-no, e depois continuam a sorrir.

--Aquelle que veio cá fazer a busca era mais simples, valia mais:
via-se logo que era um canalha!

--Dir-se-ia que não são homens mas sim martellos, ferramentas, para nos
talharem por forma a ficarmos ao gosto do governo. Elles proprios foram
accomodados á mão que nos dirige...

...A final, Pélagué obteve a ambicionada licença. No domingo, entrou
na secretaria da cadeia e sentou-se modestamente a um canto. Havia
mais visitas n’aquella casa acanhada e suja, de tecto baixo. Não era
a primeira vez que se encontravam ali: conheciam-se uns aos outros. A
conversa ia-se arrastando lentamente, a meia voz.

--Sabe? dizia uma mulherona já de alguma idade, e que tinha uma
malêta nos joelhos. Esta manhã, á primeira missa, o mestre-capella da
catedral, esteve outra vez quasi a arrancar uma orelha a um menino de
côro.

Um homem de meia idade, com o uniforme de soldado reformado, tossiu
ruidosamente e replicou:

--Os taes meninos de côro são uns garotos!...

Um homemsinho calvo, de pernas curtas, braços compridos, a maxilla
proeminente, passeava d’um lado para o outro, com ares de preocupado.
Sem parar dizia:

--A vida está cada vez mais cara; e é por isto que os homens nunca
foram tão maos! A carne de vacca de primeira qualidade custa a quatorze
kopecks o arratel, o pão dois kopecks e meio...

De quando em quando, entravam prisioneiros, vestidos de cinzento, com
grossos sapatos de coiro. Um d’elles trazia uma corrente no pé. Parecia
que os visitantes estavam acostumados havia muito áquelle espectaculo.
O coração de Pélagué tremia d’impaciencia; olhava perplexa para tudo o
que a cercava.

A seu lado estava uma velhinha com as faces enrugadas e com os olhos
amortecidos. Prestava attenção á conversa, estendia o pescoço delgado e
fugia a olhar para os assistentes, com uma expressão de irascibilidade.

--Quem tem a sr.ᵃ aqui? perguntou-lhe Pélagué com doçura.

--O meu filho, que é estudante! E a sr.ᵃ?

--Tambem o meu filho, operario.

--Como se chama elle?

--Vlassof.

--Não conheço. Está cá ha muito tempo?

--Ha sete semanas.

--E o meu ha dez mezes!

E Pélagué, julgou perceber-lhe no tom da voz, o que quer que fosse
parecido com o orgulho.

Uma senhora alta, vestida de preto, de rosto comprido e pallido, disse
vagarosamente:

--D’aqui a pouco mettem na cadeia todas as pessoas de bem. Já não as
podem aturar.

--Sim, sim! replicou o velho calvo. A paciencia vae faltando. Toda a
gente se zanga e clama, e tudo vae augmentando de preço. É por isto
que as pessoas vão diminuindo de valor. E não apparece nenhuma voz
conciliadora...

A conversa generalisou-se e animou se. Cada qual formulava a sua
opinião acerca da vida, mas todos falavam a meia voz; e Pélagué sentia
n’aquellas palavras o que quer que fosse estranho. Em sua casa,
falava-se d’outra maneira, d’uma maneira mais compreensivel, mais
natural, mais aberta.

Um guarda, de grande barba grisalha, gritou:

--A Vlassof!

Mediu-a com o olhar e disse:

--Vem!

E foi andando, arrastando os pés. A vontade de Pélagué era empurral-o
para que elle andasse mais depressa. Afinal, n’um pequenito quarto,
encontrou-se com Pavel, que lhe estendeu a mão, sorrindo.

Ella agarrou-a, rindo muito, e dizendo:

--Bons dias! bons dias!

--Olá, mulher! exclamou o guarda. Afastem-se um pouco um do outro. É do
regulamento.

E bocejou.

Pavel pediu á mãe noticias da sua saude, da sua casa. Ella esperava
outras perguntas, procurava-as até, no olhar do filho, mas não as
encontrou. Como sempre, elle apresentava-se tranquillo; apenas um pouco
mais pallido; os seus olhos pareciam maiores.

--A Sachenka manda-te recommendações.

As palpebras de Pavel estremeceram e abaixaram. O seu rosto
dulcificou-se e brilhou com um sorriso.

--Pôr-te-ão em breve na rua? perguntou, irritada de subito. Por que
foi que te prenderam? Sim porque afinal os taes folhetos voltaram a
apparecer.

Os olhos de Pavel tiveram um lampejo d’alegria.

--Serio?!

--É proíbido falar d’essas coisas! observou o guarda, indolente. Só se
pode falar d’assuntos de familia.

--Ora essa! Então isto não é assunto de familia? perguntou ella.

--Sei lá! O que digo é que é proibido. Falem da comida, da bebida, da
roupa lavada, e de mais nada! elucidou, continuando como indifferente.

--Está bem! Falemos da nossa casa, mamã? O que é que tu fazes?

--Levo comida aos operarios, comida e outras coisas! respondeu com
audacia.

Deteve-se e explicou melhor, depois de resfolegar:

--Sopa, carne assada, tudo o que Maria costuma cosinhar, e... toda a
especie de alimento.

Pavel compreendera. O rosto contraíu-se-lhe n’uma gargalhada abafada.
Depois, carinhosamente:

--Minha querida mãe... Muito bem! muito bem! Sinto-me feliz, sabendo
que tens tão bom emprego, que não te aborreces. Não é verdade que não
te aborreces?

--E sabes? Revistaram-me toda quando os taes folhetos tornaram a
apparecer! informou um tanto fanfarrona.

--Outra vez?! exclamou o guarda. Já lhes disse que é proíbido. Priva-se
um homem da sua liberdade, para que elle não saiba do que vae lá por
fóra, e vens tu, mulher, e começas a tagarelar!... Compreendam que o
que é proíbido é proíbido!

--Está bem! não se fala mais n’essas coisas, mamã. O Matvé Ivanovitch é
um bom homem: não devemos fazel-o zangar. Damo-nos bem um com o outro.
É por acaso que elle assiste hoje ás entrevistas dos presos com os
visitantes. Quem costuma assistir é o director. E o Matvé Ivanovitch
receia que tu digas coisas... superfluas.

--Acabou o tempo da visita! disse o guarda, tendo consultado o seu
relogio.

--Obrigado, mamã! muito obrigado, querida mãesinha! Não te dê cuidado,
que dentro em pouco serei posto em liberdade.

Abraçou-a com effusão; ella começou a chorar.

--Separem-se! ordenou o guarda; e, reconduzindo Pélagué, ia-lhe
dizendo, resmungando:

--Não chore... Está aqui está na rua! Vão dar a liberdade a muitos...
os logares são poucos... não cabem todos...

Em casa, ella disse ao russo-menor:

--Falei-lhe... com geito... percebeu-me muito bem.

E acrescentou com um suspiro:

--Percebeu-me, sim, se não, não me abraçava com tanta gana! Foi a
primeira vez...

--Ah! todos desejam isto ou aquillo, mas as mães não desejam senão
affagos!



XX


Uma noite, estando Pélagué a fazer meia e André lendo em voz-alta a
historia da revolta dos escravos romanos, alguem bateu violentamente á
porta. O russo-menor foi abrir, e Vessoftchikof entrou, com um embrulho
debaixo do braço, o boné descaído para os olhos, e todo elle enlameado
até aos joelhos.

--Passando na rua, vi luz cá dentro e bati á porta para a cumprimentar.
Saí da cadeia agora mesmo!

E apertando a mão de Pélagué:

--O Pavel recommenda-se muito.

Deixando-se caír n’uma cadeira, hesitantemente olhou em volta, como de
costume desconfiado.

A sua cabeça angulosa e rapada e os seus olhitos tornavam no antipatico
a Pélagué, o que não impedia que estivesse gostando de vel-o e que lhe
dissésse, affectuosa:

--Emagreceste!... Ó André, vamos fazer-lhe o chá!

--Já cá estou preparando o samovar! respondeu da cosinha o russo-menor.

--E então como vae o Pavel? Vieram outros para a rua comtigo?

Vessoftchikof respondeu abaixando a cabeça:

--O Pavel continúa preso... Encheu-se de paciencia... Para a rua vim só
eu.

E levantando o olhar, continuou vagaroso e com os dentes cerrados:

--É que eu disse-lhes: «Deixem-me ir embora, que já estou farto! senão
mato o primeiro que puder, e suicido-me depois!» Ora!... foi logo! E
fizeram bem, porque eu cumpria o que promettera!

--Sim, sim, creio!... balbuciou ella, afastando-se, com as palpebras
tremulas, como sempre lhe acontecia quando fitava aquelle rosto
bexigoso.

--E como vae o Fédia Mazine? perguntou da cosinha André. Continúa
fazendo versos?

--Continúa! Quer dizer... não o percebo bem. Parece um pintasilgo:
mettem-no na gaiola, e canta. O que sei é que não tenho nenhuma vontade
de ir para casa.

--E tens razão. Vaes encontral-a vasia, o fogão apagado, tudo muito
frio...

Vessoftchikof calou-se, cerrou os olhos, depois, tirando da algibeira
um masso de cigarros, começou a fumar, muito descansadamente. Com o
olhar ia seguindo as nuvens de fumo que se esvaía por cima da sua
cabeça; e de subito, rindo esganiçadamente como o uivar d’um cão:

--Sim, muito frio... Naturalmente, o chão está, cheio de baratas
geladas, os ratos devem estar tambem mortos de fome... Pélagué
Nilovna, dás licença que eu durma cá em casa?

--Está dito! respondeu logo. Sentia-se pouco á vontade; por isto não
disse mais.

Foi elle que murmurou em tom abatido:

--Estamos agora no tempo em que os filhos teem vergonha dos paes.

--O quê? perguntou ella, estremecendo.

--Não te apouquentes, que não falo de ti. Tu nunca envergonharás o
Pavel. Eu é que me envergonho do meu pae... Não quero voltar para casa
d’elle. Já não tenho pae, nem casa. Estou sob a vigilancia da policia,
agora, se não ter-me-iam mandado para a Siberia. Creio que um homem,
que não se poupasse a trabalhos, teria muito que fazer na Siberia...
Daria a liberdade aos exilados, ajudal-os-ia a fugir...

Graças ao seu coração sensivel, a velha percebia que o rapaz estava
soffrendo, mas a sua dôr não lhe provocava a compaixão.

--Dizes bem. Sendo assim, seria melhor teres ido... André veio da
cosinha.

--Que estás tu para ahi a cantar, homem?

A velha ergueu-se.

--Vou arranjar alguma coisa para comer.

Vessoftchikof olhou fixamente para o russo-menor e respondeu com
firmeza:

--Digo que é preciso matar umas pessôas!...

--Ih!... E para quê? perguntou, tranquillo.

--Para que deixem de existir!

--Tens então o direito de transformar os vivos em cadaveres?

--Tenho!

--E onde foste buscal-o?

--Foram os homens que mo deram!

O russo-menor, alto, magro, parou no meio do quarto, bamboleando
o corpo; com as mãos nas algibeiras, observava dos pés á cabeça o
bexigoso. Este, sentado e envolto n’uma nuvem de fumo, tinha n’aquelle
momento o rosto palido salpicado de manchas vermelhas.

--Foram os homens que mo deram! repetiu, de punho cerrado. Desde que me
dão pontapés, tenho o direito de responder, atirando-me aos focinhos,
aos olhos... Se não me tocarem, eu não toco em ninguem. Deixem-me
viver como quero, que eu viverei quieto, sem incommodar os mais. Juro!
Supponhamos que quero viver n’uma floresta, construir uma cabana n’uma
ravina, na margem d’um regato... e viver ali, sósinho...

--Pois faz isso! respondeu, encolhendo os hombros.

--Agora? Não! É impossivel! Estou ligado estreitamente aos homens
até á morte! Ligaram o meu coração com o odio, prenderam-me a elles
com o mal. É um laço muito solido. Odeio-os, e vá por onde fôr não
os deixarei viver tranquillos. Incommodam-me, e eu incommodal-os-ei.
Respondo por mim, só por mim; não posso responder por mais ninguem. E
se o meu pae é um ladrão...

--Ah! exclamou repreensivamente André, em voz baixa, approximando-se.

--Ainda acabo por arrancar a cabeça ao Isaías Gorbof, verás!

--E porquê?

--Porque anda a espiar-me. Foi por causa d’elle que o meu pae se
perdeu, é com elle que o meu pae conta para entrar para a policia
secreta!

--Olhem o grande mal! Mas quem te censura, a ti, pela vida do teu pae?
Isso é para os tolos!

--Para os tolos e para os não tolos! Olha: tu és intelligente, o Pavel
tambem. Dize lá: teem por mim consideração igual á que teem pelo Fédia
Mazine ou pelo Samoílof, ou um pelo outro? Não mintas, que não te
acreditaria. Atiram-me para o canto!

--Tens a tua alma doente, amigo! respondeu André, affectuosamente,
sentando-se ao lado d’elle.

--A vossa tambem soffre. Mas imaginam que as suas ulceras são mais
nobres do que as minhas. Procedemos uns para os outros como canalhas! é
o que te digo! O que respondes a isto, an?

Fitou o olhar penetrante em André e esperou, com os dentes á mostra.
O seu rosto palido estava impassivel; apenas lhe tremiam os labios
grossos como se tivessem sido queimados e contraídos por algum liquido
caustico.

--Nada te responderei! disse André acariciando o olhar hostil de
Vessoftchikof com o sorriso luminoso e triste dos seus olhos azues. Sei
demais que querer discutir com alguem, cujo coração está sangrando, é o
mesmo que irrital-o. Sei, irmão.

--Não se pode discutir comigo; não sei discutir! resmungou, abaixando
os olhos.

--Estou certo de que todos nós caminhámos como tu agora, com os pés
descalços por cima de vidros partidos; que todos nós respirámos essas
mesmas evaporações de horas sombrias...

--Não podes dizer coisa alguma que me socegue. Nada! A minha alma uiva
como um lobo!

--Nem tenho tal intuito. O que sei é que isso ha de passar. Talvez não
muito depressa; mas ha-de passar.

E pôz-se a rir, batendo no hombro do rapaz:

--É uma doença de creanças, no genero da escarlatina, irmão. Todos nós
fomos atacados do mesmo mal, com maior ou menor violencia, conforme
eramos fortes ou fracos. Ataca a gente da nossa condição, quando nos
encontramos sósinhos, quando não compreendemos ainda a vida, quando
não vemos o logar que nos foi destinado. Parece-nos que somos o unico
homem n’este mundo e que ninguem se importa comnosco, a não ser para
nos devorar. Mais tarde, quando vires que ha tambem boas almas
n’outros peitos alem do teu, consolar-te-ás... e envergonhar-te-ás de
ter acreditado que só tu davas a nota afinada, e de ter querido trepar
ao campanario sendo o teu sino tão pequeno, que ninguem o ouve na
bimbalhada dos dias de festa. Perceberás então que és uma voz apenas
perceptivel, mas necessaria, no côro poderoso e magnifico da verdade.
Compreendes o que eu quero dizer?

--Compreendo... compreendo... Mas não te acredito!

--Tambem eu não queria acreditar...

O bexigoso pôz-se então a rir com a bôca aberta até ás orelhas.

--Que é isso?

--Pensava que seria um grande parvo aquelle que te insultasse.

--E porque hão-de insultar-me? perguntou ainda André, encolhendo os
hombros.

--Sei lá! O que digo é que o homem que te tiver insultado, ha-de ficar
depois com uma linda cara de parvo!

--Era a isso que querias chegar!... commentou, rindo.

Ouviu-se a voz de Pélagué:

--Venha, André! venha buscar o samovar.

A sós, Vessoftchikof olhou em volta; estendeu a perna, observou
as botas grossas; acurvou-se, palpando a barriga da perna; depois
observou attentamente a palma e as costas da mão pelluda; levantou-a, e
ergueu-se.

Quando André trazia o samovar, o bexigoso, diante do espelho, acolheu-o
com estas palavras:

--Ha quanto tempo eu não via o meu focinha!... Estou feio como o diabo!

--Que te faz isso?

--A Sachenka diz que o rosto é o espelho da alma...

--Qual historia! Tem o nariz de gancho, as faces agudas como bicos de
tezoura, e todavia a sua alma é pura como uma estrella!...

Sentaram-se para tomarem o chá e comerem. Vessoftchikof deitou a
mão a uma grande batata, salgou um pedaço de pão e começou a comer
tranquillamente, vagarosamente, como um lobo.

--E como vão as coisas por cá? perguntou com a bôca cheia.

E, tendo ouvido as informações d’André:

--Tudo isso vae de vagar! É preciso ir mais de pressa.

--A vida não é um cavallo: não a fazemos andar ás chicotadas.

Mas o bexigoso meneava a cabeça, obstinado.

--Vae devagar... vae... Eu não tenho grande paciencia... Que é preciso
que eu faça?

--Devemos aprender a ensinar os outros. É este o nosso dever!

--E quando entraremos em lucta?

--Ignoro. Segundo a minha opinião, antes de pegarmos em armas,
deveremos armar o nosso cerebro.

--O rapaz ficou silencioso, voltando a comer. Sem que elle percebesse,
a velha observava-lhe o rosto picado das bexigas, tentando descobrir
n’elle alguma coisa que a reconciliasse com aquelle caracter
aggressivo; mas ao encontrar-lhe o olhar penetrante, ficava na mesma e
movia os sobrolhos, desanimada.

No seu intimo, os dois moradores do velho pardieiro sentiam-se como
apertados, pouco á vontade, e lançavam de quando em quando olhares
furtivos para o hospede.

Até que este ergueu-se.

--Não me saberia mal deitar-me. Estive encarcerado por muito tempo,
puzeram-me na rua de repente... vim por ahi adiante... Estou cançado.

Quando elle foi para a cosinha, a velha cochichou a André:

--Tem uns pensamentos terriveis!...

--Não é um rapaz docil, não. Mas ha de passar-lhe. Eu tambem era assim.
Quando o coração não aquece a valer, junta-se n’elle muita gordura...
Vá deitar-se, mãesinha, que eu ainda vou ler um pouco.

André ouviu-a resar n’um murmurio. Emquanto elle ia lendo, um tanto
febrilmente, a pendula do relogio oscilava em cadencia, nas vidraças o
vento gemia.

A velha murmurava:

--Ó Senhor! quanta gente por este mundo, queixando-se conforme os seus
males! Onde estão os felizes?

--Ha-os, sim; e dentro em breve serão em grande numero! ah! muito
grande! respondeu elle.



XXI


A vida ia decorrendo rapida, de dias variados. Cada qual trazia novas
a Pélagué, que não se perturbava com ellas. Cada vez eram mais os
desconhecidos que vinham á noite conversar com André, e que, sempre
desconfiados e cautelosos, se retiravam no meio das trevas, com a gola
do casaco levantada, a pala do bonet sobre os olhos.

Para Pélagué todos aquelles rostos, novos ou velhos, fundiam-se em um
só rosto magro, calmo e decidido, de olhar profundo, carinhoso e severo
ao mesmo tempo, como o de Jesus a caminho de Emmaús.

Contava-os e imaginava-os cercando Pavel, como para tornal-o menos
visivel aos seus inimigos.

Uma noite, uma rapariga esperta, de cabello encaracolado, chegou da
cidade, com um embrulho para André; e, ao saír, disse para Pélagué com
um olhar brilhante e cheio d’alegria:

--Até á vista, companheira!

--Até á vista.

--E foi á janella para vêr a sua «companheira» pela rua abaixo, em
passinhos meudos, fresca como uma flôr de primavera, ligeira como uma
borboleta.

--«Companheira»!... Ah! minha queridinha! Deus te dê um bom companheiro
por toda a vida.

Notava por vezes nos que vinham da cidade aspectos variegados que lhe
despertavam a simpatia; mas o que principalmente a impressionava era
a sua simplicidade, o seu bello e tão generoso esquecimento de si
proprios.

Compreendia já muitas coisas que os visitantes discutiam; sentia, que
de facto, elles tinham descoberto a verdadeira origem da desgraça
dos homens, e ia-se acostumando a approvar as suas opiniões. Mas não
acreditava que elles podessem transformar a existencia á sua maneira,
nem que tivessem a sufficiente força de attraír a si todos os operarios.

Regularmente, continuava levando folhetos para a fabrica, com o
sentimento do dever cumprido; imaginava toda a especie de astucias;
e os guardas, acostumados a vél-a, nem já lhe prestavam attenção.
Todavia, revistavam-na por vezes, mas sempre nos dias seguintes a ter
havido distribuição de folhetos. Quando não os levava, Pélagué sabia
fazer-se notada, excitar a curiosidade dos guardas, que a detinham,
ficando afinal com caras de tolos.

Vessoftchikof não tornou a ser acceite na fabrica; metteu-se como
operario n’uma estancia de madeira, e de manhã á noite guiava os
carretos de traves, lenha, taboas. Os cavallos que puxavam a carroça
iam como ás cegas, em risco de atropellarem quem passava, de irem de
encontro ás outras carroças; o rapaz era perseguido por uma chuva
de doestos e de imprecações. Sem levantar a cabeça, sem responder,
assobiava estridentemente, e chicoteava, nos intervallos, resmungando:

--Toma! toma!...

Sempre que havia reuniões em casa de André para a leitura d’um folheto
ou do ultimo numero d’um jornal estrangeiro, Vessoftchikof apparecia,
sentava-se e escutava sem dizer palavra, durante uma ou duas horas.
Concluida a leitura, os novos discutiam; elle porem não entrava na
conversa, e era o ultimo a saír.

A sós com André, falava então com o seu modo sórna.

--Quem é o mais culpado de todos?

--Aquelle que foi o primeiro a dizer: «Isto é meu!» Mas como já morreu
ha milhares d’annos, não vale a pena zangarmo-nos com elle! respondia
André, gracejando.

--Mas os ricos e os poderosos? e os que os defendem? teem razão?

O russo-menor apertava a cabeça entre as mãos, retorcia o bigode e
falava durante muito tempo acerca da vida dos homens, com palavras
simples e claras.

Elle porém volvia:

--Não! Ha de haver culpados! Existem! Digo-te que é preciso revolvermos
a vida toda, sem piedade, como um campo coberto de más hervas!...

--Foi o que o Isaías disse uma vez, falando do sr.... observou Pélagué.

--O Isaías?

--Sim. Que mau homem! Espia toda a gente... Vem até espreitar ás nossas
janellas.

--Ás suas janellas?...

Ella estava já deitada e não lhe podia vêr a cara. Mas percebeu que
tinha falado de mais, quando André disse, em tom conciliador:

--Pouco importa que elle venha espreitar-nos. Não tem que fazer a essa
hora: passeia.

--Qual! exclamou o rapaz! Ora ahi tens o culpado?

--Culpado de quê? de ser parvo?

Mas o bexigoso não respondeu e saíu.

Pélagué não dormia.

--Tenho medo d’elle! exclamou. Parece um fogão levado ao rubro: não dá
calor, mas queima.

--Sim... é um garôto irascivel. Nunca lhe fale do Isaías, mãesinha.
Esse tal Isaias é em verdade um espião... Pagam-lhe até para isso.

--Que admira? O seu melhor amigo é um agente de policia!

--O Vessoftchikof ainda acaba por torcer-lhe o pescoço! Veja que
sentimentos os que mandam na nossa vida fazem nascer nas camadas
inferiores. O que succederá quando aquelles que se parecem com este
rapaz tiveram a consciencia da sua situação humilhante e perderem a
paciencia? O ceu raiar-se-á de sangue, e a terra cobrir-se-á d’espuma,
como se a tivesse invadido um musgo vermelho.

--É terrivel, meu André!

--Os nossos inimigos não terão o que merecem. Todavia, mãesinha, cada
gottinha do seu sangue terá sido lavado préviamente pelos lagos de
lagrimas que o povo chorou.

E accrescentou, rindo:

--É justo, mas não é consolador!



XXII


Um domingo, quando a velha, voltando da mercearia, abriu a porta e
appareceu no limiar, foi invadida por subita alegria, pois ouvira lá
para o interior da casa, a voz de Pavel.

--Cá está elle! gritou André.

Pélagué notou a rapidez com que o filho se voltou para ella e o brilho
que lhe assomou ao rosto.

--Eis-te afinal na nossa casa! murmurou.

Pavel avançou, muito palido, com pequeninas lagrimas bailando-lhe nos
olhos, com os labios tremulos. Em silencio, os dois contemplavam-se.

--Obrigado, mamã! exclamou por fim, apertando-lhe a mão que estremecia.
Obrigado, minha querida mãe!

Commovida por aquellas palavras, ella acariciava-lhe os cabellos, e
reprimindo as pulsações do coração, disse com doçura:

--Deus seja comtigo! O que me agradeces?

--O teu auxilio na nossa grande obra! Obrigado! É uma honra enorme para
o homem poder dizer que sua mãe tambem é sua parenta pelo espirito.

Não respondeu, aspirando, soffrega, as palavras do filho,
contemplando-o, como em extasi perante aquelle rosto que lhe parecia
tão luminoso.

--Eu calava-me, mamã, porque percebia que certas coisas da minha vida
te impressionavam; tinha piedade da tua alma, e nada podia fazer que
lhe fosse agradavel. Imaginava que nunca te juntarias a nós, que nunca
seguirias as nossas opiniões, que continuarias a supportar tudo, em
silencio, como o tinhas feito em toda a tua vida. E isto custava-me
muito.

--O André deu-me a compreender tantas coisas!... observou, desejando
chamar André ao sentimento do filho.

--Contou-me tudo o que tu fazias! disse, rindo.

--O Iégor tambem. Somos da mesma aldeia. Olha o André quiz ensinar-me a
ler.

--E tu tiveste vergonha e pozeste-te a estudar sósinha, ás escondidas.

--Espreitou-me, então! notou, contrafeita. Mas que é d’elle? Foi-se
d’aqui, para nos deixar á vontade. Chama-o, que elle... não tem mãe.

--André! Onde estás tu?

--Aqui. Vou rachar lenha.

--Tens tempo. Anda cá.

--Lá vou.

Não veio logo; e á porta, observou, dando importancia ao caso:

--É preciso dizer a Vessoftchikof que traga lenha, que já ha pouca.
Vê como a cadeia fez bem ao Pavel? Em logar de punir os revoltados, o
governo engorda-os.

--Ainda não comeste!... Vamos jantar, Pavel! propoz ella.

--Não. O guarda vigilante informou-me hontem de que tinham resolvido
pôr-me em liberdade, e logo perdi a vontade de comer. A primeira pessoa
que encontrei por cá foi o velho Sizof. Apenas me viu, atravessou a rua
para me falar. Aconselhei-o a ser mais prudente, porque eu estou sob
a vigilancia da policia. «Que tem isso?» foi a sua resposta. E sabes
o que me perguntou acerca do sobrinho? «O Fédor tem-se portado bem
na cadeia?» E eu: O que entende por isso de portar-se bem? «Ora!...
não dar com a lingua nos dentes a respeito dos companheiros!» Quando
lhe disse que elle era um bom rapaz e intelligente, passou a mão pela
barba, e disse com altivez: «Nós, os Sizof, não temos patifes na
familia!»

--Não tem nada de tolo, esse velho. E o Fédia vem para a rua por estes
dias?

--Provavelmente. Creio mesmo em que virão todos. Não ha provas contra
nós. Apenas o depoimento do Isaías... Mas o que pode elle saber?

--Sentemo-nos! disse Pélagué, servindo o jantar.

Comendo, André referiu-se a Rybine. Quando acabou de contar o que se
tinha passado, Pavel murmurou, com muito pezar:

--Se eu cá estivesse, não o teria deixado partir assim. O que leva na
sua alma? Um sentimento de revolta e umas idéas embrulhadas...

--Ora! disse André, sorrindo. Quando um homem tem quarenta annos e
luctou durante muito tempo contra as dúvidas e as hesitações da sua
alma, é difficil transformal-o.

Discutiam, empregando termos que a velha não compreendia, até ao fim do
jantar, embora por vezes falassem mais a claro.

--Devemos continuar no nosso caminho, sem nos desviarmos d’elle nem uma
linha! exclamou Pavel com firmeza.

--E esbarrarmos no caminho com dezenas de milhões de homens que nos
consideram seus inimigos.

Pélagué poude concluir que Pavel não gostava dos camponezes, ao passo
que André os defendia, entendendo ser preciso ensinar-lhes o bem.
Compreendia melhor André. Sempre que elle dizia qualquer coisa a Pavel,
prestava muita attenção, deixando mesmo de respirar, esperando com
impaciencia a resposta do filho, para ver se o russo-menor o teria
offendido. Mas os dois continuavam discutindo sem se zangarem.

De quando em quando, perguntava:

--É assim, Pavel?

E elle respondia, sorrindo:

--É.

--Com que então o senhor, dizia André, em tom de malicia, comeu bem,
não mastigou bastante e ficou embatocado?...

--Não digas tolices!

--Eu. Estou mais serio do que n’um enterro!

E a velha ria...



XXIII


Approximara-se a primavera, ia-se derretendo a neve, descobrindo a lama
e o suor engordorado das chaminés da fabrica, que ella havia occultado
sob a sua camada branca.

Dia a dia, a lama tornava-se mais aggressivamente apparente, todo o
bairro parecia immundo e envolto em farrapos. O sol mostrava-se mais
a miude, e os regatos ainda indecisos começavam a dirigir-se para o
pantano. Ao meio-dia, a canção cariciosa das esperanças primaveris
palpitava pairando sobre o bairro.

Andavam em preparação as festas do primeiro de maio.

Pela fabrica e pelo bairro todo tinham sido espalhados muitos folhetos,
explicando a significação d’aquellas festas. Até a gente nova, que nada
tinha de commum com os socialistas, dizia ao lêl-os:

--É preciso tratar d’isso!

Vessoftchikof resmungava com o seu sorriso sorna:

--E não é cedo. O jogo das escondidas dura ha muito tempo!

Fédia Mazine rejubilava. Tinha emagrecido e o nervosismo dos seus
gestos e das suas palavras lembravam uma cotovia que estivesse mettida
n’uma gaiola. Acompanhava-o sempre Jacob Somof, rapaz taciturno, muito
grave apezar de novo, e que trabalhava então na cidade. Samoílof, cujos
cabellos e barba pareciam terem-se avermelhado ainda mais na cadeia,
Vassili, Goussef, Boukine, Dragounof e outros julgavam indispensavel
munirem-se de armas; mas Pavel, o russo-menor, Somof e os seus amigos
não eram da mesma opinião. Iégor chegou então, como sempre fatigado,
offegante, e coberto de suor. Disse de brincadeira:

--A transformação da organisação actual é uma grande obra,
companheiros, mas para que ella caminhe mais facilmente é necessario...
que eu compre um par de sapatos para a minha pessoa!

E mostrou as botas rotas e que mettiam agua.

--As minhas galochas estão na mesma, tambem muito doentes; todos
os dias molho os pés. Não quero descer ao seio da terra sem ter
renegado do velho mundo, d’uma maneira bem publica e visivel. Eis
porque, regeitando a moção do companheiro Samílof relativamente a uma
demonstração de força armada, proponho que me calcem com um bom par
de valentes botas, porque estou convencido de que serão mais uteis ao
triumpho da nossa causa do que a maior das sarrafuscas!

Pavel disse uma vez, falando de Iégor:

--Sabes, André, aquelles que mais riem, são aquelles cujo coração mais
soffre.

Depois de um curto silencio, o outro respondeu:

--Qual historia! Se assim fosse, toda a Russia morreria de riso!

Natacha appareceu tambem; estivera na cadeia, n’outra cidade, mas não
mudara d’aspecto. Pélagué notou que, quando ella estava presente, o
russo-menor ficava mais alegre, brincava com todos, com uma malicia
sem maldade que provoca as gargalhadas da rapariga, e que, quando ella
se ia embora, elle entrava de assobiar tristemente as suas innumeras
canções, passeando pela casa, arrastando os pés.

Sachenka vinha a miude, sempre apressada, tornando-se dia a dia mais
acre, mais angulosa.

Uma vez que Pavel tinha saído para acompanhal-a, sem fechar a porta
apoz si, Pélagué ouviu-lhes estas phrases:

--É o sr. que levará a bandeira?

--Sou.

--É caso resolvido?

--É o meu direito!

--Não seria possivel...?

--O quê?

--...deixar que fosse outro...?

--Não!

--Reflicta. O sr. tem tanta influencia... estimam-no tanto... Aqui
os chefes são o André e o sr. Quantas coisas poderão fazer, estando
livres!... Reflicta. São capazes de exilal-o... para muito longe e por
muitos annos!...

Estas palavras, cujo sentimento Pélagué estava entrevendo, caíam-lhe no
coração como pingos d’agua gelada.

--Não! estou decidido. Não renunciarei por coisa alguma n’este mundo!

--Ainda que eu lhe pedisse...?

Pavel interrompeu-a rapidamente, tendo na voz uma severidade especial:

--Não deve falar assim. No que está pensando?

--Sou uma creatura humana!... murmurou, defendendo-se.

--Uma excellente e meiga creatura! disse elle em voz baixa e como se
lhe custasse respirar. Uma creatura que me é querida... muito querida!
E é por isto mesmo que não deve falar assim!

--Adeus!

E pelo ruido dos seus passos, a velha percebeu que ella ia correndo.
Compreendeu que nova desgraça a ameaçava, e no cerebro cravou-se como
um prego esta interrogação: «O que será preciso fazer?»

Ao entrar na cosinha, Pavel avançou para André que lhe perguntou:

--E aquelle desgraçado do Isaías?

--Devemos aconselhal-o a que renuncie á espionagem.

--Denunciará aquelles que tal lhe aconselharem.

--Que pensas fazer, Pavel? perguntou-lhe a mãe, desviando o olhar.

--Quando? agora?

--Não: no primeiro de maio.

--Ah! quero levar a nossa bandeira. Pôr-me-ei á frente do cortejo, com
a bandeira em punho. Naturalmente mettem-me outra vez na cadeia.

Os olhos de Pélagué tornaram-se como candentes, a bôca foi-lhe invadida
por uma secura febril. O filho pegou-lhe na mão e ameigou-a:

--Assim é preciso, mãe. A honra está n’isto mesmo.

--Eu não disse nada... balbuciou.

--Deverias regosijar-te, em vez de entristeceres-te.

--Eu não disse nada... Não me opporei... Se tenho pena de ti, é
natural... e fica comigo...

Pavel afastou-se, e ella ouviu-o resmungar palavras acerbas:

--Ha affeições que impedem o homem de viver!

Receando que elle dissesse peor, exclamou vivamente:

--Não fales assim, Pavel! Compreendo. Tens que fazer o que tencionas,
por causa dos companheiros.

--Não! Por minha propria causa! Poderia proceder d’outra forma, mas não
quero! Hei-de ir!

André parou no limiar; parecia mettido n’uma moldura: era mais alto
do que a porta e curvava os joelhos caricatamente, com um dos hombros
encostados a um umbral, e com a cabeça e o outro hombro estendido para
a frente.

--Seria melhor que o sr. tagarellasse menos!

Parecia um lagarto semi-occulto na fenda d’um rochedo.

A velha tinha vontade de chorar, mas, não querendo que Pavel a
surpreendesse, disse de repente:

--Ah!... ia-me esquecendo...

E retirou-se, rapida. Sob o alpendre, encostou a cabeça á parede, e deu
livre curso a todo o seu pranto. As palavras dos dois amigos chegavam
até lá.

--Divertes-te em atormental-a! dizia André.

--Não tens o direito de falar-me assim!

--Não seria um bom companheiro, se me calasse ao ouvir as tuas
estupidas cabriolices! Para que respondeste tão rudemente á tua mãe?

--Deve-se falar sempre com firmeza, seja a quem fôr!

--Á tua propria mãe?

--A todos! Dispenso qualquer amor ou amisade que me detenham no meu
caminho.

--Que heroe! Á Sachenka é que devias falar assim.

--Foi o que fiz.

--Com essa rispidez? Não creio! Havias de falar-lhe com uma voz
carinhosa, terna... É como se estivesse a ouvir-te! Guardas o teu
heroísmo para quando a tua mãe está presente. Pois fica sabendo,
animal, que o teu heroísmo não vale nada!

Pélagué receou que a discussão se azedasse; limpou rapidamente as
lagrimas e appareceu, dizendo:

--Oh! que frio que faz! E é isto a primavera!...

E, nos arranjos domesticos, deu alguns passos pela casa, voltando de
novo á cosinha.

Apóz um silencio, André approximou-se de Pavel.

--Percebeste-a?... Tem mais coração do que tu.

--Querem chá? perguntou a velha.

E sem esperar resposta, accrescentou logo:

--É que estou transida de frio.

Pavel dirigiu-se a ella, com um sorriso a tremer-lhe nos labios.

--Perdôa, mãe... Sou ainda uma creança... um garôto...

Ella estreitou-o a si.

--Não me ralhes mais. Não me digas mais nada. Deus seja comtigo,
filho! Segue lá a tua vida, mas não bulas no meu coração. Como não
haveria de uma mãe ter piedade do seu filho? Tenho piedade de todos...

--Está bem, mamã. Perdôa. Fiz mal.

E afastando-se, enleado:

--Nunca mais o esquecerei, palavra d’honra!

Passando á cosinha, Pélagué disse a André, que se conservara á porta:

--Não ralhe com elle. Bem sei que o André é mais velho, mas...

Elle não se moveu, e pôz-se a berrar comicamente:

--Ora! ora! ora! Ralho... e até lhe chego, se calhar!

A velha apertou-lhe a mão commovida.

--Meu bom amigo!...

André entrou na cosinha, e, continuando no mesmo tom ironico:

--Desapparece, Pavel, se não queres que eu te torça o pescoço. Por
emquanto, não, porque estou arranjando o samovar! Oh! que pessimo
carvão! Está molhado, com mil diabos!

Calou-se. Quando a viu perto de si, foi dizendo, baixinho, todo
entretido no seu trabalho:

--Não tenha medo, mãesinha, que não lhe tocarei nem com um dedo! Sou
simplorio como um nabo cosido. E gosto muito d’elle. Olha tu é que
não deves dar ouvidos ao teu heroe! Anda como se tivesse estreado um
collete garrido: com o peito espetado, empurrando em toda a gente para
que lhe vejam bem o collete... É bonito, lá isso é; mas para que diabo
empurra elle o proximo?

Pavel disse de lá:

--Ainda estás resmungando? E approximou-se logo.

André, sempre sentado no chão, tinha posto entre as pernas o samovar e
contemplava-o. Pélagué, encostada á porta, fixava o olhar na nuca e no
farto pescoço do russo-menor. Elle então deitou o corpo para traz, com
as mãos apoiadas no chão, e, depois de ter observado a mãe e o filho:

--Em verdade, olhem que são muito boa gente!

Pavel abaixou-se para lhe pegar n’um braço.

--Não puxes por mim, que me fazes caír!

--Para que se zangam? perguntou ella tristemente. Não seria melhor que
se abraçassem?

--Queres?... murmurou Pavel.

--Porque não?

Pavel ajoelhou-se e os dois homens abraçaram-se, unindo-se n’uma só
alma, animada da mais quente amisade.

Pélagué chorava; era porem um pranto sem amargor. Enxugando os olhos,
balbuciou:

--As mulheres gostam de chorar... de tristeza... e de alegria...

André afastou o amigo, e esfregando os olhos:

--Basta! basta! Que diabo de carvão! Tenho os olhos cheios d’elle!

Pavel sentara-se junto da janella, e murmurou:

--Lagrimas como estas não devem envergonhar.

--Sim! Acabámos de viver uns momentos de uma boa vida, humana, replecta
de amor! exclamou André.

Ao que a mãe observou:

--Tudo está mudado! O pezar é outro... outra é a alegria... já nem
sei... já não sei o que me faz viver... faltam-me as palavras...

--Tudo está mudado. E assim é que deve ser! acudiu André. E sabe
porquê? Porque se desenvolve na vida um coração novo, mãesinha.
Os corações estão todos elles despedaçados pela diversidade dos
interesses, roídos pela cega avareza, mordidos pela inveja, cobertos
de chagas e de feridas purulentas... de mentira, de covardia. Os
homens são uns doentes, que teem medo de viver... perdidos como
em um nevoeiro... conhecendo apenas a sua propria dor. Mas eis que
apparece um homem que illumina a vida com o fogo da razão e que
grita: «Eh! pobres insectos perdidos! Chegou o tempo de compreender
que tendes todos os mesmos interesses e o mesmo direito á vida e ao
desenvolvimento!» O homem que clama está isolado, sente-se triste e
tem frio sósinho. E ao seu chamamento, todos os corações se reunem,
formando um coração immenso, forte, sensivel como um sino de prata. E
este sino diz assim: «Uni-vos, homens de todos os paízes, formae uma
unica familia! A mãe da vida é a affeição e não o odio!» Irmãos, eu
oiço este sino!

--E eu tambem! disse Pavel.

--Deitado, de pé, vá para onde fôr, oiço-o e sinto-me feliz. Eu sei:
a terra está farta de supportar a injustiça e a dôr; éccôa como se
quizesse responder, saúdando o novo sol que desponta no peito do homem!

Pavel ergueu um braço, ia falar; mas a mãe deteve-o, e disse baixinho:

--Não o interrompa.

--Sabem? ha ainda muitas dores reservadas aos homens; ainda muito
sangue lhes será arrancado por mãos ávidas. Mas tudo isto, toda a
minha dor e todo o meu sangue, nada são perante o que já possuo no meu
cerebro, na minha medula, nos meus ossos! Já sou rico como uma estrella
é rica em scintillações. Supportarei tudo, porque tenho em mim uma
alegria, que ninguem nem coisa alguma matará, e que é a minha força!

E até á meia noite, a conversa proseguiu, harmonica e sincera, acerca
da vida, dos homens, do futuro.



XXIV


De manhã muito cedo, apenas André e Pavel tinham sido, Maria Korsounova
bateu á janella com estrondo.

--O Isaías foi assassinado! Vamos ver!

Pélagué estremeceu: o nome de assassino atravessou-lhe o peito como uma
flécha.

--Quem o matou?

--O assassino fugiu!

Tendo posto um chale, á pressa, Pélagué foi ter com ella á rua.

--Naturalmente começam outra vez a fazer buscas. Ainda bem que a tua
gente não saíu de casa áquella hora. Posso tesmunhar. Á meia noite
passei eu por aqui, olhei pela janella e vi-os a todos trez sentados á
meza.

--Mas, Maria, porque haveriam de accusal-os? perguntou aterrorisada.

--O assassino é forçosamente dos vossos! Todos sabem que o Isaías os
espionava...

Pélagué parou, offegante, com a mão no peito.

--Que é isso? Não tenhas medo. O Isaías não merecia outra coisa. Vamos
depressa, que não chegamos a tempo.

A pobre velha caminhava sem mesmo perguntar a si propria para que ia
ver o cadaver; tremia pensando em Vessoftchikof: «Conseguiu o seu fim!»

Não distante da fabrica, sobre o entulho d’uma casa recentemente
destruida por um incendio, grande ajuntamento de povo murmurava como
uma nuvem de bezouros, e movia-se levantando em poeira a cinza com
os seus passos. Já lá estavam muitas mulheres, ainda mais creanças,
lojistas, os moços da taverna proxima, agentes de policia, o guarda
Pétline, um guarda velho, de barbas brancas como prata, e com o peito
coberto de medalhas.

Isaías estava meio deitado no chão; tinha as costas apoiadas a uma
trave enegrecida pelo fogo, a cabeça descaída para o ombro direito.
Conservava a mão direita na algibeira das calças; os dedos da esquerda
desappareciam contraídos sob a terra fôfa.

Pélagué olhou para o rosto do morto. Um dos olhos tinha-o elle fixado
no boné posto entre as pernas estendidas, a boca entreaberta n’uma como
expressão d’assombro; a barbicha ruiva pendia. O corpo magro, com a
cabeça ponteaguda, e o rosto ossudo coberto de manchas avermelhadas,
parecia diminuido, comprimido pela morte.

Ella então benzeu-se suspirando. Em vida, aquelle homem fôra-lhe
antipatico; morto, fazia-lhe dó.

--Não tem sangue! disse alguem. Talvez o prostrassem aos murros.

--Talvez ainda esteja vivo.

--Vão-se d’aqui! berrou o guarda.

--O medico já veio, e disse que elle estava morto!

--Fecharam a boca a um denunciador... Foi bem feito!

O guarda afastou as mulheres que o cercavam e perguntou ameaçadoramente:

--Quem é que falou?

Muitos recuaram; outros deitaram a fugir. Ouviram-se risos escarninhos.

Pélagué voltou para casa.

--Ninguem tem dó d’elle!... ia pensando.

--E o perfil macisso do bexigoso erguia-se na sua frente; os seus olhos
tinham um brilho frio e rude; a sua mão direita balouçava, como se
estivesse ferida.

Quando André e Pavel entraram para o jantar, perguntou-lhes logo:

--E então? Não está ninguem preso por causa do Isaías?

--Não ouvi nada... respondeu o russo-menor.

Ella notou que os dois vinham sombrios e reservados.

--Não falam do Vessoftchikof?... avançou.

O filho encarou-a com severidade e respondeu, accentuando muito as
palavras:

--Não! Ninguem pensa n’elle. Está ausente. Hontem ao meio dia, partiu a
caminho da ribeira e ainda não voltou... Tirei informações...

--Deus seja louvado! exclamou ella com um suspiro d’alivio.

Ao jantar, Pavel deixou caír de repente a colher no prato e disse:

--Não entendo isto!

--O quê? perguntou André, até ali triste e silencioso.

--Admitto que matem um animal feroz, uma ave de rapina... Julgo-me
capaz de matar um homem que se tornasse uma fera para os seus
semelhantes. Mas como ha quem possa levantar a mão para assassinar uma
creatura miseravel e repugnante?

André encolheu os hombros, e depois:

--Elle era tão nocivo com uma fera.

--Sei...

--Nós tambem esborrachamos o mosquito que nos suga um pouco de sangue...

--Sim, é verdade. Não é esse o meu ponto de vista. Digo que é
repugnante!

--Que se ha de fazer? e encolheu outra vez os hombros.

--Poderias matar uma creatura d’aquellas? perguntou Pavel depois de
curta pausa.

--O russo-menor fitou-o, lançou um rapido olhar a Pélagué, e respondeu
tristemente mas com firmeza:

--Se se tratasse de mim só, não tocaria em ninguem. Pelos companheiros,
pela nossa causa, faria tudo. Mataria até meu proprio filho, se preciso
fosse!

--Oh!... suspirou Pélagué.

Elle sorriu, concluindo:

--Impossivel proceder d’outra maneira! É a vida que assim o quer!

Como se obedecesse a um impulso intimo, André ergueu-se de repente.

--Que se ha de fazer? É-se obrigado a odiar o homem, para que venha
mais cedo o tempo de admiral-o sem reservas. Temos que destruir
aquelle que obsta ao curso da existencia, que vende os outros para
adquirir honrarias ou o descanso. Se encontramos no caminho dos justos
um Judas que nos espera para nos traír, eu proprio seria um traidor,
se não o anniquilasse. É crime? É contra o direito? E os outros, os
nossos senhores, com que direito se servem de soldados e carrascos,
de casas publicas e de prisões, do degredo e de tanta coisa infame
para protegerem a sua segurança e o seu bem-estar? Os nossos senhores
assassinam-nos ás centenas, aos milhares; isto dá-me o direito de
levantar a mão e de deixal-a caír na cabeça d’um inimigo, d’aquelle
que mais se approximou de mim e que mais me prejudica na vida. Sei que
o sangue dos meus inimigos não cria, que é esteril... Desapparece sem
deixar vestigios, porque está podre; ao passo que quando o nosso rega
a terra como uma chuva compacta, a verdade desenvolve-se exhuberante!
Tambem o sei! Mas se vir que é indispensavel matar, matarei e
revindicarei a responsabilidade do meu crime. Não falo senão de mim. O
meu peccado morrerá comigo, não maculará o futuro com uma unica nódoa,
não manchará ninguem, ninguem senão eu!

Cheia de tristeza e de inquietação, Pélagué sentia que elle tinha como
que uma mola partida no seu espirito, e que soffria. Não a inquietava
já o caso do assassinio: não tendo sido Vessoftchikof, nenhum outro
companheiro de Pavel o seria, por certo.

André proseguia:

--Tempo virá em que os homens se admirarão uns aos outros, em que
cada qual brilhará como uma estrella, em que escutará a voz do seu
semelhante, como se fosse uma musica. Haverá na terra homens ricos,
grandes pela sua liberdade, tendo todos o coração aberto, purificado
de qualquer ambição ou interesse. A vida será então um culto prestado
ao homem; a sua imagem será exhaltada porque para os homens livres
todas as alturas são accessiveis. Viver-se-á então na liberdade e na
egualdade, pela belleza; os melhores serão os que mais souberem abarcar
o mundo no seu coração, os que mais o amarem! E por esta vida assim,
estou prompto a tudo. Arrancaria o coração a mim proprio, e pizal-o-ia,
com os meus pés!

O seu rosto tremia; as suas feições tinham uma excitação luminosa; uma
a uma, as lagrimas deslisavam-lhe pelas faces.

Pavel levantou a cabeça e contemplou-o. Pélagué sentia-se inquieta, com
um vago e terrivel presentimento.

--O que tens, André? perguntou Pavel, a meia-voz.

Elle esticou o corpo, e fitando a velha:

--Eu vi... eu sei...

Pélagué levantou-se, correu a elle, pegou-lhe nas mãos.

--Socega, André! meu filho!... socega!... murmurava.

--Esperem!... Quero dizer-lhes como a coisa foi...

--Não! não! accudiu ella, com os olhos razos d’agua.

Pavel approximou-se d’elle, com as mãos trémulas e muito pálido, e
segredou-lhe:

--A minha mãe receia que tivesses sido tu...

Ella porem ouviu, e disse:

--Não receio, não. Sei que não foi elle. Ainda que tivesse sido, não
acreditaria.

--Oiçam... pediu André, sem os fitar e buscando libertar as mãos que
Pélagué não abandonava. Não fui eu... mas poderia ter evitado o crime.

--Cala-te, André! exclamou Pavel, pondo-lhe a mão no hombro, como para
fazer cessar a tremura que lhe abalava todo o corpo.

O russo-menor explicou então:

--A coisa foi assim: quando nos deixaste, ficamos á esquina, eu e o
Dragounof. O Isaías appareceu de repente... e conservou-se afastado...
Troçava de nós, observando-nos... Dragounof disse-me: «Não vês!
Anda-me a espiar todas as noites. Ainda venho a dar-lhe uma lição!»
E afastou-se para entrar em casa, ao que julguei... Então o Isaías
chegou-se a mim...

Suspirou:

--Ninguem me insultou mais rélesmente do que aquelle cão!

Sem falar, Pélegué fôra conseguindo puxal-o para junto da meza até
obrigal-o a sentar-se.

--Disse-me que todos nós eramos conhecidos da policia, que tinha os
olhos em nós, e que antes do primeiro de maio estariamos servidos!...
Não respondi, limitei-me a rir-me, mas cá por dentro começava a ferver.
Disse-me depois que eu era um rapaz intelligente, que não deveria
metter-me a taes caminhos...

--Percebo!... murmurou Pavel.

--Isso! Acabou por dizer-me que seria melhor eu entrar ao serviço da
policia...

E de punho cerrado erguido:

--Que alma infame a d’aquelle homem! Mais valia que me houvesse
esbofeteado! ter-me-ia custado menos! e talvez fosse melhor para elle.
Perdi a paciencia quando assim me cuspiu no coração a sua saliva
infecta! Dei-lhe um muro em pleno rosto, e retirei-me. Ouvi uma voz
atraz de mim: «Fizeste muito bem!» Era Dragounof, que por certo tinha
ficado occulto na esquina. Não olhei para traz, apezar de sentir, de
compreender a possibilidade... Ouvi depois um ruido, mas não fiz caso.
Eu ia tão tranquillo como se tivesse acabado de esmagar um sapo. Quando
cheguei á fabrica, dizia toda a gente: «Mataram o Isaías! Não quiz
acreditar. A minha mão é que teve a culpa... Não sou senhor d’ella...
Não me faz soffrer, não... mas dir-se-ia que a sinto retraída agora...

Lançou á mão um olhar rapido e exclamou:

--Não conseguirei nunca laval-a d’esta mancha!

--Tenhas tu bem puro o teu coração!... disse Pélagué chorando.

--Não me accuso, não! declarou elle com energia. Mas é repugnante...
Não é agradavel ter esta lama cá dentro no peito!

--Que pensas fazer?

--O que quero fazer?

E depois de reflectir, de cabeça baixa, ergueu-a e respondeu com amargo
sorriso:

--Não tenho medo de dizer que fui eu... mas tenho vergonha do que fiz!
Não! não posso dizel-o! Tenho vergonha!

--Não te percebo bem! exclamou Pavel, encolhendo os hombros. Não foste
tu quem matou; e ainda que...

--Irmão, apezar de tudo, era um homem. O assassinio é coisa repugnante.
Saber que alguem assassina, e não o impedir... é talvez uma covardia
infame!

--Continúo sem perceber!

Ouviu-se o apito da fabrica. André deixou tombar a cabeça para o
hombro, escutando aquelle auctoritario chamamento e disse:

--Não quero ir trabalhar.

--Nem eu!

--Quero ir tomar um banho!

Vestiu-se á pressa e saíu.

Pélagué seguiu-o com um olhar de compaixão; depois abriu-se com o filho.

Podes dizer o que quizer, Pavel. Sei que é peccado matar um homem, mas
n’este caso não encontro culpa em ninguem. Lembro-me de que o Isaías me
ameaçou uma vez com a forca para ti... Eu não lhe queria mal, nem me
alegro por elle ter morrido... Tinha apenas dó d’elle... E agora... nem
mesmo isso já sinto...

--Ahi tens o que é a vida, mãe!



XXV


Alguem acabava de chegar sob o alpendre. Mãe e filho entreolharam-se,
estremecendo.

A porta abriu-se e deu entrada a Rybine. Trazia vestida uma capa curta,
de pelles, toda manchada de alcatrão, e nos pés sapatos de canhamo; do
cinto pendiam-lhe grosseiras luvas de lã preta; na cabeça um boné de
pelles.

--Como vão de saúde? Puzeram-te na rua, Pavel? E tu, Pélagué, como vaes?

--Ah! és tu? muito estimo ver-te!

--Olha que vens mesmo lindo! disse Pavel.

Rybine respondeu, tirando vagarosamente a capa:

--Sim. Fiz-me camponez. Tu e os teus vão-se transformando pouco a pouco
em senhores; eu ando para traz.

E passando ao quarto, lançou o olhar em roda.

--Não teem mais mobilia do que d’antes. Os livros é que augmentaram.
São o melhor bem que se pode possuir hoje. Como vão as coisas por cá?
Conta-me.

Sentou-se abrindo muito as pernas, apoiou as palmas das mãos nos
joelhos, parecendo satisfeito na espectativa da resposta de Pavel.

--Vão bem.

--Muito me alegro! muito me alegro!

--Queres chá? perguntou a dona da casa.

--Pudera! e um copinho de aguardente... e se me offerecessem de comer,
tambem não recusaria. Estou contente por tornar a vêl-os!

--E como vae?

--Bem. Parei em Eguildiévo. Conhecem? É uma bella villa, com duas
feiras por anno e mais de dois mil habitantes. Má gente. Não ha
terras para cultivar; arrendam-nas, mas são de má qualidade. Entrei
como assalariado ao serviço de um explorador do povo; não faltam
d’estas sanguesugas; são como as moscas á roda de um cadaver. Fazemos
carvão, extraímos alcatrão das bétulas. Trabalho duas vezes mais do
que trabalhava aqui, e ganho quatro vezes menos. Ao serviço d’esta
sanguesuga somos sete, todos lá da terra, menos eu. Sabem ler e
escrever. Um delles, chamado Jéfim, é muito bulhento...

--E fala muito com elles?

--Está claro. Levei comigo todos os meus folhetos. Tenho trinta e
quatro. Mas prefiro servir-me da Bíblia: encontra-se lá tudo o que se
quer, e é um livro permittido, publicado pelo Santo-Synodo, e no qual
se pode crer.

Piscou o olho, malicioso, e continuou:

--O peor é que não basta. Vim cá buscar leitura. Como vamos fazer uma
entrega d’alcatrão, o tal Jéfim e eu, combinámos a patuscada de passar
por tua casa... Dá cá livros antes que elle appareça... É inutil que
elle fique sabendo...

Pélagué observava-o; parecia-lhe que ao largar a capa, largara tambem
qualquer coisa da sua pessôa: estava menos grave do que d’antes, e
havia no seu olhar mais astucia.

--Mamã, vae buscar os livros. Dize que vão para o campo, que logo sabem
o que te hão de dar.

--Irei apenas o samovar esteja pronto.

--Quero livros proíbidos e bem incisivos. Distribuil-os-ei ás
escondidas. E se o padre ou alguem da policia os descobrir, imaginarão
que os mestres-escolas é que fazem a propaganda. De mim ninguem
suspeitará.

Satisfeito por este achado, desatou a rir.

--Olha sabes? disse Pélagué. Tens assim o aspecto de um urso, e afinal
és uma raposa!

Pavel ergueu-se, em tom de censura:

--Dar-lhe-emos os livros que deseja, mas o que pensa fazer não lhe fica
bem.

--E porquê?

--Porque se deve responder sempre pelo que se faz.

--Não percebo o que dizes!

--Acha bem que os mestres-escolas sejam mettidos na cadeia como
suspeitos de fazerem propaganda?

--Então? que tem isso? Essa é boa! Os livros são coisa que lhes dizem
respeito, a elles; portanto elles que tenham a responsabilidade!

Pélagué interveio, mostrando-se da opinião de Rybine, ao que Pavel
objectou:

--Se qualquer de nós, o André por exemplo, praticasse uma infracção da
lei e me mettessem na cadeia, a mim, o que diria a minha mãe?

--Ah! ah! É um caso melindroso!... exclamou Rybine. Mas assumindo uns
ares doutoraes:

--Ainda és muito ingenuo, irmão! Não nos devemos preoccupar com casos
de honra, quando trabalhamos por uma causa secreta. Reflecte: quem
primeiro caírá na cadeia será a pessoa a quem forem encontrados os
livros, e não o mestre. Depois, o texto dos livros auctorisados que
os mestres distribuem é o mesmo dos livros proíbidos, com simples
differenças de palavras e com menos coisas verdadeiras do que os
nossos. Portanto os mestres teem o mesmo fim que eu, mas servem-se de
rodeios, ao passo que eu vou por caminho direito; e assim, aos olhos
das auctoridades, somos igualmente culpados; não achas? Em terceiro
logar, que tenho eu a ver com os mestres-escolas? Não procederia da
mesma maneira com um camponez. O mestre-escola é um filho de padre;
a mestra uma filha de proprietario; não sei porque se põem a querer
levantar o povo. Eu, camponez, não posso conhecer os seus pensamentos
de pessôas instruidas. Sei o que faço, mas ignoro o que elles querem.
Durante milhares d’annos, os grandes eram verdadeiros senhores e
tiravam a pelle do povo; de repente accordam e começam a abrir os olhos
ás suas victimas. Nunca tive predilecção por contos de fadas, e este
é um d’elles. Para mim, a gente rica e instruida, seja qual fôr, fica
afastada de nós. No inverno, quando atravessamos os campos e vemos ao
longe alguma coisa a mexer, perguntamos a nós mesmos: será uma raposa,
um lobo, um cão? Sabe-se lá o que é!

E, passando a mão pela barba:

--Não tenho tempo para delicadezas. O momento é grave. Trabalhe cada
qual, segundo a sua consciencia... Todas as aves teem o seu canto
especial.

--Mas ha ricos que se sacrificam pelo povo, que passam toda a vida na
cadeia... observou a velha, recordando-se de pessoas amigas.

--Com esses o caso é outro. Quando o homem do povo enriquece,
acotovella-se com os senhores. Estes, quando empobrecem, tornam-se
amigo do povo. Quando a algibeira está vasia, a alma torna-se pura, á
força.

Ergueu-se e continuou, sombriamente:

--Durante cinco annos, desacostumei-me do campo, andando errante de
fabrica em fabrica. Quando para lá voltei e vi o que se passava,
disse comigo que não podia viver como vivem os camponezes. Percebes?
Parecia-me impossivel. Por cá não se conhece a fome, nem a muita
humilhação. Mas na aldeia a fome segue o homem como uma sombra
durante toda a vida, sem nunca lhe dar a esperança de obter pão que
chegue. A fome devorou as almas, apagou as feições humanas; não se
vive: apodrece-se irremediavelmente na miseria. E as auctoridades
vigiam, cuidadosas; como os corvos, espreitam, não se dê o caso de
que o camponez tenha um bocado de pão a mais. Quando o descobrem,
arrancam-lho da mão, e ainda lhe dão com elle na cara!

Encostado á mesa, de pé, falando muito perto de Pavel, proseguiu:

--Julguei que não poderia supportar semelhante vida. Todavia,
dominei-me. Disse com os meus botões: «Não devo consentir que a minha
alma me faça partidas! Ficarei aqui, e, não podendo dar pão aos
camponezes, farei a zaragata!»

Com a fronte coberta de suor, exclamou:

--Dá-me livros que não deixem mais em descanso aquelles que os lerem.
Ajuda-me! É preciso metter ouriços dentro da cabeça d’aquella gente.
Dize aos que escrevem folhetos para os da cidade, que os escrevam
tambem para os do campo. Que os escrevam de maneira a regar o campo de
agua a ferver, para que os cultivadores, depois de lel-os, caminhem
para a morte sem protestarem!

As frases vigorosas de Rybine impressionavam Pélagué. Havia n’aquelle
homem o que quer que fosse que lhe recordava o marido: um e outro
mostravam os dentes e arregaçavam as mangas, com a mesma irritação
impaciente. Ao menos, Rybine falava.

--Sim! é indispensavel! disse Pavel. É indispensavel organisar um
jornal para o campo. Dê-nos o assumpto, narre-nos os factos, e nós lhe
daremos um jornal.

Ao que Rybine respondeu.

--Está dito! Mas escrevam com simplicidade, para que até os vitellos os
entendam!



XXVI


Pélagué tinha saído. Pouco depois alguem entrava.

--É o Jéfim! informou Rybine. Entra! Anda cá. Este homem, que vês aqui,
chama-se Pavel. Foi d’elle que eu te falei.

Jéfim era um rapagão de cara ampla, cabellos ruivos, olhos pardos,
robusto e bem talhado, trajando uma capa curta. Avançou até Pavel, de
boné na mão e olhar baixo.

--Ora viva! resmungou, apertando a mão de Pavel, e tendo percorrido o
quarto com o olhar, demorando-o na estante dos livros, poz-se a alisar
com a mão os cabellos asperos.

--Já os viu! exclamou Rybine.

Jéfim foi ver os livros mais de perto.

--Ih! quantos ha por cá! E naturalmente lê-os muito. No campo, não
temos tempo...

--E pouca vontade, não? perguntou Pavel.

--Ao contrario! Hoje somos obrigados a pensar, se não, não nos resta
mais do que deitarmo-nos e esperarmos a morte. Como o povo não quer
morrer, poz-se a trabalhar com o cerebro. «Geologia?...» O que é isto?

Pavel explicou.

--Não precisamos d’isso! concluiu Jéfim pondo o livro no seu logar.

Rybine commentou:

--O camponez não tem curiosidade de saber d’onde veio a terra, mas
sim como foi distribuida, como os proprietarios a arrancaram de sob o
dominio do povo. Que ella se mova ou não, que importa! comtanto que dê
de comer!

--«Historia da escravatura!» Isto é com a gente?

--Aqui tem um acerca da servidão.

--É já muito velho.

--Possue algumas terras?

--Somos trez irmãos, e temos quatro hectares... terreno de areia fina.
Coisa fresca, para limpar metaes! mas para cultivar o trigo... Eu cá
libertei-me da terra. Não sustenta o homem, antes o traz manietado. Ha
quatro annos que me alugo como manufactor... Para o outomno vou para a
tropa.

O Mikhaíl diz-me que não vá, porque obrigam os soldados a baterem no
povo. Mas vou, por força! É tempo de acabar com isto. Que lhe parece?

--É tempo, é... respondeu Pavel, sorrindo. Mas o difficil está em saber
falar aos soldados.

--Aprende-se!

--Mas se o apanham em flagrante, podem fuzilal-o.

--Sim... não me perdoarão... respondeu tranquillamente, voltando a vêr
os livros.

--Vamos ao chásinho, companheiro, que temos que abalar! disse Rybine.

André entrou muito vermelho, encalorado e taciturno. Apertou a mão de
Jéfim, sem falar, assentou-se ao lado de Rybine, e, depois d’olhar para
elle, sorriu.

--Pareces triste, homem! Porquê? perguntou aquelle dando-lhe uma
palmada no joelho.

--Porque sim!

Jéfim, observava attentamente André, até que disse:

--Os trabalhadores das cidades e villas são magrizellas, teem os ossos
a romper a pelle. Nós cá, os do campo, somos mais roliços...

Rybine completou:

--O camponez tem mais firmeza nas pernas. Sente a terra debaixo dos
pés, ainda que não lhe pertença. Mas o operario é como um passaro: não
tem patria, nem lar; um dia aqui, outro dia ali.

Pélagué entrou. Jéfim tinha-se approximado de Pavel a quem pediu:

--Poderia dar-me um livro?

--Da melhor vontade.

O jubilo brilhou-lhe no olhar.

--Eu restituo depois. Obrigado! Hoje, os livros são tão precisos como á
noite uma candeia.

Rybine tinha posto a capa.

--Vamos, que são horas.

--Olha: já tenho que ler! exclamou Jéfim, mostrando-lhe o livro, com um
sorriso muito aberto.

Quando elles saíram, Pavel dirigiu-se a André.

--Que me dizes áquelles diabos?

--Parecem nuvens á hora do crepusculo: grossos, sombrios, arrastando-se
lentamente...

--Tenho pena de que não chegasses mais cedo. Terias observado um
coração, tu, que estás sempre a falar de coração. Rybine disse das
suas... Não soube que responder-lhe. A minha mãe tem razão: aquelle
homem traz em si uma força terrivel!

--Conheço isso! Essa gente do campo anda envenenada! Quando se
revoltarem, derrubarão tudo, sem distincção. Querem a terra
absolutamente sua, e arrancarão tudo o que a cobre.

Falava de vagar; percebia-se que pensava n’outra coisa. Pélagué
disse-lhe com blandicia:

--Deves espairecer, André!

--Deixe, mãesinha, deixe... Embora eu não quizesse tel-o feito, a acção
foi abominavel!

E voltando ao assumpto da conversa:

--O nosso camponez queimará tudo, como se tivesse havido uma peste,
para que todos os vestigios das suas humilhações vôem com as cinzas.

--E levantar-se-á depois contra nós... continuou Pavel.

--O nosso dever é não lho consentir, reprimindo-o! Somos nós quem se
encontra mais perto d’elle. Acreditar-nos-á... seguir-nos-á!

--Sabes? O Rybine pediu-me que fizessemos um jornal para os camponezes.

--Apoiado! É tratar d’isso.

E depois de commentar as ultimas palavras de Rybine, ergueu-se, dizendo:

--Vou dar um passeio ao campo.

--Depois do banho? Olha que faz muito vento... Vaes arranjar uma
irritação na pelle! accudiu Pélagué.

--Deixal-o! Quero saír.

Vestiu-se e foi-se sem dizer palavra.

--Soffre! suspirou a velha.

--Tens um bello coração, mamã!

--Oxalá assim seja! Se ao menos podesse ajudal-os!... se eu soubesse!...

--Não te dê cuidado: has-de saber.

O russo-menor voltou tarde; estava fatigado; deitou-se logo, dizendo:

--Parece-me que andei uns dez kilometros...

--Isso vae melhor?

--Não sei... Não faças barulho... Deixa-me dormir.

Pouco depois, Vessoftchikof appareceu, sujo, esfarrapado e de mao-humor
como sempre.

--Não sabes quem matou o Isaías?

--Não! respondeu Pavel.

--Até que houve um homem que não achou antipatico esse feito! E eu que
me preparava para torcer-lhe o pescoço!...

--Não digas essas coisas, companheiro!

Pélagué interveio:

--És bom e tens sempre palavras tão crueis!... Para quê?

Era-lhe então agradavel tornar a vêl-o; o seu rosto bexigoso chegava
até a parecer-lhe bonito; sentia mais piedade por elle.

--Eu não sirvo para nada, senão para taes emprezas! Pergunto
constantemente qual é o meu logar. Não o encontro. Se é preciso
falar... não sei... Vejo tudo, sinto todas as humilhações dos homens, e
não posso exprimil-as. Tenho uma alma muda. Irmãos, dêem-me um trabalho
penoso, seja qual fôr. Não posso viver assim, sem fazer nada em favor
da nossa causa.

Pavel pegou-lhe n’uma das mãos.

--Havemos de pensar em ti, descansa.

--André disse lá da cama:

--Ensinar-te-ei a conhecer as letras d’imprensa, e serás um dos nossos
compositores; queres?

--Se me ensinares, dar-te-ei de presente uma navalha.

--Vae para o diabo mais a tua navalha!

--Uma navalha bôa! insistia.

André e Pavel riram á larga. Elle parou no meio do quarto, perguntando:

--Estão a rir-se de mim?

--Então de quem?

E o russo-menor saltou da cama.

--Se fossemos dar um passeio pelo campo? A noite está bôa, ha luar.
Vamos?

--Pois vamos! apoiou Pavel.

--E eu tambem vou. Gosto de ouvir rir o André!

--E eu gosto que me promettas presentes!



XXVII


...Os dias decorriam com tal rapidez que não deixavam que Pélagué
pensasse no primeiro de maio. Só á noite quando se deitava, fatigada
dos trabalhos e preoccupações, é que o seu coração se confrangia, e o
seu cerebro a fazia monologar:

--Se ao menos já tivesse passado!...

Todas as noites as folhas impressas convidando os operarios a
festejarem o primeiro de maio eram colladas até á porta das estações
policiaes; todas as manhãs appareciam tambem na fabrica. Os policias
percorriam o bairro logo de manhãsinha e arrancavam das paredes os
pequenos cartazes côr de violeta; mas pelo meio dia elles tornavam a
apparecer espalhados pelo chão. Da cidade vieram policias da secreta
que ás esquinas espiavam os menores movimentos dos operarios que iam e
vinham, animados, alegres, pelas ruas.

Era um prazer disfructar a impotencia da policia; até a gente de idade
dizia, sorrindo:

--Tem graça isto!

Pavel e André quasi não dormiam. Regressavam a casa, palidos,
fatigados, pouco antes do apito da fabrica soltar a sua estridula
chamada. Pélagué sabia que elles organisavam reuniões na floresta, no
pantano; não ignorava que a policia trabalhava para abafar o movimento,
chegando até a prender alguns operarios; compreendia que todas as
noites o filho e André se arriscavam a serem presos, e chegava a pensar
que talvez isto fosse melhor.

Em volta do assassinio de Isaías tinha-se feito um silencio
extraordinario. A policia interrogou a principio umas dez pessoas;
depois desinteressou-se do assunto.

Um dia, Maria Korsounova, que vivia em paz com a policia como com toda
a gente, dizia:

--É lá possivel encontrar o criminoso!... N’aquella manhã mais de cem
pessoas viram o Isaías, e pelo menos noventa tel-o-iam esganado de bôa
vontade.

...André transformava-se a olhos visto. As faces tinham-se-lhe
encovado; as palpebras descaíam-lhe cerrando-lhe os olhos; sorria
menos; das narinas descia-lhe uma ruga até ao canto dos labios.
Todavia entusiasmava-se mais, falando do futuro, da festa luminosa e
deslumbrante do triunfo da liberdade e da razão.

Falando de Isaías, declarou:

--Quanto mais penso n’elle, mais dó me causa. Não queria que o
matassem, não! não queria!

--Acaba com isso! disse Pavel.

Pélagué acrescentou:

--Houve quem topasse n’um tronco pôdre, que se desfez em pó.

...Chegou emfim o dia tão impacientemente desejado: o primeiro de maio.

Como de costume, o apito da fabrica fez-se ouvir auctoritario,
implacavel. Pélagué levantou-se d’um salto e foi accender o samovar,
que ficára preparado de vespera.

--Ouves, Pavel? Chamam por nós... disse André.

--E nós levantamo-nos! respondeu Pavel alegremente.

--Já faz sol... e as nuvens vão-se embora. Seriam de mais, hoje!

Ao vêl-o perto de si, a velha supplicou-lhe:

--Meu André, não te afastes d’elle!

--Está dito! Andaremos sempre juntos. Descanse.

--Que estão a dizer? perguntou Pavel.

--Nada. É a mãe que quer que eu me lave mais que de costume, porque as
raparigas hoje vão olhar muito para mim!

Pélagué pensava: «Elles agora estão de brincadeira; mas o que
acontecerá ao meio dia?»

Á meza, tomando o chá, André contou:

--Quando eu era um garoto de dez annos, tive um dia a ambição de
apanhar um raio de sol com o meu copo. Parti o copo, cortei a mão, e
levei pancada. Saí depois para o pateo, e como o sol se reflectisse
n’uma poça d’agua, saltei n’ella aos pulos. Levei mais pancada porque
fiquei coberto de lama. Berrei para o sol: «Isto não faz mal! seu diabo
ruivo! isto não faz mal!» E deitei-lhe a lingua de fóra, por vingança.

--Porque lhe chamavas diabo ruivo?

--Defronte de nós morava um ferreiro de cara vermelhaça e barba ruiva;
era um rapagão sempre alegre; e eu achava que o sol se parecia com elle.

Pélagué exclamou:

--Ora esta! Pois não seria melhor que falassem do que vão fazer?

--Está tudo organisado! replicou o filho.

--No caso de sermos presos, mãesinha, o Nicolao Ivanovitch virá
dizer-lhe o que tem a fazer, auxiliando-a em tudo.

O apito da fabrica tinha tocado de novo, mas dir-se-ia já menos firme,
como receoso.

Pavel aventou:

--Se fossemos para a rua?...

--Não. Deixa-te estar em casa até á hora... aconselhou André. Para que
has de atrahír a attenção da policia, que te conhece perfeitamente?

...Fédia Mazine entrou radiante.

--O povo já se mexe... Pelas ruas, as caras andam severas como
machados. Vessoftchikof, Vassili Goussef e Samoílof estão á porta da
fabrica e falam aos operarios... Muitos já voltam para casa. Vamos! são
dez horas.

--Vamos! disse Pavel, resoluto.

Pélagué exclamou:

--Arde de impaciencia, como uma vela ao vento!

Levantou-se e passou logo á cosinha para vestir-se.

--Que vae fazer, mãe?

--Arranjar-me para ir tambem!

André lançou um olhar a Pavel, puxando pelo bigode. Rapidamente, elle
foi ter com a mãe.

--Não falarei comtigo, nem tu comigo. Está combinado?

--Está combinado! Deus os acompanhe!



XXVIII


Quando na rua ella ia ouvindo o murmurio das vozes, quando via por toda
a parte, nas janellas, ás portas das casas, grupos que seguiam com o
olhar André e Pavel, o coração ora parecia brilhar-lhe, ora toldar-se
de uma nuvem opaca.

Ouviam-se frases soltas:

--Ali vem os commandantes do exercito!

--Sabemos lá quem são os commandantes?!...

--Isto não foi por mal.

--Se a policia os agarra, estão perdidos!

--Isso agarra ella!

Um grito agudo, de mulher, partiu d’uma janella.

--Estás doido? És pae de familia!... Elles são solteiros!

Ao passarem defronte da casa de um tal Zossimof, operario inhabilitado
que vivia d’uma pensão da fabrica, elle chegou á janella e berrou:

--Ó Pavel, olha que te cortam a cabeça, como a um salteador!

André e Pavel pareciam não ver, não ouvir nada. Caminhavam, calmos, sem
pressa, falando em voz alta de varios assuntos.

Encontrando Mironof, homem d’idade, modesto, respeitado pela vida
exemplar que levava:

--Tambem não trabalha hoje, Danilo Mironof? perguntou Pavel.

--A minha mulher está com as dôres do parto... e depois... anda uma
coisa no ar... Dizem que os srs. querem fazer escandalo, partir os
vidros da fabrica...

--Não somos uns bebados! exclamou Pavel.

André explicou:

--Atravessaremos apenas as ruas, levando bandeiras e cantando o hymno
da liberdade. Oiça o nosso hymno, que elle lhe ensinará as nossas
crenças.

--Já as conheço...

E vendo Pélagué:

--Tambem tu?

--Devemos caminhar com a verdade, mesmo á beira da cova.

--É isso! Aqui está porque dizem que tu levas folhetos proíbidos para a
fabrica.

--E quem o diz? perguntou Pavel.

--Toda a gente. Adeus... adeus... Não façam algum disparate.

Pélagué poz-se a rir baixinho: envaidecia-a que assim falassem d’ella.
O filho disse-lhe:

--Mettem-te na cadeia, mamã.

--Quem me dera!

Á esquina d’uma pequena praça, á entrada de uma rua estreita, umas cem
pessoas cercavam Vessoftchikof, que discursava.

--Espremem-nos para nos tirarem o sangue, como espremeriam um limão
para lhe tirarem o succo.

--É verdade! responderam algumas vozes que se confundiram depois no
confuso ruido.

--Faz o que pode, o pobre rapaz! disse André. Vou ajudal-o.

Approximou-se do grupo, abaixou-se, penetrou n’elle como um
sacca-rôlhas e começou:

--Companheiros! Dizem que ha na terra toda a especie de povos: judeus e
allemães, francezes, inglezes, tartaros. Mas não creio que assim seja.
Ha só duas raças, dois povos irreconciliaveis: os ricos e os pobres. Os
vestuarios são differentes, as linguas tambem; mas quando se vê como
os senhores tratam o povo, compreende-se que elles são verdadeiros
carrascos para os miseraveis, uma especie de espinha atravessada na
garganta.

Rebentou uma gargalhada.

O ajuntamento augmentou; os ouvintes estendiam o pescoço, punham-se nos
bicos dos pés.

--No estrangeiro, os operarios já compreenderam esta simples verdade. E
hoje todos confraternisam n’este luminoso dia primeiro de maio. Deixam
o trabalho, e saem para a rua, para se verem, para medirem a sua grande
força. Hoje formam um coração unico, porque todos os corações têem a
consciencia da força do povo operario, porque a amisade os une, estando
cada qual disposto a sacrificar a vida luctando pela felicidade de
todos, pela liberdade, pela justiça a todos!

--A policia! gritou alguem.

Dez guardas a cavallo voltaram a esquina proxima e dirigiram-se para o
ajuntamento, de chicote no ar, e intimando:

--Nada de ajuntamentos!

--Girem!

--Que conversas eram essas?

--Quem falava?

As fisionomias annuviaram-se: todos davam passagem aos cavallos; alguns
treparam a uns tapumes.

Depois veio a troça.

--Olhem: montaram uns porcos a cavallo, e elles grunhem: «Nós tambem
damos ordens!»

André ficou sósinho no meio da rua. Dois cavallos avançaram para elle,
ao mesmo tempo que Pélagué o agarrava, dizendo-lhe:

--Prometteste não abandonar o Pavel, e vens expôr-te assim!...

...Chegaram afinal á grande praça, ao centro da qual se erguia a
egreja. No largo havia umas quinhentas pessoas, movendo-se impacientes.

--Mitia! supplicava uma voz feminina. Tem cuidado em ti!

--Deixa-me em paz!

A voz amiga e grave de Sizof dizia, calma e persuasiva:

--Não! não devemos abandonar os rapazes. Teem mais juizo do que nós, e
mais audacia. Quem foi que se metteu no caso do kopeck para o pantano?
Foram elles. Não nos esqueçamos. Estiveram na cadeia por causa d’isso,
mas todos nós aproveitámos da sua coragem!

O rugido do apito da fabrica supplantou o ruido das conversas. A
multidão estremeceu; muitos empallideceram.

--Companheiros! gritou Pavel.

A seu lado, a mãe tremia. Decorridos instantes, quando tudo caíra em
silencio:

--Irmãos! Chegou a hora de renegarmos d’esta vida cheia d’aridez, de
trevas e de odio, esta vida de oppressão em que não ha um logar para
nós, em que não somos homens! Companheiros! resolvemos declarar hoje,
abertamente, quem somos, desfraldando a nossa bandeira, a bandeira da
razão, da verdade, da liberdade!

Um pao de bandeira comprido e branco for levantado ao ar, tremulando
n’elle, como uma ave vermelha, a bandeira do povo operario.

Pavel estendeu o braço, gritando:

--Viva o povo operario!

Centenares de vozes lhe responderam em unisono.

--Viva o nosso partido, companheiros! Viva a liberdade do povo russo!

Mazine, Samoílof, os dois Goussef tinham-se postado junto de Pavel;
Vessoftchikof ia empurrando quem lhe impedia o caminho até elle.
Pélagué, trémula, com os olhos cheios de lagrimas, agarrou-lhe
novamente n’uma das mãos, balbuciando:

--Sim!... é a verdade!... meus amigos!

Elle contemplava a bandeira, rugindo palavras vagas, e com a outra mão
estendida para o símbolo da liberdade. Depois abraçou-se a Pélagué,
rindo.

--Companheiros! começou então André, dominando o sussurro com a sua
voz meiga, potente e cantante. Erguemo-nos em honra d’um novo Deus,
do Deus da luz e da verdade, da razão e da bondade! Partimos para a
cruzada, companheiros, e o caminho será comprido e difficil. O fim está
distante, e os espinhos estão proximo. Queremos ao nosso lado os que
vejam o fim e creiam no bom exito; os outros não, porque só os esperam
o pezar e o soffrimento. Entrae nas fileiras, companheiros! Viva o
primeiro de maio, a festa da humanidade livre!

Pavel ergueu a bandeira.

--_Reneguemos do velho mundo!_ cantou Fédia Mazine com voz sonora.

A resposta veio logo como uma enorme vaga potente:

--_Saccudamos a poeira dos pés!_

Pélagué, com um sorriso ardente, via por cima da cabeça de Fédia, o
filho e a bandeira. No meio das vozes mais proximas que entoavam o
hymno, chegava-lhe aos ouvidos a de André:

  Ergue-te, ergue-te, ó povo operario!
  Revoltae-vos, esfomeados!...

E o povo corria, apertava-se, avançando para a bandeira, proseguindo no
hymno, que em voz baixa tinha sido aprendido em casa.

  Corramos para aquelles que soffrem...

Um rosto de mulher, meio jubiloso e meio assustado, surgiu ao lado de
Pélagué.

--Mitia, onde vaes?

E a velha respondeu:

--Deixe-o lá! Não lhe dê cuidado! Eu tambem tinha mêdo, d’antes. O meu
está á frente de todos. Aquelle que tem na mão a bandeira é o meu filho!

A outra porem continuava:

--Ó desgraçado! que fazes? Os soldados estão ali adiante!

--Não se assuste! Isto é uma missão sagrada! Até Jesus não teria
existido, se não houvesse homens que morreram por sua causa!

Sizof appareceu perto d’ella, agitando no ar o boné, ao compasso do
hymno:

--Isto é que é bem ás claras! ãn? Inventaram um hymno que é mesmo
lindo! ãn?

  O tzar quer soldados na tropa:
  Vossos filhos lhes daes...

--Não teem medo de nada! exclamou Sizof. O meu filho está na cova...
Foi a fabrica que o matou!

  Ergue-te, ergue-te, ó povo opprimido!

A multidão, allucinada, nem olhava para traz de si, com os olhos fitos
na bandeira vermelha, que balouçava ao vento.

--Bello côro! bravo, rapaz! berrava um entusiasta; e invadido por um
sentimento, que não sabia exprimir, desatou a rogar pragas.

D’uma janella partiu uma voz de canna rachada:

--Hereticos! Revoltarem-se contra Sua Majestade o Imperador! contra o
tzar!

Mas o hymno continuava, firme, altivo.

Pélagué, que no meio dos encontrões, fôra sendo empurrada para distante
do centro do grande ajuntamento, ouvia então frases soltas:

--Perto da escola está uma companhia de soldados, e outra na fabrica...

--O governador já chegou...

--O quê? é verdade?

--Vi-o com os meus olhos!

--Ainda bem! Começam a ter medo de nós! Já nos mandam soldados, e o
governador.

As vozes do côro foram enfraquecendo; dir-se-ia um movimento de recúo.
Alguns iam-se calando. Aqui e ali havia quem tentasse animar de novo o
hymno moribundo.

  Ergue-te, ergue-te, ó povo opprimido!
  Ao inimigo, ó gente esfaimada!

Pélagué não podia ver o que se passava no centro; abrindo á força
caminho, notou que a multidão tendia a dispersar, de cabeça baixa,
sobrolhos franzidos, com as narinas contrafeitas. Ouviam-se já alguns
assobios trocistas.

--Companheiros! gritava Pavel. Os soldados são homens como nós. Não
nos farão mal. Porque haviam de fazel-o? Porque levamos a liberdade a
todos? Mas precisam tambem da nossa verdade. Não compreendem ainda, mas
tempo virá, e muito em breve, em que entrarão nas nossas fileiras, em
que já não marcharão sob o estandarte dos gatunos e dos assassinos, mas
sim á sombra da nossa bandeira da liberdade e do bem! E para que elles
compreendam mais depressa a nossa liberdade, caminhemos para a frente!
Ávante! companheiros! ávante!

A sua voz era firme, mas o rebanho dispersava.



XXIX


Pélagué distinguiu á entrada da rua um como pequeno muro, cinzento
baixo, composto de seres humanos sem fisionomia e que tapavam a saída
da praça.

Era este muro que infundia o receio em toda aquella gente.

--Companheiros! continuava Pavel. A vida inteira está na nossa frente!
Não temos outro caminho! Cantemos! P’rá frente!

Respondeu-lhe um silencio esmagador. A bandeira ergueu-se, balouçou,
e agitando-se por sobre as cabeças, apontou para o muro cinzento dos
soldados. Pélagué estremeceu, fechou os olhos e suspirou: apenas quatro
pessôas se tinham destacado da multidão e avançavam: Pavel, André,
Samoílof e Mazine.

Ouviu-se a voz trémula de Fédia, cantando:

--«_Sois as victimas prostradas!..._»

--_Na grande lucta fatal!_ continuaram duas vozes como dois suspiros
abafados.

E uma voz de commando chegou aos ouvidos de alguns:

--Cruzar baionetas!

O muro cinzento agitou-se, as baionetas fuzilaram no ar, na direcção da
bandeira.

--Marche!

--Ahi veem elles! exclamou um vesgo que estivera proximo de Pélagué; e
mettendo as mãos nas algibeiras, afastou-se com grandes pernadas.

Os soldados avançavam em fila, de baioneta calada. Pélagué
approximou-se do filho, com as mãos no peito e viu André collocar-se na
frente d’elle, como para protegel-o.

--Ao meu lado, companheiro! ordenou Pavel.

Com as mãos nas costas, André cantava, de cabeça erguida, avançando
sempre. Pavel deu-lhe um encontrão com o hombro, exclamando:

--Aqui! ao meu lado! Não tens o direito de ir á minha frente! O
primeiro deve ser o porta-bandeira!

--Dis... per... sae!... gritava um officialsito com voz aguda, de sabre
no ar, marchando sem dobrar os joelhos e batendo com os tacões, raivoso.

A seu lado, um pouco atraz, marchava pesadamente um homem muito alto
de farto bigode branco, com uma grande capa cinzenta, debruada de
vermelho, e as amplas calças listradas de amarello. Como o russo-menor,
caminhava com as mãos nas costas. Tinha os olhos cravados em Pavel.

Os da bandeira e os soldados iam-se approximando; estes, no seu
caminho, iam fazendo dispersar a multidão sem lhe tocar.

--Salve-se quem puder!

--Vem, Vlassof!

--Para traz, Pavel!

--Dá cá a bandeira, Pavel! dizia Vessoftchikof. Eu a escondo.

E deitou-lhe a mão.

--Deixa! berrou Pavel.

O bexigoso retirou logo a mão, como se se tivesse queimado. O hymno
cessára de todo. Os rapazes pararam, envolvendo Pavel n’um circulo, que
elle acabou por transpor.

Sob a bandeira haveria, quando muito, uns vinte homens; mas firmes.

--Tenente, prenda aquelle! ordenou o velho alto apontando para Pavel.

O officialsito accorreu logo, e agarrou no pao da bandeira.

--Dá cá isso!

--Não! Abaixo os oppressores do povo!

A bandeira tremia; inclinava-se ora para a direita, ora para a
esquerda, ficando depois erecta. Vessoftchikof passou pela frente de
Pélagué, com o braço erguido, de punho cerrado, e com uma rapidez que
ella não lhe conheceu.

--Agarrem todos! berrou o velho, batendo com o pé.

Alguns soldados avançaram, um d’elles com a coronha no ar; a bandeira
estremeceu, baixou e desappareceu no grupo cinzento.

Pélagué soltou um grito, um rugido que não tinha nada de humano. Aos
ouvidos chegou-lhe a voz do filho:

--Até á vista, mãe! até á vista!

«Está vivo! não se esqueceu de mim!» taes foram os seus dois rapidos
pensamentos.

Poz-se nos bicos dos pés e conseguiu ver a cara de André.

--Meus filhos, meus queridos filhos! André! Pavel!

E elles iam dizendo:

--Até á vista, companheiros!

Algumas vozes lhes responderam, mas não em unisono; vinham das
janellas, dos telhados, não se sabia d’onde.



XXX


Alguem deu um empurrão em Pélagué. Atravez do nevoeiro que lhe toldava
os olhos, viu diante d’ella o officialsito, que lhe gritou:

--Vae-te d’aqui, velha!

Mediu-o com o olhar d’alto a baixo, viu-lhe aos pés o pao da bandeira
partido em dois; a um dos pedaços estava preso um resto da bandeira.
Abaixou-se para apanhal-o. O official arrancou-lho das mãos, lançou-o
para distante, e ordenou de novo:

--Vae-te, velha!

Do meio dos soldados partiu o estribilho:

--_Ergue-te, ergue-te, ó povo opprimido!_

O official retrocedeu, rapido, e esganiçou-se, ordenando:

--Façam-os calar! Krainof...

Vacilante, Pélagué apanhou outra vez o destroço da bandeira. A
dez passos d’ella formára-se novo ajuntamento. Urravam, grunhiam,
assobiavam, recuando lentamente, e dispersando para os pateos visinhos.

--Vae para o diabo! berrou um soldado, empurrando Pélagué para cima do
passeio.

Para não caír, porque os joelhos vergavam, ella caminhava apoiada ao
destroço da bandeira, ouvindo sempre atraz de si os soldados. Até que
estes passaram-lhe á frente.

Parou. Á entrada da rua, um cordão de tropa impedia a passagem para a
praça, que ficára deserta. Quiz voltar para traz, mas sem saber o que
fazia, continuou para a frente; metteu-se por uma ruasinha estreita.
Parou de novo. Ao longe, o povo susurrava.

A ruasita quebrava perto d’ella para a esquerda. N’um grupo compacto
discutia-se.

--Não é por insolencia que elles affrontam as baionetas, irmãos!

--Viram, ãn! Os soldados a marcharem sobre elles, e elles impassiveis!
sem medo!

--Que valente é o Pavel Vlassof!

--E o russo-menor!

--Meus amigos! boa gente! exclamou ella, avançando.

--Olhem: traz na mão o resto da bandeira!

--Cala-te! ordenou uma voz severa.

Ella estendeu o braço, com um gesto largo.

--Escutem, em nome de Jesus! Sois todos dos nossos, gente sincera.
Abride os olhos... olhae sem receio... O que se passou? Os nossos
filhos levantam-se, pacificamente... Os nossos filhos, o nosso sangue,
levantam-se em nome da verdade, abrem lealmente um caminho novo,
largo, direito, destinado a todos... Por todos vós, pelos vossos
filhos, empreendem uma cruzada... dirigindo-se para um mundo cheio de
encanto. Em nome de todos e pelo nome de Christo, caminham contra todas
as coisas por meio das quaes os maos, os mentirosos, os rapinantes,
nos prendem, nos estrangulam prisioneiros. Meus amigos! é pelo povo,
pelo mundo inteiro, por todos os opprimidos que os nossos filhos se
sublevaram. Não os abandoneis, não os renegueis, não deixeis os vossos
filhos seguirem sósinhos a sua estrella. Tende piedade de vós mesmos...
amae-os... compreendei aquelles corações juvenis... tende confiança
n’elles.

Fatigada, avergou. Alguem amparou-a.

--É Deus que a inspira! disse um d’elles. É Deus que a inspira, amigos!
Escutem-na!

Outro lamentou-a:

--Ah! está-se matando!

--Não se está matando, não, idiota! A nós é que fére, fica sabendo!

A mesma voz aguda e anciosa tornou a fazer-se ouvir:

--Christãos! O meu Mitia... A sua alma é pura... O que fez elle? Seguiu
os seus companheiros muito queridos. Fez bem. Por que abandonaes os
nossos filhos? Que mal fizeram elles?

Sizof disse a Pélagué:

--Volta para casa... Vae... Estás arrazada!

Passando depois pelo auditorio o olhar severo:

--O meu filho Matwei foi esmagado, na fabrica, bem sabeis. Mas se
vivesse, eu proprio o teria mandado entrar nas fileiras d’aquelles...
Ter-lhe-ia dito. «Vae com elles, vae, porque defendem uma causa justa,
uma causa santa!» É um velho quem lhes está falando. Conhecem-me todos.
Ha trinta e nove annos que trabalho aqui... ha cincoenta e sete que
vivo n’este mundo. O meu sobrinho, um bello rapaz, intelligente e
honrado, foi preso hoje outra vez. Ia tambem á frente de todos com o
Vlassof, ao lado da bandeira.

E pegando na mão de Pélagué:

--Esta mulher disse a verdade. Os nossos querem viver com honra,
segundo o que manda a razão; e nós... nós abandonamol-os! Vae para
casa, minha velha, vae!

--Meus amigos, a vida é para os nossos filhos! é para elles a terra!
disse ella passando pela multidão o olhar toldado de lagrimas.

--Vae, Pélagué, vae... Toma o teu arrimo!

E deu-lhe o destroço da bandeira.

Olhavam para a velha com respeitosa tristeza; seguiu-a um murmurio de
compaixão. Sem falar, Sizof abria-lhe caminho; e o povo afastava-se sem
protesto, obedecendo a uma força inexplicavel, trocando em voz baixa
breves palavras de lamento.

Ao chegar á porta de casa, Pélagué voltou-se para elles, e disse com
muito reconhecimento:

--Obrigada a todos!

E accrescentou:

--Nosso Senhor Jesus Christo não teria vindo ao mundo, se os homens não
morressem pela sua gloria!

A multidão olhou para ella em silencio.

Quando Pélagué entrou em casa acompanhada por Sizof, houve ainda na rua
algumas frases em que a reflexão dominava... Depois todos dispersaram,
vagarosos.



 SEGUNDA PARTE



I


...O resto do dia passou n’um nevoeiro entrecortado de recordações,
n’uma fadiga extrema que opprimia corpo e alma. Como uma sombra
pardacenta, o officialsito saltitava sob os olhares da velha, e em
negro redemoinho movediço luziam o rosto bronzeado de Pavel e os olhos
risonhos de André...

A velha ia e vinha pelo quarto, sentava-se junto da janella, olhava
para a rua, tornava a levantar-se e franzia o sobrolho; sentia-se
estremecer, relanceava os olhares em torno; e com a cabeça esvaída,
procurava o que quer que fôsse, sem mesmo saber o que queria...
Bebeu agua sem acalmar a sêde, sem extinguir no coração o ardente
brazeiro de angustia e de humilhação que toda a consumia. Aquelle
dia apresentava-se-lhe dividido em duas partes. A primeira tinha uma
significação, um conteúdo, mas a segunda era como se se evaporasse, era
um vacuo absoluto. Pélagué não encontrava resposta á pergunta tremente
de perplexidade que a si propria apresentava:

--Que havia de fazer... agora?...

Maria Korsounova appareceu então. Poz-se a gesticular com força,
gritou, chorou, bateu o pé, alvitrou e prometteu qualquer coisa,
ameaçou quem quer que fôsse. Mas tudo aquillo não conseguiu
impressionar sequer a outra.

--Ah! dizia a voz destemperada de Maria, assim como assim, o povo
mexeu-se d’esta vez... Ahi a teem em revolta, toda a fabrica!

--É verdade, é, respondeu baixinho Pélagué, meneando a cabeça. E com o
olhar fito, considerava quão longe ficára o passado e tudo o que d’ella
se afastára com André e com Pavel. Não podia chorar. Tinha o coração
confrangido mas arido; os labios seccos tambem, como a garganta.
Tremiam-lhe as mãos e tinha arrepios gélidos pelas costas. Mas
subsistia n’ella uma scentelha de colera, fixa, cravada no coração qual
agulha. E a tal intimo instigamento respondia ella com uma promessa de
fria reflexão:

--Esperem um pouco!...

E então, tossindo ruidosamente, franzia as sobrancelhas.

Pela noite, veio a policia. Recebeu-os sem admiração nem temor.
Entraram pela casa dentro fazendo muita bulha, com ares satisfeitos. O
official de pelle amarellada disse, mostrando os dentes:

--Então como vae isso? É esta a terceira vez que nos encontramos, an?

Ella ficou-se em silencio e passou a lingua pelos beiços para
humedecel-os. Entrou então o official a falar muito, em tom de pessoa
fina. E Pélagué percebia que elle falava pela satisfação de se ouvir
a si proprio. Mas as palavras nem lhe chegavam aos ouvidos nem a
impressionavam. No entretanto, quando o official lhe disse:

--Tu propria tens culpas, porque não soubeste inspirar a teu filho o
respeito a Deus e ao Imperador...

Respondeu sem o fitar:

--Os nossos filhos é que são os nossos juizes... Elles hão de
condemnar-nos, e com toda a razão, visto que os deixámos seguir tal
caminho...

--O quê? gritou o official, fala mais alto!

--Digo que os nossos juizes são os nossos filhos! repetiu com um
suspiro.

O outro poz-se então a discorrer em voz rapida e irritada, mas as
frases precipitavam-se e não commoviam a velha.

Citada como testemunha, Maria Korsounova ficára de pé ao lado de
Pélagué, para quem nem olhava. Quando o official lhe fazia qualquer
pergunta, inclinava-se logo muito baixo e respondia em voz monotona:

--Não sei, Excellencia! Sou uma pobre mulher ignorante, só trato do meu
negocio... Graças á minha estupidez, nada sei...

--Cala-te d’ahi! ordenou o official retorcendo os bigodes com violencia.

--A mulher inclinou-se, e logo, fazendo-lhe um gesto de provocação que
elle não viu, murmurou:

--Toma, guarda lá este!

Mandaram-lhe que revistasse a velha. Pestanejou primeiro; depois fitou
o official, com os olhos muito abertos. E declarou com voz submissa:

--Mas eu não sei fazer isso, Excellencia!

O official bateu o pé, zangado.

--Está bem... Desabotoa-te, Pélagué, disse Maria. E muito córada,
passou a revolver e a apalpar o fato da outra, commentando baixinho:

--Ein? que corja!

--O que é? gritou o official desabridamente, e insinuou o olhar,
desconfiado, pela abertura por onde Maria se desempenhava da tarefa.

--Nada, Excellencia, não é nada; coisas que só nós usamos... murmurou
Korsounova timidamente.

Ao ordenar-lhe o official que assignasse o auto de investigação,
Pélagué traçou estas palavras n’uma calligrafia desconforme, em grandes
letras garrafaes:

«Pélagué Nilovna Vlassof, viuva d’um operario».

--Que escreveste tu ali? Porque escreveste aquillo? prorompeu o
official, de sobrecenho carregado e em tom de desdem; e accrescentou
com um riso de mofa: Que selvagens!

Retiraram-se os guardas. A mãe foi pôr-se deante da janella. Com os
braços cruzados no peito; para ali ficou muito tempo, olhando sem vêr.

Desfranzira as sobrancelhas, e comprimia os labios. Ao mesmo tempo,
apertava as maxillas de encontro uma á outra, com tal força, que
dentro em pouco ficou com dôr de dentes. Acabára-se o petroleo do
candieiro, a luz ia a sumir-se, crepitando. Soprou-a de vez e ficou ás
escuras. A colera e a humilhação de havia pouco desappareciam n’ella;
agora era uma nuvem negra e fria de angustia e de louco terror, que
toda a penetrava, que lhe enchia o peito, difficultando-lhe o pulsar
do coração. E immovel permaneceu, até sentir cansados os olhos e as
pernas. Ouviu então sob a janella, Maria parar e gritar-lhe com voz
avinhada:

--Pélagué! Estás a dormir? Minha pobre Pélagué!... Dorme, dorme! Todos
estão soffrendo os mesmos enxovalhos,--ouves?--todos!

Deitou-se sobre a cama, sem se despir, e caíu em somno profundo, como
quem rola para um precipicio.

Em sonhos, viu-se junto do montículo de saibro amarello que ficava
para lá do pantano, no caminho que conduzia á cidade. Ali, no cume da
encosta, que dava accesso ás pedreiras d’onde se extraía a areia,
Pavel cantava em voz doce, mas com uma voz que era a mesma de André:

 Ergue-te, ergue-te, ó povo opprimido...

Pélagué passou por diante do monticulo e contemplou seu filho, ao mesmo
tempo que levava a mão á fronte. Destacava-se nitidamente o perfil do
rapaz no fundo azul do ceu. Mas a mãe sentia vergonha em approximar-se
d’elle, pois que estava gravida. E levava ao colo, outra criança.
Proseguiu no seu caminho. Pelos campos, havia outras creanças a brincar
com uma bolla; eram muitas, as creanças, e a bolla era vermelha. O
pequenito que tinha nos braços queria ir brincar com os outros e
entrou a fazer grande berreiro. Deu-lhe de mammar e voltou pelo mesmo
caminho. O monticulo estava já então occupado por muitos soldados que
lhe apontavam as baionetas. Deitou a fugir em direcção a uma egreja
edificada em meio dos campos, uma egreja muito branca, altissima e de
levissima construcção, como se fôsse formada de nuvens. Lá dentro,
cantavam-se responsos; o caixão era grande, preto, hermeticamente
fechado. Padre e acolyto, vestiam alvas d’immaculada brancura, e
entoavam: «Christo ressuscitou d’entre os mortos...»

O acolyto agitou o turíbulo e, ao avistar Pélagué, sorriu-lhe. Tinha
os cabellos ruivos e uns modos prazenteiros, assim como Samoílof. Da
cupula caía raios de sol em verdadeiras toalhas. E, no côro, crianças
repetiam a meia-voz:

«Christo ressuscitou d’entre os mortos»...

--Prendam-nos! gritou subitamente o padre, estacando a meio da egreja.
A alva que vestia tinha desapparecido e no rosto surgia-lhe um bigode
grisalho e espesso. Todos se puzeram em fuga, até mesmo o acolyto, que
atirára para longe o turíbulo e apertava a cabeça entre as mãos, como
o russo-menor costumava fazer. A mãe deixou caír a criança sob os pés
dos fieis que se afastavam evitando-a, com olhares de temor para o
pequenino corpo nu. Ella caíra de joelhos e gritava:

--Não abandonem a criança! Salvem-na...

E, de mãos atraz nas costas, com um sorriso nos labios, o russo-menor
proseguia cantando:

--«Christo ressuscitou d’entre os mortos!...»

Pélagué abaixou-se, agarrou na criança, pôl-a n’um carrinho ao lado do
qual Vessoftchikof ia caminhando vagarosamente. Este ria, dizendo:

--Sempre me deram um trabalhão!...

Percorriam uma rua muito suja. Pelas janellas, havia gente que
assobiava, gritava, gesticulava.

--O dia estava claro, brilhava o sol com ardor; não havia uma nesga de
sombra, em parte alguma.

--Cante, cante, tiasinha! disia o russo-menor. É a vida, isto!

--E ia cantando sempre, dominando tudo com a sua boa voz sonora e
jovial. A mãe seguia-o, lamentando-se.

--Porque está elle a mangar comigo?

N’isto, recuou; mas logo se sentiu despenhar para um grande abysmo sem
fim, que escachoava com estrondo...

Accordou em sobresalto, toda a tremer, banhada de suores; apurou o
ouvido, perscrutando-se. Estupefacta, sentiu vasio o proprio peito.
Parecia-lhe que mão desconhecida, ferrenha, lhe esquadrinhára o seio e,
tendo-se-lhe apoderado do coração, lho estava a apertar brandamente,
como em cruel brinquedo. O silvo da fabrica uivava teimosamente. Pelo
som, calculou que fôsse já a segunda chamada.

Reinava a desordem no quarto; livros e fatos jaziam de mistura, no
sobrado emporcalhado; tudo em confusão.

Levantou-se, cuidou dos arranjos, sem se lavar, sem mesmo rezar. Na
cosinha, encontrou um pao que ainda conservava amarrado um farrapo
encarnado; pegou n’elle e, irritada, esteve para atiral-o para debaixo
do fogão; mas, suspirando, tirou e dobrou cuidadosamente o pedaço de
panno vermelho e meteu-o na algibeira. Em seguida, procedeu a uma
grande lavagem ao sobrado e á janella. Acabou de vestir-se, arranjou o
samovar e depois foi sentar-se ao pé da janella da cosinha, a repetir a
si mesma a pergunta da vespera:

--Que se ha de fazer?

Mas lembrou-se que ainda não tinha orado; postou-se por alguns momentos
diante das imagens santas, e depois tornou a sentar-se. No logar do
coração tinha um vacuo. O proprio pendulo do relogio, ordinariamente
tão agil, dir-se-ia ter afroixado o seu tic-tac precipitado. As moscas
zumbiam hesitantes e debatiam-se estonteadas de encontro ás vidraças...

Reinava em todo o bairro um silencio singular; parecia que toda aquella
gente, que na vespera tanto gritára pelas ruas, se tivesse escondido em
suas casas para reflectir em silencio n’aquelle extraordinario dia.

De subito, Pélagué recordou-se de uma scena que presenciára uma vez,
quando era rapariga: no velho parque dos senhores Zoussailof havia
um vasto tanque todo esmaltado de nenufares. Por ali passára em um
dia d’outono nevoento e triste; a meio da laguna, um barco jazia,
como que estatico na agua tranquilla e sombria, salpicada de folhas
amarellecidas. E d’esta embarcação sem remos nem remadores, solitaria e
immovel na agua opaca, entre folhas mortas, provinha funda melancolia,
um pezar mysterioso. Pélagué permanecera ali muito tempo, procurando
adivinhar quem impellira a canoa para longe da margem e porquê...
Afigurava-se-lhe agora ser ella mesma igual á barquinha que outr’ora
a levára a pensar n’algum esquife á espera do cadaver. N’esse mesmo
dia, á noite, viera a saber-se que a esposa do intendente se havia
afogado,--uma mulhersinha de modos saccudidos, os cabellos pretos
sempre em desalinho...

Passou a mão pelos olhos, como para expulsar taes recordações, mas logo
o pensamento indeciso e horrorisado lhe deslisou brandamente para as
impressões da vespera, dominadoras. Com os olhos apegados á chavena
de chá, que lhe arrefecia na frente, conservou-se longamente immovel,
sentindo nascer-lhe na alma o desejo de falar com quem quer que fôsse,
sincero e intelligente, para lhe perguntar innumeras coisas.

E, como de proposito para realisar o seu desejo Nicolao Ivanovitch
appareceu pela volta da tarde. Ao vêl-o, apoderou-se d’ella brusca
inquietação. Com voz sumida, disse sem responder aos cumprimentos de
Nicolao:

--Ah! tiosinho; fez mal em vir até aqui! É uma imprudencia; se o vêem,
prendem-no!

Depois de lhe ter apertado a mão com energia, Nicolao Ivanovitch
segurou melhor os oculos no nariz, e ao ouvido d’ella, explicou-lhe
rapidamente, em voz baixa:

--É que nós tinhamos combinado, o André, o Pavel e eu, que se os
prendessem, eu havia de vir buscal-a logo no dia seguinte, para a levar
para a cidade. Vieram cá fazer alguma busca?

--Vieram; revolveram tudo; até me apalparam. Essa gente não tem
consciencia nem pudor!

--E porque o haviam de ter? retorquiu Nicolao com um encolher
d’hombros; e logo lhe expoz as razões por que era conveniente que ella
passasse a residir na cidade.

A outra escutava aquella voz amiga, cheia de sollicitude, fitava
aquelle rosto de resignado sorriso e sentia-se admirada da confiança
que tal homem lhe inspirava.

--Uma vez que o Pavel assim decidiu, e se não o incommodo... disse.

--Não pense n’isso, interrompeu elle logo. Vivo sósinho, minha irmã só
raramente apparece...

--Mas é que eu quero trabalhar, quero ganhar o meu sustento!

--Pois se quer trabalhar, ha de se lhe encontrar trabalho, descanse!

Para ella, a idéa do trabalho relacionava-se indissoluvelmente com a
especie de actividade a que se entregavam seu filho, André e os mais
companheiros. Approximou-se de Nicolao e perguntou-lhe fitando-o muito:

--Parece-lhe?...

--Pois está claro! A casa não é grande, e quando a gente vive só...

--Não lhe falo d’isso, falo-lhe da nossa grande empreza... explicou em
voz baixa.

--E soltou um suspiro triste, melindrada por não ter sido compreendida.
Nicolao ergueu-se e, franzindo os olhos myopes n’um sorriso, declarou
em tom de gravidade:

--Pois para a grande causa, tambem ha-de ter que fazer, se quizer...

Uma idéa simples e clara formára-se subitamente no espirito d’ella.
Já uma vez conseguira auxiliar Pavel; talvez o conseguisse de novo.
Quanto mais gente houvesse a trabalhar por tal causa, tanto mais clara
se tornaria aos olhos de toda a gente a razão que a Pavel assistia em
defendel-a. E ao mesmo tempo que analisava a fisionomia bondosa de
Nicolao Ivanovitch, esperava ella que este lhe falasse compassivamente
de Pavel, de André e d’ella propria. Mas o outro limitou-se a
acrescentar, acariciando a barba, como que absorto:

--Veja se póde saber pelo Pavel, quando lhe falar, as moradas d’esses
camponezes que pediram jornaes...

--Já as sei! exclamou ella alegremente. Sei perfeitamente quem elles
são e onde moram. Dê-me o jornal que eu mesma lh’o levo. Eu mesma irei
procural-os e farei o que me mandar... Ninguem será capaz de suppôr
que levo commigo livros proíbidos. Deus seja louvado, bastantes kilos
d’elles metti na fabrica!

Era como um súbito desejo de partir, de ir ao acaso, fôsse para onde
fôsse, pelas estradas sem fim, por bosques e aldeias, com o cajado na
mão e a alcofa ao hombro.

--Não encarregue mais ninguem d’esse serviço, peço-lh’o, meu amigo,
disse ella. Irei a toda a parte onde julgar preciso. Não tenha medo,
que não me perderei, seja em que provincia fôr. De verão e de inverno,
caminharei sem descanso... até morrer! Tornar-me-ei um apóstolo por
amor da verdade. Não será digno de inveja o meu destino? Que bella
vida, a do viandante! Vaguear pelo mundo, sem se possuir nada e sem se
ter necessidade de coisa alguma, a não ser do pão de todos os dias; não
humilhar ninguem; percorrer a terra, tranquillamente e sem que ninguem
nos conheça!... Tambem eu quero viver assim!... E hei de encontrar
Pavel, hei de encontrar André, hei de chegar até onde elles estiverem...

Mas aqui entristeceu ao ver-se já, em pensamentos, sem lar, errante, a
mendigar em nome de Deus pelas portas das cabanas...

Nicolao agarrou-lhe meigamente na mão e affagou-lh’a ao calor das suas.

--Havemos de falar n’isso mais tarde! declarou, olhando para o relogio.
É perigosa a tarefa de que quer encarregar-se... pense bem!

--Meu bom amigo! exclamou ella. Para que serve pensar? Pois se os
nossos filhos, a parte mais pura do nosso proprio sangue, parcellas dos
nossos proprios corações, os que mais do que tudo nos são queridos,
sacrificam vida e liberdade e morrem sem contemplação por si mesmos, o
que não hei de eu de fazer, eu, que sou mãe?

Nicolao fez-se pallido.

--Sabe que é a primeira vez que oiço falar d’essa maneira?...

--Que sei eu dizer! murmurou ella, sacudindo desconsoladamente a
cabeça. E os braços penderam-lhe n’um gesto de desalento. Se eu
encontrasse palavras que exprimissem o que sente o meu coração de
mãe!...

E ergueu-se, impellida pelo ardor que n’ella se concentrava e lhe
excitava no cerebro frases candentes de revolta.

--... Muitos haviam de chorar... até os malvados, os entes sem
consciencia...

Nicolao ergueu-se e tornou a ver as horas.

--Pois então, fica combinado, vem para minha casa, para a cidade!

Ella abanou a cabeça, sem uma palavra.

--Quando ha de ser? continuou Nicolao. O mais depressa possivel. E
accrescentou com meiguice:

--Vou ficar em cuidado por sua causa, palavra!

Pélagué ergueu para elle um olhar admirado: que interesse podia ella
inspirar áquelle homem? O outro permanecia de cabeça baixa, com um
sorriso de constrangimento, myope e um tanto corcovado, no seu modesto
fato preto.

--Tem dinheiro em casa? perguntou sem a fitar.

--Não.

Com vivacidade, tirou logo da algibeira uma bolsa, abriu-a e
apresentou-lh’a.

--Ahi tem, tire, se faz favor...

A pobre mãe esboçou involuntario sorriso e, com um meneio de cabeça,
observou:

--Como tudo está mudado! O proprio dinheiro já não tem valor para
vocês. Ha por ahi gente capaz de tudo para o possuir, que chega até
a perder a propria alma... e para vocês não passa d’uns bocados de
papel... d’umas rodelas de cobre... Chega-se a imaginar que se vocês o
têm é só por caridade para com os outros!

--O dinheiro é na verdade desagradavel e incommodo, retorquiu Nicolao
Ivanovitch, rindo. É por igual coisa enfadonha pedil-o ou dal-o!...

Tomou lhe novamente da mão, apertou-lh’a fortemente.

--Venha o mais depressa que possa, sim? repetiu.

E, como das outras vezes, foi-se sem fazer ruido. Ao despedir-se
d’elle, Pélagué pensava:

--É tão bom homem!... Comtudo não teve uma palavra de compaixão...

E não chegou a perceber bem se tal facto lhe era desagradavel ou se lhe
causava simples admiração.



II


Quatro dias apóz a visita de Nicolao, punha-se Pélagué a caminho, em
direcção a casa d’elle. Quando o carro que a transportava e ás duas
malas, atravessou o burgo e rodou em pleno campo, voltou-se para
traz ainda uma vez e sentiu n’esse instante que era para sempre que
abandonava aquelle logar onde decorrera a quadra mais sombria e penosa
da sua vida, onde outra existencia começara, periodo replecto de novos
desgostos e de novas alegrias, em que os dias voavam velozes.

Semelhante a immensa aranha d’um vermelho escuro, estendia-se a
fabrica ao longo do solo sujo de fuligem, erguendo muito ao alto na
atmosphera, as enormes chaminés. Em torno, amontoavam-se os casinhotos
do operariado. Pardacentos e mesquinhos, formavam grupo compacto á
beira do charco e pareciam entreolhar-se lastimosamente pelas suas
janellinhas sem brilho. A meio d’elles erguia-se a igreja, de côr
vermelha como a fabrica, com o seu campanario, que parecia menos
elevado do que as chaminés da fabrica.

A pobre mulher suspirou, desapertou a gargantilha do vestido, que a
incommodava. Ia triste, mas de uma tristeza arida como a poeira d’uma
tarde d’estio.

--Para diante! resmungava o carroceiro, puxando pelas redeas. Era
manco, de idade imprecisa, com uns olhos sem côr definida e uns raros
cabellos de tom sujo. Bamboleando-se todo, caminhava ao lado do
vehiculo, demonstrando claramente que o fim da viagem, qualquer que
elle fosse, se lhe tornava totalmente indifferente.

--Para diante! repetia com uma voz sem timbre, atirando por maneira
caricata com as pernas cambadas, calçadas de grossas botas cheias de
lama. A passageira, essa, vagueiava o olhar em torno. A desolação da
planicie era tão profunda como a da sua alma...

O cavallo, saccudindo lamentosamente a cabeça, enterrava as patas pela
areia profunda, que rangia, froixamente requentada pelo sol. A carroça,
em mau estado e com os eixos mal azeitados, chiava a cada volta das
rodas. A todos estes ruidos vinha juntar-se a poeira.

Morava Nicolao Ivanovitch no extremo da cidade, n’um pequeno pavilhão
pintado de verde, encostado a um sombrio predio de dois andares, a caír
de vetustez, em rua solitaria. Á frente do pavilhão, havia um jardim,
de fórma que pelas janellas dos trez quartos mettiam-se as frescas
ramadas de algumas acacias, lilazes e um ou outro alamosinho prateado.
Os quartos eram aceiados e silenciosos; sombras mudas e recortadas,
tremiam sem cessar nos sobrados; pelas paredes havia prateleiras
carregadas de livros e alguns retratos de pessoas de modos graves e
ponderados.

--Parece-lhe que lhe ha de agradar isto? perguntou Nicolao,
introduzindo a sua hospede n’um quarto com uma janella para o jardim e
outra para o pateo coberta por espessa relva. E, n’este como nos outros
quartos, guarneciam as paredes varias estantes carregadas de livros.

--Antes queria ficar na cosinha.

Falava assim porque lhe parecia ver em Nicolao o receio de qualquer
coisa. Elle dissuadiu-a de tal proposito, mas com uns modos de
constrangimento, e logo que ella renunciou a ir habitar na cosinha,
tornou a mostrar-se satisfeito.

Reinava em toda a casa particular atmosfera: era agradavel respirar
ali, mas as vozes instinctivamente faziam-se menos ruidosas; não se
sentia o desejo de falar alto, nem de perturbar a beatifica meditação
das personagens que do alto das suas molduras olhavam concentradamente.

--Estas plantas precisam de ser regadas, disse ella depois de tatear a
terra dos vasos.

--Sim, sim, concordou o dono da casa, um tanto confuso. Bem vê, gosto
muito de flôres, mas não tenho tempo para tratar d’ellas.

Notava Pélagué que, mesmo em sua casa, bastante confortavel aliás,
Nicolao movia-se com prudencia, sem fazer bulha, como que estranho e a
mil leguas de tudo o que o cercava. Ia pôr a cara mesmo em cima do que
queria vêr; compunha os oculos com os dedos afusados da mão direita,
assestando, por assim dizer, uma interrogação muda, a cada objecto que
considerava. Dir-se-ia que fizera a viagem com a sua hospede e que tudo
n’aquella casa lhe era desconhecido. Então, ao vêl-o assim distraído,
Pélagué entrou a sentir-se inteiramente á vontade na sua nova habitação.

Precedida de Nicolao, percorria a casa, notando de memoria o logar
de cada objecto e interrogando o seu amigo sobre os seus habitos de
vida, ao que este dava respostas embaraçadas, como alguem que tivesse
a consciencia de não proceder como deveria, mas que não tivesse outro
expediente a tomar.

Regadas as plantas e reunidas em um só monte as musicas esparsas sobre
o piano, deu com o samovar.

--Tem de ser limpo, observou.

Nicolao passou um dos dedos pelo metal embaciado pela sujidade e,
pondo-o mesmo diante do nariz, observou-o com attenção. Isto fel-a rir
com gosto.

Quando se encontrou na cama, e depois de ter recordado as peripecias
de tal dia, Pélagué deitou a cabeça fóra da roupa e poz-se a olhar
em volta. Era a primeira vez na sua vida que se via em casa de um
estranho. Não se sentia perturbada com esta idéa. Sollícitamente,
pensou no seu hospedeiro; a si propria prometteu amenisar-lhe a
existencia com um pouco de carinhosa affeição. Impressionavam-na a
timidez, o feitio desgeitoso e ridiculo de Nicolao, a expressão a um
tempo ingenua e séria dos seus olhos claros. E logo o pensamento lhe
vôou para o filho; reviveu mentalmente os episodios do dia primeiro de
maio. Esta lembrança causava-lhe uma dôr particular, como particular
fôra aquelle dia: era um soffrimento que não abatia a cabeça para o
solo como a pancada d’um malho, mas que torturava o coração com mil
picadas e excitava surda colera, fazendo altear-se o dorso corcovado da
velha.

--Como é triste ter filhos para os ver partir por esse mundo fóra!...
pensava. E apurava o ouvido, escutando os ruidos, desconhecidos para
ella, da vida nocturna da cidade, que lhe chegavam amortecidos e
atenuados pela janella aberta, por entre as folhagens do jardim, vindos
de longe, a morrerem suavemente dentro do quarto.

Pela manhã, cedo, procedeu á limpeza do samovar e accendeu-lhe o lume;
guardou toda a loiça sem fazer barulho; depois, foi sentar-se na
cosinha e esperou que o seu hospedeiro accordasse. Houve um ruido de
tosse e appareceu Nicolao com os oculos na mão.

Tendo correspondido aos bons dias que este lhe dirigiu, Pélagué levou o
samovar para a casa de jantar, emquanto Nicolao se lavava, espalhando a
agua pelo sobrado, deixando caír a todo o momento o sabonete, a escova,
resmungando de continuo contra si proprio.

Ao almoço, Nicolao participou-lhe:

--É bem triste a minha occupação na administração da provincia:
emprego-me em observar como é que a nossa gente do campo se arruina...

E repetiu com um sorriso contrafeito:

--Sim, observo, é o verdadeiro termo. Essa pobre gente morre de fome,
ainda novos, lá vão para a cova, roidos pela miseria; as creanças
nascem fracas e enfesadas, caem aos centos, como as moscas, quando
chega o inverno... Sabemos tudo isso perfeitamente... conhecemos as
causas d’essa calamidade e afinal, depois de as termos analisado,
recebemos o nosso ordenado... e ficamos por aqui.

--Mas o senhor o que é? perguntou Pélagué. Foi estudante?

--Nada; era mestre-escola rural... Meu pae é director d’uma fabrica
em Viatka; e eu fiz-me professor. Mais tarde, por ter distribuido uns
livros pelos habitantes do logar, atiraram commigo para uma enxovia.
Depois, fui empregado de livraria Ali, parece que tambem commetti
qualquer imprudencia, porque fui outra vez preso: então mandaram-me
para a provincia d’Arkhangel... Por lá tive tambem os meus desaguisados
com o governo local e fui recambiado lá para as margens do mar Branco,
para um logarejo onde vivi cinco annos...

E dizendo isto, a voz resoava-lhe calma e suave na tranquilidade
d’aquelle quarto claro, inundado de sol.

Frequentes vezes tinha a sua interlocutora ouvido historias do genero
d’aquella; mas nunca pudera compreender porque era que quem as contava
o fazia com tal placidez, sem que nunca formulasse, por tantos
soffrimentos, uma accusação contra ninguem, como se aquillo devesse
fatalmente acontecer a todos...

--Sabe que chega hoje minha irmã, annunciou elle.

--É casada?

--Viuva. O marido foi exilado para a Siberia. De lá conseguiu fugir,
mas no caminho apanhou um resfriamento e morreu no estrangeiro, ha de
haver dois annos.

--Sua irmã é mais nova do que o senhor?

--Não, tem mais seis annos do que eu... Devo-lhe muitos favores... Ha
de ouvil-a tocar n’aquelle piano, que é mesmo d’ella... de mais, ha
aqui muita coisa que lhe pertence... Os livros, esses, são meus...

--E onde mora?

--Em toda a parte! respondeu elle, sorrindo. Onde quer que seja precisa
uma creatura decidida, lá a encontrarão...

--Então tambem trabalha pela nossa causa?

--Está claro!

Dito isto, saíu em direcção á sua repartição e a velha ficou-se a
pensar n’aquella causa commum que de dia para dia tornava os homens tão
frios e obstinados. Parecia-lhe estar em frente de altissima montanha,
em plena escuridão.

Por volta do meio dia veio uma senhora alta e elegante, vestida de
preto. Aberta a porta, a recemchegada atirou para o chão uma malinha
amarella e tomou com vivacidade uma das mãos de Pélagué, interrogando:

--A senhora é a mãe do Pavel Vlassof, não é?

--Sou eu, sim, senhora! declarou Pélagué, constrangida pela elegancia
da dama.

--Pois a senhora é tal qual eu a tinha imaginado! Meu irmão mandou-me
dizer que vinha viver para casa d’elle! Somos amigos velhos, seu filho
e eu... Falava-me tanto de si!

A voz era baça; exprimia-se com lentidão, mas tinha gestos rapidos e
saccudidos. Brilhava-lhe nos grandes olhos cinzentos um franco sorriso
de mocidade. Algumas rugasinhas delicadas sulcavam-lhe já as fontes,
e por cima das orelhas bem feitas ondeava um ou outro cabello branco,
como prata.

--Venho com fome! declarou. Não desgostava de tomar uma chavena de
café...

--Vou preparar-lho immediatamente, disse a outra; e, ao tirar uma
cafeteira do armário, inquiriu em voz baixa:

--Então sempre é certo que o Pavel lhe falava de mim?

--Com certeza, e até muitas vezes!

E a irmã de Nicolao tirou da algibeira uma carteirinha, tomou de
um cigarro e accendeu-o. Percorrendo o quarto a grandes passadas,
proseguiu:

--Está em cuidados por causa d’elle?

Pélagué sorria, fitando a chamma azulada da lampada de espirito de
vinho, a crepitar sob a cafeteira. O constrangimento de havia pouco
desapparecera na sinceridade da sua satisfação.

«Fala então muito em mim, o meu filho!» pensava.

E proseguiu:

--Pergunta-me se estou em cuidado?... Com certeza, é bem triste o que
se passa... Mas antigamente era peor ainda... Agora, como sei que elle
não está só...

Fixou o olhar no rosto da sua nova conhecida.

--Como se chama, minha senhora? perguntou.

--Sofia.

Passou a examinal-a melhor. Havia n’aquella mulher o que quer que fôsse
de audácia, demasiada confiança em si própria e excessiva precipitação.
O seu falar era por demais imperioso.

--O que é importante é que os companheiros não vão ficar muito tempo
na cadeia, e que sejam julgados depressa. Quando o Pavel estiver na
Siberia, nós o faremos fugir... Ninguem póde passar sem elle, aqui...

Sofia procurava com a vista onde deitar a ponta do cigarro; por fim
enterrou-a n’um dos vasos de flôres.

--Olhe que assim a planta morre! observou a velha machinalmente.

--Queira perdoar! disse Sofia. É isso o que o Nicolao me está sempre a
repetir...

E retirando do vaso a ponta de cigarro, atirou-a pela janella.

--Sou eu que lhe peço desculpa. Falei sem reflectir. Não é a mim que
compete repreendel-a.

--E porque não?... Se eu sou uma estouvada! redarguiu Sofia serenamente
e com um encolher de hombros. O café está pronto? Muito obrigada!
Então, só uma chavena? Não se serve?

E, collocando-lhe as mãos nos hombros, puxou-a para si, fitou-a e
perguntou-lhe em tom de admirada:

--Estará por acaso a fazer cerimonia?

A outra respondeu com um sorriso:

--Ainda hontem cheguei aqui, e já hoje me parece que estou em minha
casa e que conheço a senhora ha muitos annos... Nada receio; digo o
que me vem á cabeça; faço observações...

--E está muito bem! exclamou Sofia com entusiasmo.

--Nem sei onde tenho a cabeça! Nem já me conheço! continuou Pélagué.
Antigamente, a gente estudava as pessoas por dentro e por fóra primeiro
que lhes falasse com o coração nas mãos; agora, não, parece que nada se
receia, dizem-se de repente coisas que d’antes nem mesmo nos atreviamos
a pensar... e que de coisas!

Sofia accendeu outro cigarro; pousára o olhar cinzento na sua
interlocutora, cariciosamente.

--Disse ha pouco que se ha de arranjar a fuga do Pavel... Mas como vae
elle viver depois?

Era esta pergunta que importunava Pélagué e que conseguira emfim
formular.

--É coisa facil! respondeu Sofia, servindo-se outra vez de café. Ha de
viver como vive grande numero de evadidos... Olhe, agora acabo eu de ir
buscar um d’elles, que acompanhei até ao estrangeiro. É tambem um homem
valioso; é operario no sul; foi condemnado a cinco annos de degredo,
mas só cumpriu trez annos e meio. É por este motivo que me vê tão bem
vestida. Julgava que era o meu trajo habitual? Não; detesto os farrapos
e os enfeites... A humanidade é de origem humilde; deve trajar com
humildade,--vestuario bem feito mas simples...

Pélagué, abanando a cabeça, disse em voz baixa:

--Ah! esse primeiro de maio é que me pôz as idéas em confusão! Não
me sinto bem; chega-me a parecer que vou por duas estradas, ao mesmo
tempo... tão depressa julgo que compreendo tudo, tão depressa me
vejo cercada de nevoeiros... A senhora, por exemplo... Vejo que é
uma senhora fina... e a senhora tambem trabalha pela nossa causa...
conhece o Pavel... e diz que o tem em grande conta... Não sei como
agradecer-lhe...

--Não, os agradecimentos são para si, disse Sofia, rindo.

--Para mim?! Não fui eu que lhe ensinei essas coisas todas! respondeu
a mãe com um suspiro. Dizia-lhe eu então, continuou: umas vezes, tudo
isto me parece simples, outras, nem essa mesma simplicidade eu posso
compreender... Assim, agora, encontro-me com o espirito socegado,
d’aqui a instantes, já sinto medo por me vêr tão socegada. Toda a minha
vida tenho passado em meio de inquietações... e agora, que ha motivo
para receios, já quasi não sinto medo... Porque é isto? Não sei!...

Pensativamente, Sofia respondeu:

--Ha de vir um dia em que tudo compreenderá!... Parece-me tempo de
abandonar todos estes esplendores de vestuario...

Collocou a ponta do cigarro no pires, e saccudindo a cabeça, fez rolar
sobre os hombros, em madeixas espessas, os doirados cabellos. Depois
saíu...

A outra seguiu-a com a vista, suspirou, olhou em torno e começou
a arrumar a loiça, com a cabeça vasia de idéas, prostrada por uma
somnolencia que a amodorrava.



III


Pelas quatro da tarde, Nicolao estava de volta. Ao jantar, Sofia
contou, rindo, o seu encontro com o forçado evadido; falou do terror
d’esse homem, sempre a vêr espiões em todos os cantos, e dos modos
exquisitos do evadido... No tom de voz em que falava alguma coisa fazia
lembrar á velha Pélagué a fanfarronada d’um operario que terminou uma
tarefa difficil e que d’ella se gaba.

Vestia agora Sofia um roupão cinzento, leve e adejante que lhe cahia
dos hombros até aos pés em pregas harmoniosas, vaporoso e simples.

Este novo trajo fazia-a parecer mais alta, ao passo que o olhar se lhe
annuviára e os movimentos se lhe tornavam mais serenos.

--É preciso que trates d’outro negocio, Sofia! disse Nicolao, terminado
o jantar. Como sabes, ha idéa de editar um jornal para a gente dos
campos... mas, graças ás ultimas prisões effectuadas, os laços que nos
uniam a esses camponezes, quebraram-se. Só Pélagué sabe como poderemos
rehaver o homem que se encarrega da distribuição do jornal... Parte com
ella... o mais cêdo que possas...

--Está bem, disse Sofia, recomeçando a fumar. Está combinado, mãesinha?

--Porque não? Pois, vamos!

--E é longe?

--Oitenta kilometros, pouco mais ou menos.

--Optimamente!... Agora vou tocar um bocado de piano... Está disposta
para um pouco de musica?

--Nada me pergunte, faça de conta que não estou aqui, respondeu ella.
E foi sentar-se para um canto do canapé coberto de uma capa de linho.
Notava ella que os dois irmãos, sem parecerem ligar-lhe importancia, a
intromettiam todavia, e a meude, na conversação.

--Ouve isto, Nicolao; é de Grieg. Trouxe hoje a musica. Fecha a janella!

Abriu a partitura e acariciou as teclas de mansinho, com a mão
esquerda. As cordas entraram a vibrar em accordes indolentes e pesados.

Houve primeiro um profundo suspiro, depois outra nota veio juntar-se
ás primeiras, n’uma forte e tremente amplidão de som. A mão direita
entrou então em resonancias claras, em gritos parecidos com os de uma
ave assustada; balanceou-se depois, em cadencia, imitando o palpitar
das azas no fundo sombrio das notas graves, que cantavam, harmoniosas e
compassadas, quaes vagas batidas pela tempestade. Em resposta á canção,
vinham logo caudaes de accordes soturnos, chorando com dôr, suffocando
queixumes, implorações, gemidos, tudo fundido n’um rythmo de angustia.
Por vezes, como n’um impulso de desespero, a melodia soluçava,
desfallecida; mas logo recaía, rastejando, hesitante, sob a torrente
espessa e cascadeante das notas cavas, e afogava-se, sumia-se, para de
novo reaparecer por entre o ribombar igual e monotono; tomava alento,
então vibrava e dissolvia-se por fim n’um poderoso martelar de notas
humidas que toda a salpicavam, e ficava a suspirar sem cansaço, com a
mesma força e a mesma resignação...

Ao principio, a música não impressionou Pélagué; não a compreendia;
era para ella como um cáos de sonoridades. O ouvido não lhe permittia
distinguir a melodia na palpitação complexa d’aquella alluvião de
notas. Meio somnolenta, fitava Nicolao, sentado no outro extremo do
canapé, com as pernas dobradas por debaixo do corpo; considerava tambem
o severo perfil de Sophia, de cabeça inclinada, sob o velo espesso dos
seus cabellos d’oiro. Ia pôr-se o sol. Um raio tremulo nimbou primeiro
a cabeça, o hombro da pianista; depois, deslisando para o teclado,
brincou-lhe entre os dedos. Toda a sala estava cheia d’aquella melodia,
e o coração da mãe despertava emfim, sem que ella mesma o percebesse.
Succediam-se, entretanto, trez notas vibrantes como a voz de Fédia
Mazine, regularmente e sustentando-se mutuamente á mesma altura, taes
trez peixes de prata fluctuando n’um regato, scintillando por entre a
torrente dos sons...

De vez em quando, outra nota mais vinha juntar-se ás primeiras, e,
todas ao mesmo tempo, entravam a cantar uma canção ingenua, triste
e acalentadora. E Pélagué começava a poder seguil-as, esperando que
voltassem, não escutando outra coisa, abstraíndo-as do cáos inquietador
da harmonia geral, que pouco a pouco ia deixando de ouvir...

E subitamente, das negruras remotas do seu passado, veio-lhe a
recordação d’uma humilhação esquecida havia muito, mas que ressuscitava
agora com nitidez cruel.

De uma vez, o marido voltára-lhe para casa tardíssimo e completamente
embriagado. Puxára-a pelo braço, atirára-a da cama e enchera-a de
pontapés, regougando:

--Vae-te d’aqui, canalha, que não te posso aturar!... Vae-te!

Para se esquivar aos maus tratos, tomára precipitadamente nos braços
o filho, que então tinha dois annos, e, firmando-se nos joelhos,
protegia-se com o corpinho do innocente, como se fôsse um escudo. O
pequeno chorava, barafustava, com medo, nu, e quentinho do berço.

--Vae-te d’aqui! rugia Mikhaíl.

Ella saltára da cama, descalça, correra á cosinha; então, atirando uma
camisola para os hombros e embrulhando a criança n’um chale, sem uma
palavra, sem um queixume nem uma exortação, com os pés no lagedo, saíra
para a rua. Era em maio, a noite ia fresca; a frigida terra da calçada
collava-se-lhe aos pés, penetrando-a toda, regelando-a.

A criança chorava sempre e debatia-se. Desnudára o seio, conchegou a
si o pequeno; e, instigada pelo medo, lá se foi pelas ruas escuras,
cantando baixinho para adormecer o filho. Ia despontar o dia; Pélagué
toda se envergonhava com a ideia de ser encontrada n’aquelle estado.
Desceu até á margem do pantano, sentou-se no chão debaixo de compacto
bosque de álamos... E para ali esteve muito tempo, disfarçada
na treva, com os olhos esgazeados fitos na escuridão, a cantar
timidamente para embalar o filho e o coração ultrajado. Subito, uma
ave negra, silenciosa, esvoaçára-lhe por sobre a cabeça e sulcára o
ceu, accordando-a. E a tremer de frio, erguera-se e lá voltára para
casa, a arrostar com o seu habitual terror das sevicias e das injurias
incessantes...

Pela ultima vez, ecoou um accorde sonoro, mas de indifferença e frieza,
que n’um suspiro se immobilisou no ambiente.

Voltou-se Sophia e a meia voz perguntou ao irmão:

--Gostas?

--Muito! respondeu, estremecendo como se saísse d’um sonho; muito!...

Os dedos de Sophia desfiaram então um harpejo suave e harmonioso.

No intimo do seu peito, Pélagué escutava ainda o echo debil e tremente
das suas recordações. O seu desejo era que a musica proseguisse. E um
pensamento germinava n’ella:

--Ora aqui está uma gente que vive socegada... o irmão, a irmã... muito
amigos... Entretêem-se com a musica... Não dizem palavradas, não bebem
aguardente, não questionam por qualquer futilidade... nem pensam sequer
em offender-se um ao outro, como se faz entre toda a gente de baixa
extracção...

Sophia, entretanto, fumava um cigarro. Fumava muito, quasi sem descanso.

--Era este o trecho favorito do pobre Kostia! disse, aspirando com
força uma fumaça, e assentou de novo a mão, n’um debil accorde triste.
Como eu gostava de lh’o tocar! Era tão intelligente! Nada havia que não
compreendesse... O espirito d’elle era accessivel a tudo.

--É do marido que fala, pensou a hospede. E sorriu.

--Quanta felicidade elle me trouxe! continuou Sophia em voz baixa, ao
passo que acompanhava os seus pensamentos com leves accordes repetidos.
Como elle sabia viver bem!... Sempre alegre, de uma alegria infantil,
cheia de vida, que todo o illuminava...

--Infantil! repetiu a mãe comsigo mesma.

--É verdade, disse Nicolao, revolvendo a barbicha, uma alma de
illuminado!

Sophia atirou fóra o cigarro ainda acceso, voltou-se para Pélagué,
perguntou:

--Esta bulha não a incommoda?

--Já lhe disse que não se importe comigo, respondeu ella com um ligeiro
despeito que não poude disfarçar. Eu nada percebo d’isso... Estou aqui
quieta, a escutar e a pensar...

--Não, senhora, é preciso que compreenda! replicou Sophia. Uma mulher,
principalmente quando está triste, não póde deixar de compreender a
musica...

E pulsou as teclas com força. Resoou um grito violento, como se a
alguem acabassem de dar uma d’estas noticias terriveis, das que ferem
em pleno coração e arrancam um dolorido queixume. Entraram então a
vibrar umas vozes frescas que, logo, horrorisadas e desconcertadas
fugiram velozmente, não se sabia para onde; de novo, ecoou uma outra
voz sonora e irritada, abafando todo o conjunto... Era com certeza
uma desgraça, mas desgraça que incitava coleras, não gemidos. Depois
outra voz energica mas reconfortante entrou a entoar uma canção bonita
e simples cheia de persuasão, de incitamento. Surdamente, em tom de
melindre, as vozes dos graves murmuravam...

Sofia tocou por muito tempo ainda. Pélagué sentia-se perturbada. Todo
o seu desejo era perguntar o que significava tal musica, que assim
fazia germinar n’ella imagens indistinctas, sentimentos, pensamentos
mutaveis sem cessar. O pezar e a angustia cediam o logar perante
as scintillações d’uma serena alegria; dir-se-ia que um bando de
invisiveis passarinhos redemoinhasse pela sala, acariciando as almas
com o perpassar das delicadas azas, contando gravemente alguma coisa
que provocasse instinctivamente o curso do pensamento com palavras
incompreensiveis, acalentando os corações com esperanças vagas,
enchendo-os de força e de vigor.

E Pélagué sentia o ardente desejo de dizer o que quer que fôsse meigo
aos seus companheiros. Sorria ternamente, enebriada por aquella música.

Procurou com a vista o que poderia fazer; ergueu-se, e nos bicos dos
pés, foi para a cosinha dispôr o samovar.

Mas o desejo de se tornar util não se lhe extinguiu, continuava a
pulsar-lhe no coração com obstinada regularidade; serviu depois o chá
com um sorriso de embaraço e de commoção, com a alma banhada em tepidos
effluvios de sollitude que ella partilhava por igual entre si e os seus
companheiros.

--Nós cá, gente do povo, explicou, sentimos tudo, mas é nos
difficil exprimil-o, não podemos formar senão ideias incertas; e
envergonhamo-nos de não podermos dizer o que se sente. E quantas vezes,
para falar com consciencia, a gente não se zanga com as proprias
ideias e com aquelles que nol-as suggerem! Entramos a irritar-nos e
afugentamol-as! Em que agitações se passa esta vida! É ella que por
todos os lados nos assalta e nos magoa. Era tão bom descansar!... mas
os pensamentos não deixam á alma um só momento de repouso e ordenam-lhe
que veja, que oiça.

Nicolao escutava-a, com approvações de cabeça; limpava os óculos
com movimentos saccudidos; Sofia encarava fixamente aquella mulher,
esquecida do cigarro, que se apagára. Continuava sentada ao piano, e
de vez em quando afagava o teclado. Accordes muito brandos acompanhavam
assim as considerações da anciã, a qual se deu pressa em revestir os
seus pensamentos intimos com palavras da mais simples sinceridade.

--Agora, posso falar um pouco de mim propria e dos meus... porque
já compreendo a vida, e comecei a conhecel-a quando pude comparar.
D’antes, não tinha pontos de comparação. Na nossa classe, todos levam
vida igual. Hoje, que vejo como vivem os outros, lembro-me de como
eu vivi e custa-me muito o recordal-o... Emfim, é impossivel voltar
atraz; e mesmo quando o pudessemos fazer, não encontrariamos uma nova
mocidade...

Baixou a voz; proseguiu:

--Talvez eu esteja dizendo coisas insensatas ou nescias, pois que o
senhor e sua irmã devem conhecer tudo isto... mas vejam que é de mim
que estou falando e que falo a quem teve a bondade de me chamar para o
seu lado.

Tremiam-lhe na voz lagrimas de grata felicidade; fitou-os a ambos com
um olhar muito risonho e continuou:

--Queria abrir-lhes a minh’alma para que vissem todo o bem que lhes
quero.

--Mas nós bem vêmos! disse Nicolao com bondade. E sentimo-nos felizes
por têl-a na nossa companhia.

--Sabem o que isto me parece? interrogou ella, sempre com voz sumida,
risonha, parece que foi um tesoiro que eu achei, que estou rica, que
posso presentear toda a gente... Isto é talvez um effeito da minha
tolice...

--Não diga tal! interrompeu com gravidade Sofia.

Não era para acalmar de pronto aquella sêde de expansão; continuou
portanto Pélagué a falar-lhes de tudo o que para ella era novo e lhe
parecia de inapreciavel importancia. Contou-lhes a sua miserrima vida
cheia de humilhações e resignado soffrer; por vezes, interrompia-se;
julgava ter-se afastado de si mesma e estar falando de si como o faria
de qualquer outra...

Sem rancor, em termos correntios e nos lábios sorriso de piedade,
desenrolou em presença de Nicolao e da irmã a monotona e lugubre
história dos seus tristes dias, enumerado os maus tratos infligidos
pelo marido, intimamente admirada, ella própria, da futilidade
dos pretextos que os provocavam, admirada por não ter sabido
esquivar-se-lhes...

Attentos e silenciosos, Nicolao e Sofia escutavam-na; sentiam-se
esmagados pela significação profunda d’aquella historia, d’aquelle
ente humano tratado como um animal e que passára tanto tempo sem
sentir a injustiça da sua condição, sem um murmurio. Eram milhares de
vidas a falar pela bocca d’aquella mulher. Tudo n’esta existencia era
banal e indifferente, mas havia pelo mundo innumeravel quantidade de
creaturas avergadas áquelle modo de vida... E, avantajando-se mais e
mais nos seus raciocínios, aquella história assumia as proporções d’um
símbolo... Nicolao, com os cotovellos sobre a mesa, a cabeça entre as
mãos, quedava-se immovel, considerando a sua hospede por detraz do
vidro dos óculos, com os olhos piscando de attenção. Sofia, reclinada
no espaldar da cadeira, sentia-se estremecer, murmurava de quando em
quando o que quer que fôsse, abanando a cabeça negativamente. Deixára
de fumar; o seu rosto parecia agora mais magro ainda, e mais pálido.

--Um dia, começou ella, em voz baixa, senti-me muito infeliz;
parecia-me que toda a minha vida nada mais era do que um delírio de
febre. Estava eu então no desterro, n’uma miseravel povoação da
provincia, onde nada tinha a fazer, ninguem em quem pensar, a não ser
em mim propria... Para occupar este ocio, puz-me a fazer a conta das
minhas infelicidades, recordando-as todas: ficára de mal com meu pae,
a quem estimava, fôra expulsa do collegio por lêr livros proíbidos; em
seguida, fôra a prisão, a traição d’um companheiro a quem muito queria,
a captura de meu marido, outra vez a prisão e o degredo, a morte
d’elle... E então parecia-me que a mais desgraçada creatura de toda a
terra era eu... Mas todos os meus males justapostos e decuplicados, não
chegam a valer um mez da sua vida, pobre mulher... não! Essa tortura de
todos os dias durante annos e annos... Onde vão os pobres buscar essa
força contra o soffrimento?

--Acabam por se habituar! respondeu ella, suspirando.

--E julgava eu conhecer o mundo! disse Nicolao, pensativo. E afinal,
quando não se trata só de impressões fragmentadas, quando não é já um
livro que nos fala, mas uma creatura em pessôa, como é horrivel! E
os pormenores são tambem horrorosos, os proprios nadas, cada um dos
segundos que formam um anno inteiro!...

E a conversa proseguia em voz baixinha. Mergulhada nas suas
recordações, Pélagué extraía do crepúsculo sombrio do seu passado
todas as injúrias mesquinhas e habituaes; ia compondo negro quadro de
mudo horror immenso, em que sossobrava a sua juventude de mulher. De
repente, exclamou:

--Ai, e eu aqui a palrar!... São horas de nos irmos deitar! É
impossivel contar tudo!

Nicolao inclinou-se diante d’ella mais do que costumava e apertou-lhe
com mais força a mão. Sofia acompanhou-a á porta do quarto, e ali,
parando, murmurou:

--Durma bem!... Boa noite!

Era caloroso o seu falar; envolvia n’um meigo olhar de caricia o rosto
de Pélagué... Esta agarrou-lhe em uma das mãos e, apertando-a nas suas,
respondeu:

--Quanto lhes agradeço!



IV


Quatro dias depois, apresentavam-se a Nicolao as duas mulheres
pobremente vestidas de saias de chita já usadas, de cajados na mão e
alforge ao hombro. Este trajo tornava Sofia mais baixa e dava-lhe á
fisionomia uma expressão de austeridade.

--Parece que passas a vida a jornadear de convento em convento!
disse-lhe o irmão.

E ao despedir-se d’ella, apertou-lhe a mão com energia. Mais uma vez,
notou a velha esta simplicidade e esta calma. Decididamente, não
eram pródigos de beijos nem de demonstrações de estima, e comtudo,
mostravam-se tão sinceros um para o outro, tão sollicitos para com os
estranhos! Porque nos meios onde Pélagué vivera, todos se beijavam
muito, todos se animavam com bonitas palavras, o que não impedia que se
mordessem como cães damnados.

Atravessaram as viandantes a cidade, alcançaram o campo e tomaram a
vasta estrada bem calcetada, orlada de velhas bétulas.

--Não estará cansada? inquiriu a mais idosa.

--Julga que não estou costumada a andar? Pois engana-se...

Jovialmente, por entre risadinhas, como se tratasse de travessuras
de criança, Sofia entrou de contar os seus feitos de revolucionária.
Vivera já com um nome supposto, servindo-se para isso d’um passaporte
falsificado; disfarçára-se para fugir aos espiões, transportára
para diversas cidades muitos quintaes de brochuras proíbidas. Tinha
arranjado a fuga a muitos companheiros exilados, acompanhára-os ao
estrangeiro. De uma vez, montára na sua própria casa uma imprensa
clandestina; e quando os gendarmes, sob denuncia do delicto, tinham
vindo proceder ás buscas, disfarçara-se ella de criada, minutos antes
d’elles chegarem e saíra, cruzando-se com os inquisidores já no limiar
do predio. Sem uma capa, com uma simples mantilha pela cabeça e de
amotolia de petroleo em punho, percorrera de outra vez a cidade de
extremo a extremo, sob um frio rigoroso, em pleno inverno. D’outra
occasião, porque se tivesse dirigido a casa de uns correligionarios,
n’uma cidade distante, ia a subir a escada quando percebeu que havia lá
policia, varejando. Era tarde para saír do prédio; bateu portanto com o
maior atrevimento, no andar de baixo. Entrou em casa de gente que não
conhecia, de mala na mão, e tratou de pôr a claro o acontecido.

--Os senhores podem denunciar-me se quizerem, mas não os julgo capazes
d’isso declarára ella convictamente.

Atrapalhadissimos, não fecharam os olhos toda aquella noite, julgando
a todo o momento que lhes vinham bater á porta. Comtudo, não a
denunciaram e, chegada a manhã, mangaram, como ella, com a polícia.
Tambem lhe acontecera vestir-se de irmã da caridade e fazer viagem
no mesmo compartimento e no mesmo assento do vagon em que ia um
espião encarregado de lhe seguir a pista, o qual, para fazer valer a
sua esperteza, se lhe puzera a contar como era que procedia em tal
diligencia. Estava certo o homem de que Sofia ia n’aquelle comboio, em
segunda classe: e a cada nova paragem, descia e commentava regressando
para o pé da pseudo religiosa:

--Não a vejo... Provavelmente vae a dormir. É que essa gente tambem
cansa... Levam uma vida tão dura... tal qual a nossa!

A outra ria com estas historias, olhava para Sofia com affecto. Alta
e magra, a joven senhora caminhava com passo leve mas firme; tinha os
pés fortes e bem feitos. Na maneira de andar, no falar, no proprio
timbre da voz, decidida se bem que um pouco baça, em toda a sua figura
esbelta, transparecia uma como bôa saude moral, uma audacia alegre, um
desejo de ar e de espaço, e os seus olhares para tudo se dirigiam com
uma expressão de juvenil contentamento.

--Olhe aquelle pinheiro tão bonito! exclamou, mostrando uma arvore á
sua companheira, que parou para vêl-a. Mas o pinheiro, afinal, não era
nem maior nem mais folhudo que os outros.

--É verdade, bonita arvore! repetiu, risonha.

--Olhe uma cotovia!

E os olhos pardos de Sofia brilharam de satisfação. Ás vezes, com
movimentos flexuosos, baixava-se, apanhava uma flôr e acariciava-lhe
amorosamente as petalas tremulas com o ligeiro contacto dos seus dedos
afusados e ageis. E trauteava canções meigas.

Pelo caminho, cruzavam-se com peões ou campónios empoleirados nas suas
carroçadas, que lhes diziam:

--A paz seja comvosco!

Brilhava um lindo sol primaveril; todo o vasto azul resplandecia;
aos dois lados da estrada, estendiam-se densas florestas de madeiras
resinosas, herdades de um verde muito vivo; cantavam passaros, o ar
tepido e perfumado acariciava brandamente as faces.

Tudo contribuia para approximar Pélagué d’aquella mulher de alma e de
olhos tão limpidos; e involuntariamente, chegava-se mais para ella,
esforçando-se por igualar a sua andadura pela d’ella. Comtudo, ás
vezes, destacava-se das frases de Sofia uma expressão demasiado viva,
demasiado sonora, que a Pélagué se afigurava superflua. Então, era
tomada de inquietação:

--Estou vendo que não vae agradar ao Rybine...

Mas um instante depois, Sofia voltava a falar com simplicidade,
cordialmente, e ella de novo a olhava com ternura.

--Como é nova ainda! suspirou.

--Ora! olhe que já tenho trinta e dois!

A outra riu.

--Não é isso que quero dizer... Á primeira vista parece ter mais
idade... mas quando se repara nos seus olhos, quando a ouvimos falar,
fica-se muito admirado, parece uma menina... A sua vida é desasocegada,
penosa, cheia de perigos... e todavia, tem o coração alegre...

--Não vejo em que a minha vida seja penosa, nem posso imaginar outra
mais interessante e melhor do que esta...

--E quem ha de recompensal-a dos seus trabalhos?

--Se já estamos recompensados! respondeu Sofia, em tom que á outra
pareceu denunciar fundo orgulho. Arranjámos uma existencia que nos
satisfaz; que mais havemos de desejar?

A mãe olhou para ella furtivamente e baixou a cabeça, repetindo a si
mesma:

--Não vae gostar nada d’ella, o Rybine...

Aspirando a plenos pulmões o ar tepido, as duas mulheres caminhavam em
passo lento mas firme. A Pélagué parecia-lhe que andava em romaria.
Lembrava-lhe aquillo a sua meninice e a pura felicidade que a animava
quando, nos dias de festa, partia da aldeia em direcção a algum
mosteiro, onde houvesse uma imagem milagrosa.

De vez em quando, Sofia entoava com a sua voz novas canções em que se
falava de amôr e do Ceu; outras vezes, punha-se de subito a declamar
estrofes celebres que celebravam os campos e as florestas, o Volga; e a
outra escutava-a, prazenteira, meneando, sem dar por isso, a cabeça ao
rythmo do verso, cuja melodia a enfeitiçava.

N’aquelle coração, tudo era paz, carinho e doçura, como n’um velho
jardinsinho, n’uma tarde de estio.



V


Ao terceiro dia, ao chegarem a uma aldeia, perguntou a mais velha das
duas a um trabalhador do campo onde ficava a fabrica do alcatrão. E
logo tiveram de descer por estreito atalho ingreme e agreste, qual
escada, onde as velhas raízes formavam degraus. Avistaram d’ali uma
clareirasinha circular atapetada de aparas de lenha e de carvão e onde,
aqui e ali, havia poças de alcatrão.

--Eis-nos chegadas! disse a velha, olhando em volta com desconfiança.

Junto a uma choça feita com estacas e algumas ramadas, jantavam
quatro operarios, em torno d’uma mesa feita com trez táboas em bruto
estendidas sobre umas estacas cravadas no solo. Eram elles: Rybine,
muito sujo, com a camisa aberta no peito, Jéfim e mais dois rapazes.
Rybine foi o primeiro que avistou as duas mulheres; quedou-se á espera,
em silencio, formando pala com a mão, para abrigar os olhos.

--Viva, irmão Mikhaíl! gritou-lhe de longe Pélagué.

Levantou-se então e veio-lhes ao encontro, mas sem se apressar. Ao
reconhecer quem lhe falava, deteve-se a acamar a barba.

--Andamos em romaria! disse ella, approximando-se mais. E fiz um rodeio
para vir vêr-te. Esta minha amiga veio comigo; chama-se Anna...

Contente com o seu achado, olhou de soslaio para Sofia. Esta permaneceu
séria e impassivel.

--Vivam lá, respondeu Rybine com um sorriso contrafeito. Apertou-lhe a
mão, cumprimentou Sofia e accrescentou:

--É inutil mentir; não estamos na cidade; aqui não são precisas
mentiras. Aqui só ha gente séria, todos nos conhecemos uns aos outros.

Jéfim, á mesa, onde continuava sentado, examinava com attenção as
recemvindas; segredou o que quer que fôsse aos seus commensaes.

Ao approximarem-se as duas, levantou-se, cumprimentou sem dizer uma
palavra. Os outros dois deixaram-se ficar, como se não tivessem dado
pelas viandantes.

--Vive-se aqui como presidiarios! proseguiu Rybine, batendo
familiarmente no hombro da sua conhecida. Ninguem vem vêr-nos, o patrão
não está na aldeia, a mulher d’elle lá está no hospital e eu sou agora
aqui uma especie de gerente... Sentem-se. Tomam chá? Ó Jéfim, vae
buscar o leite!

Vagarosamente, Jéfim encaminhou-se para a choupana, emquanto as duas
se desembaraçavam dos alforges. Um dos camponezes, um grande latagão
magro, levantára-se para as ajudar. O outro, atarracado e coberto
de farrapos, acotovelado sobre a mesa, olhava pensativo para ellas,
coçando a cabeça e trauteando baixinho. Aromas suffocantes de alcatrão
fresco casavam-se com o cheiro das folhagens apodrecidas, provocando
tonturas.

--Este chama-se Jacob, disse Rybine, apresentando o mais alto dos dois
operarios; aquelle é o Ignaty... E então o teu filho?

--Está na cadeia! gemeu a mãe.

--Outra vez! exclamou Rybine. Ao que parece deu-se bem por lá...

Ignaty deixára de cantarolar. Jacob tomou o cajado das mãos de Pélagué.

--Senta-te, tiasinha!

--E a senhora sente-se tambem, disse Rybine, dirigindo-se a Sofia.

Sem uma palavra, esta tomou assento em cima d’um fardo e poz-se a
examinar Rybine.

--E quando foi elle preso? perguntou este; e acrescentou com um abanar
de cabeça: Não tens sorte nenhuma, Pélagué!

--Que importa!

--Então, já te vaes costumando?

--Não, mas cheguei ao convencimento de que as coisas não pódem ir
d’outra fórma!

--Ora ahi está! disse Rybine. Conta, então...

Jéfim trouxe uma infusa de leite; o outro tomou de sobre a mesa uma
tigella, laviscou-a com um pouco d’agua e depois de a encher de leite,
empurrou-a para o logar de Sofia. Ia e vinha sem ruido, com precaução.
Depois da mãe ter finalisado a sua curta narrativa, todos ficaram
calados. Ignaty, que continuava á mesa, fazia gravuras nas taboas com
as unhas. Jéfim encostava-se ao hombro de Rybine. Jacob, de braços
cruzados no peito, baixava a cabeça. Sofia continuava a analysar as
caras d’aquelles campónios.

--Pois está visto! declarou Rybine, arrastando muito as sylabas.
Decidiram-se a proceder ás claras...

--Elles que viessem para cá com uma fantochada d’essas, declarou Jéfim,
que os moujiks dariam cabo d’elles!...

--Disseste que o Pavel vae ser julgado? perguntou Rybine.

--Sim, é coisa decidida, respondeu a mãe.

--E que pena póde elle apanhar... não sabes?

--Ou as galés ou o degredo para a Siberia, por toda a vida! respondeu,
baixando a voz.

Os outros trez operarios fitaram-na simultaneamente.

Rybine proseguiu:

--E quando elle se metteu n’esse negocio, sabia o que o esperava?

--Não sei... provavelmente.

--Sim, sabia-o! affirmou Sofia com decisão.

Calaram-se todos e ficaram-se como estaticos, mergulhados em um mesmo
pensamento consolador.

--Ora ahi está! continuou Rybine em tom de severa gravidade. Tambem
eu creio que o soubesse. É um homem sério; não se mette levianamente
n’essas coisas. Vejam lá companheiros. Sabia que o podiam espetar n’uma
baioneta ou que lhe davam as honras d’um presidio, e atirou-se para a
frente ainda assim! Era preciso que se atirasse--atirou-se! E se lhe
tivessem posto a propria mãe no caminho, passava-lhe por cima... não é
isto Pélagué?

--Com certeza... murmurou a mãe com estremecimento.

E depois de ter circumvagado o olhar em torno, soltou do peito profundo
suspiro. Sofia afagou-lhe com meiguice uma das mãos e teve para Rybine
um olhar de descontentamento.

--Aquillo é que é um homem? declarou elle a meia voz, fixando os
sombrios olhos nos companheiros. E novamente todos se quedaram
silenciosos. Pendiam da atmosfera tenues resteas de sol, como fitas
d’oiro. Perto d’ali grasnava um corvo. Os olhares de Pélagué vagueavam,
impressionada com as recordações do primero de maio, com a lembrança de
Pavel e de André. Pelo solo, na clareira exigua onde estavam, jaziam
barricas escangalhadas que tinham servido a alcatrão, madeiros sem
casca e com a fibra a desfiar-se; fluctuavam ao vento as aparas, em
longas fitas. Os carvalhos e as bétulas perfilavam-se em fila compacta;
por todos os lados, ganhavam insensivelmente o espaço da clareira como
para apagar, aniquilar todos aquelles destroços, toda aquella immundice
que os ultrajava, e, alliados no seu silencio, immoveis, projectavam no
solo as suas sombras negras e tragicas.

De subito, Jacob afastou-se da arvore a que se encostava, deu um passo
e logo parou para interrogar com voz forte e desabrida, abanando a
cabeça:

--E é contra gente d’essa que nos vão mandar a combater, o Jéfim e eu?

--Pois contra quem pensavas? retorquiu Rybine em tom frio. Andam a
esganar-nos com as nossas proprias mãos... É o cumulo!

--Pois assim como assim, prefiro ser soldado! declarou Jéfim com voz
indecisa.

--E quem te péga? exclamou Ignaty. Pois vae! E, fitando Jéfim,
acrescentou a rir:

--Em todo o caso, quando me apontares a espingarda, aponta á cabeça,
não me deixes estropiado... mata-me de vez!...

--Já me disseste isso! gritou Jéfim com desabrimento.

--Escutem, companheiros! proseguiu Rybine; e ergueu o braço n’um gesto
lento. Olhem para esta mulher!--e apontava para Pélagué.--O filho está
perdido; provavelmente...

--Porque dizes isso? perguntou a mãe, angustiada.

--Porque assim é preciso! Pois haviam os teus cabellos de embranquecer
em vão e o teu coração de soffrer inutilmente?... Tu ainda não
morreste, não é verdade?... Trouxeste livros?

A mãe lançou-lhe furtivo olhar e confirmou apóz um silencio:

--Trago.

--Ora ainda bem! disse Rybine, dando uma palmada na mesa. Percebi-o
logo mal te vi. E para que terias tu vindo, a não ser para isso? Vejam
lá vocês, o filho desappareceu-nos das fileiras, e ahi temos a mãe no
logar d’elle!

Ergueu-se e poz-se a gritar com voz cava e gestos ameaçadores:

--Essa canalha não sabe o que anda a semear por ahi, ás cegas! Hão
de ver, quando nós estivermos mais fortes, quando entrarmos a ceifar
n’essas hervas malditas! Hão de ver!

A estas palavras, toda se assustou Pélagué; olhou para Rybine, achou-o
muito mudado, muito magro; já não tinha a barba cuidada como d’antes,
mas emaranhada; distinguiam-se-lhe perfeitamente as saliencias dos
malares. No branco azulado dos olhos corriam-lhe laivos sanguineos,
como de quem anda mal dormido. O nariz afilára-se-lhe, mais carlaginoso
e adunco, qual bico de ave de rapina. Pelo cós da camisa, desabotoado,
d’antes sempre sujo de tintas e alcatrão, viam-se-lhe as claviculas
mirradas e o denso velo do peito. Toda a pessoa d’este homem respirava
alguma coisa mais soturna e melancólica do que o fôra até então. O
brilho dos exaltados olhos illuminava-lhe o rosto sombreado por uma
expressão de soffrimento e de rancor, que relampejava em purpureos
clarões.

--No outro dia, continuou elle, o governador do districto manda-me
chamar e pergunta-me:

«--Que fôste tu dizer ao padre, grande garoto?--E porque é que eu
sou garoto? Ganho o meu sustento com o meu trabalho, não faço mal a
ninguem,» respondi-lhe eu. Pôz-se logo a berrar e deu-me um murro em
cheio na cara... e mandou-me para o calaboiço por trez dias. Ah! assim
é que vocês sabem falar ao povo? Está bem! Mas não esperem pelo perdão,
excommungados! Se não fôr eu, outro ha de lavar a injuria, em vocês
ou nos filhos de vocês... lembrem-se bem! Andaram a lavrar no peito do
povo com as garras de ferro da avidez e da cubiça e n’elle semearam a
maldade... Pois seremos sem piedade, malditos! Ahi tem!

Espumava de furor; na voz tinha impetuosidades que amedrontavam Pélagué.

--E afinal que tinha eu dito ao padre? proseguiu mais calmo. Á saída
d’uma reunião, estava elle na rua n’um grupo de camponeos e dizia-lhes
que os homens eram um rebanho e que precisavam sempre d’um pastor...
ahi está! E eu disse-lhe por brincadeira: «Se fizessem a raposa chefe
da floresta, pennas havia de haver muitas, mas passaros, nem um!» O
padre olhou-me de revez e entrou a dizer que o povo devia soffrer,
resignar-se e orar a Deus com mais frequencia, para que elle lhe desse
forças para tudo supportar. E eu respondi-lhe: «O povo reza muito;
provavelmente Deus é que não tem tempo para escutal-o. Se nem o ouve!»
Ora ahi está! Elle então perguntou-me quaes eram as minhas orações. E
eu respondi-lhe: «Não aprendi senão uma só na minha vida; é a do povo
inteiro:» Deus, ensina-me a trabalhar para os nossos senhores, a comer
pedras, a escarrar sangue! O padre não me deixou acabar... A senhora é
da nobreza, ao que vejo? perguntou bruscamente Rybine, interrompendo a
narrativa e voltando-se para Sophia.

--Porque julga isso? disse ella com um sobresalto de surpreza.

--Ora, porquê... disse Rybine. É sorte sua, nasceu assim, ahi está! A
senhora imagina que póde disfarçar o seu peccado de fidalguia só porque
tapou a cabeça com um lenço de chita? O padre conhece-se bem, mesmo
quando não traz corôa... Agora acaba a senhora de pôr o cotovello na
mesa, que estava molhada e a senhora fez uma carêta... E olhe que tem
as costas muito aprumadas para uma operaria...

Receando que elle offendesse Sofia com aquella maneira de falar,
aquelles ditos e aquella graça pesada, Pélagué interveio com viveza e
severamente:

--É minha amiga esta senhora. É uma excellente mulher... Foi a
trabalhar por nós e pela nossa causa que fez os cabellos brancos... Não
sejas tão desabrido com ella...

Rybine soltou um suspiro mal contido.

--Então eu disse-lhe alguma coisa injuriosa?

Sofia olhou para elle e perguntou seccamente:

--Tinha alguma coisa a communicar-me?

--Eu? Ah, sim! Ahi tem: nós temos cá um homem que chegou ha dias; é
primo do Jacob, está doente, está tisico, mas é esperto e percebe muita
coisa. Posso mandar chamal-o?

--Porque não? retorquiu Sofia.

Rybine fitou-a franzindo as palpebras e ordenou em voz baixa:

--Jéfim, vae a casa do homem... diz-lhe que venha cá á noite.

Jéfim dirigiu-se á choupana, poz o boné e sem uma palavra, sem mesmo
olhar para quem estava, sumiu-se pelo bosque, a passo socegado. Rybine
meneou a cabeça e, apontando para elle, disse surdamente:

--Soffre muito!... É teimoso... Dentro em pouco vae ser soldado... E o
Jacob tambem... O Jacob diz que não póde, que não vae para o regimento.
O Jéfim tambem não póde, mas diz que quer ir, custe o que custar...
Teve uma idéa... Lembrou-se que poderá levar aos soldados pruridos de
liberdade... Eu cá, a minha opinião é que não se póde arrombar uma
parede dando-lhe com a cabeça. E elles, mettem-lhes uma espingarda na
mão e abalam por ahi fóra. Para onde vão? Não percebem que marcham
contra si mesmos... Anda a soffrer, o Jéfim. E o Ignaty ainda mais lhe
revolve o punhal na ferida. Parece-me inutil...

--Qual historia! replicou Ignaty com indignação, sem fitar o seu
contendor. Lá no regimento se encarregam de o converter, e ha de acabar
por fazer fogo, como os outros!

--Não, não creio! replicou o outro, pensativo. Mas, seja como fôr, mais
vale evitar isso... A Russia é grande... Como podem elles descobrir um
homem? É preciso arranjar um passaporte e fugir de aldeia em aldeia.

--São essas as minhas tenções! declarou Ignaty, batendo na perna com
uma acha. Uma vez que está resolvido combater-se, é preciso marchar sem
hesitação.

A conversa cessou. Voltavam pelo ar, atarefadas, as abelhas e as
vespas, esmaltando o silencio com os seus zunidos. Os passarinhos
chilreavam; de longe, vinha uma canção n’uma toada que vagueava por
sobre os campos. Depois de curto silencio, proseguiu Rybine:

--É preciso trabalhar, companheiros... Ou talvez prefiram descançar...
Lá dentro da choupana ha camas a lastro. Ó Jacob, vae-lhes arranjar
folhas bem sêccas... E tu, dá cá os livros, tiasinha! Onde estão?

Sofia e Pélagué abriram os alforges. Rybine inclinou-se a espreitar e
disse, satisfeito:

--Ahi está... Mas que grande quantidade trouxeram! Ora venham vêr!
Ha muito tempo que trabalha n’este negocio, a senhora? acrescentou,
falando com Sofia.

--Ha doze annos.

--Então, como se chama?

--Chamo-me Anna Ivanovna. Porquê?

--Cá por coisas. E já esteve presa provavelmente?

--Já estive.

--Bem vês! disse Pélagué, baixo e em tom de censura. E tu que a
trataste mal...

Ficou calado um momento. Depois, tomando um pacote de livros, respondeu:

--Não se zangue! Campónio e fidalgo são como o alcatrão e a agua, não
ha maneira de os misturar, não se dão...

--Não sou fidalga; sou uma creatura que pensa, que soffre e geme!
contestou Sofia.

--É possivel! disse Rybine. Vou esconder tudo isto.

Ignaty e Jacob approximaram-se d’elle, de mãos estendidas.

--Dá-nos alguns! disse Ignaty.

--São todos iguaes? perguntou Rybine a Sofia.

--Nem todos. Vem tambem um jornal...

--Ah!

Os tres homens precipitaram-se para a cabana.

--É exaltado, este rapaz! observou Pélagué, baixando a voz e
seguindo-os com olhar pensativo.

--É verdade, disse Sofia no mesmo tom. Nunca vi uma cara como
aquella... Dir-se-ia um martyr heroico!... Vamos lá tambem; estou
curiosa por ver o effeito do jornal.

--Mas não se zangue com elle... supplicou brandamente a outra.

--Que bom coração é o seu, Pélagué!

Ao ver surgir as duas mulheres á porta da choupana, Ignaty levantou a
cabeça e lançou-lhes rapido olhar; depois, enterrando os dedos pelos
cabellos annelados, curvou-se de novo sobre o jornal, que desdobrára
nos joelhos. Rybine, de pé, apresentava o periodico á luz d’uma restea,
que penetrava na choupana por uma greta do tecto; ia deslocando pouco
a pouco o jornal sob o feixe de luz, á medida que ia lendo e lia por
bocca pequena. Jacob, ajoelhado, firmava o peito de encontro á borda
d’uma cama e lia tambem.

Pélagué viu que a Sofia não passava despercebido o enthusiasmo dos
trez por aquellas palavras de verdade. O rosto illuminou-se-lhe n’um
sorriso. Devagarinho, foi para um canto da choça e sentou-se. Sofia, em
silencio, passou-lhe o braço pelos hombros.

--Tio Mikhaíl! Olhe que nos insultam, n’este papel, a nós, camponezes!
proferiu Jacob a meia voz, sem se mexer. Rybine voltou-se para elle e
disse, risonho:

--É porque nos estimam. Aquelles que nos amam podem dizer-nos tudo o
que quizerem sem que nos irritemos.

Ignaty respirou ruidosamente, ergueu a cabeça e poz-se a rir; em
seguida, fechou os olhos, dizendo:

--Está aqui escripto: «O homem dos campos deixou de ser uma creatura
humana.» E é bem verdade; já o não é!

Perpassou pelo seu rosto ingenuo e franco uma expressão de aviltamento.

--Este sabio das duzias! continuou, referindo-se ao articulista. Eu
queria vêr-te na minha pelle! Fizesses-te tu fino! Então é que se havia
de vêr o que tu eras!

--Vou descansar um bocado, disse Pélagué a Sofia. Sinto-me um pouco
fatigada e este cheiro do alcatrão faz-me dôres de cabeça. Vem?

--Ainda não.

Pélagué estendeu-se na cama e d’ahi a pouco dormitava. Sofia, sentada á
cabeceira, continuava observando os leitores, ao passo que ia enxotando
com sollicitude os zangãos e as vespas que vinham adejar em volta do
rosto da companheira. Pélagué, com os olhos meio cerrados, percebia-o e
taes attenções impressionavam-na.

Rybine approximou-se, perguntou:

--Está a dormir?

--Está.

Elle calou-se um pedaço, attentou no sereno rosto da anciã e com um
suspiro proseguiu baixinho:

--É talvez esta a primeira que tenha seguido o filho pelo mesmo
caminho!... a primeira!

--Vamo-nos embora, não a incommodemos, propoz Sofia.

--Temos de ir trabalhar. Eu preferia ficar a conversar comsigo, mas é
forçoso deixar isso para a noite. Vamos, camaradas!

Saíram os trez homens, deixando Sofia na choupana. Pélagué pensava:

--Deus seja louvado! fizeram as pazes!... Entendem-se um com o outro!...

E adormeceu socegadamente, aspirando o ar perfumado da floresta.



VI


Á noitinha, voltaram os quatro operarios, satisfeitos por verem
terminado o seu dia. Ao ruido das vozes, Pélagué, accordou, veio á
porta da cabana, risonha, bocejando.

--Vocês a trabalharem e eu a dormir como uma fidalga! disse, fitando-os
affectuosamente a todos.

--Não faz mal, nós perdoamos-te, disse Rybine.

Mostrava-se mais socegado do que ao jantar; o cansaço dissipára o seu
excesso de agitação.

--Ignaty! ordenou. Arranja a ceia. Cada um trata da casa, por sua vez.
Hoje é ao Ignaty que compete dar-nos de comer e de beber... Ora ahi
está!

--De bom grado cedia hoje a minha vez a outro qualquer, declarou
Ignaty. E, emquanto procurava distinguir a conversa, começou a apanhar
aparas, afim de accender o lume.

--As visitas são sempre interessantes para toda a gente! confirmou
Jéfim, sentando-se ao lado de Sofia.

--Eu te ajudo, Ignaty! disse Jacob.

Penetrou na choça e de lá trouxe um pão redondo. Partiu-o em fatias.

--Schiu! murmurou Jéfim, oiço tossir...

Rybine apurou o ouvido e disse:

--É elle que chega.

E, voltado para Sofia, explicou:

--Vae ouvir uma testemunha. A minha vontade era poder leval-o a essas
cidades, pôl-o em exposição por essas praças, e o povo que fôsse
ouvil-o... Diz sempre o mesmo, mas é digno de ser ouvido!...

Silencio e escuridão tornavam-se mais profundos; as vozes ecoavam com
mais suavidade. Sofia e Pélagué seguiam com o olhar os camponezes a
moverem-se pesadamente, mas de vagar, com singular prudencia.

Do bosque surgiu um homem corcovado, de alta estatura, caminhando
apoiado com todo o seu peso a uma bengala. Ouvia-se-lhe o ruido da
respiração rouca.

--Ahi vem o Savely! exclamou Jacob.

--Aqui me têm! disse o homem, parando, saccudido por um accesso de
tosse.

Vestia um sobretudo usado que lhe cahia até aos pés; de sob o chapeu
redondo e muito velho, saíam-lhe em madeixas ténues uns cabellos
amarellentos e asperos. Cobria-lhe o rosto ossudo e pallido uma barba
loira; a bocca aberta, os olhos com um brilho de febre, nas orbitas
profundamente cavadas, como no fundo de sombrias cavernas.

Apresentado a Sofia, perguntou:

--Segundo parece, trouxe livros para o povo lêr?

--Sim, senhor.

--Agradeço-lh’o... pelo povo. O povo não pode ainda compreender o livro
da verdade... ainda não póde agradecer-lhe como merece; mas eu que o
compreendi já, agradeço-lhe em nome do povo.

Respirava com avidez, absorvendo o ar em pequenas golfadas repetidas.
Falava a espaços.

Os dedos descarnados das diafanas mãos, perpassava-os pelo peito,
tentando abotoar o sobretudo.

--Póde ser-lhe doentio, para si, este passeio tão tarde, pela
floresta... Ha muita humidade e suffoca-se, ali! fez notar Sofia.

--Para mim já nada ha salubre ou doentio! respondeu, offegante. Só a
morte será bemvinda.

Era doloroso ouvir falar aquelle homem, tanto mais que toda a sua
pessoa provocava dó, uma compaixão infinita mas improficua. Agachou-se
sobre uma barrica, dobrando os joelhos com precaução, como se receasse
que se quebrassem; depois, enxugou a fronte, coberta de suor. Tinha os
cabellos seccos e sem viço.

O lume começava a atear-se. Ao clarão das chammas tudo se deslocou; as
sombras, lambidas pelas labaredas, fugiam assustadas pela floresta. Por
cima do brazeiro appareceu por instantes a cara redonda d’Ignaty, a
soprar. Depois, apagado o lume, ficou persistente o cheiro do fumo, e o
silencio e as trevas apoderaram-se de novo da clareira, como se viessem
apurar o ouvido para o falar rouco do doente.

--Mas ainda posso ser util ao povo... Sim, como o testemunho d’um
enorme crime! Olhem para mim! Tenho vinte e oito annos e ando a
morrer... Ha dez annos, levantava nos hombros, sem me custar, até
duzentos kilos... Pensava eu então que com uma saude d’aquellas, havia
de levar setenta annos para chegar á cova, direito e sem tropeçar... E
afinal vivi dez... e não posso ir mais longe.

--Ahi têm a canção d’este homem! disse Rybine com voz rancorosa.

Reaccendeu-se mais viva a fogueira; de novo as sombras debandaram,
para se sumirem nas chammas, agitando-se em torno do brazeiro n’uma
dansa silenciosa e hostil. Sob a mordedura do lume, os velhos troncos
estralejavam e gemiam. A folhagem susurrava em segredo, agitada por uma
corrente d’ar quente. Vivas e folgazãs, as linguas de fogo purpureas e
doiradas brincavam, abraçavam-se, erguiam-se, despedindo faíscas. Voou
uma folha em braza. No ceu, as estrellas sorriam para as scentelhas,
attraíndo-as a si.

--Não é só minha esta canção; ha milhares de creaturas que tambem a
cantam, mas só para si! E cantam-na só para si porque não compreendem
que as suas miseraveis existencias são uma lição salutar para o povo...
Quantos seres minados ou estropiados pelo trabalho e pela cadeia, não
morrem para ahi de fome, sem um queixume!... É preciso gritar bem alto,
companheiros, é preciso gritar!

E Savely entrou a tossir, todo curvado e tremulo.

Jacob poz na mesa uma caneca de _koass_[2] e atirou para o lado um
molho de cebolas, e disse ao enfermo:

--Anda, Savely, trouxe leite para ti.

O outro abanou negativamente a cabeça; mas Jacob agarrou-o por debaixo
dos braços e fêl-o sentar á mesa.

--Oiçam, disse Sofia a Rybine, em voz baixa e em tom de censura, para
que o obrigaram a vir? Póde morrer d’um momento para o outro.

--É certo, replicou Rybine. Mas mais vale morrer rodeado de amigos;
ser-lhe-á menos doloroso do que na solidão. Tem soffrido muito na sua
vida; pois que soffra ainda mais um pouco para servir de aviso aos
homens... Que lhe póde fazer isso? Ali está!

--Chega a parecer que se desinteressa d’elle com horror pelos seus
soffrimentos, exclamou Sofia.

Rybine lançou-lhe rapido olhar e respondeu com modos sombrios:

--Só os fidalgos é que se recreiam com o espectaculo do Christo a gemer
na sua cruz; mas nós outros, nós queremos estudar os homens ao vivo e
gostavamos que a senhora tambem apprendesse a conhecel-os...

O enfermo retomou a palavra:

--Destroe-se um homem com o trabalho, dá-se cabo d’elle com a prisão...
e porquê? O nosso patrão--era na fabrica Nefédof que eu trabalhava á
doida--o nosso patrão deu a uma cançonetista uma grande bacia de mãos e
mais uma bacia de cama tudo de oiro... E foi em tal vaso que ficaram as
nossas forças, as nossas vidas... as minhas e as de milhares d’outros.
Ahi têem para que ellas serviram!

--O homem foi creado á imagem e semelhança de Deus! disse Jéfim,
sorrindo--e ahi está o emprego que lhe dão... não vae mal!

--É necessario gritar isso! exclamou Rybine com violenta palmada na
mesa.

--Não devemos supportal-o! accrescentou Jacob mais baixo.

Ignaty limitou-se a sorrir.

Notava a velha que os trez operarios falavam pouco, mas escutavam com
uma attenção insaciavel d’almas sequiosas. De cada vez que Rybine abria
a bocca, fitavam-no, copiavam-lhe os menores movimentos. As frases
de Savely, porém, provocavam-lhes singulares tregeitos de enfado.
Dir-se-ia não sentirem dó algum do enfermo.

E Pélagué inclinando-se ao ouvido de Sofia, perguntou baixinho:

--É certo o que elle conta?

Sofia respondeu em voz muito alta:

--É certo, sim senhora! Os jornaes falaram do caso; foi em Moscou que
isso se deu.

--E esse homem não foi castigado! disse Rybine com ódio. Devia ter sido
punido; precisava que o levassem a uma praça publica e ali cortal-o aos
bocados, atirando aos caes essa carne immunda! Grandes castigos se hão
de vêr, quando o povo se levantar!

--Que frio que faz! disse o tisico.

Ajudou-o Jacob a levantar e a chegar-se para o lume.

A fogueira ardia em clarão uniforme e vivo. Sombras imprecisas
erravam em torno, contemplando surprezas o brinquedo das labaredas.
Savely, sentou-se n’um cepo e offereceu ao calor as mãos seccas e
transparentes. Rybine designou-o com um gesto do mento, e disse para
Sofia:

--Sabe mais do que um livro! Eu é que o conheço... Quando uma máquina
arranca um braço ou mata um homem, compreende-se; é sempre do homem a
culpa. Mas sugar o sangue d’um homem e atira-lo depois á margem como
uma coisa pôdre, isso é que não se explica.

--Sim... pronunciou com lentidão Ignaty, não se explica... Um chefe de
districto conheci eu, que obrigava a gente do campo a cumprimentar-lhe
o cavallo, quando o levavam a passeio pela aldeia, e que punha a ferros
quem desobedecesse. Para que lhe servia aquillo?... É o que tambem não
se explica!

Depois de comerem, fizeram roda junto á fogueira. Diante d’elles
o lume ardia, devorando rapidamente a lenha; por detraz, ceu e
floresta envolviam-se na treva. O estropiado fixava no lume os olhos
esgazeados, tossia sem descanso, com grandes arrepios. Parecia que do
peito lhe saíam pedaços da propria vida, solertes em abandonar aquelle
corpo esqualido. Dansavam-lhe no rosto reflexos do fogo sem que lhe
colorissem a pelle fenecida. Só os olhos scintillavam n’uma coruscação
azulada, bruxuleante.

--Talvez preferisses abrigar-te na cabana, an, Savely? lembrou Jacob,
inclinando-se-lhe no hombro.

--Para quê? respondeu esforçadamente. Quero ficar aqui. Já não tenho
muito tempo a viver entre os homens... Não, não tenho para muito tempo.

Vagueiou o olhar em volta, ficou um bocado calado e proseguiu, com um
sorriso palido:

--Sinto-me bem entre vocês. Estou-os vendo e estou a pensar que talvez
sejam vocês que hão de vingar todos os que foram maltratados... o povo
inteiro!

Ninguem lhe respondeu. E d’ahi a pouco, a cabeça pendia-lhe para o
peito e entrou a dormitar. Rybine considerou-o demoradamente e disse
meio em segredo:

--É sempre assim quando vem visitar-nos; senta-se para ahi e conta
sempre a mesma coisa.

--Aborrece ouvil-o repetir-se! murmurou Ignaty. Bastava ouvir uma vez
essa historia para não a esquecer e elle sempre a moêl-a!

--É que para elle, n’essa historia, tudo se resume, a sua vida inteira,
compreende-o bem! justificou Rybine, soturno. E da mesma sorte a vida
de toda uma legião de seres. Ouvi-lhe essa historia dezenas de vezes
já, e, ainda assim, acontece-me ter certas dúvidas. Ha horas de bondade
em que a gente se recusa a crêr na vilania do homem, ou na sua loucura,
e em que se sente compaixão por todos, ricos e pobres... porque o rico
tambem é um transviado do bom caminho. A um cega-o a fome, ao outro, o
dinheiro... E então, a gente pensa:

«Homens, meus irmãos! Desentorpeçam esses raciocinios, reflictam com
lealdade, reflictam bem».

O doente oscilou estremunhado, abriu os olhos e deitou-se sobre a
terra. Sem ruido, Jacob levantou-se, foi á cabana buscar um pequeno
agasalho de pelles, e estendeu-lho por cima. Depois, retomou o seu
logar ao lado de Sofia.

Ás vozes dos homens misturavam-se o surdo crepitar da lenha e o
murmurio das labaredas; e aquelle lume, qual rosto rubicundo, parecia
sorrir-se com malicia para os sombrios vultos que lhe faziam circulo.

Falou então Sofia da lucta dos povos em prol do direito á vida e
á liberdade, dos remotos combates dos rusticos da Allemanha, dos
infortunios dos irlandezes, dos feitos do operariado francez.

Sob a floresta, revestida de veludos, na pequena rotunda limitada
pelos majestaticos arvoredos, sob a abobada do negro firmamento,
perante a risonha lareira, em meio d’aquelle grupo de sombras hostis e
assombradas, ressuscitavam os acontecimentos que haviam revolucionado o
mundo dos saciados, dos entes tresloucados pela cubiça; desfilavam uns
após outros, os povos da terra, sangrentos, esgottados em mil combates;
celebravam-se os nomes dos heroes da liberdade e da justiça...

Aquella debil voz de mulher ecoava mansamente, como se viesse do
passado; instigava esperanças, inspirava confianças. O auditorio
escutava religiosamente aquella melopeia, a vasta historia dos seus
irmãos espirituaes. Todos fitavam o rosto pálido e magro da narradora,
correspondiam com sorrisos ao sorrir dos olhos cinzentos. E com mais
viva luz brilhava para elles a sagrada causa da humanidade; nos seus
peitos medrava mais e mais o sentimento do parentesco moral com os seus
irmãos do mundo inteiro; um novo coração nascia para elles na propria
terra e ardiam no desejo de tudo compreenderem, de tudo resumirem
n’elle.

--Ha de chegar o dia em que os povos todos levantarão cabeça, bradando:
«Basta! não queremos continuar n’esta vida!» proclamou Sofia com voz
sonora, e então ha de desabar o ficticio poder d’aquelles que só na
avidez encontram a sua força, a terra fugir-lhes-á debaixo dos pés e
ficarão sem saber em que apoiar-se.

--É o que ha de acontecer! affirmou Rybine, de cabeça baixa. Que
ninguem poupe as suas forças e tudo vae de vencida!

Pélagué escutava, arregalando muito as sobrancelhas e com um sorriso
de surpreza nervosa. Estava a ver que tudo o que nas maneiras de
Sofia lhe parecia insolito, a sua audacia, a sua extrema vivacidade,
tudo desapparecera, como submerso no fluxo regular e entusiástico
das suas palavras. A noite silenciosa, o revolutear do lume, a
fisionomia da joven oradora, interessavam-na; mas o que a deleitava
principalmente era a absorta attenção dos campónios. Permaneciam
immoveis, esforçando-se por não perturbarem fôsse com o que fôsse o
desenvolvimento sereno do discurso; dir-se-ia n’elles um receio de
quebrarem o fio luminoso que os ligava ao mundo. De tempos a tempos, um
d’elles collocava com precaução uma nova acha no lume; e dispersava com
a mão as faúlhas e o fumo, para que não incommodassem Sofia.

Ao romper da aurora, Sofia calou-se, fatigada, e attentou, sorrindo,
nos rostos pensativos e tranquilisados que a cercavam.

--É tempo de partirmos, disse a velha.

--Vamos! respondeu Sofia com expressão de cansaço.

Um dos operarios suspirou ruidosamente.

--É pena que se vão! declarou Rybine com desacostumada meiguice. A
senhora fala tão bem! Grande coisa é ligar as creaturas pela sorte
commum! Quando a gente pensa que ha milhões de sêres a quererem o mesmo
que nós queremos, o coração torna-se bom... E ha tanta força na bondade!

--E quando se procede com bondade, pagam-nos com a violencia! protestou
Jéfim n’uma risadinha e pondo-se de pé com presteza. É bom que ellas se
vão, tio Mikhaíl, antes que sejam vistas... Quando os livros estiverem
distribuidos pelo povo, as autoridades hão de indagar d’onde vieram...
E póde alguem lembrar-se das peregrinas e denunciál-as...

--Obrigado pelo incommodo, mãe! disse Rybine interrompendo Jéfim.
Sempre que olho para ti me lembro do Pavel... Fizeste bem em seguir-lhe
o exemplo...

Inteiramente apaziguado agora, esboçava franco e amigavel sorriso.
Fazia fresco; no emtanto, conservava-se de blusa, o cós entreaberto,
o peito á mostra. Pélagué attentou-lhe no robusto corpo e aconselhou,
sollicita:

--Devias agasalhar-te, faz frio.

--Se eu estou tão quente cá por dentro! objectou.

De pé, junto do fogo, os trez rapazes conversavam baixo; aos pés
d’elles, dormia o doente, embrulhado nas pelles. Branqueava-se o ceu,
fundiam-se as sombras. Tremula, a folhagem aguardava o sol.

--Está bem, adeus! disse Rybine, apertando a mão de Sofia. Como hei de
perguntar por si, na cidade?

--Basta que me procures, responde Pélagué.

Lentamente, em um só grupo, vieram os operarios apertar a mão de Sofia
com expressões desastradas, de affecto. Em cada um d’elles transparecia
secreta gratidão e amisade, e tal sentimento, novo como era para
elles, desconcertava-os. Com os olhos prazenteiros e amortecidos pela
insomnia, consideravam Sofia, firmando-se ora n’um pé, ora no outro.

--Querem beber uma gota de leite antes de partirem? offereceu Jacob.

--Ainda ficou algum? interrogou Jéfim.

--Um pouco.

Mas Ignaty, confuso, declarou, coçando a cabeça:

--Não ha; eu entornei-o.

E todos os trez se puzeram a rir.

Falavam no leite, mas Pélagué percebia que pensavam em coisa bem
diversa; que ambicionavam para Sofia e para si propria todas as
felicidades possiveis, mas sem poderem expressar-se. Sofia estava
visivelmente commovida, e a sua perturbação era tal, que apenas
conseguiu dizer em tom de voz humilde:

--Obrigada, companheiros!

Entreolharam-se, como se este tratamento os tivesse feito cambalear de
prazer.

Ouviu-se um accesso de voz rouca do enfermo. No lume extinguiam-se os
brazidos.

Até mais vêr! disseram os campónios a meia voz; e os adeuses
melancolicos de todos acompanharam por muito tempo as duas mulheres.

Vagarosamente estas embrenharam-se por um atalho da floresta, á
claridade da aurora.

Entraram a falar de Rybine, do doente, dos operarios, que sabiam
conservar tão attencioso silencio e que haviam exprimido sentimentos
de reconhecida amisade por fórma desgeitosa mas eloquente, dispensando
ás duas mulheres mil cuidados. Entraram no campo. O sol vinha-lhes ao
encontro. Invisivel ainda, o astro abrira no céu um leque diáfano de
purpureos raios; pela herva scintillavam gotas de rócio em multicolores
lumes de alegria viva e primaveril. Despertavam os passaros e animavam
a aurora com gritos joviaes.

Com o seu grasnar pressuroso, corpulentos corvos voavam para longe,
agitando pesadamente as azas; pelos campos semeados já desde o
outono, outros corvos de lustrosa plumagem, saltitavam, tagarelando
em vozes ritmadas; perto, andava um verdelhão a assobiar, inquieto.
Desanuviavam-se os longes e acolhiam o sol, apagando as sombras
nouturnas das cumieiras.


NOTAS DE RODAPÉ:

[2] Bebida em uso entre o povo da Russia, obtida pela fermentação de um
cosimento de farinha de cevada.--N. do T.



VII


A existencia de Pélagué decorria em singular socego que por vezes
a surpreendia. Tinha o filho na cadeia, sabia que o esperava duro
castigo; de cada vez que n’isso pensava, apresentavam-se-lhe, mau grado
seu, á memoria as imagens de André, de Fédia e d’outros,--toda uma
larga série de caras conhecidas.

Resumindo para si todos os que da sua sorte compartilhavam, a figura
de Pavel avantajava-se aos olhos de Pélagué e quando pensava no filho,
os seus pensamentos alastravam, dirigiam-se para todos os lados, sem
que ella desse por tal. Era uma dispersão em mil lampejos desiguaes que
tudo interessavam, que tudo pretendia e tudo reuniam em um mesmo quadro
e assim impediam a mãe de se concentrar no desgosto que experimentava
por não ter Pavel junto, de si e no terror que lhe inspirava a sorte do
filho.

Pouco depois partiu Sofia. Cinco dias mais tarde, voltava ella
desenvolta e alegre, para desaparecer de novo algumas horas passadas.
Então só a tornou a vêr ao fim de quinze dias.

Dir-se-ia percorrer a existencia em circulos cada vez maiores. Vinham
assim de vez em quando a casa do irmão para lhe encher a casa de
valorosa decisão e de musica.

Tornára-se agradavel a musica a Pélagué, quasi indispensavel mesmo.
Sentia-a correr-lhe no peito, penetrar-lhe no coração, fazendo brotar
catadupas de pensamentos rápidos e intensivos, e desabrochar expressões
suaves e bellas, suggeridas pela força das melodias.

Difficilmente se resignava, porém, ao desleixo de Sofia, que atirava
para todos os cantos os objectos que lhe pertenciam, e as pontas e a
cinza dos cigarros; mais lhe custava a habituar-se á sua maneira de
falar tão decidida. Era por demais flagrante o contraste com a pesada
tranquilidade de Nicolao, com a gravidade benevola e constante das
suas palavas. Ao entendimento de Pélagué, Sofia não passava d’uma
rapariguita com vontade de passar por pessôa de juizo e que olhava
ainda para as pessôas como para brinquedos engraçados. Falava muito
da santidade do trabalho e augmentava nesciamente a tarefa da pobre
mulher com o seu desmazelo; discorria sobre a liberdade e, comtudo,
era visivel incommodo que a todos proporcionava com a sua irritavel
impaciencia, com as suas incessantes discussões e o seu proposito de
se collocar acima dos outros. Muitas contradicções se davam n’ella;
Pélagué tratava-a com prudencia constante, mas sem o sentimento
caloroso que nutria por Nicolao.

Sempre meticuloso, este levava dia por dia a mesma vida monotona
e regrada; almoçava ás oito horas, lia o seu jornal em voz alta,
commentando as noticias mais importantes. Pélagué descobria n’elle
affinidades de caracter com André. Como acontecia com o russo-menor,
o seu hospedeiro nunca falava dos homens com rancor; considerava-os
a todos culpados da má organisação da existencia. Mas a fé n’uma
vida nova não era n’elle tão fervorosa como em André, nem mesmo tão
idealmente luminosa. Tinha um modo de falar pausado, uma voz de
juiz integerrimo e rigoroso; até quando fazia qualquer narrativa de
horrores, esboçava sempre um sorriso compassivo; mas nos olhos tinha um
clarão sinistro. Quando reparava n’aquelle olhar, Pélagué compreendia
que não era homem para perdoar; e, sentindo quão mortificadora se lhe
devia tornar tal severidade, tinha pena d’elle. E affeiçoava-se-lhe
cada vez mais.

Ás nove horas, ia elle para a repartição; a velha arranjava os quartos,
preparava o jantar, lavava-se, mudava de vestuario; depois, sentava-se
no quarto e punha-se a vêr as estampas dos livros. Applicando toda
a sua attenção, ainda podia ler um bocado; mas, ao cabo d’algumas
páginas, ficava cansada e perdia o sentido ao que lia. Em compensação,
as gravuras distraíam-na muito, qual a uma criança: desenrolavam-lhe
diante da vista um mundo novo, maravilhoso, compreensivel, no emtanto,
e quasi tangivel. Via cidades immensas com magnificos edificios,
máquinas, navios, monumentos, riquezas incalculaveis amontoadas pelos
homens, a par das criações da natureza, n’uma diversidade que a
confundia.

Alargava-se a vida até o infinito, patenteando-lhe em cada dia coisas
colossaes, desconhecidas, portentosas; e pela abundancia das suas
riquezas, o variegado das suas bellezas, exaltava mais e mais aquella
alma sedenta que despertava. Gostava ella principalmente de folhear
um livro de zoologia; e bem que tal obra estivesse escripta em lingua
estrangeira, eram as suas illustrações as que mais nítida representação
lhe davam da riqueza, da belleza e da immensidade da terra.

--Como a terra é grande! disse um dia a Nicolao.

--É; e apesar d’isso a humanidade vive apertada...

O que sobretudo a enternecia eram os insectos, particularmente as
borboletas; percorria, surpreza, os desenhos que as representavam e
dizia:

--Que belleza! não é verdade, Nicolao? Quantas d’estas perfeições
existem por toda a parte! Mas vivem occultas aos nossos olhos, passam
ao nosso alcance sem repararmos n’ellas. Cada qual corre á sua vida,
nada sabe, nada admira, porque não ha tempo nem vontade para isso.
Quanto prazer poderiamos disfructar, se todos soubessem como a terra
é rica e que de coisas admiraveis ella encerra! E é tudo para todos e
cada um para tudo... não é assim?

--Sim, com effeito... respondia Nicolao, sorrindo. E trazia-lhe mais
livros.

Á noite, havia visitas muitas vezes; entre ellas, Aleixo Vassilief,
um bello homem de rosto claro, barba preta, taciturno e grave; Romão
Pétrof, este de cara redonda e avermelhada, que fazia constantemente
estalar os beiços n’um gesto de lastima; Ivan Danilof, baixo e magro,
barba em bico, e uma vozinha fina, agressiva, berrante e acerada como
um estilete; Iégor, que de tudo gracejava, de si, dos companheiros e da
doença que o ia minando. A meude, vinha gente que Pélagué não conhecia,
de povoações distantes e tinham longas conferencias com Nicolau, sempre
sobre o mesmo assunto: a liberdade e os operarios de todas as nações.
Discutiam acaloradamente, gesticulavam com força, bebia-se muito chá.
Ao ruído da vozearia, Nicolao compunha ás vezes umas proclamações que
passava a lêr aos consocios e ali mesmo eram copiadas em caracteres
d’imprensa. Ella recolhia cuidadosamente os fragmentos dos rascunhos e
queimava-os.

Emquanto ia servindo o chá, admirava ella o ardor com que os
companheiros falavam da vida e da sorte do operário e do campónio,
da maneira mais vantajosa e rápida de semear entre o proletariado a
idéa da verdade e da liberdade, educando-lhe o espirito. Muitas vezes,
divergiam as opiniões, zangavam-se, accusavam-se uns aos outros,
injuriavam-se, mas logo voltavam a discutir.

Mas ella sentia bem que conhecia melhor do que todos aquelles
palradores, a vida do operario; que avaliava com mais nitidez a
enormidade da tarefa que elles se propunham, o que lhe permittia tratar
os visitantes com a condescendencia um tanto melancólica d’uma pessôa
de idade madura a ver crianças a brincarem de marido e mulher sem
compreenderem o lado trágico da situação.

Mau grado seu, comparava-lhes os discursos com os de seu filho, com os
de André, e percebia agora differenças que d’antes não podia avaliar.
Gritava-se mais ali do que lá no sitio, ao que lhe parecia. E concluia:

--É que sabem mais, falam mais de rijo...

A maior parte das vezes, porém, notava ella que todos aquelles homens
parecia que se exaltavam de proposito uns aos outros, que eram
ficticias as suas exaltações; cada qual pretendia demonstrar aos
collegas que andava mais perto da verdade do que elles e que mais
presava esta verdade do que qualquer d’elles. Os outros vexavam-se e, a
seu turno, para provarem como conheciam bem tal verdade, questionavam
com desabrimento e rudeza. Cada qual, tudo era querer subir mais alto
do que os mais e isto causava-lhe pungente tristeza. Agitava então os
supercilios, divagando pela assistencia olhares de súpplica, e pensava:

«Já se esqueceram do Pavel e dos companheiros!... Já não pensam
n’elles.»

Escutava sempre attenta as discussões, que, naturalmente não
compreendia; procurava descobrir os sentimentos sob aquelle fluxo de
palavras. Percebeu então que nas reuniões do seu bairro, quando se
falava do bem, todos o acceitavam integro e completo, ao passo que
ali, tudo se fragmentava, tudo se dividia; além, os sentimentos tinham
mais força e convicção; aqui, era o domínio das idéas radicaes que
retalhavam tudo em bocados. Aqui, falava-se mais da destruição do velho
mundo; além, sonhava-se um mundo novo, e era por isso que os discursos
do seu filho e de André lhe eram mais compreensiveis, mais ao seu
alcance.

Surdo descontentamento para com os homens se lhe introduzia
furtivamente no coração, trazendo-a inquieta; nascia n’ella a
desconfiança, sentia desejos de compreender tudo, e o mais depressa
possivel, para falar tambem do mundo com palavras dictadas pela sua
alma.

Notava igualmente Pélagué, quando vinha algum companheiro operario,
que Nicolao o recebia com uma semceremonia singular; dava ao rosto uma
expressão de bonhomia e falava por maneira diversa do costume, se não
com mais grosseria, pelo menos com maior liberdade.

--É que faz o possivel para descer ao nivel d’elles, pensava.

Mas esta razão não a satisfazia, pois que o operario claramente se
sentia constrangido, com a intelligencia como que oppressa, e não
chegava a expressar-se tão simples e livremente como com ella, por
exemplo, mulher da sua condição. Um dia, n’um momento em que Nicolao se
ausentára da sala, perguntou a um d’elles:

--Porque estás tu tão contrafeito? Olha que não és um menino a fazer
exame.

O homem abriu-se n’um franco sorriso.

--É a falta de habito... Assim como assim... não é cá da nossa classe!

E ficou-se cabisbaixo.

--Não quer dizer nada, replicou ella. Pois se elle é tão boa pessoa...

O operario volveu para ella o olhar, sorriram um para o outro e nada
acrescentaram.

Ás vezes, apparecia por lá Sachenka.

Nunca se demorava, falava sempre apressadamente, sem se rir. E quando
se retirava, perguntava invariavelmente a Pélagué:

--Como está o Pavel? Passa bem?

--Sim, senhora; graças a Deus! Está bom, bem disposto.

--Cumprimentos da minha parte! concluia a rapariga, e desapparecia.

Umas vezes por outras, queixava-se-lhe a pobre mãe por conservarem
preso o Pavel tanto tempo, sem se fixar data para o julgamento.
Sachenka calava-se, frazindo o sobrolho; tremiam-lhe os labios e os
dedos agitavam-se-lhe nervosamente.

A mãe de Pavel tinha impetos de lhe dizer:

--Minha querida, eu sei que o amava... sim, bem o sei!

Mas não se atrevia: os ares serios da rapariga, a sua bocca franzida,
a recusa do seu falar pareciam repudiar de antemão qualquer meiguice.
Limitava-se a sorrir e a apertar a mão que lhe estendiam, dizendo
comsigo:

«Pobre pequena!...»

Um dia, appareceu-lhe Natacha. Muito satisfeita com vêr que Pélagué a
beijava affectuosamente, annunciou-lhe, em voz sumida, e entre outras
coisas:

--Morreu minha mãe... morreu, a minha pobre mamã!

E, limpando os olhos, em rapido gesto:

--Que pena tenho!... Ainda não tinha feito cincoenta annos... Podia
viver muito mais tempo. Mas, quando penso em tudo o que vejo, chego a
pensar que a morte lhe ha de ser mais leve do que a vida! Vivia sempre
só, estranha a todos; não era precisa a ninguem; meu pae tinha-a feito
timida com os seus continuos ralhos... Pode-se por ventura dizer que
era viver aquillo? Só vive quem espera alguma coisa bôa; mas ella, ella
nada tinha a esperar, a não ser os maus tratos!

--É bem certo o que diz, Natacha! declarou a outra depois de reflectir.
Para viver é preciso que se espere alguma coisa. Nada esperar é viver?

Affagou com mimo a mão da rapariga e perguntou-lhe:

--E agora, vive sósinha?

--Vivo, respondeu Natacha.

Calou-se Pélagué um instante; depois, concluiu com um sorriso:

--Que importa! Quando se tem uma alma bôa, nunca se está só, sempre se
está acompanhada... Natacha foi residir, na qualidade de professora,
para um districto onde havia uma fabrica de fiação. Pélagué ia de vez
em quando levar-lhe livros proíbidos, proclamações, jornaes. Estava já
encartada n’este officio. Varias vezes em cada mez, vestida de irmã da
caridade, de vendedeira de rendas ou de retrozaria, de burgueza ricaça
ou de peregrina, lá se ia pela provincia fóra, a pé, de caminho de
ferro, n’uma carroça, alforge ao hombro ou de mala na mão. Nos hoteis
ou nas estalagens, nos vapores, assim como nos comboios, a sua attitude
era sempre calma e simples; com os desconhecidos, era a primeira a
dirigir-lhes a palavra, e captava irresistiveis simpatias com o seu
falar afavel, a sua tranquilidade de mulher que muito viu e aprendeu.

Agradava-lhe conversar com os infelizes e informar-se das suas opiniões
sobre o mundo, dos seus infortunios e perplexidades. Enchia-se-lhe
o coração de alegria sempre que observava n’estes interlocutores
aquelle vivo descontentamento que, embora proteste contra os golpes
da adversidade, ardentemente busca solução para os grandes problemas
da humanidade. Mais vasto sempre e mais variado, desenrolava-se aos
seus olhos o panorama da vida com todas as suas luctas. Em tudo e por
toda a parte ella encontrava a tendencia cínica do homem para enganar
o homem, para roubal-o, para tirar d’elle o maior proveito possivel. E
tambem via a abundancia por toda a terra, ao passo que o povo jazia na
miseria, vegetando a bem dizer esfomeado, no meio das incommensuraveis
riquezas.

Das cidades, via os templos a abarrotar d’oiro e prata inuteis a Deus,
emquanto fóra, nos adros, os necessitados tiritavam na vã espectativa
d’uma esmola que não vinha. Aquelle espectaculo era-lhe já conhecido:
as igrejas opulentas, as vestes bordadas dos padres, as mansardas
dos pobres e os seus ascorosos farrapos; mas n’esse tempo tudo lhe
parecia natural, pois que no presente considerava tal estado de coisas
offensivo para os pobres, aos quaes, ella bem o sabia, a religião é
mais necessaria que aos ricos.

Mercê das imagens de Jesus, das narrativas que ouvira, Pélagué sabia
que Elle era um amigo para os miseraveis, que Elle se vestia sem
ostentação; e nas igrejas, onde os pobres vinham a Elle para serem
consolados, ia encontral-O opprimido em arrebiques d’oiro e de sedas,
desdenhosamente insolentes em face de tanta privação.

E as palavras de Rybine voltavam-lhe á memoria:

--Até de Deus se serviram para nos ludibriarem! Disfarçaram-no com
embustes e calumnias para nos assassinarem a alma...

Sem que desse por tal, Pélagué rezava agora menos, mas pensava mais em
Jesus, nas creaturas que não falavam d’Elle que nem mesmo o conheciam,
segundo parecia, mas que viviam segundo o Seu evangelho e, como Elle,
consideravam a terra o reino dos pobres, queriam distribuir em partes
iguaes entre os homens todas as riquezas. Reflectia muito em todas
estas coisas, aprofundando-as, comparando-as com tudo o que via, e
estes pensamentos tomavam corpo, revestiam a fórma luminosa de oração,
derramando uma claridade igual na escuridão do mundo, na vida e na
humanidade. E afigurava-se á bôa mulher que o proprio Christo, a quem
sempre venerára com vago amôr, com um sentimento complexo em que o medo
se alliava estreitamente á esperança, á ternura e á dôr, que o proprio
Christo se approximava mais d’ella, que se transformára, que lhe era
mais visivel, n’uma serenidade mais satisfeita. Agora, via os seus
olhos sorrirem-lhe tranquillos com uma viva claridade interior, como se
tivesse verdadeiramente ressuscitado, lavado e reanimado pelo sangue
candente que por Seu amor generosamente derramam aquelles que teem a
sabedoria de nunca O nomear. D’estas viagens voltava, portanto, feliz e
animada, porque muito vira e ouvira, e satisfeita com a missão cumprida.

--É agradavel jornadear para um lado e outro e vêr tantas coisas, disse
ella uma noite a Nicolao. Fica a gente percebendo como esta vida está
arranjada. O povo é escorraçado, atirado á margem, refervendo na sua
humilhação e perguntando a si mesmo: «Porque me põem de parte? Porque
tenho fome, quando ha de tudo em abundancia? Porque sou eu estupido,
ignorante, quando ha tanta intelligencia por toda a parte? E onde está
Elle, esse Deus de misericordia, para o qual não ha ricos nem pobres, e
de quem todos são bem amados?» Pouco a pouco, o povo revolta-se contra
a sua existencia; o povo sente que ha de aniquilal-o a injustiça, se
não tratar do seu bem estar.

E experimentava, cada vez com mais frequencia, a necessidade de falar,
ella mesma, na linguagem que era a sua, das injustiças da vida; e, por
vezes, era-lhe difficil resistir...

Quando a encontrava a folhear os desenhos, Nicolao contava-lhe coisas
surpreendentes. Impressionava-a a audacia dos problemas que o homem se
propunha; perguntava, incredula:

--Pois isso é possivel?

E Nicolao descrevia-lhe um futuro de sonho, com uma confiança
inabalavel nas suas profecias.

--Os desejos do homem não conhecem limite, a sua força é inesgottavel!
affirmava elle. Comtudo, o mundo só muito lentamente se enriquece em
dons do espirito, pois que, para serem independentes, os homens são
obrigados a juntar dinheiro, e não sciencia. Quando tiverem banido a
avidez, libertar-se-ão da escravatura do trabalho obrigatorio.

Pélagué era raro que compreendesse o sentido das palavras de Nicolao,
no emtanto, pungia sensivelmente a fé tranquilla que as dictava.

--Ha muito poucos homens livres n’esta terra; é o que faz o infortúnio
da humanidade! dizia elle.

Com effeito, Pélagué conhecia pessôas que se haviam libertado dos
rancores e da cubiça; e pensava que se o número d’essas pessôas
avolumasse, o rosto sombrio e horrivel da existencia havia de tornar-se
mais benevolo e simples, melhor e mais luminoso.

--O homem é obrigado a ser cruel contra sua vontade! dizia tristemente
Nicolao.

Ella acquiescia com um aceno de cabeça e lembrava-se do russo-menor.



VIII


Um dia, Nicolao, por hábito tão pontual, chegou da repartição muito
mais tarde do que o costume. Em vez de tirar o sobretudo, disse com
vivacidade, a esfregar as mãos:

--Sabe, Pélagué? Fugiu hoje da cadeia um dos nossos companheiros, á
hora das visitas!... Mas não consegui saber quem seja.

Ella sentiu-se cambalear, tomada de commoção; deixou-se caír n’uma
cadeira e mal poude balbuciar, em segredo:

--Será o Pavel, talvez?

--Talvez! respondeu Nicolao, encolhendo os hombros. Mas como havemos de
o ajudar a esconder-se? onde estará elle? Tenho andado a passear por
essas ruas, a ver se o encontrava. É uma tolice, mas é forçoso fazer
qualquer coisa! Eu torno a saír.

--Tambem eu saio! declarou a mãe de Pavel.

--Então, vá a casa do Iégor; talvez elle saiba alguma coisa...
aconselhou Nicolao. E saíu.

Ella atirou para a cabeça um lenço, e foi-se nas peugadas de Nicolao,
nadando em esperança. Levava a vista turvada; o coração batia-lhe em
fortes pulsações que quasi a obrigavam a correr. Voava ao encontro
d’uma possibilidade, de cabeça baixa, sem nada vêr em torno. «Talvez já
esteja em casa do Iégor!» Este pensamento instigava-lhe o passo. Fazia
calor; Pélagué ia offegante. Na escada de Iégor parou, sem forças para
ir mais longe. Voltou-se então e soltou um grito de espanto: tinha-lhe
parecido vêr na soleira da porta Vessoftchikof, de mãos nas algibeiras
e um sorrisinho nos labios, a olhar para ella. Mas, quando tornou a
abrir os olhos, não viu ninguem.

--Foi allucinação! concluia pela escada acima, apurando sempre o
ouvido. Do páteo veio um ruido abafado de passos pachorrentos.
Deteve-se a meio da escada, foi á janella e olhou: outra vez distinguiu
uma cara bexigosa a sorrir para ella.

--O Vessoftchikof! foi elle! exclamou, descendo a correr-lhe ao
encontro, mas com o coração confrangido por aquella decepção.

--Não! sobe! sobe! disse-lhe elle debaixo, a meia voz, apontando para o
andar superior.

Obedeceu; entrou pelo quarto de Iégor, a quem encontrou estendido do
canapé. Segredou, esbaforida:

--O Vessoftchikof fugiu da cadeia!

O outro ergueu a cabeça e n’uma voz áspera:

--O picado das bexigas?

--Sim, esse!... E vem para aqui!

--Está muito bem! Mas eu é que não estou para me levantar a recebel-o.

O fugitivo entrou n’este comenos. Fechou bem a porta no ferrolho, tirou
o boné e poz-se a rir devagarinho.

--Se não te tivesse visto, não me restava mais que voltar para a
prisão! Não conheço ninguem na cidade... Se tivesse ido lá para o
bairro, prendiam-me logo! Eu dizia com os meus botões, emquanto ia
andando: «Palerma! para que fugiste?» Quando n’isto, vejo cá a tiasinha
a correr. Puz-me logo no seu encalço!

--E como pudeste fugir? perguntou Pélagué.

O rapaz sentou-se desastradamente na beira do canapé e disse com
embaraço, encolhendo os hombros:

--Não sei... Foi a occasião que se offereceu.

Andava a passear no pateo... Os presos de crimes communs atiraram-se á
bordoada a um carcereiro, um que foi da policia e que expulsaram por
causa d’um roubo... É um que espia dá partes e torna a vida de toda a
gente um inferno... Então, houve barafunda; os vigias tiveram medo,
uns apitavam, outros corriam... Eis senão quando, vejo a grade aberta.
Approximei-me, vejo um largo, a cidade... Foi uma atracção!... E saí
sem pressa nenhuma, como se estivesse sonhando... Dei alguns passos e
caí em mim. Para onde havia de ir?... Entretanto, as portas da cadeia
tinham se tornado a fechar... Não me sentia bem; tinha saudades dos
companheiros... emfim, aquillo era estupido; eu não fazia idéa de
fugir...

--Hum! resmungou Iégor. Pois, meu caro senhor, devia ter voltado para
traz, bater á porta e pedir delicadamente que o deixassem entrar:
«Queiram perdoar, foi momento de distracção...»

--Sim, continuou Vessoftchikof, rindo, isso tambem era tolice, bem
vejo. Mas ainda assim, andei mal com os companheiros. Não digo nada a
ninguem e ponho-me ao fresco... Na rua, encontrei um enterro. Puz-me
atraz do caixão--era uma criança--e lá fui de cabeça baixa, sem olhar
para ninguem. Estive um bocado no cemiterio, de toitiço ao vento, e
então veio-me uma idéa...

--Uma só? observou Iégor, e com um suspiro accrescentou: Parece-me que
não lhe havia de faltar logar.

O bexigoso poz-se a rir, sem se zangar.

--Oh! já não tenho a cabeça tão vazia como d’antes... E tu, Iégor,
continuas sempre doente?

--Faz-se o que se póde! respondeu o outro, saccudido por accesso de
tosse. Continua!

--D’ali fui ao museu. Passei por lá vi, as collecções, mas sempre a
pensar: «Para onde hei de eu ir, agora?» Estava furioso comigo mesmo
e tinha uma fome horrorosa!... Voltei para a rua, puz-me a caminhar.
Sentia-me envergonhado com aquillo! Percebi que os policias olhavam com
attenção para quem passava... E dizia com os meus botões! «Bom! graças
ao meu focinho, estou aqui, estou nas mãos da justiça!...» N’isto, vejo
cá a velhota a correr. Passou-me ao lado; afastei-me para a deixar
passar, voltei-me e segui-lhe no encalço... E mais nada!

--E eu que nem sequer dei por ti! notou ella em tom pezaroso. Examinava
attentamente Vessoftchikof; achava-o mudado, mas para melhor.

--Os companheiros estão em cuidado, com certeza, sem saberem onde
paro! proseguiu elle, coçando a cabeça.

--E dos guardas da cadeia, não tens saudades? Olha que elles tambem
devem estar n’um cuidado!... observou Iégor.

Em seguida abriu a bocca e, movendo muito os beiços, como se quizesse
absorver todo o ar, exclamou:

--Basta de brincadeiras! É preciso tratar de te esconder, o que é coisa
agradavel de fazer, mas não muito facil de conseguir... Se eu pudesse
levantar-me!... Teve uma crise de soffocação e poz-se a esfregar o
peito, em debeis movimentos.

--Estas bem doente, Iégor! disse o fugitivo.

Pélagué, a esta observação, suspirou e relanceou um olhar de
inquietação pelo modesto quarto.

--Isso é comigo! declarou Iégor. Ó mãesinha, não esteja com cerimonias,
peça-lhe noticias do seu Pavel.

A cara do bexigoso abriu-se outra vez em franco sorriso.

--O Pavel? Está bom, está de saúde. Elle é uma especie de presidente
lá da rapaziada. É sempre elle que fala com as autoridades, em nome da
gente; é elle quem manda!... Nós temos-lhe respeito... E com razão!

A mãe bebia as palavras do rapaz; por vezes, lançava um olhar furtivo
para o rosto macerado e entumecido de Iégor. Este, com a fisionomia
estática, qual mascara desprovida d’expressão, e com uma apparencia
singular de nullidade, só pelos olhos vivia, em scintillações de
espírito.

--Se me dessem alguma coisa de comer... Palavra que tenho muita fome!
exclamou de subito o bexigoso.

--Ó mãesinha, disse Iégor, n’aquella prateleira está um pedaço de pão;
dê-lho. Vá depois ao corredor e bata á sua esquerda, na segunda porta.
Ha de vir abrir-lhe uma mulher; diga-lhe que venha cá e que traga tudo
o que possuir com respeito a comestiveis.

--Para que ha de ella trazer tudo!? protestou Vessoftchikof.

--Ah, não se assuste, que não ha de ser grande coisa... talvez até não
seja nada!

Pélagué obedeceu, bateu á porta indicada e, apurando o ouvido, pensava
com tristeza: «Está mesmo a morrer...»

--Quem está ahi? perguntaram de dentro.

--Venho da parte do senhor Iégor, respondeu baixo. Pede-lhe que vá a
casa d’elle.

--Lá vou! responderam.

Pélagué esperou um instante e tornou a bater.

A porta abriu-se de brusco e appareceu uma mulher ainda nova, muito
alta e que usava oculos. Vinha a alisar a manga do vestido, amarrotada.
Seccamente perguntou:

--Que deseja?

--Foi o senhor Iégor que me mandou...

--Ah! vamos lá!... Mas eu conheço a senhora! exclamou. Como passou?...
É que faz aqui muito escuro...

Pélagué fitou-a e lembrou-se de tel-a visto uma vez ou duas, em casa de
Nicolao.

«Por toda a parte ha gente nossa!» pensou.

A mulher deixava livre o caminho, por fórma que Pélagué fôsse adiante.

--Está então muito mal? inquiriu.

--Muito mal; está deitado. Pede-lhe que lhe leve alguma coisa de
comer...

--Ora! é inutil...

Ao penetrarem as duas mulheres no quarto de Iégor, este debatia-se em
doloroso estertor.

--Lioudmila, disse por fim. Esse rapaz saíu agora da cadeia sem licença
da auctoridade. Já é ser descortez! Antes de mais nada, dá-lhe de
comer e esconde-o em qualquer parte, por um dia ou dois.

Lioudmila fez um signal d’assentimento e, ao passo que fitava
attentamente o rosto do enfermo, dizia com certa severidade:

--Iégor, porque não me chamou logo que chegaram as suas visitas?
E já vejo que por duas vezes se esqueceu de tomar o remedio! É um
desmazelo!... Pois se é o primeiro a dizer que se sente respirar melhor
quando o toma!... Venha para minha casa, camarada!... Não tarda que
venham buscar o Iégor para o levarem para o hospital.

--É então forçoso ir para o hospital? perguntou o enfermo.

--De certo. Lá irei ter comsigo.

--O quê? lá, tambem?...

--Não diga tolices!

E emquanto falava, compuzera no peito do doente a manta que o cobria,
observára fixamente Vessoftchikof e medira com o olhar a altura do
remedio no frasco. A voz d’ella era monotona e grave, mas sonora; os
movimentos amplos, o rosto branco, com umas sobrancelhas muito pretas,
que quasi se reuniam na base do nariz. Tal fisionomia não agradou a
Pélagué, que a ficou julgando arrogante; os olhos não tinham brilho e
nunca sorriam; o tom da voz era imperioso.

--Vamo-nos d’aqui! continuou ella. Eu já volto. A senhora dê ao Iégor
uma colher de sopa d’este remedio... Não consinta que fale.

E saíu levando comsigo o bexigoso.

--Que mulher extraordinaria! disse Iégor com um suspiro. Que admiravel
creatura!... Para casa d’ella é que você devia ter ido, mãesinha. Ella
trabalha muito... Até anda esfalfada!

--Não fales! Olha, bebe antes isto! supplicou Pélagué com meiguice.

Elle ingeriu o remedio e continuou, fechando um dos olhos:

--Que me importa! Que fale ou que não fale, sempre tenho de morrer.

Olhou para a velha, ao mesmo tempo que os labios se lhe entreabriam
lentamente n’um sorriso. Ella tinha curvado a cabeça; agudo sentimento
de dó lhe fazia derramar lagrimas.

--Não chore, mãesinha; é natural... O prazer da vida traz comsigo a
necessidade da morte...

Ella pousou-lhe a mão na cabeça e, em voz baixa:

--Cala-te, sim?

O doente fechou os olhos como se estivesse a escutar o estertor dentro
do peito. Teimosamente, objectou:

--Estúpida coisa o estar calado, mãesinha!... Que ganho eu com
isso?--uns minutos mais d’esta agonia e o ficar sem o prazer de palrar
um bocado com uma santa mulher como você... Não creio que no outro
mundo haja tão bôa gente como n’este...

Ella interrompeu-o, agitada:

--Olha que vem ahi já aquella senhora, e depois ralha comigo se te ouve
falar...

--Não é senhora nenhuma; é uma revolucionaria, uma companheira,
um coração admiravel!... De toda a maneira, ha-de ralhar comsigo,
mãesinha! Está sempre a ralhar com toda a gente!

E Iégor poz-se a contar a historia da sua visinha, lentamente, com um
articular custoso dos labios. Só os olhos sorriam. Inquieta, Pélagué
dizia comsigo, notando a maceração d’aquelle rosto banhado de suor:

--Vae-me morrer aqui!

Voltou Lioudmila. Fechou cuidadosamente a porta e disse para a velha:

--É absolutamente necessario que aquelle seu amigo se disfarce e se vá
embora; vá já arranjar-lhe outro fato e traga-lho aqui! Que pena que
a Sofia esteja ausente! É a sua especialidade, dar esconderijo a quem
foge!

--Ella chega ámanhã, annunciou a outra, deitando o seu lenço para os
hombros.

Sempre que a encarregavam de qualquer missão, era idéa fixa sua
desempenhar-se d’ella bem e depressa. Sollícita e preoccupada,
franzindo as sobrancelhas, perguntou ainda:

--Como o havemos de vestir? Que lhe parece?

--Pouco importa: como elle sae de noite...

--É muito peor que de dia: anda menos gente pelas ruas, é-se mais
facilmente notado, e como o Vessoftchikof não é muito esperto...

Iégor soltou uma gargalhada rouca:

--Como você é fina, mãesinha!

--Posso ir vêr-te ao hospital? perguntou ella.

O doente acenou com a cabeça, tossindo muito. Lioudmila fitava na velha
os seus grandes olhos pretos.

--Quer que lhe fiquemos de guarda, cada uma por sua vez? propoz. Sim?
Está bem!... Mas agora, vá, vá depressa.

Agarrou Pélagué por um braço em gesto amigavel mas autoritario, fêl-a
saír para o corredor e ali disse-lhe baixinho:

--Não se zangue por eu a despedir assim... Não é bonito, bem sei; mas
faz-lhe tanto mal falar!... E eu tenho esperança...

Esta explicação commoveu Pélagué. Murmurou:

--Não diga isso!... Não é bonito! Mas a senhora é um anjo!... Até mais
vêr; eu cá me vou.

--Cuidado com os espiões! recommendou a outra em segredo. E levando as
mãos ao rosto, passando-as depois pelas fontes, com uma tremulencia
nos labios, tomou uns ares de maior bondade.

--Sim, esteja descansada, respondeu Pélagué com uma pontinha de orgulho.

Ao chegar á grade da entrada, parou um instante como a arranjar a
mantilha e lançou em torno um olhar vigilante, mas que passaria
despercebido de qualquer. Sabia bem distinguir, e sem se enganar, os
espiões d’entre o povo. O andar propositadamente descuidado, a placidez
affectada dos movimentos, a expressão de cansaço e de tedio que fazia
transparecer, o brilhar timido, confuso e mal dissimulado dos olhos,
movediços e desagradavelmente esquadrinhadores, eram outros tantos
disfarces que se lhe haviam tornado familiares.

D’esta vez, porém, não enxergou cara alguma conhecida. Então, sem
pressa, tomou pela rua adiante, e subiu para um carro de praça, que
mandou seguir para o mercado. Ali comprou o fato para o fugitivo,
não sem regatear ferozmente, desfazendo-se em pragas contra o bebado
do marido, a quem tinha de vestir de novo quasi todos os mezes. Esta
mentira não fez impressão alguma ao adelo, mas causou-lhe muita
satisfação por a ter inventado; tinha ido a pensar pelo caminho que a
policia havia de suspeitar que o fugitivo se disfarçaria e não deixaria
de proceder a um inquerito no mercado. Feito isto, Pélagué voltou a
casa de Iégor e foi acompanhar o bexigoso ao termo da cidade. Cada um
tomou por passeio opposto e a velha, satisfeita, divertia-se immenso a
vêr o rapagão a andar no seu passo pesado, cabeça baixa, atrapalhado
com a comprida roda d’um sobretudo amarello e atirando para traz o
chapeu, que lhe ia sempre a escorregar para os olhos. N’uma rua deserta
veio-lhes Sachenka ao encontro, e Pélagué voltou para casa depois de se
despedir de Vessoftchikof com um aceno de cabeça.

Mas pensava com tristeza:

--Pois sim, mas o Pavel está na cadeia... e o André tambem.



IX


Foi recebida por Nicolao com um grito de mal contida inquietação.

--Sabe? O Iégor está muito mal! Levaram-no para o hospital; a Lioudmila
veio cá pedir que fôsse ter com ella.

--Ao hospital?

Nicolao, depois de ter ajustado os oculos, em movimento nervoso,
ajudou-a a vestir um casaco, apertou-lhe a mão entre as suas, seccas e
febris, e, em voz trémula:

--Sim! Leve este embrulho comsigo. O Vessoftchikof ficou em segurança?

--Sim, tudo vae pelo melhor...

--Tambem hei de ir vêr o Iégor...

Pelagué estava tão cansada, que sentia a cabeça a andar-lhe á roda; a
inquietação de Nicolao dava-lhe a presentir um drama.

--Vae morrer!... Vae morrer! dizia comsigo; e esta sombria idéa
martelava-lhe no cerebro.

Mas quando entrou no quartosinho alegre e muito aceiado do hospital e
viu o Iégor a rir de manso, sentado em meio d’um montão de almofadas
brancas, socegou de pronto. Parou á porta a sorrir-lhe e ouviu o doente
dizer ao medico:

--O remedio, é uma reforma!

--Não diga tolices, Iégor! obtemperou o doutor em tom appreensivo.

--E eu, que sou revolucionario, detesto as reformas!...

Certamente, o medico tomou a mão do doente e collocou-lha sobre o
joelho; em seguida, levantou-se, poz-se a puxar pelas barbas, emquanto
ia apalpando com um dedo os entumecimentos do rosto de Iégor.

Pélagué conhecia bem o doutor por ser um dos melhores camaradas de
Nicolao. Approximou-se de Iégor, que, ao vel-o, lhe deitou a lingua de
fóra. O medico voltou-se.

--Ah, é vocemecê?... Viva!... Sente-se. Que traz ahi?

--Livros, parece-me.

--Não póde ler declarou, o medico.

--Quer que eu fique parvo de todo! choramigou Iégor.

--Cala-te! ordenou. E poz-se a escrever qualquer coisa na carteira.

Do peito do doente exalavam-se breves suspiros forçados, de mistura com
saliva, n’um estertor, violento; tinha o rosto coberto de camarinhas
de suor, que elle enxugava de vez em quando, erguendo muito devagar as
pesadas mãos, quasi inconscientes. A singular immobilidade das faces
inchadissimas descompunha a expressão de bonhomia da sua ampla cara,
onde as feições haviam desapparecido sob uma mascara cadaverica; e só
os olhos, profundamente cavados entre os inchaços, conservavam um olhar
puro e sorriam com condescendencia.

--An?! Esta sciencia!... Já não posso mais... Deito-me, doutor?
perguntou elle.

--Não! respondeu com brevidade o medico.

--Então deito-me quando tu te fôres embora!

--Não lh’o consinta, mulhersinha. Arranje-lhe as almofadas. E tome
muito cuidado, não o deixe falar, peço-lhe; faz-lhe muito mal.

Pélagué fez um aceno. O medico saíu em passinhos rapidos. Iégor deitou
a cabeça para traz, fechou os olhos e ficou sem movimento; só os dedos
se lhe agitavam um pouco. Das paredes brancas da cellasinha exalava-se
um frio secco e uma tristeza velada e pálida. Pela alta janella
divisavam-se os cumes ondulados das tilias; por entre a folhagem
poeirenta e sombría destacavam-se vivamente manchas amarellas: eram as
frias primicias do outomno, que chegava...

--Vem para mim a morte, devagar, como que sem vontade! disse Iégor, sem
bulir e sem abrir os olhos. Parece que tem pena de mim!... Pois se eu
era um bom rapaz, de bom genio!...

--Cala-te, Iégor! supplicou Pélagué, afagando-lhe a mão ternamente.

--Espere um pouco, mãesinha, eu vou-me calar...

E, offegante, continuou com esforço immenso a articular palavras
entrecortadas de longas pausas:

--Gosto muito que vocemecê esteja comnosco, mãesinha... É-me muito
agradavel ver a sua fisionomia, os seus olhos tão vivos, a sua
candura... Quando a vejo, pergunto a mim mesmo: «Como irá ella acabar?»
E fico triste, a pensar que a espera a cadeia, ou o degredo, toda a
especie d’abominações... como os outros... Não tem medo da prisão?

--Não! respondeu ella com simplicidade.

--Está claro!... E, comtudo, a prisão... é nojenta coisa... foi ella
que me matou... Porque, para falar com franqueza, eu não tenho vontade
de morrer.

Ella sentiu desejo de responder: «Talvez não morras ainda,» mas
calou-se e ficou a olhar para elle.

--Podia ainda fazer alguma coisa pelo bem do povo... Mas quando a gente
já não póde trabalhar, é impossivel viver, é uma estupidez!

Á memoria da velha accudiram então estas palavras de André: «Isso é
verdade, mas não é consolador!» Suspirou. Sentia-se fatigadissima e
com fome. O murmurar monotono e rouco do doente resoava triste pelo
quarto, como que rastejando, impotente, por sobre a lisura das paredes.
A folhagem das tilias fazia pensar em nuvens que tivessem descido
á terra, e impressionava pelo seus tons carregados e melancolicos.
Tudo, em volta, se congelava singularmente em tristonha immobilidade,
n’aquella desconfortante espectativa da morte.

--Como me sinto mal! disse Iégor. E calou-se, fechando os olhos.

--Dorme! aconselhou ella. Talvez te faça bem.

Apurou por alguns instantes o ouvido para a respiração do doente e
relanceou o olhar em torno de si. Invadida por glacial tristeza, entrou
a dormitar.

... Despertou-a um ruido de vestidos roçagantes. Estremeceu ao ver
Iégor accordado, com os olhos muito abertos.

--Deixei-me dormir... desculpa! disse em voz baixa.

--E tu, tambem, perdôa-me! replicou elle igualmente n’um murmurio.

Pela janella, entrava o crepusculo; um frio nevoento opprimia a vista;
tudo se fundia em singular opacidade; o rosto do doente tomava tons
mais sombrios.

De novo se ouviu um roçagar de saias e logo depois a voz de Lioudmila,
dizendo:

--Então, aqui ás escuras, a tagarelar?... Onde fica o botão da luz?

E de subito, uma claridade branca e desagradavel innundou o quarto.
Lioudmila estava de pé, alta, toda vestida de negro.

Iégor teve um grande estremecimento por todo o corpo e levou a mão ao
peito.

--O que é? exclamou Lioudmila, correndo para elle.

Fixou na velha um olhar demorado; parecia ter os olhos enormes, com um
brilho estranho.

--Espera... balbuciou o enfermo.

Abriu muito a bocca, ergueu a cabeça e estendeu o braço para diante.
Pélagué tomou-lhe a mão com cuidado extremo e fitou-o, contendo a
propria respiração. Em movimento convulso e vigoroso, elle projectou a
cabeça para traz e disse em alta voz:

--Deixei de existir... está acabado...

Percorreu-lhe o corpo ligeira contracção, a cabeça rolou-lhe lentamente
no hombro, e, nos seus olhos esgazeados, a luz da lampada collocada por
sobre o leito, espelhou-se com um reflexo frio...

--Meu amigo!... murmurou Pélagué.

Lentamente, Lioudmila afastou-se do leito; parou junto da janella a
olhar para fóra e disse n’uma voz singular e sonora, que Pélagué nunca
lhe tinha ouvido:

--Morreu...

Ella inclinou-se, apoiou-se á mesinha de cabeceira e entrou de
balbuciar com a voz a tremer:

--Morreu... socegadamente... corajosamente... sem um queixume...

E de repente, como se lhe tivessem dado uma pancada na cabeça,
deixou-se caír de joelhos, sem forças tapou o rosto com as mãos, e
desatou em soluços abafados.

Depois de ter cruzado os braços pesados do morto, sobre o peito e de
lhe ageitar nas almofadas a cabeça, extraordinariamente quente, Pélagué
avisinhou-se de Lioudmila, curvou-se para ella e afagou-lhe docemente
os espessos cabellos, ao mesmo tempo que enxugava as proprias lagrimas.
Esta ultima voltou com lentidão para ella os olhos dilatados, febris e
balbuciou por entre os labios trémulos:

--Havia muito que o conhecia... Estivemos juntos no degredo, estivemos
nas mesmas prisões... Ás vezes, aquella tortura era insupportavel,
horrorosa; muitos d’entre nós perdiam o animo e alguns endoideciam...

Comprimiu-lhe a garganta um espasmo violento; dominou-se com esforço, e
em seguida, avisinhando do rosto da velha o seu rosto, a que uma nevoa
de ternura dolorida dava desconhecida suavidade que o rejuvenescia,
proseguiu em rapido murmúrio, com um soluçar sem lagrimas:

--E elle, elle sempre, sempre, andava alegre; nunca se cansava de
gracejar, de rir, occultando corajosamente o seu soffrer, esforçando-se
por reanimar os fracos... era tão bom, tão sensivel, tão meigo!... Na
Siberia, a inacção em que se vive, deprava o espirito e faz nascer
maus instinctos. Como elle os sabia combater!... Que companheiro
aquelle era; se soubesse! a sua vida particular foi árdua, dolorosa...
mas--sei-o bem--nunca ninguem o ouviu queixar... ninguem, nunca! Assim,
eu, que era sua intima amiga, devo muito ao seu coração e recebi do
seu espirito tudo o que podia dar-me; vivia triste, solitário e, no
emtanto, nunca elle me pediu nada em paga, nem carinhos, nem disvelos...

Foi até junto do morto, curvou-se e beijou-lhe a mão.

--Companheiro, meu querido e amado companheiro, disse ella n’uma voz
sumida e cheia de desconsolo, agradeço-te de toda a minha alma...
Adeus! Trabalharei, como tu fizeste... sem me cansar... sem duvidar...
toda a minha vida... pelos que soffrem... Adeus!

Todo o corpo lhe foi saccudido por violentos soluços e, offegante, a
cabeça descaíu-lhe sobre o leito, aos pés de Iégor.

Derramava Pélagué bastas lagrimas que lhe queimavam as faces.
Procurava retel-as, pois o seu desejo era consolar Lioudmila com um
affago especial e animador, falar-lhe do morto com boas palavras
repassadas de amor e de tristeza. Por entre o pranto, distinguia o
rosto entumecido do defuncto, os olhos fechados, os labios negros,
confrangidos em leve sorrisos... Reinava um silencio profundo em meio
d’aquella claridade que opprimia.

O medico entrou em passinhos apressados, como sempre; parou bruscamente
a meio do quarto, enterrou em rapido gesto as mãos pelas algibeiras e
perguntou com voz nervosa e sonora:

--Ha muito tempo?

Ninguem lhe respondeu. Bamboleou-se nas pernas e approximou-se de
Iégor, enxugando o suor da testa; apertou a mão do morto e afastou-se
novamente.

--Não é para admirar... em vista do estado do coração... Isto já devia
ter acontecido ha seis mezes... pelo menos... Sim, com certeza!...

Mas aquelle tom agudo da voz em que a placidez era forçada e a
sonoridade fóra de proposito, logo se lhe velou. Encostou-se á parede e
poz-se a passar os dedos rapidamente pela barba, olhando alternadamente
para as duas mulheres e para o morto, com os olhinhos piscos.

--Mais um!... concluiu brandamente.

Lioudmila ergueu-se e foi abrir a janella. Pélagué como que accordou
áquelle ruido e olhou em torno, com um gemido. E um instante depois,
o doutor, ella e Lioudmila encontravam-se reunidos no vão da janella,
apertados uns contra os outros, a contemplarem o aspecto sombrio
d’aquella noite de outono. Por cima do arvoredo, scintillavam as
estrellas e pareciam recuar, perdendo-se no negro infinito dos ceus.
Lioudmila envolveu o braço de Pélagué com o seu e descansou-lhe a
cabeça no hombro, sem uma palavra. O medico limpava a luneta com o
lenço. Fóra, os ruidos nouturnos da cidade morriam, abafados, o fresco
da noite regelava as faces e agitava os cabellos. Lioudmila sentia
arrepios; e as lagrimas escorriam-lhe pelo rosto. Nos corredores
do hospital, vagueavam ruidos amortecidos, assustados, passadas
pressurosas, gemidos, murmurios desconsolados. Immoveis, á janella, os
trez sondavam as trevas, em silencio.

Pélagué sentiu que era ali de mais e, depois de soltar com brandura
o braço do da joven senhora, dirigiu-se para a porta, não sem que se
inclinasse, ao passar, perante o morto.

--Vae-se embora? perguntou baixo o medico, sem se voltar.

--Vou.

Pela rua fóra, ia pensando em Lioudmila. «Nem ao menos sabe chorar!»
dizia ella comsigo, recordando-se da parcimonia das suas lagrimas.

E as ultimas palavras de Iégor voltavam-lhe á memoria; faziam-na
suspirar. Caminhando a passo vagaroso, revia em mente os olhos vivos de
Iégor, os seus gracejos, as suas opiniões sobre a vida.

--Para a gente proba, a existencia é penosa e a morte leve... Como
morrerei eu?

Em seguida, o pensamento representou-lhe Lioudmila e o doutor de pé,
junto da janella, n’aquelle quarto muito branco e cruamente illuminado,
os olhos embaciados de Iégor; e, invadida por um sentimento oppressor,
de compaixão, suspirou profundamente e entrou a caminhar mais depressa,
impellida por vago presentimento...

«É preciso marchar para a frente!» pensou sob o impulso de coragem
valorosa e contristada, que lhe subia do coração.



X


O dia seguinte passou-o Pélagué a dispôr tudo para o enterro de
Iégor. Á noite, quando tomava o chá, com Nicolao e Sofia, appareceu
Sachenka, animada e expansiva, o que era para admirar. Vinha com as
faces córadas, os olhos brilhantes, e Pélagué percebeu que ella trazia
qualquer esperança risonha. Este radiante estado de espírito veio
fazer uma irrupção barulhenta e tumultuosa no curso melancolico das
recordações, mas sem o distraír era como uma viva claridade que tivesse
brilhado de súbito n’aquellas trevas e que vinha incommodar a pequena
reunião. Nicolao, pensativo, bateu na mesa:

--Acho-a mudada hoje, Sachenka!...

--Deveras! Póde ser! respondeu com uma risadinha de contentamento.

Pélagué lançou-lhe um mudo olhar de censura. Sofia fez notar,
accentuando as palavras:

--Estavamos falando do Iégor.

--Que bello homem! não é verdade? exclamou Sachenka. Sempre tinha
prontos nos labios um sorriso e um gracejo... Trabalhava tão bem! Era o
artista da revolução; possuia em alto grao a idéa revoluccionaria, como
um verdadeiro mestre! Com que simplicidade mas ao mesmo tempo com que
veemencia elle sabia descrever-nos o homem--o homem falso, perverso e
violento! Muito lhe devo eu!

Dizia isto a meia voz, com um sorriso de reflexão, mas que não lhe
extinguia no olhar o brilho de alegria que era bem visivel e que nenhum
dos trez compreendia. É que nos acontece ás vezes sentirmos prazer
com um pezar, fazermos d’elle um brinquedo torturante que nos roe
o coração. Mas Nicolao, Sofia e Pélagué, esses, não queriam deixar
que se dissipasse a sua tristeza, nem abandonal-a aos sentimentos
despreoccupados que Sachenka viera ali trazer; sem d’isso terem
consciencia, defendiam o seu melancolico direito de se acolherem
á dôr, e tentavam fazer entrar a recemchegada no circulo das suas
preoccupações.

E, afinal, está morto! insistiu Sofia, fitando-a com attenção.

Ella vagueou pelos presentes interrogador olhar e baixou a fronte.

--Está morto?... repetiu em voz alta. Custa-me conformar-me com este
facto.

Entrou a passear a todo o comprimento da sala, e em seguida, estacando
de súbito, proseguiu em tom singular:

--Mas que significa isso: «Está morto?» O que foi que morreu? A minha
estima pelo Iégor, a minha affeição por esse camarada, a memoria do que
a sua intelligencia praticou, tudo isso morreu? A opinião que eu tinha
d’elle--a d’um homem valente e leal--ficou por ventura aniquilada?
Morreu tudo isso? Para mim, tudo isso, a melhor parte d’elle proprio,
nunca ha de morrer, sei-o bem! Parece-me que ha sempre pressa de mais
em se dizer que um homem morreu! Se os seus labios morreram, as suas
palavras estão vivas no coração dos que as escutaram.

Muito commovida, tornou a sentar-se, encostou-se á mesa e continuou com
mais brandura:

--Talvez sejam tolices o que digo, mas olhem, camaradas: creio na
immortalidade da gente de bem!

--Teve alguma novidade? Está tão alegre! perguntou-lhe Sofia, amavel.

--Tive! respondeu Sachenka, confirmando a resposta com um aceno.
Uma novidade muito agradavel, ao que julgo. Falei toda a noite com
o Vessoftchikof. Antigamente não gostava d’elle; achava-o muito
grosseiro, muito ignorante, o que realmente era verdade. Havia n’elle
um mau humor, uma irritação indefinida e continua para com todos;
estava sempre a antepôr-se a tudo com uma insistencia que chegava a
aborrecer, sempre a falar de si mesmo... Aquelle homem tinha o que quer
que fôsse de maldade, que enervava.

Interrompeu-se para sorrir e relanceou em torno um olhar radiante:

--E agora, não: fala já dos seus «companheiros». E se ouvissem como
elle pronuncia esta palavra! Com uma veneração tão terna, com tanta
meiguice, que ninguem o póde intimar! Caíu em si, sabe a força de que
dispõe, sabe o que lhe falta... e hoje, o que sente sobre todas as
coisas é o verdadeiro sentimento de camaradagem, uma immensa dedicação,
capaz de ir ao encontro das maiores provações.

Escutava-a Pélagué, encantada com a alegria d’aquella rapariga, por
hábito tão triste. Mas, ao mesmo tempo, no recondito do seu coração
brotava secreto pensamento de inveja: «E o Pavel, que faz elle no meio
de tudo isto?»

--Só pensa nos camaradas, continuava Sachenka; e sabem o que elle me
persuadiu que fizesse? Que arranjasse uma fuga geral dos presos... É
verdade! Diz que é facil.

Sofia ergueu a cabeça e, em tom de animação:

--E que lhe parece, Sachenka? É uma boa idéa.

A chavena de Pélagué entrou a tremer-lhe na mão; pousou-a sobre a meza.
Sachenka ficou-se um instante calada, de sobrolho franzido, reprimindo
o entusiasmo; depois, muito séria mas com um sorriso radiante,
respondeu com alguma hesitação:

--Certo é que se as coisas são realmente como elle diz, devemos
tentar... é o nosso dever.

Córou, deixou-se caír n’uma cadeira e nada mais acrescentou.

A mãe de Pavel esboçou um sorriso de muita meiguice, dizendo comsigo:
«Querida! Querida da minha alma!» Sofia sorriu tambem; Nicolao soltou
uma gargalhadinha, e attentou na rapariga, bondosamente. Então, ella
ergueu a fronte, olhou em torno com severidade, e, pallida, com os
olhos a faiscar, disse seccamente:

--Riem-se... Percebo porque é. Pensam que sou pessoalmente interessada
no resultado da evasão, não é isto?

--Mas porquê, Sachenka? interrogou Sofia hypocritamente.

E, levantando-se d’onde estava, foi pôr-se ao lado d’ella. Pélagué
achou a pergunta futil e humilhante para Sachenka e assim lho fez
sentir com um olhar.

--Mas, então, não quero tratar de nada! exclamou Sachenka. Não
quero tomar parte na discussão, desde o momento que consideram este
projecto...

--Cale-se, Sachenka! disse Nicolao sem se exaltar.

A mãe de Pavel foi para a rapariga e afagou-lhe brandamente os
cabellos. Sachenka agarrou-lhe logo a mão e voltando para ella o rosto,
onde o sangue affluira, fitou-a, confusa. Sofia arrastou uma cadeira,
sentou-se ao lado de Sachenka, passou-lhe o braço em volta da cinta e
disse-lhe, ao passo que a fitava com curiosidade:

--Que caracter singular o seu!

--Sim, parece-me que disse tolice... mas é que eu gosto das coisas
claras...

Nicolao interrompeu-a para dizer em tom sério e preoccupado:

--Se a evasão é possivel, trate-se d’isso, não temos que hesitar!...
Mas antes de mais nada, é preciso saber se os companheiros encarcerados
estarão d’accordo.

Sachenka curvou a fronte.

--Como se elles pudessem recusar! disse Pélagué, suspirando. O que eu
não creio é que isso se possa fazer!

Todos ficaram calados.

--Deixem me falar com o Vessoftchikof, disse Sofia.

E Sachenka annunciou em voz baixa:

--Bem! amanhã lhe digo onde e quando póde encontral-o.

Nicolao approximou-se da velha, que estava lavando as chavenas.

--Vocemecê vae depois d’amanhã á cadeia; é preciso fazer chegar um
bilhete ás mãos do Pavel. Compreende? É preciso que a gente saiba...

--Compreendo. Compreendo! interrompeu ella com vivacidade. Eu me
encarrego de lho entregar.

--Vou-me embora! declarou Sachenka e, tendo distribuido pelos
companheiros vigorosos apertos de mão, foi-se, sem mais uma palavra.

Poisou Sofia a mão no hombro de Pélagué e a sorrir:

--Queria ter uma filha como esta, Pélagué?

--Meu Deus! Se eu pudesse vel-os casados, ainda que não fôsse senão um
dia! exclamou a bôa mulher quasi a chorar.

--Sim, a felicidade de cada um consiste em ser-se um bocadinho feliz...
Quando essa felicidade é demasiada, tambem é de qualidade inferior.

E Sofia foi para o piano tocar uma musica triste.



XI


Na manhã seguinte, apinhavam-se ao portão de ferro do hospital
algumas duzias de homens e de mulheres, á espera que saísse o enterro
do companheiro. Pelo meio d’elles, cautelosamente, giravam varios
espiões, escutando cada exclamação, retendo de memoria rostos, gestos
e palavras; no passeio fronteiro, estava um grupo de policias, de
revolvers á cinta. A imprudencia dos primeiros e os risos irónicos dos
segundos, a fazerem alarde da força, irritavam o povo.

Uns disfarçavam a ira que os possuia e gracejavam; outros, ficavam-se
cabisbaixos, olhando para o chão, para não verem aquelle apparato
ultrajante; outros ainda, incapazes de conter o seu furor, zombavam
dos poderes públicos e do seu medo de gente que por armas só tinha o
dom da fala. Um ceu de outono, de azul muito pallido, illuminava a rua
calcetada a seixos redondos, semeada de folhas mortas, que as lufadas
erguiam em remoinhos diante dos pés dos transeuntes.

Entre a multidão, estava Pélagué. Ia contando as caras conhecidas e
pensava tristemente:

--Não são bastantes!... não são bastantes!

O portão rodou nos gonzos. Trouxeram para a rua a tampa do caixão,
enfeitada com corôas de fitas encarnadas. Silenciosos, os homens
tiraram a um tempo os seus chapeus: dir-se-ia uma revoada de passaros
pretos que se tivesse levantado das cabeças. Um official da policia, de
avantajada estatura, de grossos bigodes escuros atravessados n’um rosto
vermelhaço, cercado de policias e soldados, precipitou-se por entre
o povo, empurrando todos sem cerimonia, e gritou com voz roufenha e
autoritaria:

--Tenham a bondade de tirar as fitas!

N’um prompto viu-se rodeado de homens e mulheres, em circulo compacto,
falando todos á uma, gesticulando, empurrando-se uns aos outros.
Perante o olhar turvado de Pélagué, agitaram-se em confusão rostos
lividos e excitados, com os beiços a tremer de ira; e pelas faces d’uma
mulher corriam pesadas lagrimas d’humilhação.

--Abaixo a prepotencia! gritou uma voz juvenil que se sumiu,
desacompanhada, no borborinho da discussão.

Pélagué sentia referver-lhe a amargura; voltou-se para o seu visinho,
rapaz pobremente vestido, e disse-lhe:

--Até não nos deixam enterrar um camarada, como entendermos!...

Augmentava a hostilidade, a tampa do esquife vacillava por sobre as
cabeças, as fitas agitadas pelo vento envolviam os rostos e as cabeças;
ouvia-se-lhes o crepitar nervoso e secco da seda.

Pélagué, tomada de terror gelido por uma desordem possivel, dirigia aos
que lhe ficavam proximos e a meia voz, frases rapidas:

--Que importa!... Uma vez que tem de ser... tirem-se as fitas... é
melhor ceder... Para que serve resistir?

Resoou uma voz aspera e sonora, que dominou o tumulto:

--Queremos que nos deixem acompanhar á sua ultima morada um companheiro
que vocês martyrisaram!

Alguem,--alguma rapariga com certeza--poz-se a entoar n’uma voz aguda e
fina:

  E vós caístes, victimas, na lucta...

--Façam favor de tirar as fitas! Jakovlef! corta essas fitas!

Ouviu-se o tinido d’uma espada a saír d’uma bainha. Pélagué fechou os
olhos, na espectativa d’um grito. Mas tudo socegou; o povo rosnava,
mostrava os dentes como os lobos perseguidos. Depois, de cabeça baixa,
em silencio, esmagados sob o sentimento da impotencia, puzeram-se a
caminho, fazendo ecoar pela rua o ruido dos passos.

Á frente, a tampa do caixão despojada dos seus ornatos, com as corôas
esfrangalhadas, lá ia erguida no ar; depois, vinham os agentes de
policia, balançando-se d’um e outro lado, em cima dos cavallos. Pélagué
seguia pelo passeio; não podia enxergar o caixão, devido á muita gente
que o cercava; augmentava sem cessar o número dos manifestantes,
que occupavam já toda a largura do calcetamento. Atraz da multidão,
alteavam-se tambem os vultos uniformes e cinzentos dos guardas de
cavalaria; de cada lado, polícias, com a mão nos copos das espadas;
e, por toda a parte, divisava Pélagué caras de espiões com os agudos
olhares a prescrutarem as fisionomias.

--_Adeus, companheiro, adeus!_ cantaram suavemente duas vozes bonitas.

--Silencio! gritou alguem. Calem-se, amigos! Calem-se por emquanto!

Havia n’esta exclamação uma rudeza tão suggestiva de ameaçador
conselho, que o povo calou-se. O canto funebre ficou interrompido,
e o ruido das vozes socegou; só se ouviam agora passos amortecidos,
n’um tropel que se elevava muito alto, que se perdia na transparencia
do ceu, agitando a atmosfera, assim como o ecco do primeiro trovão
de tempestade ainda longinqua. O vento, cada vez mais frio, atirava
aos rostos, com animosidade, poeira e lama entumecia os vestidos,
entorpecia as pernas, vergastava os peitos...

Aquelle funeral silencioso, sem um sacerdote, sem um cantico,
aquellas fisionomias oppressas e carrancudas, aquelle ruido de passos
energicos, tudo provocava em Pélagué pungente angustia; o pensamento
redemoinhava-lhe indeciso, revestindo de frases tristes as suas
impressões:

--Ah! que não sois bastantes... luctadores da liberdade, não sois
bastantes! E comtudo teem-vos medo!

Afigurava-se-lhe não ser aquelle mesmo Iégor seu conhecido que ia
a enterrar, mas sim uma coisa habitual, que lhe fôsse intima e
indispensavel. Dominava-a um sentimento de violenta revolta: não
estava d’accordo com aquella gente. Pensava:

--Sei-o bem: Iégor não cria em Deus, como estes tambem não crêem...

Mas não conseguia concluir a sua idéa e suspirava, como a querer
desembaraçar a alma de pesado fardo:

--Ó Senhor! Senhor!... Jesus!... Será possivel que tambem eu vá a
enterrar assim?...

Chegaram ao cemiterio. Depois de muitas voltas por entre os sepulcros,
parou o cortejo n’um vasto espaço livre, semeado de cruzinhas brancas.
A multidão agrupou-se em torno d’uma cova e estabeleceu-se silencio. E
este austero silencio dos vivos, entre tumulos, presagiava alguma coisa
terrivel que sobresaltava o coração de Pélagué. Immobilisou-se então
na espectativa. O vento uivava por entre as cruzes; em cima do caixão
adejavam tristemente flôres murchas.

A gente da policia, vigilante, tinha-se alinhado, seguindo com os
olhares os movimentes do chefe. Então, um rapaz alto, pallido, com a
cabeça descoberta, negras sobrancelhas e comprido cabello negro, foi
postar-se junto do coval. No mesmo instante, ouvia-se a voz roufenha do
official da policia.

--Meus senhores!...

--Companheiros! começou o rapaz com voz sonora.

--Perdão! gritou o official. Tenho a declarar-lhes que não consinto
discursos.

--Limitar-me-ei a dizer algumas palavras, observou socegadamente o
orador: «Companheiros! Juremos sobre a sepultura do nosso mestre e
amigo nunca esquecermos os seus ensinamentos, juremos trabalhar cada
qual toda a nossa vida e sem descanso, para destruir a origem de todos
os infortunios da nossa patria, a forca damninha que a opprime, a
autocracia!»

--Prendam-no! gritou o official.

Mas logo teve a voz coberta por uma explosão de gritos:

--Morra a autocracia!

Afastando a multidão, ás cotovelladas, os polícias atiraram-se para o
orador, a quem o povo formava estreito circulo, emquanto elle bradava:

--Viva a liberdade! É por ella que devemos viver e morrer!

Pélagué foi arrebatada para longe. Transida de terror, agarrou-se a
uma cruz e fechou os olhos, á espera do golpe que havia de feril-a.
Ensurdecia-a um turbilhão impetuoso de sons discordantes; sentia
faltar-lhe o solo debaixo dos pés; opprimiam-lhe a respiração o vento e
o medo. Os apitos da policia rasgavam o ar; resoavam vozes roucas, de
commando; mulheres soltavam gritos nervosos; estralejavam madeiras das
divisorias de covaes; no terreno, secco, resoava lugubremente o pesado
tropel de toda aquella gente. Durou isto muito tempo.

Pélagué não podia conservar por maior espaço os olhos fechados; era
demasiado lancinante o seu horror. Olhou em volta, e soltando uma
exclamação entrou a correr, de braços estendidos. Não longe, em
estreito carreiro, entre tumulos, estavam os policias cercando o rapaz
de cabello preto e defendendo-se dos ataques da populaça. Scintillavam
pelo ar com brancos e frios reflexos, as laminas desembainhadas;
elevavam-se acima das cabeças e caíam rapidamente. Bengalas, destroços
dos tapumes surgiam, para logo desapparecerem; em selvagem torvelinho,
cruzavam-se os gritos da multidão amotinada; de vez emquando,
divisava-se o rosto pallido do rapaz; com voz forte que dominava a
tempestade das iras, bradava:

--Camaradas! Para que serve sacrificarem-se inutilmente?

Acabaram por lhe obedecer. Atiraram para longe os cacetes e uns apóz
outros, foram-se afastando. Pélagué continuava a caminhar, arrastada
por força invencivel. Viu Nicolao, com o chapeu para a nuca, a repellir
os manifestantes, cegos de colera; ouviu-o dirigindo-lhes censuras:

--Endoideceram?... Soceguem!

Pareceu-lhe que trazia uma das mãos toda ensanguentada.

--Vá-se d’aqui Nicolao! gritou, atirando-se-lhe ao encontro.

--Onde vae a correr? Olhe que lhe fazem mal!

Sentiu-se agarrar por um hombro. Voltou-se. Era Sofia, sem chapeu, os
cabellos em desalinho, sustendo nos braços um rapaz, quasi uma criança,
que limpava á mão o rosto tumefacto e balbuciava com os beiços a tremer:

--Deixem-me... não é nada!

--Veja se trata d’elle. Leve-o para nossa casa.

Aqui tem um lenço... amarre-lhe a cabeça! disse Sofia rapidamente.

E introduzindo entre as mãos de Pélagué a mão do rapaz, deitou a
correr, com um ultimo conselho:

--Vão se depressa, se não são presos!

Os manifestantes precipitavam-se por todas as saídas do cemitério;
atraz d’elles, os polícias marchavam pesadamente por entre as
sepulturas. Embaraçados com as compridas abas das fardetas, praguejavam
e brandiam as espadas. O rapaz seguia-os de longe, com a vista.

--Vamos, depressa! disse-lhe Pélagué com brandura. E limpou-lhe o rosto.

O pequeno lançou um escarro de sangue e ciciou:

--Não lhe dê cuidado... não sinto nada. O polícia bateu-me com o punho
da espada, na cara e na cabeça... E eu dei-lhe com o meu pau... Sempre
apanhou uma sova!... Até uivava!

--Depressa! instava Pélagué, dirigindo-se rapida, para uma pequena
aberta do muro do cemitério.

Pareceu-lhe distinguir para além do muro dois policias á espreita,
disfarçados com a verdura e que os esperavam, para lhes saltarem em
cima á pancada, tão depressa elles apparecessem. Mas depois de ter
empurrado a portinha com precaução, espraiou a vista pelo campo, todo
envolvido no tecido pardacento d’aquelle crepusculo outonal. O silencio
e a quietação que n’elle reinavam tranquillisaram-na de súbito.

--Espere, deixe-me ligar-lhe a cabeça, propôz.

--Não senhora; não tenho que me envergonhar das minhas feridas.

Pélagué pensou-o summariamente.

Aquelle sangue fresco e vermelho apiedou-a immenso; ao sentir-lhe com
os dedos a quente humidade, toda a percorreu um estremecimento de
terror. Em seguida, conduziu o ferido pelo braço, pelo campo fóra, sem
proferir uma palavra. Elle libertou os lábios da ligadura para dizer
alegremente:

--Para que vae a puxar por mim, camarada? Eu posso bem caminhar sósinho!

Mas Pélagué sentia-o cambaliar, o andar vacillava-lhe. A voz ia-lhe
enfraquecendo emquanto falava, interrogando-a sem esperar as respostas.

--Chamo-me Ivan, sou funileiro... e a senhora quem é? Eramos trez no
club do Iégor... trez funileiros; ao todo, eramos onze! Gostavamos
muito d’elle.

Na rua mais proxima, Pélagué tomou um trem e para elle fez subir Ivan,
segredando-lhe:

--Agora, cale-se.

E para mais segurança, puxou-lhe outra vez a ligadura para a bocca.
Elle levou logo a mão á cara, mas não conseguiu libertar os lábios;
o braço recaíu inerte sobre os joelhos. Ainda assim, continuava a
murmurar atravez do lenço:

--Nunca me esquecerei d’estas pancadas, amiguinhos da policia!...
Antes do Iégor, era um estudante que nos dirigia... Ensinava-nos
economia politica... Era muito rigoroso, muito aborrecido... Afinal,
prenderam-no.

Ella passou-lhe o braço em volta e descansou no seio a cabeça do
rapaz. De súbito, sentiu que lhe pesava mais, ao mesmo tempo que se
tinha calado. Transida de medo, Pélagué olhava para todos os lados;
parecia-lhe ver a cada esquina um polícia, pronto a agarrar Ivan e a
matal-o.

O cocheiro voltou-se na almofada, com um sorriso:

--Bebeu, an?

--É verdade, até caír! respondeu ella, suspirando.

--É teu filho?

--É, sim. É sapateiro... Eu sou cosinheira...

--Ah, sim! É duro officio!

Descarregou uma chicotada no cavallo e logo tornou a voltar-se. Baixou
a voz.

--Sabes? Houve ha pouco grande desordem no cemitério. Era o
enterro d’um d’esses políticos, d’essa gente que está contra a
autoridade... que tem questões com a polícia. Havia amigos do defunto
no acompanhamento... Elles então puzeram-se a gritar: «Morram as
autoridades, que arruinam o povo»!? A polícia bateu-lhes. Dizem que
alguns ficaram mortos... Mas a policia tambem apanhou pancada.

Calou-se o cocheiro, abanou a cabeça com ares de desconsolo e proseguiu
n’um tom de voz estranho:

--Assim se vão incommodar os mortos... accordar os cadaveres que dormem!

O trem ia aos salavancos pela calçada, chiando muito; a cabeça de Ivan
rolava suavemente no peito da sua enfermeira. O cocheiro, virado para
elles, continuou, pensativo:

--Anda a agitação entre o povo... As desordens parece que se levantam
debaixo dos pés... É verdade! Esta noite veio a polícia a casa d’uns
visinhos. Fizeram lá não sei o quê até pela manhã e depois, quando se
foram, levaram preso um que é ferreiro. Dizem que uma noite d’estas vão
leval-o ali á beira no rio e afogam-no em segredo. E todavia, era um
homem intelligente, aquelle ferreiro.

--Como se chama elle? perguntou a velha.

--O ferreiro? Chama-se Savyl, mas tem um outro nome: Evetchenko.
É muito mocinho ainda, mas já compreendia muitíssimas coisas, e é
proíbido compreendel-as, ao que parece...

Ás vezes, apparecia lá pelas estações de carroagens e dizia-nos: «Que
vida que vocês levam cocheiros!»

--É verdade, respondiamos-lhe nós, o nosso officio é peor que o dos
cães!»

--Pára ahi! ordenou Pélagué.

O sobresalto produzido fez então que Ivan voltasse a si. Entrou a gemer
devagarinho.

--Esse rapaz está muito doente, observou o cocheiro.

Vacillante, Ivan atravessou o páteo, custando-lhe collocar um pé
adiante do outro.

--Não é nada, dizia. Ando perfeitamente...



XII


Sofia já estava de volta. Atarefada e mexendo-se muito, recebeu a
velha, de cigarro na bocca. Deitou o ferido n’um canapé e ligou-lhe com
perícia a cabeça, ao mesmo tempo que ia dando ordens. O fumo do cigarro
obrigava-a a piscar os olhos:

--Doutor, ahi os tem. Sente-se fatigada, Pélagué? Teve muito medo,
não é assim? Está bem, descanse agora um bocado... Nicolao vae-lhe já
buscar o chá e um copo de Porto.

Emocionada por taes acontecimentos, Pélagué respirava com difficuldade
e resentia-se de uma dolorosa sensação de picada no seio.

--Não se importem commigo, murmurou.

E toda a sua pessôa, transida de medo, supplicava um affago, um pouco
de attenção... Nicolao veio do quarto contiguo. Trazia a mão ligada.
Atraz d’elle entrou o médico, com os cabellos desgrenhados, como um
ouriço. Correu para Ivan, curvou-se a examinal-o e pediu:

--Agua, muita agua! Pannos de linho limpos! Algodão em rama!

Já Pélagué se dirigia á cosinha, mas Nicolao travou-lhe do braço e
disse-lhe affectuosamente, levando-a para a casa de jantar:

--Não é comsigo que elle fala, é com a Sofia. A minha querida amiga
passou por bastantes commoções, não é verdade?

Aquelle falar apiedado respondeu ella com um soluço mal contido e
exclamou:

--Ah! que horrivel coisa!... A espadeirarem o povo... a espadeirarem!

--Eu tambem lá estava, disse Nicolao, com um aceno confirmativo de
cabeça. E encheu um copo de vinho quente. Dos dois lados houve egual
exaltação... Mas não tenha receio; a polícia aggrediu só com a parte
mais larga das espadas; só uma pessoa ficou ferida gravemente, ao que
me parece... e essa vi-a eu caír ao pé de mim... Puxei-a até para fóra
da batalha.

A fisionomia e a voz com que Nicolao lhe falava, a claridade e o calor
que reinavam no aposento, socegaram os nervos de Pélagué. Dispensou ao
seu hospedeiro um olhar de reconhecimento e perguntou-lhe:

--Tambem ficou ferido?

--Sim, e creio que por culpa minha... Sem querer, rocei com a mão não
sei por quê e fiquei com a pelle arrancada. Beba o seu vinho... Faz
frio e vocemecê tem um fato tão leve!...

Ella estendeu as mãos para o copo e reparou que tinha os dedos cheios
de sangue coagulado. Em gesto instinctivo, deixou caír os braços sobre
os joelhos. Tinha a saia húmida. Esgazeou os olhos, com as sobrancelhas
muito erguidas, examinou furtivamente os dedos. A cabeça andava-lhe á
roda, uma idéa martelava-lhe no cérebro:

--Ahi está, ahi está o que espera o Pavel um dia!

Voltou o médico. Vinha em mangas de camisa e estas arregaçadas. A uma
interrogação muda de Nicolao, respondeu com a sua vozinha delgada:

--A ferida do rosto é insignificante, mas houve fractura do craneo,
que tambem não é muito grave... O rapazola é valente, mas ainda assim
perdeu muito sangue. Vamos leval-o para o hospital.

--Para quê? Póde ficar aqui! accudiu Nicolao.

--Hoje e ámanhã talvez, mas depois era preferivel que se tratasse no
hospital, não tenho tempo para visitas. Encarregas-te do relatório do
que se passou no cemitério?

--Bem entendido! respondeu Nicolao.

Pélagué levantou-se então sem fazer bulha e dirigia-se para a cosinha.

--Onde vae? exclamou Nicolao alvoroçado. Deixe lá a Sofia governar-se
sósinha!

Com um olhar e um sorriso involuntário, singular, respondeu a tremer:

--Estou toda suja de sangue... Estou toda suja de sangue!

E ao mudar de roupa, no seu quarto, mais uma vez ficou a meditar na
serenidade d’aquella gente, n’aquella faculdade de que dispunham de
não demorar muito tempo o pensamento no horror dos acontecimentos.
Esta reflexão fêl-a caír em si, vencendo o sentimento de terror de que
estava possuida. Quando voltou ao quarto onde jazia o ferido, Sofia,
curvada sobre este, dizia-lhe:

--Que tolice, camarada!

--Mas eu vou incommodal-os! observou elle em voz debil.

--Cale-se; é o melhor que tem a fazer.

Pélagué parou por detraz d’ella e pousou-lhe a mão no hombro; fitou
depois, sorrindo, o rosto muito branco do ferido e pôz-se a contar o
medo que lhe tinha causado o seu accesso de delírio, no trem. Ivan
escutava-a com os olhos a arder em febre; fazia estalar os beiços e
exclamava de vez em quando, como que envergonhado:

--Oh, que tolo que eu sou!

--Bem, agora vamos deixal-o, declarou Sofia compondo-lhe as roupas que
o cobriam. Descanse!

E as duas mulheres passaram para a casa de jantar, onde, com Nicolao e
o médico, por muito tempo conversaram baixinho sobre os acontecimentos
d’esse dia. Já o drama era tratado como coisa remota, já se falava
do futuro com tranquillidade; preparava-se a tarefa de ámanhã. Se os
rostos exprimiam a fadiga, os pensamentos latejavam vivos. O doutor
mexia-se nervosamente na cadeira, esforçando-se por velar a voz, que
tinha aguda e esganiçada:

--Ora, a propaganda!... Não basta; os operários têem razão: é
necessario exercer a agitação em terreno mais vasto. Creiam que os
operários têem razão!

Nicolao acrescentou com ar desconsolado:

--Por toda a parte se queixam da insufficiencia dos livros e ainda não
conseguimos montar uma bôa imprensa... A Lioudmila está esgotada de
forças, vae nos caír doente, se não lhe arranjarmos collaboradores.

--E o Vessoftchikof? perguntou Sofia.

--Esse não póde residir na cidade. Ha de entrar para o serviço da nova
imprensa... mas falta-nos ainda alguem...

--E se eu pudesse servir? propôz a velha com brandura.

Os trez fitaram-na um momento.

--É uma bôa idéa! exclamou Sofia de repente.

--Não; é muito difficil para você, creia, Pélagué, contestou Nicolao
com secura. Era preciso que fôsse viver para fóra da cidade, que não
pensasse mais em ver o Pavel, e em geral...

Ella replicou, suspirando:

--Olhe que não faria grande falta ao Pavel... e pela minha parte,
tambem essas visitas me partem o coração. É proibido falar seja do que
fôr! Até pareço uma idiota aos olhos do meu filho! Estão ali mesmo,
sempre a espiar-nos!

Os recentes acontecimentos haviam-na fatigado, e agora, quando se lhe
apresentava ensejo de afastar a idéa dos dramas da cidade, era quando
se agarrava a esse assunto com todas as forças.

Mas Nicolao mudou o curso da conversa.

--Em que pensas? perguntou elle ao doutor.

Este, mal humorado, respondeu:

--Somos poucos! Aqui tens em que penso... É absolutamente necessario
trabalhar com mais energia. É necessario decidir o André e o Pavel a
evadirem-se; são dois trabalhadores preciosos de mais para estarem na
inacção.

Nicolao franziu o sobrolho, meneou a cabeça em ar de dúvida e lançou um
rápido olhar para a mãe de Pavel. Percebeu que se constrangiam em falar
do filho diante d’ella e foi para o seu quarto, levemente irritada
contra quem tão pouco se preoccupava com os seus desejos.

Deitou-se e, de olhos abertos, embalada pelo ciciar das vozes,
sentiu-se tomada de inquietação. Parecia-lhe incompreensivel o dia que
acabava de decorrer, cheio de allusões ameaçadoras; mas porque este
genero de reflexão lhe fôsse penoso, afastou-as do cérebro e entrou
de pensar no seu filho. Queria vel-o em liberdade e, ao mesmo tempo,
tal idéa assustava-a; sentia que tudo se lhe agitava em torno; a
situação tornava-se cada vez mais tensa, andavam imminentes violentas
collisões. A paciencia do povo dera logar a enervada espectativa;
crescia visivelmente a irritação publica, ouviam-se com frequencia
frases rancorosas, de toda a parte soprava um hálito novo, um vento
d’excitação. As proclamações eram discutidas animadamente no mercado,
nas lojas, entre a criadagem e os artifices; cada prisão que na
cidade se effectuasse despertava ecos tímidos, mas inconscientemente
simpaticos e as suas causas eram commentadas. Pélagué ouvia agora com
mais frequencia a gente do povo pronunciar as palavras que outrora a
amedrontavam tanto: «socialistas, política, revolta». Taes palavras
eram repetidas com ironia, mas esta ironia não chegava a disfarçar o
fim principal, que era o de se informarem das opiniões; com colera,
mas sob esta colera transparecia o medo, e todos andavam pensativos,
entre alternativas de esperança e de ameaça... Em vastos circulos,
lentamente, ia-se propagando a agitação na vida sombria e estagnada do
povo; despertava o pensamento adormecido; os acontecimentos diarios
já não eram tratados com o socego habitual e a antiga placidez dos
fortes. Pélagué notava tudo isto mais distinctamente do que os
seus companheiros, pois que melhor do que elles conhecia o aspecto
desconsolador da vida, d’ella vivia mais proxima e n’ella divisava
simtomas de reflexão e de irritação, uma sêde vaga de alguma coisa
nova, o que a regosijava e assustava-a um tempo. Regosijava-se porque
tudo considerava obra de seu filho; assustava-se porque sabia que elle,
mal saísse da cadeia, logo iria collocar-se no posto mais perigoso, á
frente dos companheiros... e que ali havia de morrer.

Sentia muitas vezes Pélagué agitarem-lhe o espirito os grandes ideaes
indispensaveis á humanidade e experimentava o desejo de falar da
verdade, mas quasi nunca conseguia realisar o seu desejo. N’esta mudez
forçada, os seus secretos pensamentos acabrunhavam-na. Por vezes, a
imagem do filho tomava a seus olhos as proporções giganteas d’um heroe
de lenda; n’elle resumia todas as maximas fortes e leaes que ouvira,
todos os seus affectos, todas as coisas grandes e luminosas que o seu
espirito abraçava. Contemplava-o então com mudo entusiasmo; ufana,
enternecida, nadando em esperança, dizia comsigo:

--Tudo ha de ir bem!... tudo!

O seu amor materno exaltava-se, comprimia-lhe o coração até
fazel-o sangrar, mas impedia que n’elle o amor pela humanidade se
desenvolvesse, chegando a destruil-o de todo; e no logar d’este grande
sentimento só ficava uma minúscula idéa fixa a palpitar timidamente nas
cinzas frias da inquietação:

--Vae morrer... Vae morrer!...

Adormeceu tardíssimo em profundo somno, mas accordou logo muito cedo,
com o corpo dorido e a cabeça pesada.



XIV


Ao meio dia, já Pélagué estava na secretaria da cadeia. Com turvo
olhar, examinava o rosto barbudo de Pavel, que se lhe sentára em
frente, á espera do momento em que poderia passar-lhe o bilhete que
apertava fortemente na mão.

--Estou de saúde, e outros tambem, dizia Pavel a meia voz. E tu? como
vaes?

--Muito bem. Morreu o Iégor! respondeu maquinalmente.

--Palavra?! exclamou Pavel; e baixou a cabeça.

--Vinha a policia no enterro, houve uma desordem, e foi um homem preso,
continuou ella com simplicidade.

O sub-director da cadeia deu com a bocca um estalo, aborrecido, e
levantou-se a resmungar:

--Não falem n’essas coisas! É proíbido, já devem sabel-o. Não se
consente que se fale de política... Oh, Deus poderoso!

Ella ergueu-se igualmente e em voz d’innocencia desculpou-se:

--Eu não falava de política, falava da desordem. E o certo é que elles
bateram uns nos outros. Até um ficou com a cabeça aberta!

--Não faz mal, queira calar-se! Quer dizer: não profira uma palavra que
não lhe diga pessoalmente respeito, a si, á sua familia ou á sua casa.

E para confirmar melhor as suas explicações, sentou-se á secretária e
acrescentou n’um tom de cansaço e de enfado, ao mesmo tempo que punha
em ordem uns documentos:

--Depois, eu é que sou responsavel.

Pélagué lançou-lhe furtivo olhar e introduziu rapidamente o bilhete na
mão de Pavel. Depois, suspirou com allivio:

--Nem eu sei de que hei de falar...

Pavel sorriu.

--Nem eu tão pouco.

--Então para que serve vir fazer visitas? observou, irritado, o
funccionario. Se não sabem de que hão de falar, não venham, não nos
incommodem!

--Quando vaes responder? perguntou a mãe apóz curto silencio.

--O procurador esteve ahi um dia d’estes; disse que era para breve.

Trocaram ainda umas frases banaes. A mãe via que o seu Pavel a fitava
amorosamente.

Não mudara; mostrava-se, como sempre, calmo e ponderado; unicamente, a
barba que lhe crescera vigorosamente, o fazia mais velho; e tinha os
pulsos mais brancos. Pélagué quiz causar-lhe prazer dando-lhe noticias
de Vessoftchikof. Então, sem mudar de voz, no mesmo tom em que lhe
falava de bagatellas, continuou:

--Vi o teu afilhado...

Pavel fitou-a com o ar interrogador. E logo para evocar o rosto
bexigoso do fugitivo, ella cravou o indicador em diversos pontos da
cara.

--Vae bem, o teu rapaz; é robusto, desembaraçado... Vae ter emprego
d’aqui a pouco... Lembras-te? estava sempre a exigir que lhe dessem
trabalho pesado.

Pavel tinha compreendido. Abanou a cabeça e respondeu com os olhos
illuminados por um alegre sorriso:

--Ora essa!... se me lembro!...

--Pois ahi tens! disse ella com satisfação.

Sentia-se contente comsigo mesma e alegre com a alegria do filho. Ao
retirar-se, apertou-lhe elle a mão vigorosamente:

--Obrigado, mamã!

Como o vapor da embriaguez, uma sensação de extase subiu á cabeça da
mãe; sentia o coração do filho mais perto do seu; não teve forças para
lhe responder com frases e contentou-se com apertar-lhe tambem a mão,
sem uma palavra mais.

Em casa, encontrou Sachenka, pois tinha esta por costume visital-os nos
dias em que Pélagué ia á cadeia. Nunca a interrogava ácerca de Pavel;
se Pélagué, de motu-proprio, não falava do filho, Sachenka ficava-se
a olhar fixamente para ella, e era tudo. Mas n’esse dia, acolheu-a com
uma interrogação de desasocego:

--E então, que faz elle?

--Está bom.

--Deu-lhe o bilhete?

--Com certeza.

--E leu-o?

--Está visto que não. Como podia elle lêl-o?

--É verdade!... Esquecia-me!... emendou com lentidão a rapariga.
Esperemos mais uma semana... E que lhe parece? Estará d’accordo? E
olhou fito para a mãe de Pavel.

--Sim... não sei... creio que sim! respondeu. Porque não havia elle de
se evadir? Perigo, não ha nenhum...

Sachenka concordou com um aceno e perguntou com seccura:

--Não sabe dizer-me o que é que se póde dar a comer ao doente? Diz que
tem fome...

--Póde comer de tudo... de tudo! Eu mesma lá vou.

E encaminhou-se para a cosinha. Sachenka seguiu-a vagarosamente.

Pélagué foi ao fogão buscar uma cassarola.

--Escute! murmurou a rapariga.

Fez se pálida, os olhos dilataram-se-lhe n’uma angustia e com os beiços
trémulos, segredou de enfiada:

--Queria perguntar-lhe... Eu bem sei: elle não ha de querer. Mas
convença-o, diga-lhe que precisamos d’elle, que não podemos passar sem
elle, que tenho medo que elle caia doente n’essa prisão... que tenho
muito medo! Bem vê: nem ainda está fixado o dia do julgamento!...

Falava com difficuldade e tal esforço toda a inteiriçava; não se
atrevia a fitar a mãe de Pavel; a voz saía-lhe desigual como corda
que se puxa de mais, e logo se quebra. Com as palpebras cerradas
mollemente, mordia os beiços e ouviam-se-lhe estalar as articulações
dos dedos, enclavinhados.

Pélagué, ficou emocionada ao ver aquelle accesso de exaltação, mas
compreendeu. Commovida, cheia de tristeza, abraçou-a e respondeu baixo:

--Minha filha: elle não dá ouvidos senão a si mesmo... A mais ninguem!

Permaneceram um instante em silencio, estreitamente enlaçadas. Depois,
Sachenka soltou-se-lhe dos braços suavemente e disse enleada:

--Sim... tem razão! São tolices minhas... são os meus nervos!

E fazendo-se de repente muito séria, concluiu simplesmente:

--Mas agora me lembro: é preciso levar de comer ao doente!

D’ahi a pouco, sentada á cabeceira de Ivan, perguntava a este em tom de
amigavel sollicitude:

--Doe-lhe muito a cabeça?

--Não, não muito... Mas vejo e oiço tudo vagamente... sinto-me fraco!
respondeu Ivan confuso e puxando a roupa até o queixo. Pestanejava
de contínuo, como se a luz se lhe tornasse demasiado forte. E porque
notasse que o rapaz não se resolvia a comer na presença d’ella,
Sachenka levantou-se e saíu do quarto.

Ivan sentou-se na cama, seguindo-a com a vista; e, piscando o olho:

--É tão bonita!...

Ivan tinha uns olhos claros e espertos, dentes pequenos e muito iguaes,
a voz estava ainda na mudança da puberdade.

--Que idade tem? perguntou-lhe Pélagué pensativa.

--Dezesete annos.

--Onde vivem seus paes?

--No campo. Ha sete annos que vivo aqui; abandonei a aldeia ao saír do
collegio... E a senhora, camarada, qual é o seu nome?

O ouvir tratar-se assim divertia sempre Pélagué, e sensibilisava-a.
Muito risonha, retorquiu:

--Que precisão tem de o saber?

Calou-se um instante o rapaz, confuso, e explicou:

--É que um estudante do nosso grémio... quer dizer do grémio que nos
fazia as leituras, falou-nos da mãe de Pavel Vlassof, sabe? aquelle
que organisou a manifestação do primeiro de maio... o revolucionario
Vlassof.

Ella confirmou com a cabeça e apurou o ouvido.

--Foi elle o primeiro a desfraldar a bandeira do nosso partido!
declarou com emfase o rapaz, e esta exclamação de orgulho ecoou no
coração da mãe. Eu não estava no grupo... Tinhamos tenção de fazer
uma manifestação tambem aqui, mas fomos mal succedidos: eramos muito
poucos! Mas este anno ha de ser outra coisa... Verá!

Offegava, emocionado, comprazendo-se á idéa de futuros acontecimentos.
Agitando a colher, proseguiu:

--Falava eu então da mãe de Vlassof... Ao que parece, entrou tambem
para o partido depois da prisão do filho... Dizem que essa velha é
extraordinaria!

Pélagué teve um franco sorriso: sentia-se a um tempo lisonjeada e
constrangida. Ia dizer-lhe que a mãe de Pavel era ella; mas conteve-se
e pensou com tristeza e um pouco de ironia:

--Que velha tola que eu sou!

E de repente, dominando a sensibilidade que a dominava, curvou-se para
o rapaz:

--Vamos, coma! Coma que mais depressa se ha de curar para proseguir
nos nossos trabalhos! A causa do povo precisa de braços juvenis e
robustos, de corações puros, de espíritos leaes! São essas forças que
lhe dão vida; é por ellas que hão de ser vencidas toda a maldade e toda
a infamia!...

Abriu-se a porta, deixando penetrar o fresco húmido do outono. Entrou
Sofia, alegre, com as faces muito córadas.

--Os espiões andam a perseguir-me como os janotas arruinados perseguem
uma herdeira rica, palavra d’honra! Tenho de me ir embora d’aqui.

--E então, Ivan, como vae?... Bem?... Pélagué, que diz o Pavel?... A
Sachenka está cá?

Accendia um cigarro e ia fazendo todas estas perguntas sem esperar
as respostas. Afagava no entretanto a velha e o rapaz com a caricia
do seu olhar pardacento. Pélagué considerava a recemchegada, rindo
interiormente e pensava:

«E eis como eu tambem me transformei em creatura humana... e n’uma bôa
creatura, até!»

Inclinando-se de novo para Ivan, disse-lhe:

--Cure-se depressa, rapazinho!

E passou á casa de jantar, onde estava Sofia a dizer a Sachenka:

--Ella já preparou trezentos exemplares!... Mata-se a trabalhar... Que
heroísmo o d’ella! Sabe Sachenka, que é uma verdadeira felicidade viver
entre gente assim, ser seu camarada, trabalhar com elles!...

--É certo! respondeu a rapariga.

E á noite, Sofia annunciou:

--Mãe Pélagué, precisamos que faça uma nova excursão pelo campo.

--Com muito gosto. Quando é a partida?

--Dentro de trez dias... Está por isso?

--Certamente!

--Mas não ha de ir a pé, aconselhou Nicolao.

Alugam-se cavallos de posta e toma outro caminho: pelo districto de
Nikolsky...

Aqui, calou-se; tomára uns modos sombrios que não condiziam com a sua
expressão habitual; as suas feições tão calmas tiveram uma contracção
singular de fealdade.

--É uma volta muito grande! fez notar a velha. E os cavallos custam
caro.

--É preciso que saibam, proseguiu Nicolao. Sou geralmente contrario a
estas viagens. Ha agitação lá para esses lados... ha pouco, fizeram-se
por lá prisões, foi encarcerado um mestre escola... É bom ser-se
prudente... Mais valia esperar um pouco...

--Ora! redarguiu Pélagué a rir. Se é certo o que dizem: que não se
tortura ninguem n’essas prisões...


Sofia, que tamborilava sobre a mesa, observou:

--Mas é importantissimo para nós que a distribuição dos folhetos e dos
manifestos se faça sem interrupção... Não tem medo de lá ir, Pélagué?
perguntou bruscamente.

Sentiu-se melindrada.

--Tive eu alguma vez medo? Mesmo da primeira vez não me senti nada
assustada... e a senhora...

Baixou a cabeça sem terminar a frase. É que sempre que lhe perguntavam
se ella tinha medo, se podia fazer uma coisa ou outra, se isto ou
aquillo era facil para ella, presentia que precisavam de si para alguma
coisa, que tratavam de se descartar d’ella, e que a tratavam por fórma
diversa da que usavam entre elles.

Quando tinham vindo os dias dos acontecimentos mais consideraveis,
haviam-na ao principio assustado um pouco a rapidez dos incidentes e a
repetição das emoções, mas logo, instigada pelo exemplo e sob o impulso
das idéas que a dominavam, o seu coração transbordára do immenso
desejo de se tornar tambem util. Era este o seu estado de espirito
n’esse dia, e a pergunta de Sofia tornou-se-lhe assim, pois, tanto mais
desagradavel.

--É inutil perguntar se tenho medo... ou outra qualquer coisa
d’este genero, proseguiu ella. Porque havia de ter medo?... Os que
possuem alguma coisa é que teem medo. E eu que tenho? O meu filho,
unicamente... Tinha medo por elle... Tinha medo que o torturassem e que
me fizessem outro tanto. Mas desde o momento que não ha torturas, que
me importa o resto?

--Não está zangada comigo?! exclamou Sofia.

--Não... Somente noto que nunca pergunta aos outros se têm medo...

Nicolao tirou com vivacidade os óculos, tornou a pôl-os e olhou de fito
para a irmã. O silencio contrafeito que se estabeleceu agitou a alma
de Pélagué. Levantou-se constrangida; ia falar, mas Sofia, pegando-lhe
brandamente em uma das mãos, disse baixinho:

--Desculpe... Nunca mais lho pergunto.

Esta promessa fez rir a anciã. E instantes depois, todos trez
conversavam affectuosamente mas preoccupados, sobre a nova jornada ao
campo.



XV


Logo ao nascer da aurora, lá ia a velha na carrinhola, em fortes
solavancos pelas estradas enlameadas pelas chuvas do outono. Soprava
húmido vento; a lama voava em mil respingos; o postilhão, sentado
á beira do carro, virado para Pélagué, ia a lamentar-se n’uma voz
anasalada e filosófica:

--Tinha eu dito áquelle meu irmão: façamos partilhas! E começámos a
fazer partilhas...

Mas de repente fustigou o cavallo da mão com valente chicotada e gritou
furioso:

--Queres andar, ou não, estuporado animal?

Os nédios corvos d’outono saltitavam com gravidade pelos campos nús;
o vento vinha-lhes ao encontro, assobiando; elles então apresentavam
o flanco ao vento, que lhes arrepiava as pennas e os obrigava a
cambalear, e elles cediam á força da brisa e deitavam a voar com um
palpitar indolente das azas.

--Finalmente prejudicou-me, e eu vi que não havia nada a fazer com
elle, concluiu o postilhão.

As palavras do homem resoavam como n’um sonho, aos ouvidos de Pélagué;
no seu coração germinava um pensamento muito diverso, a sua memoria
fazia-lhe desfilar na frente a longa série dos acontecimentos passados
nos ultimos annos. Outrora, a vida, para ella, era como uma coisa
criada não se sabia onde, muito longe, não se sabia por quem, nem
porquê, e, agora, um numero consideravel de coisas se faziam á sua
vista e com o seu próprio auxílio. E um vago sentimento se apoderava
d’ella: era perplexidade e suave tristeza, contentamento e desconfiança
de si mesma...

Em torno d’ella, tudo se deslocava com lento movimento; no ceu, vogavam
pesadamente as nuvens pardacentas, correndo para passarem umas adiante
das outras; aos dois lados do caminho, fugiam as arvores encharcadas,
com os cumes desnudados a baloiçarem; os campos estendiam-se em
circulos regulares; monticulos adiantavam-se-lhe ao encontro, depois,
ficavam para traz. Dir-se-ia que aquelle dia turvado ia a correr para
alguma coisa longinqua, indispensavel.

A voz nasal do postilhão, o tintilar dos guisos, o assobiar húmido
e o perpassar do vento, tudo se fundia em uma torrente sinuosa e
palpitante, que corria por cima dos campos com força uniforme e que
suggestionava os espíritos.

--O rico até no ceu acha o espaço pouco!... É sempre assim! Meu irmão
entrou a chicanar... as autoridades protegem-no! continuava o cocheiro,
sentado sempre no rebordo do vehículo.

Chegados ao termo da viagem, desatrelou os cavallos e disse á velha
n’um tom desesperado:

--Bem me podias dar cinco kopecks para beber uma pinga.

E como ella acquiescesse ao pedido, o homem declarou no mesmo tom,
fazendo tenir as duas pequenas moedas no concavo da mão:

--Pois vou comprar uns trez kopecks d’aguardente e dois de pão!...

Pela tarde, chegou Pélagué, esfalfada e transida á importante villa de
Nikolsky. Dirigiu-se á hospedaria, pediu chá e, tendo occultado debaixo
d’um banco a sua pesada mala de mão, foi sentar-se ao pé da janella,
a olhar para o largosinho, revestido d’um tapete amarellado de herva
calcada, e para o edificio da administração da communa, um casarão
pardacento e triste, com os telhados a caír. Sentado nos degraus da
entrada, estava um campónio calvo, de barbas compridas, a fumar o seu
cachimbo.

Corriam as nuvens em massas sombrias; amontoavam-se umas sobre outras.
Reinava silencio; tudo respirava um tédio de mau humor; dir-se-ia que a
existencia inteira se tinha occultado não se sabia onde, silenciosa.

De repente, appareceu um official inferior de cossacos, a galope;
sopeou o alazão que montava, em frente da entrada da administração e
gritou o que quer que fôsse para o campónio, agitando o chicote no
ar. Os seus gritos atravessavam as vidraças, mas Pélagué não podia
distinguir as palavras. O campónio levantou-se, estendeu a mão para
o horizonte; o official inferior saltou para o chão, cambaleou um
pouco, atirou as rédeas ao homem; depois, firmando-se pesadamente na
balaustrada, subiu os degraus e sumiu-se no interior do edificio.

Fez-se novo silencio. Por duas vezes o alazão bateu com o casco no
solo empapaçado. Uma rapariguinha, de olhos cariciosos e rosto muito
redondo, com uma pequena trança loira caída no hombro, entrou na sala
onde Pélagué estava. De bocca franzida, trazia sobre os dois braços
estendidos uma enorme bandeja de bordas já gastas, carregada de louça.
Cumprimentou com a cabeça.

--Viva, minha lindinha! disse-lhe Pélagué amoravelmente.

--Viva!

Quando dispunha sobre a mesa pratos e chavenas, a pequena annunciou de
chofre, muito animada:

--Apanharam agora mesmo um ladrão... Vão trazel-o para aqui.

--Que vem a ser esse ladrão?

--Não sei.

--Que fez elle?

--Não sei; só ouvi dizer que tinham apanhado um ladrão! Foi o guarda
que saíu a correr da administração para ir buscar o commissário. Ia a
gritar: «Está agarrado, tragam-no para cá!»

Pélagué olhou pela janella e viu que vários camponezes se approximavam.
Uns caminhavam devagar, com todo o socego; outros, corriam e vinham a
abotoar as suas capas de pelles mesmo a andar. Pararam todos em frente
do casarão e dirigiram os olhares para a esquerda. Mas conservavam-se
todos em singular silencio.

A rapariguinha olhou tambem para a rua e saíu da sala, batendo
ruidosamente com a porta. Pélagué estremeceu. Occultou o melhor que
poude a mala debaixo do banco, cobriu a cabeça com um lenço e veio
fóra, a passo rápido, reprimindo o incompreensivel desejo de fugir que
toda inteira a assaltava.

Ao chegar ao poial da entrada da estalagem, sentiu nos olhos e no peito
um friosinho agudo; suffocou, teve as pernas dormentes: a meio do largo
caminhava Rybine com as mãos amarradas nas costas, escoltado por dois
guardas. Silenciosa, a multidão dos campónios estava á espera, em volta
da escadaria da administração.

Atordoada, sem compreender bem o que via, Pélagué não desfitava Rybine.
Este vinha a falar, pois que Pélagué lhe ouvia o som da voz, mas as
palavras voavam indecisas, sem que tivessem éco no vácuo fremente e
obscuro do seu espirito.

Voltou a si e respirou melhor. Um campónio de barba loira estava a
fitar n’ella attentamente os olhos azues. Ella tossiu, esfregou o peito
com as mãos trémulas de terror e perguntou com esforço:

--Que se passa?

--Veja vocemecê mesma, redarguiu o camponez, voltando-se de novo para
ella. Outro rústico approximou-se do primeiro e postou-se lado a lado.

Os guardas fizeram alto em frente da populaça sem cessar crescente, mas
que permanecia muda. De súbito, a voz de Rybine resoou com inergia:

--Teem ouvido falar d’esses papeis em que se escreve toda a verdade a
respeito da nossa vida de campónios?... Pois bem: foi por causa d’esses
papeis que me prenderam! Fui eu que os distribui pelo povo!

A multidão cercou então o preso. Este apparentava voz calma,
reflectida, e isto aliviou Pélagué da oppressão em que se sentia.

--Estás ouvindo? perguntou o segundo camponez ao dos olhos azues,
dando-lhe com o cotovelo.

Este, sem responder, ergueu a cabeça e de novo fitou a velha. O outro
fez o mesmo. Era mais novo que o primeiro e tinha uma cara chupada,
coberta de sardas, de barbinhas pretas. Os dois afastaram-se um pouco.

--Teem medo! disse Pélagué comsigo.

E augmentou de attenção. Da soleira da estalagem distinguia
perfeitamente o rosto sujo e tumefacto de Rybine, divisava-lhe o brilho
do olhar; desejava que elle tambem a visse; pôz-se nos bicos dos pés,
de pescoço estendido.

Varios populares attentavam n’ella com modos frios, desconfiados, sem
proferir uma palavra. Só nas primeiras filas do ajuntamento é que se
notava um susurro continuado de conversações.

--Camponezes, meus irmãos, proseguiu Rybine com voz máscula e firme,
tenham confiança n’esses escriptos! É para a morte talvez, que
eu caminho por causa d’elles! Fui espancado, torturado, quizeram
obrigar-me a dizer d’onde elles provinham... Pois que continuem a
espancar-me--tudo supportarei!... Porque n’esses papeis encontra-se a
verdade, e a verdade é para ser por nós mais presada do que o pão!...
do que a própria vida!

--Para que diz elle aquillo? perguntou um dos dois campónios.

O dos olhos azues respondeu com lentidão:

--Que lhe importa, a elle? A gente não morre duas vezes... E agora que
já está condemnado...

Os trabalhadores continuavam mudos, relanceando olhares furtivos e mal
humorados; a todos parecia acabrunhar o que quer que fosse invisivel
mas esmagador.

O official inferior appareceu n’isto na balaustrada da administração.
Titubeante e em voz avinhada, regougou:

--Que vem a ser toda esta gente? Quem está para ahi a falar?

Precipitou-se para o largo, agarrou e saccudiu Rybine pelos cabellos,
gritando:

--És tu que estás a falar, filho d’uma cadella... és tu?

Fez-se agitação entre o povo, que entrou a murmurar. Presa de violenta
angustia, a cabeça de Pélagué descaíu sobre o peito. Um dos campónios
suspirou com ruido. E de novo resoou a voz de Rybine:

--Pois bem, bôa gente, escutem!...

--Cala-te!

E o sargento deu-lhe um murro sobre o ouvido. Rybine cambaleou, depois,
ergueu os hombros.

--Amarram as mãos a uma pessôa para a martirisarem á vontade!

--Guardas, levem-no! Olá! toca a dispersar! E, aos saltos na frente
de Rybine, como um cão preso pela trela diante d’um naco de carne, o
sargento atirava-lhe murros á cara, ao ventre e ao peito.

--Não lhe batas! gritou uma voz entre o povo.

--Para que lhe bates? perguntou outro.

--Vamo-nos embora! disse o dos olhos azues para o companheiro, abanando
a cabeça. E, de seu vagar atravessaram o largo, emquanto Pélagué os
acompanhava com um olhar de simpatia.

Suspirou então, mais aliviada. O sargento accudiu outra vez, em pesado
passo, á balaustrada e entrou a gritar, furioso, brandindo o punho:

--Tragam-no para aqui, já lhes disse.

--Não! replicou uma voz sonora. (A velha percebeu que era a do camponez
dos olhos azues.) Não devemos consentir! Se o deixam entrar ali, vae
ser espancado até o matarem! E depois não faltará quem diga que a culpa
foi nossa, que fomos nós que o matámos!... Não devemos consentir!

--Camponezes! gritou Rybine. Não vêem a vida que levam? Não vêem como
são explorados, ludibriados, e que lhes tiram o sangue?... Tudo repousa
em vós; vós sois a principal força da terra... toda a sua força!... E
quaes são as vossas regalias? Unicamente a de morrer á fome!

De subito, os camponezes proromperam em gritos, interrompendo se uns
aos outros:

--O homem tem razão!

--Chamem o commissário da policia rural! Onde está?

--O sargento foi chamal-o!

--Ora adeus! O sargento está bêbedo!

--Não é a nós que compete chamar as auctoridades!

--Fala, que não deixamos que te batam!

--O que foi que tu fizeste, an?

--Desamarrem-lhe os pulsos.

--Não, não, meus irmãos!

--Porque não? Que importancia tem isso?

--Pensem bem no que fazem!

--Doem-me os pulsos! disse Rybine, dominando o tumulto com a sua voz
sonora e espaçada. Meus irmãos! descansem que não fujo!... Eu não posso
fugir á verdade, pois que ella vive em mim!

Algumas pessôas separaram-se do ajuntamento e foram-se afastando com
meneios de cabeça; alguns riam... Mas sem cessar, gente exaltada, mal
vestida por terem envergado os fatos á pressa, vinha chegando de todos
os lados. Fervilhavam em volta de Rybine qual negra escuma. De pé, no
meio d’elles, tal um cruzeiro em meio da floresta, o preso ergueu os
braços acima da cabeça e gritou:

--Obrigado, obrigado, bôa gente! Sim! devemos desligar as nossas mãos
mutuamente! Quem nos havia de ajudar, se nós não nos ajudassemos uns
aos outros?

Ergueu novamente uma das mãos, toda ensanguentada:

--Vêem o meu sangue? É pela verdade que o derramo!

Pélagué desceu o poial. Mas do nivel do largo, já Rybine lhe não era
visivel; tornou pois a subir os degraus. Tinha o peito em fogo mas
dentro d’elle sentia palpitar alguma coisa de vaga alegria...

--Camponezes! Busquem esses folhetos, leiam-nos. Não acreditem nas
autoridades e nos padres, que andam a dizer-lhes que são ímpios e
herejes aquelles que vos trazem a verdade!... A verdade vae sempre
fazendo o seu caminho silencioso pela terra, e no seio do povo encontra
abrigo. Para essas autoridades ella é peor que o ferro e que o fogo.
A verdade é a nossa melhor amiga; para a autoridade é uma inimiga
declarada.--ahi teem porque ella se esconde.

De novo resoaram entre a multidão varias exclamações.

--Irmãos, escutem!

--Ai, pobre homem, estás perdido!

--Quem te denunciou?

--Foi o padre, respondeu um dos guardas.

Dois dos camponezes vomitaram logo uma chuva de impropérios.

--Cuidado, camaradas! advertiu uma voz.



XVI


É que vinha chegando o commissário da polícia rural.

Era um homem alto e robusto, cara redonda. Trazia o bonné inclinado
para a orelha; uma das guias do bigode vinha retorcida para cima,
a outra pendia-lhe do canto da bocca, o que lhe dava uma expressão
contorcida á cara, já de si desfigurada por um sorriso parado e
estúpido. Na mão esquerda tinha uma pequena espada e balançava o braço
direito ao ritmo dos passos. Fazia bulha, com o andar, pesado e firme.
A populaça afastava-se na sua passagem. As fisionomias tomavam um
aspecto de triste acabrunhamento.

O tumulto socegára, desapparecera como se se tivesse sumido pela terra.
Pélagué sentiu estremecer-lhe em repuxões nervosos a pelle da fronte;
offuscava-lhe a vista uma como névoa de calor. Novamente teve vontade
de ir misturar-se áquella gente; inclinou-se porém, e ficou immovel, em
angustiosa espectativa.

--Que temos? perguntou o commissário, parando diante de Rybine e
medindo-o dos pés á cabeça. Porque é que este homem não tem as mãos
amarradas? Porquê? Amarrem-lhas!

Tinha a voz aguda e sonora, mas sem timbre.

--Elle tinha as mãos amarradas... mas o povo desamarrou-lhas! respondeu
um guarda.

--O quê? O povo? Que povo?

Percorreu com a vista o semi-círculo que o cercava e proseguiu na sua
voz branca e uniforme:

--Quem vem a ser aqui o povo?

Tocou com o punho da espada o peito do camponez de olhos azues:

--És tu que és o povo, Tchoumakof? E quem mais? És tu, Michine?

E deu um puxão nas barbas d’outro camponez.

--Vamos a dispersar, canalha!... Senão, comigo se hão de haver...!

Não demonstrava no tom em que falava nem irritação nem ameaça, como tão
pouco na fisionomia. Exprimia-se com uma tranquillidade completa e ia
distribuindo as pancadas em gestos firmes e iguaes. Diante d’elle, os
grupos recuavam, baixavam-se as cabeças, desviavam-se os rostos.

--Então, por que esperam? perguntou aos guardas. Amarrem-no!

E depois de uma chuva de insultos cínicos, virou-se de novo para Rybine:

--Olá, tu! Mãos atraz das costas!

--Não quero ser amarrado! replicou Rybine. Eu não fujo... não me
defendo... Para que serve amarrarem-me?

--O quê?! exclamou o commissário, indo para elle.

--Já bastante martirisastes o povo, feras! continuou Rybine, erguendo a
voz. Tambem vocês dentro em pouco hão de ter os seus dias de sangue!

O commissário parou-lhe na frente de chofre e pôz-se a miral-o, ao
mesmo tempo que repuxava o bigode. Depois, recuou um passo e disse em
tom de espanto e n’uma voz sibilante:

--Ah, filho d’um cão!... Que significam essas palavras?

E bruscamente, com toda a força, descarregou uma punhada no rosto de
Rybine.

--Não se destroe a verdade a murros! gritou este, crescendo para elle.
E tu não tens o direito de me bater!

--Eu não tenho o direito?! berrou o commissário, destacando muito as
palavras.

E novamente atirou o braço para attingir o rosto de Rybine. Este
baixou-se, por fórma que o commissário, com o impulso, esteve a ponto
de caír. D’entre o ajuntamento alguem fungou com ruido. Furioso, Rybine
repetiu:

--Já te disse que não tens o direito de me bater, grande diabo!

O commissário olhou em torno. Os homens, silenciosos e de má catadura,
rodeavam-no em compacto círculo.

--Nikita! chamou. Olá, Nikita!

Um campónio baixote e atarracado, vestido de um curto casacão de
pelles, saíu do grupo. Vinha de olhos fitos no chão, com a enorme
cabeça baixa e os cabellos desgrenhados.

--Nikita! ordenou o commissário com a maior tranquillidade e retorcendo
o bigode. Dá-lhe uma bofetada bôa!

O homem deu um passo para diante, parou em frente de Rybine e ergueu
a cabeça. Rybine, á queima roupa, bombardeou-o com estas palavras
sinceras e duras:

--Vejam vocês, bôa gente, como este bruto vos esmaga com a vossa
própria mão!... Vejam bem... e reflictam.

Lentamente, o homem ergueu o braço e contundiu Rybine na cabeça, mas
levemente.

--Assim é que eu te mandei fazer, canalha? gritou o outro,
esganiçando-se.

--Eh, Nikita! disse alguem próximo. Não te esqueças de que Deus te está
vendo!

--Bate-lhe, já t’o disse! gritou o commissário, empurrando o camponez.

Este afastou-se um passo e respondeu com frieza, de cabeça baixa:

--Não, senhor! não estou para mais!

--Como?

Contraíu-se o rosto da autoridade. Bateu o pé e precipitou-se sobre
Rybine, rogando pragas. A pancada resoou em surdo choque. Rybine
cambaleou, agitou o braço; em segundo assalto, prostrou-o o commissário
no solo e, aos pulos em volta d’elle, entrou a dar-lhe pontapés na
cabeça, pelo peito, nas ilhargas.

A multidão, soltando gritos hostis, pôz-se em movimento e cresceu para
o commissário, mas este deu um salto para o lado e desembaínhou a arma.

--Ah, é assim? Revoltam-se? Ah, é isso?

Tremeu-lhe a voz, tornou-se mais aguda e passou a saír-lhe da garganta
em guinchos, como se se tivesse quebrado. E ao mesmo tempo que perdia
a voz, sentia-se perder todo o prestigio. Com a cabeça encolhida nos
hombros, o dorso recurvado e relanceando em torno o olhar amortecido,
entrou a recuar, tateando cautamente o solo atraz de si. Amedrontado,
rouquejava, ao mesmo tempo que ia cedendo:

--Muito bem... Fiquem com elle... Eu vou-me embora!... Mas, depois?
Fiquem bem sabendo: esse homem é um criminoso político, combate contra
o nosso tzar, anda a fomentar revoltas! Compreendem? É contra Sua
Magestade o Imperador... e vocês defendem-no! Sabem que ficam sendo
rebeldes?

Immovel, o olhar de estátua, sem idéas nem acção, como n’um pesadello,
Pélagué succumbia ao peso do terror e da sua piedade. Semelhantes
ás vibrações d’um sino enorme, susurravam-lhe aos ouvidos os gritos
irritados da plebe. Tudo lhe redemoinhava dentro da cabeça, a voz
tremente do commissário, mil ruidos confusos...

--Se é criminoso, seja julgado!

--E não massacrado!

--Tenha dó d’elle, Excellencia!

--Pois está claro! Não tem direito de bater-lhe!

--Se isto são maneiras de proceder! D’essa fórma, começam todos para
ahi a bater na gente! O que será então!

--Que brutos! que carrascos!

Dividia-se o povo em dois grupos: uns rodeavam o commissário, gritavam,
exortavam-no, os outros, menos numerosos, permaneciam junto do ferido e
discorriam em voz baixa e com ares de abatimento. Ergueram-no do chão
alguns homens. Os guardas dispunham-se a ligal-o de novo.

--Esperem ahi, seus diabos! gritaram-lhes.

Rybine limpou a lama e o sangue que lhe empastavam a cara e,
silencioso, olhou em torno. Deu então com a vista no rosto de Pélagué.
Esta estremeceu, adiantou todo o corpo para elle, fez instinctivo
gesto. Elle desviou os olhos. Mas, alguns instantes mais tarde, voltava
o olhar do preso a fixar-se n’ella. Afigurou-se á pobre mulher que
Rybine se endireitava na sua direcção, que erguia a cabeça para ella,
com um movimento convulso das ensanguentadas faces.

--Reconheceu-me!... É possivel que me tenha reconhecido?!...

E, vibrante de uma pungente satisfação angustiada, fez-lhe um
signal com a cabeça. Mas logo reparou no homem dos olhos azues, que
se encontrava junto de Rybine e que a fitava. Dispertou n’ella a
consciencia do perigo.

--Que estou eu a fazer?... Podem prender-me tambem.

O homem segredou algumas palavras a Rybine; este abanou a cabeça e
disse nervosamente mas por fórma distincta e valorosa:

--Que importa? se eu não estou sósinho no mundo!... A verdade nunca
poderá ser encarcerada! O povo ha de lembrar-se de mim por toda a parte
onde passei... Ahi está! O ninho foi destruido, mas que mal vae n’isso,
se dentro d’elle já não estavam nem amigos, nem camaradas?

É para mim que está a falar! pensou Pélagué.

--O povo saberá construir outros ninhos, em prol da eterna verdade, e
ha-de chegar o dia em que as águias voarão livremente... em que o povo
será libertado!

Trouxe uma mulher um balde d’agua e, desfazendo-se em lamentações,
entrou de lavar o rosto do preso. A vózinha chorosa e fina da mulher
confundia-se com a de Rybine e não deixava que Pélagué entendesse o que
elle dizia. Precedido do commissário de polícia, avançava um grupo de
camponezes. Alguem ordenou:

--Um carro para levar o preso para a cidade! Olá, a quem toca fornecer
o carro?

Em seguida, o commissário gritou n’uma voz transtornada e como vexado:

--Eu posso bater-te, entendes? mas tu não me pódes fazer outro tanto,
tu é que não tens esse direito, idiota!

--Ah! E quem és tu então? Deus de misericordia! replicou Rybine.

Algumas exclamações abafadas cobriram a resposta.

--Não discuta, tiosinho! Olhe que é um chefe!

--Não se zangue mais, Excellencia!

--Cala-te d’ahi, meu original!

--Vão-te já levar para a cidade!...

--Lá, ha mais respeito pela lei!

Os gritos da populaça tornavam-se mais conciliadores, supplicantes;
conjugavam-se em indistincta vozearia, lamentosa, mas sem qualquer
nota em que se traduzisse uma esperança. Os guardas agarraram Rybine
pelos braços, conduziram-no pela escadaria da administração e com elle
penetraram no edificio. Lentamente, a multidão foi-se escoando. Pélagué
notou que o homem dos olhos azues se dirigia para o seu lado e a
observava de soslaio. Tremiam-lhe as pernas; desconsoladora sensação de
impotencia e de isolamento lhe alanceava a alma, causando-lhe nauseas.

--Não devo ir-me embora! pensou. Não o devo fazer!

Reteve-se vigorosamente á balaustrada e ficou esperando.

Em pé, no cimo da escadaria da administração, o commissário
discursava com grandes gestos, repreensivo, e na sua voz outra vez
incaracteristica de indifferença:

--Imbecis! Filhos de cães! Não compreendem nada e vão metter-se n’um
negocio d’estes!... n’um negócio d’Estado! Idiotas! Vocês deviam
agradecer-me a minha bondade, deviam inclinar-se diante de mim, até ao
chão! Se eu quizesse, iam todos para as galés!

Escutavam-no uns vinte campónios, de chapeu na mão.

Caía a noite; vinham descendo as brumas...

Então o homem dos olhos azues approximou-se de Pélagué e commentou com
um suspiro:

--Que cantiga aquella, an?

--É verdade! respondeu, baixo.

Elle fitou-a com um modo decidido; perguntou:

--Em que se emprega?

--Compro rendas ás mulheres que as fabricam... e pannos tambem.

O campónio afagou de vagar a barba; depois, disse em tom de
contrariedade e a olhar na direcção da villa:

--Não temos nada d’isso lá em casa...

A velha examinou-o da cabeça aos pés e ficou-se esperando instante
opportuno para voltar ao interior da hospedaria. Era bello e pensativo
o rosto do homem; nos olhos tinha uma nuvem de melancolia. Alto e
espadaúdo, vestia uma blusa muita remendada, uma camisa limpa, de
chita, umas calças côr de castanha, de grosseiro panno e trazia os pés
nús n’umas alpercatas de canhamo.

Sem saber porquê, soltou Pélagué um suspiro como de alivio. E de
súbito, obedecendo a um instincto mais prompto do que o seu raciocínio,
perguntou-lhe em um impulso que a ella mesma surpreendeu:

--Posso passar a noite em tua casa?

E logo sentiu os músculos, o corpo inteiro retesarem-se n’um espasmo.
Atravessaram-lhe rapidamente o cérebro idéas cruciantes:

--Vou perder Nicolao!... Não mais tornarei a ver o Pavel... por muito
tempo... E hão de espancar-me tambem!

O homem, sem precipitação alguma, olhos no chão, respondeu, emquanto
cruzava sobre o peito a gola da blusa:

--Passar a noite? Sim... porque não? O peor é que a minha cabana não é
grande coisa!

--Tambem, eu não estou habituada a mimos! respondeu ella.

--Está bem! acquiesceu o campónio, medindo-a por seu turno com olhar
perscrutador.

Á claridade do crepúsculo, os olhos do homem tinham um brilho frio; o
rosto tornára-se-lhe muito pálido. E logo, Pélagué, baixo:

--Então, vou já comtigo... Has-de trazer-me a mala.

--Está dito.

Encolheu os hombros, cruzou outra vez a blusa e segredou:

--Ora, veja: lá vem a procissão!

Rybine surgira no topo da escadaria. Trazia de novo as mãos amarradas,
e a cabeça e a cara embrulhadas em qualquer coisa pardacenta. A sua voz
vibrou na frialdade do crepúsculo:

--Até mais ver, bôa gente! Busquem a verdade, conservem-na; creiam
n’aquelles que vos trazem as bôas palavras... Não poupem quantas forças
tenham, em prol da verdade!

--Cala-te, cão! gritou o commissário. Guarda, faz andar esses cavallos!

--...Pois que teem a perder? Que existencia é a vossa?

Pôz-se o carro em andamento. Sentado entre dois guardas, Rybine ainda
gritou cavamente:

--...Porque morrem de fome? Trabalhem por obter a liberdade... É ella
que lhes ha-de dar pão e justiça!... Bôa gente, adeus!

O ruído precipitado das rodas e das patas dos cavallos, as invectivas
do commissário de policia confundiam-se com a sua voz, entrecortando-a
e abafando-lha.

Pélagué voltou para dentro de casa; sentou-se á mesa, perto do samovar,
agarrou n’um pedaço de pão, examinou-o e tornou a pôl-o lentamente no
prato. Não tinha vontade de comer, bem que experimentasse na bocca do
estomago uma desagradavel sensação que lhe esgotava as forças, que lhe
expulsava o sangue do coração e lhe fazia andar a cabeça á roda.

--Elle deu por mim! dizia ella comsigo, tristemente, no sentimento
da sua fraqueza, para poder reagir. Deu por mim... Adivinhou, com
certeza!...

E não podia ir mais longe o seu pensamento: fundia-se n’uma prostração
dolorosa, n’uma sensação viscosa de enjôo...

O silencio timido, como que acoitado para além das vidraças e que
succedera ao borborinho, provava que em toda a villa os habitantes
haviam voltado ao antigo torpor medroso e subserviente, e isto mais lhe
acirrava a sensação de isolamento em que se debatia, enchendo-lhe o
espirito de obscuridade pardacenta e penetrante como cinza.

A rapariguinha abriu a porta e do limiar perguntou:

--Quer que lhe traga uma _omelette_?

--Não... Já não tenho vontade... Esta gritaria fez-me um mal!...

A pequenita foi até junto da mesa e pôz-se a narrar animadamente, mas
em voz baixa:

--Como elle lhe bateu com força, o commissário!... Eu estava mesmo
ao pé d’elle; vi tudo... Até quebrou os dentes todos do homem!... E
quando o homem escarrava, o sangue vinha muito grosso, muito grosso
e escuro!... Nem se lhe viam os olhos!... O sargento está cá. Está
embriagado de todo e não faz senão pedir vinho. Diz elle que era uma
quadrilha inteira e que aquelle das barbas era o chefe. Apanharam trez,
mas um fugiu... E tambem prenderam um mestre escola que andava com
elles!... Elles não crêem em Deus e aconselham o povo a roubar todas as
igrejas. Aqui está o que elles fazem! Havia homens que tinham dó do tal
das barbas, mas outros diziam que se devia dar cabo d’elle!... Sempre
ha homens muito maus cá no nosso sítio!

Pélagué escutava attenta esta rápida e entrecortada narrativa; esperava
distraír assim o seu desasocego e dissipar a oppressora angustia da
espectativa. A pequena encantada com tão bôa ouvinte, tagarelava sempre
com crescente animação, comendo as palavras:

--O papá diz que tudo isto vem da falta de generos, tudo! Ha já dois
annos que a terra não produz nada... e toda a gente anda sem saber o
que ha de fazer. É por isso que apparecem agora homens como aquelle. É
uma desgraça! Vão para as reuniões gritar e bater uns nos outros!...
Ainda no outro dia, quando venderam as terras do Vassioukof, porque não
pagava o fôro, deu uma bofetada no _staroste_.[3] «Ahi teem o fôro!»
disse-lhe o Vassioukof.

Resoaram pesados passos para além da porta.

Pélagué ergueu-se com as mãos apoiadas na mesa. O camponez dos olhos
azues entrou e sem tirar o bonné:

--Onde tem a sua bagagem?

Ergueu a mala sem esforço algum. E observou:

--Está vazia!... Maria, acompanha esta viajante a minha casa.

E saíu sem olhar para ninguem.

--Vae passar a noite á villa? inquiriu a pequena.

--Vou, sim! Eu negoceio em rendas e quero ir fazer as minhas compras.

--Não ha de encontral-as por cá. Em Tinekof e em Darino, ahi é que as
fazem, mas cá na terra, não! explicou Maria.

--Pois ámanhã lá irei...

Pagou o chá e deu trez kopecks á pequena, que ficou contentissima. Já
na rua, propôz esta, emquanto ia chapinhando com os pés descalços pela
terra húmida:

--Se a senhora quer, eu vou muito depressa a Darino, digo ás mulheres
que lhe tragam cá as rendas... As mulheres vêem e a senhora não precisa
fazer a viagem... Olhe que sempre são doze kilometros!

--Não, minha lindinha, não é preciso, respondeu, continuando a caminhar
ao lado da pequena.

Acalmára-a o ar fresco da tardinha. Lentamente, formava vaga resolução
confusa, mas que a satisfazia.

Tal idéa ia germinando com força e, para lhe abreviar a definitiva
fixidez, Pélagué ia sem cessar perguntando a si mesma:

--Que fazer?... Proceder aberta, francamente?...

Tinha caído completamente a noite, húmida e glacial. Brilhavam as
janellas das cabanas com avermelhadas, baças, immoveis claridades.
O gado fazia ouvir no silencio mugidos de indolencia. Aqui e ali,
distinguiam-se breves exclamações. Esmagadora melancolia envolvia todo
o logar.

--É aqui! disse a rapariguinha. Sempre escolheu muito má casa! Este
camponez é tão pobre!...

E ás apalpadelas, procurou a porta abriu-a e gritou com voz esperta:

--Tatiana, aqui está a sua hóspede!

E logo deitou a correr. A sua vozinha vibrou ainda na escuridão:

--Adeus!


NOTAS DE RODAPÉ:

[3] O _staroste_ é o chefe d’um _mir_, ou communa rural autónoma.

N. do T.



XVII


Pélagué deteve-se no limiar a examinar o interior, abrigando os olhos
sob a mão em pala. Era pequena e acanhada a choupana, mas de um aceio
que logo saltava á vista. Uma mulher nova appareceu por detraz do
fogão, cumprimentou em silencio e desappareceu de novo. A um canto,
sentado a uma banca, sobre a qual havia um candieiro acceso, o dono
da casa tamborilava com os dedos na madeira. Fitava demoradamente a
recemchegada.

--Entre! disse-lhe ao cabo de alguns momentos. Tatiana, vae chamar o
Pedro, depressa!

A mulher saíu rapidamente sem mesmo dispensar um simples olhar á
viajante. Esta sentou-se n’um banco, em frente do aldeão e divagou
a vista pelo aposento. Não via a sua mala. Reinava grave silencio
na cabana; só o candieiro fazia ouvir um leve crepitar da chamma.
A fisionomia d’aquelle homem, preoccupada e um tanto carrancuda,
vacillava á luz mortiça, com feições mal definidas.

--Então: Fala... Avia-te!...

--E onde está a minha mala? perguntou logo Pélagué em voz alta e com
severidade, sem ter bem consciencia do motivo por que assim falava.

O campónio encolheu os hombros. Pensativo, respondeu:

--Deixa estar que não está perdida!

E acrescentou friamente e em voz baixa:

--Eu disse diante da pequena que a mala estava vazia. Cá tinha as
minhas razões. Ao contrário, você traz ali coisas bem pesadas...

--E então?

Levantou-se, approximou-se d’ella, curvou-se e inquiriu, baixando ainda
mais a voz:

--Conhece aquelle homem de ha pouco?

Pélagué estremeceu, mas declarou com firmeza:

--Conheço!

Estas simples respostas parecia-lhe que a acalentavam interiormente,
illuminando tudo em volta com a luz d’um heroísmo.

Sorriu-se o campónio.

--Eu bem a vi fazer-lhe um signal... E elle respondeu-lhe...
Perguntei-lhe ao ouvido se conhecia a mulher que estava á porta da
hospedaria...

--E elle? interrogou com anciedade.

--Elle disse só isto: «Somos em grande número...» Sim, foi isto que
elle disse: «Somos em grande número...»

Perscrutava com olhar interrogador a sua hóspede.

Sorriu outra vez e proseguiu:

--É uma grande força, aquelle homem!... Tem muita coragem; diz o que
pensa! Batem-lhe, injuriam-no, mas não cede!

Com o escutar aquelle falar ingenuo, com o ver aquellas feições
grosseiras e aquelles olhos francos e claros, ia-se tranquillisando
pouco a pouco Pélagué. O seu acabrunhamento e os seus receios
dissipavam-se para dar logar a uma compaixão intensa e profunda para
com Rybine. Foi assim que, com súbita e amarga ira, que não poude
reprimir, ella exclamou em tom de lamento:

--Aquelles monstros! Aquelles bandidos!

E entrou a soluçar.

O campónio deu alguns passos, abanando a cabeça com pezar.

--É verdade!... O governo tem andado a arranjar temiveis inimigos!

E de repente, voltando para junto d’ella, segredou:

--Escute. Supponho que traz jornaes na mala... É certo?

--É! respondeu Pélagué simplesmente. E limpava as lagrimas.

--Era para elle que os trazia.

O dono da casa carregou os sobrolhos, juntou na mão toda a barba em
punhado e ficou-se calado, a olhar para um canto.

--Nós tambem recebemos um... e folhetos, livros... Eu cá não sou muito
instruido, mas tenho um amigo que o é. E minha mulher tambem me lê
essas coisas.

Calou-se de novo, pôz-se a pensar; depois perguntou:

--E agora que vae fazer a tudo isso, á sua mala?

A velha fitou-o, e, em tom de instigação:

--Deixo-lha cá!

O outro não pareceu surpreso, não protestou; apenas repetiu:

--Deixa-a cá?

Mas n’isto estendeu o pescoço para a porta, apurou o ouvido.

--Vem ahi gente, segredou.

--Quem?

--Gente nossa, provavelmente...

Entrou a mulher, seguida do campónio sardento. Este atirou o bonné para
um canto, foi até junto do dono da casa e disse-lhe:

--E então?

O outro meneou a cabeça affirmativamente.

--Ó, Stépane! lembrou a mulher. Talvez a nossa viajante tenha vontade
de comer.

--Não, muito obrigada, minha querida senhora.

Voltou-se o segundo camponez para ella e em voz rápida, um tanto
quebrada pela commoção:

--Permitta que eu mesmo me apresente. Chamo-me Pedro Rabinine, por
alcunha o _Sovela_. Percebo alguma coisa d’esses negocios... Sei ler e
escrever e não sou um imbecil, para falar assim...

Apertou a mão que Pélagué lhe estendera, saccudiu-lha, emquanto ia
dizendo a Stépane:

--Ora vê tu lá, Stépane! A esposa do nosso senhor e amo é uma bôa
senhora, pois não é? E apezar d’isso, ella diz que todas estas coisas
são tolices, extravagancias!... que são estudantes e garotos que se
divertem a alvoroçar o povo. Mas não vimos nós dois, ainda agora, ser
preso um homem de bem? E agora estás vendo esta mulher que já não é
criança nenhuma e que tambem não me parece que seja fidalga, e que está
do nosso lado... Não se offenda! Como se chama?

Falava rápido, mas com voz distincta, quasi sem tomar folego; o queixo
tremia-lhe nervosamente e com os olhos franzidos, perscrutava o rosto
e toda a pessôa de Pélagué. Andrajoso, os cabellos em desalinho,
dava a pensar que acabasse d’alguma lucta em que tivesse vencido o
seu adversário e que o dominasse a alacre excitação d’uma victória.
Agradou-se d’elle Pélagué por amor de tal vivacidade e principalmente
por têl-o ouvido falar com simplicidade e franqueza desde o começo.
Correspondeu com amigavel olhar ás suas bôas palavras. O outro
saccudiu-lhe outra vez a mão e pôz-se a rir, n’um risinho secco e
meigo, muito accentuado.

--É negocio de seriedade, bem vês, Stépane. É coisa que a todos dá
honra! Eu bem te dizia que o povo começava a fazer obra pelas suas
mãos... A fidalga, essa, não quer dizer a verdade, porque isso ia
prejudical-a. Mas o povo quer ir para a frente, está decidido a isso,
sem lhe importarem perdas nem prejuizos, estás entendendo? Pois se elle
leva má vida, se não tem senão prejuizos de todos os lados, se elle não
sabe para onde se ha de voltar, pois que não houve outra coisa senão
«Prende! Mata!»

--Bem vejo! approvou o outro, abanando a cabeça. E acrescentou:

--Está em cuidado por causa da mala.

--Não se inquiete, está tudo em ordem, tiasinha! A sua mala foi para
minha casa. Ha bocado, quando o Stépane me falou a seu respeito e
me disse que tambem era cá dos nossos, que conhecia aquelle homem,
disse-lhe eu: «Toma cuidado, Stépane! Nada de dar á lingua! Olha que
é coisa séria!» Mas vocemecê, ainda agora, tiasinha, logo adivinhou
tambem que a gente estava do seu lado. É que as caras da gente honrada
conhecem-se n’um pronto, porque ellas não são muitas por essas ruas,
ah, não!... A sua mala foi para minha casa!

Sentou-se-lhe ao lado e alvitrou com uma sollicitação em cada olhar:

--E se quer despejal-a, com todo o gosto a ajudamos... Precisam-se
livros por cá.

--Quer dar-nos tudo! declarou Stépane.

--Está muito bem, tiasinha! Deixe, que havemos de saber empregal-os bem.

E bruscamente, levantou-se, entrou a rir. Depois, passeando a passos
largos pela cabana, satisfeito:

--É o que se póde chamar um caso de pasmar... ainda que bem simples,
afinal! Parte-se a corda n’um sítio e concerta-se n’outro. E a coisa
assim não vae mal... Olhe que é muito bom, esse periódico, tiasinha;
faz effeito, abre os olhos ao povo. Está visto que não agrada aos
nossos senhores! Trabalho eu agora na casa d’um proprietário, a
sete kilometros d’aqui; sou marceneiro... A mulher d’elle é boa
creatura, forçoso é concordar; dá-nos livros... alguns bastante
estúpidos. Vamo-os lendo e vamo-nos instruindo... Ficamos-lhe em geral
reconhecidos. Mas quando eu lhe mostrei o tal jornal, zangou-se e
disse: «Deixe isso, Pedro. Os que o escrevem não passam d’uns garotos
e d’uns tolos, e com isso vocemecê não arranja senão desgostos... a
cadeia e a Sibéria. Aqui tem o que lhe póde acontecer se continuar a
ler esses papeis.»

Apóz um instante de reflexão, perguntou:

--Diga-me: aquelle outro... o homem... é da sua familia?

--Não, respondeu Pélagué.

Pedro pôz-se a rir só comsigo, muito satisfeito, sem que os outros
soubessem porquê. Afigurou-se a Pélagué uma injustiça falar de Rybine
como de qualquer estranho.

--Não é da minha familia, explicou; mas ha muito que o conhecia...
Respeito-o como se fôsse meu irmão...

Mas não achava a expressão que buscára. Tal deficiencia tornava-se-lhe
dolorosa; e não poude conter o pranto. Na choupana reinava melancolico
silencio. Pedro inclinou a cabeça sobre o hombro; dir-se-ia que
escutava o que quer que fôsse. Reclinado sobre um dos cotovellos,
Stépane tamborilava. A mulher d’este, encostada ao fogão, conservava-se
na sombra. Pélagué sentia-lhe o olhar fito e, por vezes, olhava tambem
para ella, entrevia-lhe o rosto redondo, de pelle escura, nariz
direito, o mento talhado em angulo e com uma expressão de attenta
vigilancia nos olhos esverdinhados.

--É portanto, um amigo! concluiu Pedro. É um homem de valor, por certo!
Tem-se em grande conta e assim devem todos fazer. Aquillo é que é um
homem! não é assim, Tatiana?... Que dizes?

--É casado? interrompeu Tatiana. E franziu com força os labios delgados
da sua bocca meuda.

--É viuvo, respondeu a velha com tristeza.

--Por isso tem tanta coragem! declarou Tatiana em tom profundo e grave.
Um homem casado não se portava assim; tinha medo!

--E então eu, não sou casado? E no entretanto... observou Pedro.

--Basta! disse a mulher sem o fitar e com uma contorção de altivez nos
labios. Que fazes tu? Falas muito e lês um livro de tempos a tempos!
Não é por andares aos segredinhos com o Stépane, pelos cantos, que o
povo é mais feliz.

--Mas é que ha muito bôa gente que me dá attenção! contestou,
offendido, o campónio. Fazes mal em falar-me d’essa maneira! Eu sou
como uma espécie de fermento...

Stépane olhava para sua mulher, sem uma palavra. Por fim, baixou a
cabeça.

--Para que se casa a gente do campo? perguntou ella. Porque precisam de
quem trabalhe, dizem elles. Para trabalhar em quê?

--Então tu não tens bastante em que te entretenhas? interrompeu
Stépane, já zangado.

--E para que serve esse trabalho? O povo continúa a viver na miseria!
Nascem os filhos e nem sequer ha tempo para tratar d’elles, porque o
trabalho urge, o trabalho, que nem nos dá o pão!

E dito isto, foi sentar-se ao lado de Pélagué. N’uma obstinação que não
lhe dava á voz nem tristeza nem lagrimas, proseguiu:

--Eu tive dois... Um morreu escaldado pelo samovar, tinha dois annos;
o outro nasceu morto... sempre por causa do maldito trabalho! Que
felicidade me trouxe então o casamento? O que acho é que a gente do
campo faz mal em casar: ficam de mãos amarradas, e ahi está! Se se
conservassem livres, haviam de combater abertamente em prol da verdade,
como esse homem que tu conheces... Não tenho razão, mãesinha?

--Tens! declarou. Sim, minha querida; d’outra fórma não se podem vencer
as contrariedades da vida.

--E a senhora, tem marido?

--Já morreu. Tenho um filho...

--Onde está elle? Vive comsigo?

--Está na cadeia!

E no seu coração, um pacifico orgulho temperava a tristeza de que taes
palavras vinham sempre acompanhadas.

--É já a segunda vez que o encarceram por ter compreendido a verdade
divina e por andar a semeal-a, abertamente, sem se poupar a fadigas!...
O meu filho é moço, é bello rapaz e é intelligente! Foi d’elle a
idéa de fundar um jornal; foi graças a elle que o Rybine se prestou
a distribuil-o, havendo a notar que o Rybine tem duas vezes a idade
d’elle! Vão julgal-o dentro em pouco, por tudo isso. Mas depois,
quando o meu filho estiver na Sibéria, fugirá e voltará a continuar na
campanha.

--Temos já muita gente e o número augmenta sempre! Todos estão
decididos a luctar até á morte, pela liberdade, pela verdade!

Então, pôz de lado toda a prudencia. Não citou nomes, mas contou tudo
o que sabia do trabalho minaz a que se andava procedendo em favor do
povo. E ao entrar n’este assumpto tão caro ao seu espirito, punha nas
palavras toda a energia, todo o excesso do amor que tão tarde brotára
n’ella sob os repetidos golpes da adversidade.

A voz affluia-lhe igual; accudiam-lhe agora as palavras com tranquilla
facilidade, e quaes pérolas multicolores e irisadas, enfiava-as com
rapidez no sólido fio do seu desejo de purificar a alma de toda a
lama e de todo o sangue d’aquelle dia. Os aldeões como que tinham
criado raizes nos sítios em que as suas primeiras palavras os haviam
encontrado. Immobilisados, fitavam-na em grave compostura. Chegava a
ouvir a respiração arquejante da mulher que se lhe sentava ao lado; e a
attenção do auditório fortificava-lhe a crença nas coisas que dizia e
promettia.

--Todos os que se sentem esmagar pela injustiça e pela miseria, o povo
inteiro, devem correr ao encontro dos que por elle morrem nas prisões
ou nos cadafalsos. Não teem esses nenhum interesse pessoal em jogo.
Explicam qual é o caminho que conduz á felicidade de todos, mas dizem
abertamente quão difficil é esse caminho! Não constrangem ninguem, mas
quando tomamos logar nas suas fileiras, nunca mais os abandonamos, pois
vemos que teem razão, que esse caminho é o verdadeiro, e que não ha
outro.

Era grato ao coração da anciã realisar finalmente o seu desejo: ella
própria falava agora ao povo, acerca da verdade!

--Com taes amigos, póde o povo marchar sem receio: elles não cruzarão
os braços sem que o povo se tenha conjugado n’uma só alma, sem que
tenha bradado com uma voz unica: «Sou eu o supremo senhor; eu mesmo
farei as leis, iguaes para todos!»

Fatigada por fim, calou-se Pélagué. Tinha a serena certeza de que as
suas palavras não se extinguiriam sem deixar vestigios. Os camponezes
continuavam a fital-a, como se ainda a escutassem. Pedro cruzára os
braços no peito e cerrára as palpebras, com um sorriso a brincar-lhe
nas faces sardentas. Com o cotovello na meza, Stépane inclinára-se,
adiantando todo o corpo, de pescoço estendido. Velava-lhe o rosto
uma névoa, um aspecto de maior sisudez. Sentada junto d’ella, com os
cotovellos firmados nos joelhos, Tatiana fitava os bicos dos sapatos.

--Ah! ahi está! balbuciou Pedro.

E sentou-se n’um banco, com precaução, a abanar a cabeça.

Stépane endireitou lentamente o tronco, lançou rápido olhar a sua
mulher e estendeu o braço, como se quizesse alcançar alguma coisa.

--Com effeito, começou elle, meditativo, quem quizer metter hombros á
empreza, é para se lhe entregar de toda a alma!

Pedro interveio aqui, timidamente:

--Está claro... e sem olhar para traz!

--O negócio vae a bom caminho! continuou Stépane.

--E em todo o mundo!... disse ainda Pedro.



XVIII


Recostada e com a cabeça reclinada na parede, escutava Pélagué as
reflexões dos dois homens.

Tatiana levantou-se, olhou em roda, tornou a sentar-se. Com um brilho
metálico nas pupillas verdes, lançou olhares de desprezo aos dois.

--Vê-se que tem sido muito infeliz! disse de súbito, voltando-se para
Pélagué.

--É verdade!

--A senhora fala bem... As suas palavras vão direitas ao coração.
Quando a gente a escuta, pensa: «Meu Deus! quem pudesse vêr, ainda
que não fôsse senão uma vez, gente tão bôa, viver vida tão bella!»
Como vivemos nós, aqui? Como uns carneiros! Eu sei ler e escrever... e
leio livros... reflicto muito; ás vezes, tenho idéas que nem me deixam
dormir de noite. E qual é o resultado de tudo isto? Se não reflicto,
soffro, e soffro em vão; se reflicto, é a mesma coisa! De mais, tudo
é baldado! Assim, esta gente do campo: trabalham, esfalfavam-se por
amor d’um pedaço de pão... e nunca possuem nada!... E é isso o que os
irrita; entram a beber, a bater uns nos outros... e lá vão outra vez
para o trabalho. E o que se apura d’ahi? Nada.

Falava assim, deixando transparecer a ironia no olhar e na voz grave e
ampla, detendo-se por vezes, como para cortar as frases, tal a linha
com que estivesse costurando. Os homens nada objectaram.

O vento rufava nas vidraças, susurrava no colmo do tecto, e por
momentos, soprava em brandas lufadas pela chaminé. Uivava um cão. Raras
gottas de chuva vinham, como a custo, fustigar a janella. Oscillava a
luz do candieiro, empallidecia e recomeçava de subito a brilhar, viva e
igual.

--E aqui está para que vivem os homens! E é curioso: persuado-me de que
já sabia tudo isto! Todavia, nunca tinha ouvido nada parecido; nunca
tinha tido idéas d’este genero... nunca!

--Tratemos de cear, Tatiana, e de apagar o lume! interrompeu Stépane
com voz abatida e vagarosa. Essa gente ha de pensar: «Os Tchoumakof
tiveram o lume acceso até muito tarde!» Para nós, isso não teria
importancia, mas é por causa da nossa visita. Talvez seja imprudente...

A mulher logo se levantou, dando-se pressa em obedecer.

--É certo! confirmou Pedro, com um sorriso. É preciso ter cuidado,
agora! Quando se tiver feito nova distribuição do jornal...

--Não é por mim que falo, declarou Stépane, mesmo se me prenderem, a
desgraça não será grande! A vida d’um campónio nenhum valor tem.

Experimentou Pélagué súbita compaixão por aquelle homem. E era mais
viva do que pouco antes a sua simpatia por elle. Agora, que já tinha
falado, sentia-se desajoujada do peso ignobil dos acontecimentos d’esse
dia; sentia-se contente comsigo mesma e cheia d’um sentimento de
benevolencia.

--Não deve falar assim! disse ella. O homem nunca deve medir-se pelo
valor que lhe attribuem aquelles que só o julgam por apparencias
e d’elle só pretendem o sangue. Aprecie-se a si mesmo, na sua
consciencia, não para os seus inimigos, mas para os seus amigos!

--E onde estão esses amigos?! exclamou o camponez. Nunca os vi!

--Mas se eu te digo que ha amigos do povo!

--Haverá, mas não aqui; e essa é que é a desgraça! contestou Stépane,
pensativo.

--Pois bem! n’esse caso, é preciso que os criem.

Reflectiu o outro e respondeu em voz baixa:

--Sim... era o que se precisava.

--Vamos para a mesa! propôz Tatiana.

Durante a ceia, Pedro, a quem as exortações de Pélagué pareciam ter
preoccupado, voltou a falar com animação:

--Sabe, tiasinha? Olhe que é bom que se vá d’aqui cedo, para não ser
notada. Vá á aldeia proxima; não vá á cidade; e tome uma carruagem.

--Para quê? objectou o outro homem. Se eu próprio a levo comigo!

--Nada d’isso! Se acontecesse alguma coisa, não faltaria quem indagasse
se tinha passado a noite em tua casa...--«E para onde foi ella?»

--«Levei-a á aldeia próxima».--Ah, foste tu? Pois vaes para a
cadeia!...» Percebeste? E para que ha de a gente ter pressa de ir para
a cadeia? Cada coisa a seu tempo!... Mas se tu declarares que ella
dormiu cá em casa, que alugou carro e que tornou a ir-se embora, não te
pódem fazer nada. Ninguem é responsavel pelo que fazem os viajantes. Se
passam tantos cá pelo sitio!...

--Já aprendeste a ter medo, Pedro? perguntou Tatiana, irónica.

--É bom aprender de tudo! respondeu, dando uma punhada no joelho. É
bom saber ter coragem e é bom tambem saber ter medo! Lembras-te como
o escrivão lá do tribunal andou a incommodar e a perseguir o Baguanof
por causa d’aquelle periodico? Pois agora, o Baguanof nem por todo
o dinheiro do mundo tocaria sequer n’um d’esses papeis! Creia, bôa
mulher: para mim, é coisa facil imaginar bôas artimanhas; todos o
sabem cá no sitio. Sou capaz de distribuir livros e folhetos como
ninguem... tantos quantos quizer! A nossa gente é pouco instruida
e muito medrosa, é certo; todavia, a vida vae tão dura, que o homem
sempre se vê obrigado a abrir os olhos e a informar-se do que se passa.
E o livro responde-lhe francamente: «Muitas vezes, mais percebe o
ignorante do que o homem instruido... principalmente se o instruido fôr
um d’esses que abarrotam de fartura. Conheço bem o sitio e sei vêr com
olhos de vêr! Póde uma pessoa ir arranjando a vida, mas com esperteza
e muita habilidade, para não ir á forca logo d’uma assentada! As
autoridades tambem percebem que as coisas vão mudadas, que o camponez
anda sorumbático, pouco ri e é de poucas amabilidades... É que, em
geral, passava-se bem sem as taes autoridades!... Ainda ultimamente,
em Smoliakovo--um logarejosito perto d’aqui--vieram os homens para
cobrar uns impostos. Os camponezes então foram a correr buscar cacetes.
«Ah, bestas! Vocês revoltam-se contra o tzar!» gritou o commissário.
E estava lá um rústico, um chamado Spivakine, que respondeu: «Vá você
para o diabo com o seu tzar! Que vem a ser esse tzar que nos leva até á
ultima camisa do corpo?» Ora aqui tem em que as coisas param, tiasinha.
Escusado é dizer que o Spivakine foi preso e atirado para uma enxovia.
Mas ficaram as palavras d’elle, e até as crianças já as repetem.
Ficaram vivas, a bradar, essas palavras!

Nem comia: falava, falava sempre, em murmurio rapido; os olhos, pretos
e astuciosos, brilhavam-lhe, muito vivos. E importunava largamente
Pélagué com mil observaçõesinhas sobre a vida do sitio, como se
estivesse a despejar um sacco de moedas de cobre.

Por duas vezes lhe disse Stépane:

--Anda, come!

Elle agarrava n’um pedaço de pão, n’uma colher, e espraiava-se de novo
em considerações, falando, falando, como um pintasilgo a cantar.
Terminada a ceia, finalmente, levantou-se de brusco, declarando:

--É tempo de voltar para casa!

Approximou-se de Pélagué e saccudiu-lhe a mão:

--Adeus, tiasinha! Talvez nunca mais nos tornemos a ver... Sempre lhe
quero dizer que tive muito prazer em travar relações comsigo e em
ouvil-a falar... sim, senhora, muito prazer! Tem mais alguma coisa na
mala alem dos livros? Um chale de lã? Está muito bem... um chale de lã,
ouves, Stépane? Elle já lhe traz outra vez a sua mala. Vamos, Stépane!
Adeus! Passe bem!

Assim que os dois saíram, Tatiana tratou de preparar cama para a velha;
foi acima do fogão e ao sotão buscar umas roupas e dispôl-as sobre o
banco.

--É um rapaz desembaraçado! observou Pélagué.

A outra respondeu, interrompendo a tarefa para lhe lançar um olhar
furtivo:

--É muito leviano! Faz muita bulha, muita bulha, mas não passa d’ali!

--E seu marido? perguntou Pélagué.

--É um bom homem. Não bebe, e damo-nos muito bem. O unico defeito
d’elle é ser de caracter fraco.

Soergueu-se e proseguiu após um silencio:

--De que se precisa agora? De sublevar o povo, é claro! Todos pensam
n’isso... mas cada um para seu lado! E o que é necessário é que se fale
n’isso bem alto; é forçoso que appareça alguem decidido a fazel-o.

Sentou-se e perguntou sem transição:

--A senhora disse que até já ha meninas finas e ricas a tratarem d’este
negocio, e que vão fazer leituras politicas aos operários... E ellas
não teem medo? não sentem repugnancia?

E depois de ouvir attentamente a resposta de Pélagué, soltou profundo
suspiro e continuou, com as palpebras cerradas e movendo devagarinho a
cabeça:

--Já li uma vez n’um livro que a vida não faz sentido. O que isto
queria dizer percebi eu logo á primeira! Como se eu não soubesse o
que é essa vida: a gente tem umas idéas, mas umas idéas desapegadas
umas das outras, e que andam a vaguear como carneiros estúpidos sem
pastor... Vagueiam, vagueiam... E não ha nada, não ha ninguem que as
reuna... porque a gente não sabe o que ha de fazer para isso! Ora aqui
está o que é uma vida que não faz sentido! A minha vontade era fugir
para longe d’ella, sem mesmo olhar para traz!... Muito infeliz é a
gente quando começa a perceber um poucochinho!...

Esta magua, via-a Pélagué bem no brilho verde dos olhos da mulher,
n’aquelle rosto magro; ouvia-a vibrar n’aquella voz. Pretendeu
consolal-a, acalmal-a:

--Mas a minha querida amiga compreende o que é necessário fazer-se...

Tatiana interrompeu-a brandamente:

--Mas se o que se precisa é saber-se como fazel-o!... Tem a sua cama
pronta... deite-se!

E dirigiu-se para o fogão, grave e concentrada. Pélagué deitou-se sem
se despir. Tinha dôres nos ossos, quebrados de fadiga. Soltou um gemido
debil. Tatiana apagou o candieiro. E assim que as trevas reinaram
dentro da choupana, resoou novamente a sua voz grave e igual:

--A senhora não reza... Eu tambem não acredito em Deus nem em milagres.
Tudo isso foi inventado para nos metter medo, porque sabem que sômos
estupidos!

Pélagué, no seu leito improvisado, agitou-se, inquieta. Fitavam-na
pela janella as trevas infinitas e, por entre o silencio, attritos,
ruidos furtivos mal perceptiveis, perpassavam em torno. Com voz timida,
murmurou:

--Pelo que respeita a Deus, não sei que dizer... Mas creio em Jesus
Christo e creio nas suas palavras:

«Amar o proximo como a nós mesmos...» sim, eu creio n’isto!

E de súbito, exclamou, perplexa:

--Mas se Deus existe, porque nos abandonou? Porque não nos protege com
o seu poder misericordioso? Porque consente que a humanidade se divida
em duas castas? Porque consente o soffrimento humano, as torturas, as
humilhações, a maldade e as ferocidades de toda a especie?

Tatiana não respondeu. No escuro, Pélagué podia divisar-lhe o contorno
vago do perfil erecto, que se desenhava em cinzento, no fundo negro do
fogão. E assim se conservava, immovel. Muito angustiada, Pélagué cerrou
as palpebras.

De súbito, vibrou uma voz fria e dolorida:

--Nunca perdoarei a morte dos meus filhos! Nem a Deus nem aos homens!
Nunca!

A anciã sentou-se no leito, condoída da intensidade d’aquella paixão.
Lembrou com meiguice:

--A senhora é nova; ainda ha de ter filhos...

Apóz um silencio, a outra segredou:

--Não! O medico disse que nunca mais poderia têl-os.

Passou um rato a correr pelo chão. Um estalido secco e forte rasgou a
immobilidade do silencio, e de novo se ficaram ouvindo distinctamente
os mesmos attritos e o murmurio da chuva sobre o colmo, que, dir-se-ia,
dedos finos e trémulos acariciavam. As bategas caíam tristemente sobre
a terra e ritmavam o curso da longa noite d’outono.

Mergulhada em pesada somnolencia, Pélagué ouviu uns passos ecoarem
surdamente da parte de fóra e em seguida, no corredor. Abriu-se
devagarinho a porta, e ouviu-se uma exclamação abafada:

--Estás já deitada, Tatiana?

--Não.

--«Ella» está a dormir?

--Sim, parece-me que sim...

Brilhou uma claridade, que tremeluziu e logo se afogou nas trevas. O
campónio approximou-se do leito da velha e compôz a capa de pelles que
lhe cobria as pernas. Esta attenção impressionou profundamente Pélagué.
Fechou de novo os olhos e sorriu. Stépane, sem fazer bulha, despiu-se e
trepou para o sotão.

Pélagué, immovel, prestava attento ouvido ás variantes preguiçosas do
silencio somnolento.

Na sua frente, nas trevas, via desenhar-se o rosto ensanguentado de
Rybine.

Chegou-lhe então aos ouvidos um leve murmurio que vinha do sotão:

--Tu bem vês. Attenta n’essa gente que anda a trabalhar pelo bem de
todos! Gente idosa, até, e que passou por mil desgostos e depois de
moirejar toda uma vida! Chegou-lhes a sua occasião de descansar, mas
bem vês como se aproveitam d’ella!... E tu, Stépane, estás ainda novo,
és intelligente... e nada fazes!

Respondeu a voz grossa do homem:

--A gente não póde metter-se n’uma coisa d’essas sem pensar! Espera um
pouco, que aquella canção já eu conheço ha muito!

Sumiram se as vozes, mas depois recomeçaram. Dizia Stépane:

--Aqui está o que deve fazer-se: primeiro, é preciso falar com cada
homem em particular. Assim, por exemplo: com o Alécha Makof. É
instruido, valente e anda ha muito, zangado contra as autoridades.
Com o Sergio Chorine, tambem... É homem de juizo. Com o Kniazef, que
é honrado e homem decidido! E para começar é bastante!... Depois,
quando já tiver-mos um partidosinho, veremos... É preciso saber a
direcção d’esta mulher, para chegarmos á fala com a gente a quem ella
se referiu... Agarro no machado e vou-me de passeio até á cidade.
Se te perguntarem, dizes que fui ganhar uns cobres como rachador de
lenha. É bom tomarmos as nossas precauções. Tem a velha razão quando
diz que cada qual é que dá a si o seu proprio valor... E quando se
trata d’uma coisa d’estas, bom é que a gente dê a si grande preço, se
se quizer metter na coisa!... Olha aquelle campónio, aquelle Rybine!
Não era capaz de dobrar nem diante de Deus, quanto mais diante d’um
commissário!... Aguenta-se firme, como se estivesse enterrado no chão
até aos joelhos! E aquelle Nikita, an? Teve vergonha o homem!... E foi
milagre que tal succedesse... Ah! se o povo entra no movimento á uma,
muita gente ha de ir atraz d’elle!

--Pois sim! Vêem espancar um homem e ficam para ali, de braços cruzados!

--Não te exaltes, mulher! Olha, diz antes assim: «Deus seja louvado,
que não foram vocês mesmos que o tosaram!» Pois se elles tanta vez
obrigam o povo a bater nos presos! E o povo obedece! Lá no intimo,
talvez chore de compaixão, mas vae batendo!... Não se atrevem a
recusar-se áquella barbaridade, com medo de tambem apanharem para
baixo! Ha ordem para um homem ser o que quizer: um porco, um lobo...
mas não um homem--é proíbido! E quem desobedecer, livram-se logo d’elle
com a maior facilidade! Nada!... É preciso arranjar as coisas de fórma
a reunir muita gente e revoltar-se tudo ao mesmo tempo!

Discorreu ainda por largo espaço. Umas vezes, falava tão baixinho, que
Pélagué quasi não compreendia; outras, erguia a voz, grossa e sonora. A
mulher então recommendava:

--Devagar! Vaes accordal-a!

Adormeceu profundamente a anciã. Foi como uma nuvem de oppressão que o
somno se precipitou sobre ella, a envolveu e a arrebatou.

Despertou-a Tatiana quando a aurora, pardacenta, entrava a mirar com
gélidas pupillas as janellas da choupana. Por sobre a aldeia, no
silencio frio, a voz bronzea do sino planára e ia a morrer.

--Fiz-lhe uma gôta de chá; beba-o, se não logo no carro, vae ter frio.

Emquanto alisava as barbas desgrenhadas, Stépane, todo alvoraçado,
informava-se onde havia de procurar a sua hospede, na cidade. E parecia
a Pélagué o rosto do campónio mais definido, mais simpatico do que na
vespera. Ao tomar o chá, exclamou elle alegremente:

--Como tudo isto é singular!

O quê? perguntou Tatiana.

--Este nosso encontro. É coisa tão simples, afinal!...

--Na causa do povo tudo é d’uma simplicidade extraordinaria! disse
Pélagué pensativa e em tom de grande convicção.

Despediram-se então marido e mulher, sem gastar muitas palavras, antes
manifestando com mil cuidados e attenções, sincera sollicitude.

Já no carro, Pélagué pensava n’aquelle campónio e na sua maneira de
trabalhar com prudencia, como uma toupeira, sem ruido e sem descanso. E
continuava a ouvir a voz da mulher, descontente; revia o brilho secco
e febril dos seus grandes olhos verdes. Quantos annos vivesse, tantos
aquella paixão vingativa e feroz de mãe que chora os seus filhos, havia
de viver-lhe na memoria.

Lembrou-se depois de Rybine, do seu rosto, do seu sangue, d’aquelle
ardente olhar, das frases que lhe ouvira e, de novo, o coração
confrangeu-se-lhe no amargo sentimento da sua impotencia contra as
féras. E em todo o percurso até á cidade, viu de contínuo, desenhado no
fundo tristonho d’aquelle dia pardacento, o perfil robusto de Rybine,
com a sua barba preta, a camisa em farrapos, mãos amarradas nas costas,
os cabellos desgrenhados, a fisionomia illuminada pela colera e pela
fé na sua missão. Pensava tambem nas innumeraveis aldeias e logarejos
onde o povo esperava em segredo a vinda da propaganda de verdade; nos
milhares de creaturas que trabalhavam silenciosas toda a sua vida sem
saber porquê, sem uma esperança...

Quando reflectia no resultado da sua viagem, sentia no intimo um
contentamento meigo e irrequieto e decidia não mais pensar em Stépane
nem na mulher.

Avistou de longe os campanários e telhados da cidade, e grata sensação
lhe reanimou o espirito inquieto, e lh’o tranquillisou: desfilavam-lhe
pela memoria as fisionomias cheias de preoccupação de todos os que
dia a dia iam ateando o fogo sagrado do pensamento e o espalhavam em
scentelhas pelo mundo. E a alma d’aquella mãe transbordava da serena
ambição de dar a todas aquellas creaturas toda a energia e todo o seu
amor de mãe.



XIX


Veio abrir-lhe Nicolao, despenteado, com um livro na mão.

--Já?! exclamou alegremente. Está bem!... Estou mais contente agora!

Piscava os olhos, amigavelmente, por detraz dos oculos. Ajudou Pélagué
a tirar a capa e disse-lhe, fitando-a affectuosamente:

--Sabe? Vieram cá fazer uma busca esta noite. Eu perguntava a mim
proprio porquê. Receei que lhe tivesse acontecido alguma coisa... Mas
deixaram-me em paz, e logo soceguei: se a tivessem prendido, não me
deixavam assim com certeza!

Levou-a para a casa de jantar. Pelo caminho, ia contando animadamente:

--Ainda assim, fui despedido da repartição. Pouco desgosto me dá...
Estava já farto da estatistica do gado cavallar que não existe nas
herdades!... Tenho mais que fazer!

Attentando-se no aspecto da sala, dir-se-ia que mãos vigorosas, em
estupido accesso de furia, haviam saccudido pela parte de fóra as
paredes da casa, até tudo ficar em completa desordem. Os retratos
jaziam pelo chão, os reposteiros e sanefas arrancados, pendiam em
farrapos; em determinado sitio uma taboa do sobrado fôra levantada, o
peitoril da janella, arrombado; ao pé do fogão, cinzas espalhadas.

Na mesa, ao lado do samovar sem lume, estava loiça suja, presunto e
queijo em cima d’um pedaço de papel, nacos de pão, livros e carvão,
Pélagué sorriu. Nicolao mostrou-se confundido.

--Fui eu que completei a desordem... mas não faz mal. Parece-me que
voltam cá hoje, e tanto que nem ainda comi nada. E então fêz boa viagem?

Esta pergunta como que a magoou pesadamente em pleno peito: de novo a
imagem de Rybine se ergueu na sua memoria; sentiu-se culpada por não
ter falado d’elle logo ao chegar. Approximou-se de Nicolao e entrou a
contar-lhe tudo, deligenciando permanecer calma e não omittir pormenor
algum.

--Foi preso!

Nicolao teve um sobresalto.

--Preso! Mas como?

Ella com um gesto, fêl-o calar e proseguiu, como se, face a face,
o rosto da propria justiça se encontrasse na sua frente e a ella
estivesse reclamando contra o supplício a que assistira. Nicolao,
reclinado na cadeira escutava-a, fazia-se pallido e mordia os beiços.
A certa altura, lentamente, tirou os oculos, pousou-os na meza,
passou a mão pela cara, como se estivesse a limpal-a d’uma invisivel
teia d’aranha. As feições accentuaram-se-lhe, as maçãs do rosto
tornaram-se-lhe singularmente salientes, palpitaram-lhe as narinas. Era
a primeira vez que Pélagué o via n’aquella excitação, o que não deixou
de a assustar.

Quando acabou a narrativa, viu-o levantar-se em silencio e pôr-se a
caminhar em grandes passadas, de punhos cerrados nas algibeiras. Por
fim, murmurou, comprimindo os dentes:

--Deve ser um homem extraordinario!... Que heroismo! E vae soffrer
n’uma prisão como soffrem todos os que a elle se assemelham!

Depois, parou em frente da sua narradora; ajuntou com voz vibrante:

--Evidentemente todos esses commissarios, esses officiaes, não passam
d’uns instrumentos, d’uns cacetes de que sabe servir-se um patife
intelligente, um domesticador de animaes! Mas urge dar cabo do animal,
para o castigar de se ter deixado transformar em féra! Eu cá, matava-o
logo, esse cão damnado!

Enterrava mais profundamente os punhos nas algibeiras, tentando, mas
de balde, reprimir aquella commoção de que Pélagué tambem se resentia.
Tinha os olhos contraídos como laminas de facas. Entrou de novo a
passear e ao mesmo tempo ia dizendo com frio rancor:

--Ora vejam que coisa horrivel! Uma meia duzia d’homens espancam,
suffocam e opprimem toda a gente, para defenderem o funesto poderio de
que gozam sobre o povo! A ferocidade recrudesce, a crueldade torna-se
lei universal! É para meditar!... Uns batem e procedem como bestas,
porque estão certos da impunidade, porque os morde o desejo voluptuoso
de torturar, como a repugnante volupia dos escravos a quem se permittia
que manifestassem os instinctos servis e os habitos besteaes, em toda a
sua hediondez! Os outros envenena-os a vingança, e ainda os terceiros,
bestificados sob os maus tratados, tornam-se cegos, tornam-se mudos!...
E assim pervertem o povo, um povo inteiro!

Deteve-se novamente, agarrou a cabeça entre as mãos.

--É para bestialisar, mesmo sem se querer, essa vida feroz! concluiu em
voz baixa.

Depois, dominou-se. Brilhava-lhe agora no olhar uma expressão decidida.
E foi quasi com tranquillidade que fitou a velha, cujo rosto as
lagrimas inundavam.

--Não temos tempo a perder, Pélagué. Onde está a sua mala?

--Na cosinha.

--Está a casa cercada de espiões, não é possivel passar para fóra tal
quantidade de impressos, sob pena de sermos vistos... Não sei onde os
hei de occultar... Parece-me que a policia ha de voltar esta noite...
Não quero que seja presa. Ainda que muito nos custe, vamos queimar tudo
isso.

--O quê? perguntou ella.

--O que está dentro da mala.

Foi então que ella compreendeu e, por grande que fôsse a sua tristeza,
a ufania do bom exito da sua viagem fez-lhe aflorar ao rosto um sorriso.

--Mas a mala não tem nada! Nem uma folha de papel! declarou,
animando-se gradualmente.

E, narrou a continuação das suas aventuras. Nicolao ouviu-a primeiro
com inquietação, depois com surpresa. Por fim, interrompeu-a para
exclamar:

--É simplesmente maravilhoso! Tem uma sorte espantosa!

Entrou a mover-se d’um lado para o outro, pasmado, e foi apertar-lhe a
mão.

--Chega a commover-me pela confiança que tem no povo! Que bella alma a
sua!... Amo-a como nunca amei minha propria mãe!

Ella tomou-o nos braços e por entre soluços de contentamento,
approximou dos seus labios a cabeça de Nicolao.

--Talvez me tivesse exprimido nesciamente, ha pouco! murmurou,
commovido e desconcertado pela novidade do sentimento que experimentava.

Pélagué, convencida de que Nicolao se sentia profundamente feliz,
seguia-o com um olhar em que transparecia affectuosa curiosidade;
queria compreender por que se mostrára tão apaixonadamente vibrante.

--Em geral, tudo corre ás mil maravilhas! declarou elle, a esfregar as
mãos, com um risinho caricioso. Sabe? Passei singularmente bem estes
ultimos dias. Estive sempre com operarios; fiz-lhes umas leituras,
conversámos, deram-me ensejo a que os observasse... Juntei no meu
coração sensações admiraveis, tão puras e sãs!... Que bella gente!
Tão francos, tão claros como os dias de maio! Falo dos operarios mais
novos; são robustos, são sensiveis, teem sede de compreender tudo!...

Ao vêl-os, adquire-se a certeza de que a Russia ha de vir a ser a mais
brilhante democracia do mundo!

Erguera o braço como para firmar um juramento. Passado um instante,
continuou:

--Como sabe, eu era funccionario n’uma repartição do estado. Foi ali
que o meu feitio se azedou: no meio de algarismos e de papelada. Um
anno d’aquella vida bastou para me deturpar o caracter. Porque eu
estava habituado a viver entre o povo e quando me separo d’elle,
sinto-me pouco á vontade. Sempre propendi com todas as minhas forças
para a vida popular. E agora já posso viver de novo em liberdade,
confraternisar com os operarios, ensinar-lhes o que sei! Compreende?
Assim, estarei junto do proprio berço do ideal que vem surgindo, junto
da propria energia creadora nascente. É o que me parece admiravelmente
simples e bello e tambem terrivelmente excitante! Torna-se um homem
mais novo, mais decidido, mais calmo, e disfructa de uma existencia
integra!

Aqui, riu, expansivo. E d’aquelle contentamento partilhava Pélagué.

--E depois, que creatura excessivamente bôa a senhora é! declarou elle
ainda. Tem em si uma força tão poderosa e tão seductora! Attrae a si as
almas com tal persuasão! Sabe descrever tão completamente as pessoas!
Sabe vêl-as tão bem!

--Vejo a sua existencia e compreendo-o, meu amigo!

--Todos a estimam... E que maravilhosa coisa é estimar uma creatura
humana!... É tão bom! Se soubesse!

--É o meu amigo que sabe ressuscitar os entes humanos d’entre os
mortos! murmurou a anciã com calor, acariciando-lhe a mão. Meu amigo,
quanto mais penso, mais vejo quanto ha a fazer e de quanta paciencia
precisamos! E o que eu quero é que não perca a coragem. Oiça o resto...
A mulher, ia eu dizendo, a mulher do tal camponez...

Nicolao sentára-se ao lado d’ella. Tinha desviado o rosto prazenteiro,
e passava a mão devagar pelos cabellos. Mas d’ahi a pouco tornava a
dirigir o olhar para Pélagué, escutando avidamente a narrativa.

--Que sorte admiravel! exclamou. Com effeito, era muito possivel que
fôsse presa... Mas não! O que parece é que essa gente do campo tambem
se vae mexendo. Não é para admirar, afinal! E essa tal mulher, parece
que a estou vendo d’aqui. Sim, compreendo esse coração accêso em ira. E
tem razão em dizer que uma dôr tão profunda jamais se extinguirá!...
Precisavamos de quem se occupasse especialmente de animar essa gente do
campo!... Gente! Muita gente! É o que nos falta e por toda a parte! A
vida exige milhares de braços!

--Para isso era necessario que o Pavel estivesse em liberdade... e o
André tambem, aventou ella em voz baixa.

Elle lançou-lhe rapido olhar e curvou a cabeça.

--Olhe, sabe? Vou dizer-lhe a verdade, ainda que lhe custe: conheço
bem o Pavel e estou certo de que vae recusar-se a fugir. O que elle
pretende é ser julgado, quer exibir-se em todo o seu prestigio... e não
renuncia a isso. É trabalho escusado!... Depois, fugirá da Sibéria...

A mãe de Pavel murmurou:

--Que se ha de fazer?... Elle sabe melhor do que eu o que deve decidir.

Nicolao ergueu-se de chofre, novamente tomado de contentamento.
Inclinou-se para ella e disse:

--Graças a si, passei hoje instantes melhores... os melhores da minha
vida, talvez!... Obrigado! Dê-me um abraço!

E apertaram-se, silenciosos.

--Como isto é bom! exclamou elle baixo.

Pélagué deixára caír os braços e sorria em estos de felicidade.

--Hum! murmurou Nicolao, fitando-a muito por detraz dos seus
oculos. Ainda se esse tal camponez não tardasse em vir!... Porque
é absolutamente preciso escrever um artigosinho ácerca do Rybine e
distribuil-o pelas aldeias, o que não pode prejudicar o Rybine, visto
que elle trabalha abertamente, por si mesmo, e que a causa do povo
tem tudo a ganhar. Vou escrevel-o agora mesmo. A Lioudmila imprime-o
ámanhã... Sim, mas como se hão de expedir os fasciculos?

--Irei eu leva-los.

--Não, obrigado! exclamou Nicolao com vivacidade. Não crê que o
Vessoftchikof pudesse tomar esse encargo?

--Quer que lhe fale n’isso?

--Experimente e ensine-lhe como elle se ha de haver n’esse negocio.

--E eu então, que faço?

--Não lhe dê isso cuidado!

E pôz-se a escrever. Emquanto desembaraçava a mesa das loiças e dos
outros objectos, Pélagué não tirava a vista d’elle, seguindo a penna,
que lhe tremia na mão e traçava no papel longas séries de palavras.
Por vezes, um arrepio perpassava pela nuca do mancebo; outras vezes,
projectava elle a cabeça para traz e ficava-se de olhos fechados.
Pélagué sentiu-se emocionada.

--Castigue-os! murmurou. Não os poupe, áquelles assassinos!

--Aqui está! Está pronto! disse elle, levantando-se. Esconda este
papel comsigo. Mas olhe que se a policia vem, hão de tambem querer
revistal-a...

--Leve-os o diabo! respondeu com o maior socego.

Á noite, veio o doutor.

--Porque anda a autoridade tão agitada? inquiriu elle, passeando pelo
quarto. A noite passada fizeram-se sete buscas!... Onde está o doente?

--Foi-se embora hontem! respondeu Nicolao. É sabbado hoje e não podia
faltar á sessão de leitura, compreendes?

--É uma estupidez ir para uma conferencia quando se tem a cabeça aberta!

--Foi o que eu tentei demonstrar-lhe; mas nada consegui!

--Era a vontade de ir fazer-se valente diante dos camaradas, disse
Pélagué; de lhes mostrar que tambem já derramou o seu sangue pela
grande causa!

O doutor lançou-lhe um olhar, tomou uns ares de ferocidade e exclamou
com os dentes cerrados:

--Que sanguinárias creaturas vocês são!

--Pois então, meu amigo, já nada tens a fazer aqui, e nós esperamos
umas visitas. Vae-te embora! Pélagué, dê-lhe o papel.

--Outra vez! exclamou o medico.

--Vá! Toma e leva isto á imprensa.

--Está dito; lá o levarei. Mais nada?

--Sim... Está ali um espião defronte da casa.

--Já o vi. E em minha casa tambem. Bem, até mais vêr! Até á vista,
mulher cruel! Sabem, meus amigos? A desordem do cemitério veio mesmo a
calhar, positivamente! Não se fala n’outra coisa em toda a cidade. Isto
impressiona o povo e obriga-o a reflectir. O teu artigo a esse respeito
estava muito bom e foi publicado em bella occasião. Eu sempre fui de
opinião que uma bôa desordem era mais util do que uma má concordia...

--Está bom, vae-te!

--Estás hoje pouco amavel, homem! A sua mão, tiasinha! O pequeno andou
como um pateta. Não sabes onde elle mora?

Nicolao deu-lhe o endereço.

--É preciso ir a casa d’elle amanhã... É um bello rapaz, não é verdade?

--É verdade!... Excellente coração!

--É preciso não o perder de vista, que elle não é tolo! disse o medico,
ao saír. É justamente essa rapaziada que ha de formar o verdadeiro
proletariado instruido, e occupar os nossos logares, quando nós nos
fôrmos para o sitio onde não ha, segundo creio, differenças de castas...

--Sempre estás um tagarella!

--Sinto-me contente; por isso dou á lingua!... Cá vou, cá vou... Então,
sempre contas ir para a cadeia? Desejo que descanses bem por lá.

--Obrigado, mas não me sinto cansado.

Pélagué escutava-os satisfeita por vêr os cuidados, em que ambos
estavam, no ferido.

Logo que saíu o médico, Nicolao e Pélagué sentaram-se á mesa e ficaram
esperando as suas visitas nouturnas. Por muito tempo, em voz baixa,
Nicolau esteve falando dos companheiros que viviam no exilio, dos
que tinham fugido e continuavam trabalhando com nomes suppostos. As
paredes nuas do aposento reflectiam-lhe o som abafado da voz, como
se duvidassem d’aquellas singulares historias de heroes modestos e
desinteressados, que haviam sacrificado todas as suas forças á grande
obra do rejuvenescimento humano. Pélagué, mergulhada n’uma sombra de
agradavel tepidez, sentia o coração encher-se-lhe de amôr por aquelles
desconhecidos, que á sua imaginação se resumiam n’um sêr unico e
immenso, dotado de máscula e inexgotavel força. Lentamente, mas sem
nunca parar, tal sêr extraordinario caminhava pela terra, arrancando
o bolor secular da mentira, descobrindo aos olhos do homem a verdade
simples e positiva da vida, a qual a todos promettia libertar da
avidez, do odio e da falsidade, trez monstros que haviam subjugado pelo
horror o mundo inteiro. Esta visualidade gerava no intimo de Pélagué
impressão identica á resentida n’outros tempos, quando ella, ajoelhada
perante as imagens pias, terminava com uma oração de reconhecimento o
seu dia, que lhe ficava assim parecendo menos árduo do que os outros.
Agora, que o seu passado ia longe, este sentimento ampliava-se,
fazia-se mais luminoso e mais jovial, penetrava mais fundo na sua alma,
robustecia-se e exaltava-se mais e mais.

--A policia não vem! exclamou Nicolao, interrompendo o fio das suas
narrativas.

Ella fitou-o um instante e após curto silencio:

--Que vão para o inferno!

--Está claro!... Vocemecê deve estar fatigada a valer, precisa de
deitar-se. É robusta, ainda assim todos estes cuidados, todas estas
inquietações... supporta-as admiravelmente. Só os cabellos é que lhe
enbranqueceram muito depressa... Vá descansar, vá...

Apertaram-se as mãos e separaram-se.



XX


Adormecera Pélagué, rápida e socegadamente, quando, de manhãsinha, a
despertaram umas pancadas violentas na porta da cosinha. E succediam-se
com teimosia. Ainda fazia escuro. Vestiu-se á pressa, correu a
perguntar, atravez da porta:

--Quem está ahi?

--Eu! respondeu voz desconhecida.

--Quem?

--Abra! Abra! murmurou a mesma voz, agora sumida e supplicante.

Pélagué puxou o ferrolho e empurrou a porta: E entrou Ignaty, a
exclamar alegremente:

--Ah! não me enganei! Cheguei a bom porto!

Vinha coberto de lama até á cintura, o rosto desfigurado, fundas
olheiras, e do bonné saíam-lhe em desordem os cabellos annellados.

--Grande desgraça lá por casa! segredou logo ao fechar a porta.

--Já sei...

Ficou espantado e perguntou com um pestanejar de curiosidade:

--Como assim?... Por quem?

Contou-lhe Pélagué em breves palavras o encontro que tivera.

--E os outros dois teus camaradas, tambem os prenderam?

--Não estavam lá: tinham ido á junta d’inspecção. Prenderam cinco,
contando com o Rybine.

Fungou, n’um accesso de riso, e explicou:

--Eu, como vê, escapei. Provavelmente andam em minha busca... Pois que
procurem! Não volto para lá nem por todo o oiro do mundo! Ainda assim,
ainda lá ficaram seis ou sete rapazes e uma rapariga, com quem se póde
contar!

--Mas como pudeste escapar?

--Eu? exclamou Ignaty, sentando-se n’um banco e olhando em roda. Os
policias vieram de noite, direitinhos á fabrica, mas um minuto antes
já o guarda campestre tinha vindo a correr bater-nos na janella:
«Attenção, rapaziada, vêm prendel-os!»

Pôz-se a rir e a limpar a cara com a aba da blusa. E proseguiu:

--O tio Rybine não é homem para perder a cabeça... E olhe que o
provou!... Disse-me logo: Ignaty, corre á cidade! Lembras-te das duas
mulheres que aqui estiveram? E escreveu qualquer coisa n’um papel,
muito depressa... Toma, vae, adeus, meu irmão! disse-me elle. E deu-me
um empurrão nas costas. Eu atirei-me para fóra da cabana, escondi-me
entre umas moitas, puz-me a andar de gatas e ouvi chegar os guardas!
Eram muitos, appareciam por todos os lados! Cercaram a fabrica. Eu
estava por detraz d’uma sebe... passaram-me mesmo na frente. Depois,
levantei-me e entrei a andar, a andar... Andei um dia e duas noites,
sem parar. Estou estafado para uma semana; nem sinto as pernas!

Mostrava-se satisfeito de si mesmo; illuminava-lhe um sorriso os
grandes olhos escuros; tinha um tremor nos beiços grossos e vermelhos.

--Vou-te fazer uma gôta de chá n’um pronto! disse Pélagué sollicita,
agarrando no samovar. Mas emquanto esperas, vae-te lavando. Ficas
melhor depois!

--O que eu queria era dar-lhe o bilhete.

Levantou com difficuldade uma das pernas, dobrou-a, collocou o pé sobre
o banco, isto com innumeras caretas e gemidos, e começou a desenrolar
uma das ligaduras, que lhe envolviam ambos os pés.

Nicolao appareceu á porta. Ignaty, confuso, tornou a pôr o pé no chão;
tentou levantar-se, mas cambaleou e caíu desamparadamente em cima do
banco, ao qual se agarrou ás mãos ambas.

--Ai, que cançado que eu estou!

--Bom dia, camarada! disse-lhe Nicolao em tom amigavel e com um signal
de cabeça. Espere, que eu o ajudo.

Ajoelhou-se diante do operario e desenrolou rapidamente a ligadura,
emporcalhada e húmida.

--É necessario esfregar-lhe os pés com alcool. Ha de fazer-lhe bem,
disse Pélagué.

--Isso mesmo! approvou Nicolao.

Ignaty fungou de novo, muito atrapalhado.

Finalmente, achou Nicolao o bilhete; alisou-o, mirou-o um instante e
apresentou-o á velha.

--Aqui tem! É para si.

--Leia.

Elle approximou dos olhos o pedaço de papel sujo e amarrotado e leu:

«Mãesinha: não deixes que se perca o nosso negocio. Diz a essa senhora
que não se esqueça de fazer que se escreva sempre e muito, a respeito
das nossas coisas. Peço-te. Adeus. Rybine.»

--Bello rapaz! disse Pélagué com melancolia. Estavam a esganal-o e
ainda elle se lembrava dos outros!

Lentamente, Nicolao deixou descaír o braço em que tinha o bilhete, e a
meia voz:

--É espantoso!

Ignaty olhava para um e outro, vermiculando devagar com os dedos
emporcalhados do pé descalço. Pélagué, procurando occultar o rosto
inundado de lagrimas, foi para elle com uma celha com agua. Sentou-se
no chão e estendeu a mão para tomar a perna do homem.

--Que quer fazer?... Não é preciso...

--Deixa ver o pé, depressa.

--Eu vou buscar o alcool, disse Nicolao.

O rapaz mettia sempre mais a perna debaixo do banco, murmurando:

--Não quero!... Então isso é coisa que se faça?

Sem lhe responder, ella tratou de lhe desembaraçar das ligaduras o
outro pé. O rosto redondo de Ignaty distendeu-se de espanto. Pélagué
entrou a lavar o rapaz.

--Sabes? disse ella com voz chorosa. O Rybine foi espancado!...

--Palavra? exclamou Ignaty assustado.

--É verdade. Quando chegou a Nikolsky, já elle vinha moído de pancada,
e ainda alli, o sargento e o commissario lhe deram murros, pontapés...
Estava todo coberto de sangue!

--Ah, lá quanto a isso, é o officio d’elles, e conhecem-no a valer!
exclamou o operario, sentindo um calafrio percorrer-lhe as espáduas.
Tenho medo d’elles como do diabo! E os camponezes não lhe bateram?

--Um só, á ordem do commissario. Os outros fizeram o seu dever; até não
consentiram que continuassem a maltratal-o.

--Sim... O campónio começa a compreender...

--Tambem lá os ha muito intelligentes, n’essa villa...

--E onde é que os não ha? Ha-os por toda a parte! Sim, sempre é forçoso
que os haja; o difficil é descobril-os. Mettem-se ahi pelos cantos e
ficam a remoer aquillo lá por dentro, cada um para seu lado. Não teem a
coragem de se reunir!

Nicolao trouxe uma garrafa d’alcool, deitou uns pedaços de carvão no
samovar e saíu sem dizer palavra. Ignaty, que o seguira com a vista,
curioso, perguntou em voz baixa:

--É nosso mestre?

--Na causa do povo não ha mestres, só ha camaradas!

--É caso para pasmar! disse o operario, sorrindo entre perplexo e
incredulo.

--O quê?

--Tudo isto!... D’um lado, dão bofetadas na gente, do outro, lavam-nos
os pés... Haverá um meio-termo?

A porta do aposento abriu-se de par em par e Nicolao respondeu:

--Ha, sim, senhor! E esse meio-termo são os que lambem as mãos
d’aquelles que os maltratam e sugam o sangue dos maltratados. Aqui tem
o que é esse meio-termo!

Ignaty fitou-o com deferencia e disse, após reflexão:

--Isso agora é verdade!

--Pélagué! instou Nicolao. Deve estar cansada... Deixe isso, que eu
continúo.

O rapaz encolheu as pernas com inquieto acanhamento.

--Está pronto! respondeu ella, erguendo-se. Vá, Ignaty: levanta-te
agora!

O outro obedeceu, conservou-se um bocado n’um pé, ora no outro,
firmando-se fortemente no sobrado, e declarou:

--Até parece que ficaram novos! Obrigado!... Muito obrigado!

Fez uma pausa e ainda murmurou, a olhar para a celha com a agua suja:

--Nem sei como hei-de agradecer-lhe sufficientemente...

Os trez passaram para a casa de jantar e almoçaram. Ignaty poz-se a
contar em voz muito séria:

--Fui eu que distribui os periodicos. Eu gosto muito de andar. O
Rybine tinha-me dito: «Vae tu leval-os sósinho! Se fôres apanhado, não
suspeitam de mais ninguem».

--E ha muita gente que os leia? perguntou Nicolao.

--Todos os que sabem lêr.

Pensativo, Nicolao reflectiu:

--Mas como havemos de arranjar que o fasciculo a propósito da prisão do
Rybine chegue de pressa ás aldeias?...

Ignaty apurára logo o ouvido.

--Pois eu me encarrego d’isso hoje mesmo! Já ha prontos esses
fasciculos?

--Ha, sim.

--Dê-mos, que eu os levo! propôz Ignaty com os olhos scintillantes, e a
esfregar as mãos. Eu sei bem onde e como os hei-de levar!... Dê-os cá!

Pélagué sorria, ouvindo-o falar assim.

--Mas tu estás cansado e tens medo; fôste tu mesmo que disseste não
querer voltar lá!...

Elle produziu com os beiços um estalido, e, ao mesmo tempo que alisava
com a alentada mão os caracoes do cabello, declarou em tom de seriedade
e sangue-frio:

--Estou cansado... Melhor, depois descansarei!... Quanto a ter medo,
isso é verdade!... Pois se vocemecê acabou de contar que elles batem
na gente até nos pôrem a escorrer sangue!... Quem é que tem vontade
de ficar estropiado? Eu me arranjarei:--vou de noite... Sempre hei-de
achar maneira de fazer o recado! Dê cá... Parto esta noite mesmo.

Ficou um momento calado, de sobrolho franzido, e logo:

--Vou d’aqui esconder-me na floresta. Depois, aviso os companheiros e
digo-lhes: «Vão lá ter comigo e sirvam-se». É o melhor que ha a fazer!
Se eu mesmo distribuisse os jornaes e fôsse apanhado, era uma pena por
causa dos jornaes... Já ha tão poucos, que é preciso ter muita cautella
com elles.

--E o medo? Que fazes tu a elle? Inquiriu de novo Pélagué.

Divertia-a deveras aquelle alentado rapagão de caracoes, pela
sinceridade que vibrava na menor das suas palavras, pela sua fisionomia
franca e pelas suas maneiras teimosas.

--O medo é o medo e negocios são negocios! replicou elle, mostrando
muito os dentes. Para que está a mangar comigo? Então, já viram?...
Talvez não seja coisa de metter medo a uma pessôa?... Mas já que
é preciso, atira-se a gente ao lume! Quando se trata d’um negocio
d’estes...

--Ah! meu filho! exclamou involuntariamente Pélagué, vencida pelo
entusiasmo e o contentamento que elle lhe inspirava.

Elle sorriu acanhado:

--Ainda mais esta: eu, seu filho! Alguma criancinha, talvez?...

Nicolao, que não deixára de observar o rapaz, com olhar amigo,
interveio então:

--Você não vae, homem!

--Então, que devo fazer? Onde é preciso que vá? interrogou elle com
inquietação.

--Outro irá em seu logar e você ha de explicar-lhe meudamente como elle
deve proceder. Quer fazer isto?

--Está bem! respondeu Ignaty de má vontade, apóz um instante de
hesitação.

--Nós nos encarregamos de lhe fornecer documentos, para lhe arranjarmos
um logar de guarda-matto.

--E se fôr lá gente do campo apanhar lenha ou caçar clandestinamente,
de os prender? Para isso não sirvo eu!...

Os dois puzeram-se a rir, o que acabou por de todo atrapalhar o
campónio, muito desgostoso.

--Não tenha medo! disse-lhe Nicolao. Não ha de ter occasião para tal,
creia!

--Isso agora é differente! commentou Ignaty.

E já mais tranquillo, sorriu-se para Nicolao, confiado e alegremente.

--Eu sempre gostava mais de ir á fabrica; dizem que ha por lá camaradas
bastante intelligentes...

Parecia que no vasto peito lhe ardia um fogo, intermittente ainda e
que se extinguia por alternativas, não deixando ver mais que o fumo da
perplexidade e de inquietação.

Pélagué levantou-se da mesa e foi á janella, dizendo, pensativa:

--Como a vida é singular!... Por cada cinco vezes que rimos, choramos
outras tantas!... Que coisa pouco agradavel!... Já acabaste, Ignaty?
Vae dormir.

--Não, senhora, não quero.

--Vae dormir, já te disse.

--Vocemecê é muito severa! Está bem, lá vou! E muito obrigado pelo seu
chá, pelo assucar... e pela sua amisade!

Deitou-se na cama de Pélagué. Resmungava coçando a cabeça:

--Agora fica tudo a cheirar a alcatrão cá em casa... Olhe que faz mal
em me amimar tanto, creia!... Eu não tenho somno... São ambos bôas
pessoas... Já não percebo nada... parece que estou a cem mil kilometros
da aldeia... E como elle falou bem a proposito no meio-termo... No
meio-termo estão os que lambem as mãos dos que maltratam os outros...
Demónio!

E subitamente, com um ronco sonoro, arqueando muito as sobrancelhas e
de bôca entreaberta, adormeceu.



XXI


N’essa noite, já muito tarde, encontrava-se Ignaty n’um subterraneo,
sentado em frente de Vessoftchikof e segredava a este:

--Quatro vezes, na janella do meio...

--Quatro? repetia o bexigoso, com ares de grande concentração.

--Sim; primeiro trez, assim...

E bateu na meza com o dedo dobrado, emquanto contava:

--Uma, duas, trez; e depois, mais uma vez, passado um instantinho...

--Estou percebendo.

--Ha de vir á porta um campónio de cabellos vermelhos, e ha de
perguntar-lhe: «Vem por causa da parteira?» E você responde-lhe: «Sim,
senhor, venho da parte do senhorio!» E não precisa mais, elle logo
percebe do que se trata!

N’este colloquio, approximavam as cabeças; ambos altos e alentados,
falavam baixinho, abafando muito a voz. De pé, junto d’uma mesa, com
os braços cruzados sobre o peito, Pélagué observava-os. Todos aquelles
signaes cabalisticos, aquellas perguntas e respostas convencionadas
d’antemão, lhe davam immensa vontade de rir. E pensava:

«Não passam ainda d’umas crianças!»

Um candieiro seguro na parede illuminava as sombrias manchas do bolor e
as gravuras recortadas de jornaes. Pelo chão jaziam baldes amolgados,
fragmentos de zinco; e divisava-se pela janella, no ceu muito escuro,
uma grande estrella scintillante. Reinava em toda a quadra um forte
cheiro a ferrugem, tintas d’oleo e humidade.

Ignaty ostentava grosso sobretudo pelludo em que muito se comprazia;
Pélagué via-o, volta e meia, acariciar com volupia a manga do espesso
casacão e inclinar com custo o largo pescoço, para melhor se admirar. E
um pensamento cantava no coração de Pélagué:

«Filhos!... meus queridos filhos!...»

--Ora aqui está! disse Ignaty, levantando-se. Então não se esqueça!
Primeiro, ir a casa do Mouratof, perguntar pelo avô...

--Cá estou lembrado! respondia Vessoftchikof.

Mas Ignaty não se dava por crente, repetia-lhe outra vez todos os
signaes combinados e todas as palavras de passe. Por fim, estendeu-lhe
a mão.

--Agora não falta mais nada! Adeus, camarada! Dê-lhes recommendações
minhas! Olhe, diga-lhes assim: «O Ignaty está vivo e passa bem.» É boa
gente, verá!...

Mirou-se satisfeito, passou a mão pelo casacão e perguntou a Pélagué:

--Posso ir-me embora?

--E has de atinar com o caminho?

--Está claro que sim!... Até mais vêr, camaradas!

E lá se foi, aprumado, arqueando o peito, de chapeu novo á banda e
as mãos enterradas nos bolsos. Na testa e nas fontes, os anneis dos
cabellos, loiros e infantis, dansavam-lhe jovialmente.

--Ora até que emfim já tenho tambem trabalho! exclamou Vessoftchikof,
approximando-se da velha. Andava aborrecido; perguntava a mim mesmo
para que tinha saído da cadeia. Não faço senão andar escondido!... Ao
menos, na cadeia, sempre aprendia! O Pavel recheava-nos a cabeça que
era um gosto! E o André tambem nos limpava as idéas, sim senhora!... E
então, sempre se decidiu a fuga? Arranja-se isso?

--Hei de sabel-o depois d’ámanhã! respondeu. E repetiu, suspirando, mau
grado seu.

--Depois d’ámanhã...

O bexigoso approximou-se-lhe, descansou-lhe no hombro a alentada mão e
opinou:

--Podes dizer aos chefes que é coisa facil. Elles hão de dar-te
ouvidos! Ora vê tu mesma: aqui está a muralha da cadeia, ao pé d’um
lampeão. Em frente, ficam umas terras sem cultivo; á esquerda, o
cemitério; á direita, uma rua e o resto da cidade. Vem um accendedor
de candieiros mesmo de dia, dia claro, para limpar o lampeão; encosta
a escada ao muro, sobe, engata ao espigão da muralha os ganchos d’uma
escada de corda que ha de ficar para o lado do pateo, e está prompto!
Elles, na cadeia, já hão de saber a hora combinada, pedem aos presos de
crimes communs que armem qualquer desordem, ou armam-na elles mesmos,
e entretanto, os que estiverem na combinação marinham pela escada e
está tudo feito! E d’ali vem de passeio até á cidade, emquanto elles lá
ficam a procural-os pelo cemitério e nas taes terras de baldio!

Gesticulava com vivacidade, expondo este plano, aos olhos d’elle
simples, claro e de extrema habilidade. Pélagué, que nunca conhecera
n’elle mais que um rapagão tosco e desageitado, admirava-se de vêr
aquelle rosto bexiguento tão cheio de vivacidade e intelligencia.
D’antes, os minguados olhos de Vessoftchikof tudo fitavam com irritação
e desconfiança; agora, era para crêr que outros os haviam substituido,
rasgados e brilhantes de scintillações uniformes e severas que
convenciam e emocionavam Pélagué.

--Pensa bem: de dia é que ha de ser!... Sim, de dia! Quem ha de
imaginar que um preso se atreva a fugir de dia, á vista de todo o
pessoal da prisão?

--E se os fusilassem? lembrou a mãe, horrorisada.

--Quem? Se não ha soldados, e os carcereiros servem se dos revólvers
para pregar pregos!

--Quasi que estou achando tudo isso simples de mais!...

--Pois é como te digo; tu verás! Fala n’isso aos outros. Eu já
arranjei tudo: a escada de corda, os ganchos... Já falei cá com o meu
hospedeiro; é elle que ha de fazer de limpa-candieiros.

Para além da porta, mexia-se alguem entre accessos de tosse; ouvia-se
um ruido de ferros velhos.

--Ahi está elle, o hospedeiro! annunciou o bexigoso.

Pela abertura da porta appareceu uma banheira de zinco, e uma voz
encatarroada praguejou:

--Entra, diabo!

Depois, surgiu uma cara redonda e barbuda, de cabellos grisalhos, sem
chapeu, d’expressão bonacheirona e grandes olhos esbogalhados.

--Vessoftchikof foi ajudar o homem a fazer passar a banheira pela
porta; depois, o recemchegado, grande latagão corcovado, poz-se a
tossir com um grande entumecimento nas faces imberbes, escarrou e disse
na mesma voz rouca:

--Bôa noite!

--Pois agora, pergunta-lhe! convidou o rapaz.

--O quê? Que querem perguntar-me?

--É a respeito da fuga da cadeia.

--Ah, sim! disse o velho, limpando o bigode com os dedos sujos.

--Quer saber, Jacob? Ella não acredita que seja facil arranjar!

--Ah, não acredita? Pois se não acredita, é porque não quer a coisa.
Mas nós dois, que queremos que isso se faça, acreditamos que seja
facil! respondeu serenamente o homem.

Foi tomado d’um accesso de tosse que o dobrou em anglo recto, e em
seguida esteve muito tempo no meio da quadra a aspirar com força o ar
e a esfregar o peito. Fitava Pélagué com olhos de espanto.

--Mas não sou eu quem decide esta questão! observou ella.

--Mas fala lá com os outros; dize-lhes que está tudo arranjado! Ah! se
eu pudesse falar com elles, eu os convenceria! exclamou o bexigoso.

Estendeu os braços em largo gesto e depois apertou-os como para
abraçar qualquer coisa. Vibrava-lhe na voz um sentimento cuja energia
assombrava Pélagué.

--Vejam que mudança fez! pensou ella.

E contestou em voz alta:

--O Pavel e os companheiros é que hão de decidir.

Meditativo, o outro ficou-se de cabeça baixa.

--Quem é esse Pavel? interrogou o velho, tomando logar n’um banco.

--É o meu filho.

--Qual é o nome da familia?

--Vlassof.

Elle abanou a cabeça, puxou pela bolsa do tabaco e, emquanto enchia o
cachimbo:

--Tenho ouvido falar. O meu sobrinho conhece-o. O meu sobrinho tambem
está na cadeia; chama-se Evetchenko. Conhece? Eu chamo-me Gadoune.
D’aqui a pouco, está na cadeia! Então é que a gente ha de viver feliz
e socegada, nós, os velhos! Um, da policia, prometteu que me havia
de pregar com o sobrinho na Sibéria... E ha de cumprir a promessa, o
excommungado!

Entrou de fumar, escarrando para o chão de vez em quando.

--Ah! ella não quer? continuou, virado para o rapaz. Isso é com
ella!... O homem é livre! Quem está cansado, que se sente; quem estiver
cansado de estar sentado, passeie!... Quem fôr roubado, que se cale;
quem fôr tosado, soffra com resignação! E se o matarem, que se deixe
caír!... Sempre é certo isto. Mas eu cá hei de fazer saír o meu
sobrinho da cadeia. Olá, se hei-de!...

Estas expressões incisivas, parecidas com latidos, tornaram Pélagué
perplexa. As ultimas palavras do velho haviam até excitado n’ella uma
tal ou qual inveja.

Pela rua fóra, ao vento gélido e á chuva, ia pensando no Vessoftchikof.

--Como elle está mudado!... Vejam aquillo!

E ao lembrar-se de Gadoune, meditou com um sentimento quasi de
religiosa piedade:

--Ao que parece, não sou só eu que ando n’esta vida de promissão!

Depois, a imagem de seu filho accudiu-lhe ao espirito:

--Se elle consentisse, ao menos!...



XXII


No domingo seguinte, ao despedir-se de Pavel, na secretaría da cadeia,
sentiu que elle lhe deixava na mão uma bolinha de papel, o que a
fez estremecer de alvoroço. Lançou ao filho olhar interrogador e
supplicante, mas Pavel não lhe deu resposta alguma. Nos olhos azues do
filho nada viu além do sorriso sereno e decidido que conhecia bem.

--Adeus! disse, suspirando.

De novo, Pavel, ao estender-lhe a mão, deu ao rosto carinhosa expressão.

--Adeus, mamã!

Reteve ainda a mão do filho, á espera.

--Não te inquietes... Não te zangues... supplicou elle.

Estas palavras e o vinco de obstinação d’aquella fronte deram á mãe a
resposta esperada.

--Porque dizes isso? murmurou, baixando a cabeça. Que ha n’essas tuas
palavras?

E saíu rapida, sem o fitar para não traír com as lagrimas o seu estado
de espirito. Pelo caminho, chegava-lhe a parecer que lhe doía a mão em
que trazia o bilhete de seu filho; sentia o braço pesado como se lhe
tivessem dado uma pancada no hombro. E, ao entrar em casa, entregou
a Nicolao a bolinha de papel. Emquanto esperava que elle desdobrasse
o papel, fortemente comprimido, ainda teve um novo vislumbre de
esperança. Mas Nicolao disse-lhe:

--Já o sabia! Aqui tem o que escreve: «Companheiros: não fugiremos;
não devemos fazel-o; nenhum de nós se presta a isso. Perderiamos
assim o respeito por nós mesmos. Tratem antes do camponez ultimamente
preso. Merece a vossa sollicitude. É digno das vossas deligencias.
Está soffrendo horrores, aqui. Todos os dias tem desaguisados com as
autoridades. Já passou vinte e quatro horas no segredo. É torturado sem
descanso. Todos nós intercederemos por elle. Consolem minha mãe; tratem
d’ella com carinho. Contem-lhe tudo isto; ella ha de compreender.
Pavel.»

Pélagué ergueu a cabeça e com voz firme:

--Contar-me, o quê? Já compreendi tudo!

Nicolao virou de súbito as costas, puxou pelo lenço e assoou-se com
ruido. Murmurou:

--Sempre apanhei um defluxo!...

Occultou os olhos com a mão, sob pretexto de compôr os oculos, e
continuou, passeiando pelo quarto:

--Olhe, sabe que mais?... Assim como assim, haviamos de nos saír mal da
empreza!

--Que importa! Pois que seja julgado! disse a mãe de Pavel com o peito
a estalar de indefinida angustia.

--Recebi ha pouco carta d’um collega de São Petersburgo.

--Tambem da Sibéria se pode fugir, não é assim?

--Com certeza... O meu collega diz-me que o processo cedo será
julgado. O veredicto já é conhecido: o degredo para todos. Ora veja a
senhora: aquelles patifes fazem da justiça uma comedia infame!... Está
compreendendo? A sentença é lavrada em São Petersburgo, antes mesmo da
decisão do jury!

--Não pense mais n’isso, Nicolao! disse Pélagué resoluta. É inutil
pretender consolar-me ou explicar-me seja o que fôr!... O Pavel nunca
ha de fazer nada que não seja bem feito! E não se ha de apouquentar
senão pelo que o mereça!... Aqui, deteve-se para tomar folego.

--Assim como tambem nunca apouquenta os outros... E elle estima-me!
Estima-me, sim! Não vê como se lembrou de mim? «Consolem-na», escreveu
elle, an?

Batia-lhe forte o coração; a violencia do seu sentir fazia-lhe um tanto
andar a cabeça á roda.

--Seu filho é uma bella alma! exclamou Nicolao com voz singularmente
vibrante. Estimo-o e venero-o profundamente!

--E se nós tratassemos do Rybine! alvidrou ella.

O seu desejo era entrar immediatamente em acção, partir, caminhar até
caír de fadiga, para depois adormecer satisfeita com o seu dia de
trabalho.

--Sim, com effeito! respondeu Nicolao, proseguindo no passeio pelo
quarto. Que fazer n’este caso?... Eu preciso que a Sachenka...

--Ella não tarda. Vem sempre que sabe que eu estive com o Pavel.

De cabeça baixa, meditativo, sentou-se Nicolao no canapé, ao lado
d’ella. Mordia os beiços e cofiava a barbicha.

--Que pena minha irmã não estar por ahi!... Ella é que havia de tratar
da fuga do Rybine.

--Se fôsse possivel dar-lhe já fuga, emquanto o Pavel ainda ahi está...
Havia de ficar tão contente! disse ella.

Esteve um instante calada e, de repente, baixinho e com dolencia:

--Não compreendo... Porque se recusa elle?... uma vez que tem
possibilidade de o fazer?...

Ressoou forte campainhada. Nicolao levantou-se de chofre. Olharam um
para o outro.

--É a Sachenka! disse Nicolao com voz debil.

--Nem sei como lho hei de dizer! exclamou ella no mesmo tom.

--É verdade... é difficil!

--Tenho pena d’ella!

A campainha vibrou outra vez, mas com menos força, como se a pessôa que
se encontrava para alem da porta hesitasse tambem. Dirigiam-se os dois
a abrir, mas, chegados á cosinha, deteve-se Nicolao e segredou-lhe:

--É melhor ir a senhora só.

--Recusa-se a fugir? perguntou a rapariga com decisão, tão depressa
Pélagué lhe abriu a porta.

--Recusa!

--Bem o sabia! disse Sachenka simplesmente.

Faz vento, chove... que abominavel tempo!... E elle está bom?

--Está.

--Contente e de saúde... como sempre! disse Sachenka a meia voz, ao
mesmo tempo que examinava uma das mãos.

--Manda-nos dizer que devemos dar fuga ao Rybine, annunciou a mãe de
Pélagué, sem se atrever a fital-a.

--Ah, sim? Pois é preciso levar esse plano a bom caminho! respondeu a
rapariga com vagar.

--Sou da mesma opinião! declarou Nicolao, apparecendo á porta. Boa
noite, Sachenka!

Ella estendeu-lhe a mão e perguntou:

--E que obstaculo ha? Todos reconhecem que o projecto é engenhoso, não
é assim? Eu sei que ê este o parecer de todos.

--Mas quem ha de encarregar-se de o organisar? Andam todos tão
occupados!...

--Eu! disse com vivacidade a rapariga, pondo-se de pé. Eu tenho tempo.

--Pois seja! Mas são precisos outros collaboradores...

--Bem, eu os encontrarei! Vou tratar d’isso immediatamente.

--Porque não descansa um pouco? propoz Pélagué.

Ella sorriu e respondeu, deligenciando dar meiguice á voz:

--Não se apouquente por minha causa... Não estou cansada...

Apertou as mãos a ambos, silenciosa, e foi-se como viera, fria e de
semblante carregado.

Pélagué e Nicolao foram á janella para a vêr.

Atravessou o pateo e sumiu-se para além da grade. Nicolao pôz-se a
assobiar baixinho; em seguida, sentou-se á mesa e pegou na penna.

--Ella quer tratar d’este negocio para distraír o seu desgosto! disse
Pélagué, baixo.

--É evidente! confirmou Nicolao. E, voltando-se para Pélagué, com o
rosto bondosamente illuminado de um sorriso:

--Este fel é que os seus labios não provaram, não é verdade?... Nunca
andou a suspirar por um homem amado!

--Que idéa! exclamou ella, agitando negativamente a mão. Eu, a
suspirar? O que eu tinha era medo de que me obrigassem a casar com um
ou com o outro.

--Ninguem lhe agradava então?...

Reflectiu e depois respondeu:

--Não me lembro, meu amigo. É provavel que houvesse um que me agradasse
mais do que os outros... E como não havia de ser assim?... Mas não me
lembro.

Fitou o seu interlocutor e resumiu com dolorosa melancolia:

--Fui tão maltratada pelo meu marido, que tudo o que se passou antes
d’elle é como se me tivesse apagado da lembrança.

E ausentou-se por um instante. Quando voltou, disse-lhe Nicolao com
affectuoso olhar, como para lhe suavisar as penosas recordações, com
palavras repassadas de ternura e amor:

--Quer saber? Tambem eu tive uma... historia... parecida com a da
Sachenka. Amava uma menina, uma criatura deliciosa! Era ella a estrella
da minha vida... Ha vinte annos que a conheço e a amo... porque a amo
ainda hoje, para dizer a verdade; amo-a tanto como sempre a amei... de
toda a minha alma, com gratidão!

Pélagué via-lhe no olhar uma chamma viva e apaixonada. Elle descansára
a cabeça nos braços apoiados ao espaldar da poltrona e olhava para
longe, nem elle mesmo sabia para onde. Todo o seu corpo magro e
delgado, mas robusto, parecia tender para um ponto fixo, tal a haste da
planta virada para a luz do sol.

--Mas então, case-se! aconselhou ella.

--Oh! ha cinco annos que está casada!

--Porque não casou com ella? Não o amava?

Teve um momento de reflexão e respondeu:

--Creio que me amava... Tenho mesmo a certeza! Porém, veja a senhora!
fomos sempre infelizes: quando ella estava em liberdade, era eu que
estava preso, e quando eu estava solto, era ella que estava na cadeia.
Viviamos na mesma situação da Sachenka e do Pavel! Finalmente,
mandaram-na por dez annos para a Sibéria... Tão longe!... Eu quiz
seguil-a... Mas tivemos ambos vergonha, pelo nosso amor... E fiquei.
No degredo, travou conhecimento com um dos meus camaradas, excellente
rapaz. Evadiram-se juntos... e agora vivem no estrangeiro...

Tirou os oculos e limpou-os; depois, examinou as lentes contra a luz e
entrou de novo a esfregal-as.

--Ah, meu caro amigo! disse affectuosamente Pélagué, abanando a cabeça.

Lastimava-o Pélagué sinceramente, mas ao mesmo tempo, havia n’elle
o que quer que era que a forçara a sorrir, com bondoso e maternal
sorriso. Nicolao mudou logo de expressão, retomou a penna e batendo com
ella, ao ritmo das frases, declarou:

--Afinal, a vida de familia diminue a energia do revoluccionario; é
certo, diminue-a sempre! Vem os filhos, o dinheiro rareia, é preciso
trabalhar para ganhar o pão... E o verdadeiro revoluccionario deve
desenvolver a sua energia sem desfallecimentos. E é preciso ganhar
tempo para isso! Se nos deixamos ficar para traz, vencidos pelo
cansaço, ou seduzidos pela possibilidade d’uma conquistasinha amorosa,
traímos a bem dizer, a causa do povo!

Falava com voz firme e, bem que o rosto se lhe conservasse pálido,
mostrava no olhar uma decisão sem transigencias, inabalavel.

De novo, violenta campainhada interrompeu as considerações de Nicolao.
Era Lioudmila. Vinha com as faces muito vermelhas do frio. Emquanto
tirava a capa de borracha, annunciou em tom de irritação:

--Está marcado o dia do julgamento: é dentro d’uma semana!

--Tem a certeza? gritou Nicolao do quarto, onde fôra.

Pélagué correra para elle sem saber se era contentamento ou receio o
que a impellia. Seguira-a Lioudmila. Esta continuava, com a sua voz
grave, repassada de ironia:

--Tenho, sim! O procurador substituto Chostak já lavrou o libello
de accusação. No tribunal, diz-se abertamente que o veredicto já
está pronunciado. Que significará isto? O governo terá medo de que
os magistrados tratem os seus inimigos com excessiva benevolencia?
Depois de ter pervertido os seus servidores com tanta perseverança e
paciencia, ainda não estará seguro do seu servilismo?

E dito isto, sentou-se no canapé e pôz-se a esfregar as cavadas faces;
despedia do olhar sem brilho, infinito desprezo e a voz alteava-se-lhe
cada vez mais irada.

--Não gaste a sua polvora inutilmente, Lioudmila! aconselhou Nicolao. O
governo não a ouve!

As olheiras que assombreavam o rosto da mulher cavaram-se mais,
cobrindo-lhe as feições d’uma névoa de ameaça. Mordendo os lábios,
proseguiu:

--Eu lucto contra o governo. Que elle me mate, bem vae: está no seu
direito, pois que sou sua inimiga! Mas que não ande a corromper as
criaturas para defender o poder; que não me obrigue a votar-lhe
profundo desprezo; que não me envenene a alma com tal cinismo!

Nicolao, por detraz dos seus oculos, fitou-a muito, com um franzir de
palpebras e signaes approvativos.

A outra continuou a discorrer, como se aquelles a quem odiava
estivessem na sua presença. Pélagué escutava attentamente aquellas
frases, mas sem as compreender. Machinalmente, a si mesma repetia as
mesmas palavras:

--O julgamento... dentro d’uma semana... O julgamento!...

Não podia conjecturar o que ia passar-se, nem como os juizes tratariam
seu filho. Mas sentia a imminencia d’alguma coisa implacavel, cuja
crueza e cuja ferocidade deixavam de ser humanas.

Os pensamentos baralhavam-lhe o cérebro, velavam-lhe a vista d’um vapor
azulado e mergulhavam-na no que quer que fôsse frio, viscoso, que lhe
causava arrepios, nauseas e, que, infiltrando-se-lhe no sangue, lhe
chegava ao coração e suffocava n’ella todo o valor.



XXIII


Dois dias passou n’este nevoeiro de perplexidades e angustias. Ao
terceiro, veio Sachenka dizer a Nicolao:

--Está tudo prompto. É para hoje, á uma hora.

--Já?! exclamou admirado.

--Não era coisa muito complicada! Bastava que arranjasse fato para o
Rybine e sitio para o esconder. Do resto encarregou-se o Gadoune. O
Rybine não terá de andar mais que uns cem passos. O Vessoftchikof,
disfarçado, está claro, irá ao encontro d’elle, fornecer-lhe-á um
casacão e um bonné e dir-lhe á onde deve ir. Eu espero o Rybine e
guial-o-ei.

--Está muito bem... Quem é esse Gadoune? disse Nicolao.

--Deve conhecel-o. É na loja d’elle que temos feito as leituras aos
serralheiros...

--Ah, já me lembro!... Um velhote exquisito...

--Sim; é um retelhador, por officio; antigo soldado... De intelligencia
pouco desenvolvida, nutre um odio inexgotavel contra todas as
violencias, contra toda a oppressão. É um tanto ou quanto filósofo,
rematou Sachenka, pensativa, a olhar pela janella.

Ouvia-se Pélagué em silencio. Pouco a pouco, ia amadurecendo n’ella uma
idéa vaga.

--O Gadoune quer dar fuga ao sobrinho, o Evtchenko, aquelle ferreiro de
quem tanto se agradavam todos pelo seu aceio e donaire, lembram-se?

Nicolao affirmou com um gesto.

--Pois tem tudo preparado na perfeição, continuou Sachenka; mas ainda
assim, começo a duvidar do bom exito... Os presos passeiam todos á
mesma hora. Quando virem a escada, ha de haver logo muitos a quererem
fugir...

Fechou os olhos e calou-se por instantes. Pélagué approximara-se d’ella.

--... E hão de estorvar-se uns aos outros.

Estavam agora os trez junto da janella, Nicolao e Sachenka á frente,
Pélagué mais atraz. A conversação rapida dos dois primeiros despertava
cada vez mais em Pélagué um vago sentimento...

--Pois hei de lá ir! annunciou de subito.

--Para quê? perguntou Sachenka.

E Nicolao aconselhou:

--Não, não, querida amiga! Podia acontecer-lhe alguma coisa. Não!

Ella fitou-os a ambos e repetiu, mais baixo, com insistencia:

--Sim, hei de ir!

Os dois trocaram rapido olhar. Sachenka encolheu os hombros e commentou:

--Compreende-se...

Depois, voltando-se para ella e tomando-lhe do braço, inclinando-se-lhe
ao ouvido, declarou com singeleza e cordealidade:

--Mas olhe que eu previno-a: nada tem a esperar...

--Minha querida! exclamou a mãe de Pavel, puxando-a para si, a tremer,
leve-me comsigo!... Eu não a estorvo... É que eu queria vêr... Não
creio, não julgo que seja possivel... uma evasão!

--Ha de vir comnosco por força! limitou-se a dizer a rapariga para
Nicolao.

--Isso é com vocês as duas! respondeu elle, baixando a cabeça.

--Mas olhe que não podemos ficar juntas. Vocemecê tem de andar pelos
campos, pelos jardins. Vêem-se de lá os muros da cadeia, muito bem...
D’outra fórma, arrisca-se a que lhe perguntem o que anda ali a fazer.

Com serenidade, Pélagué exclamou:

--Sempre hei de achar uma resposta!

--Não se esqueça de que os vigias da cadeia conhecem-na! lembrou
Sachenka. Se a vêem por ali...

--Não hão de vêr-me! respondeu ella.

E logo a seguir, a esperança que ella sempre acalentára sem mesmo, dar
por tal, incendiou-se em viva chamma que toda a animou:

--Quem sabe?... Talvez que elle tambem... pensava, emquanto se vestia
apressadamente.

Uma hora depois, encontrava-se ella em meio d’uns campos, perto da
prisão. Soprava vento agreste, que lhe enfunava as saias, enrijecia
o solo gelado, fazia oscillar o tapume velho d’um jardim, fustigava
com violencia o muro da cadeia e penetrava no pateo interior, d’onde
a vozearia subia, arrastada para o firmamento no seu irresistivel
sopro. Corriam velozes as nuvens, deixando por vezes entrever a immensa
profundidade do azul.

A cidade estendia-se por detraz de Pélagué; e na sua frente, o
cemiterio. A uns vinte passos para a direita, elevava-se a cadeia.
Perto do cemiterio, dois soldados andavam a dar passeio a um cavallo.
Caminhavam com pesado passo, assobiavam e riam.

Obedecendo a instinctivo impulso, acercou-se dos dois homens e
gritou-lhes:

--Camaradas, viram a minha sobrinha? Não fugiu para aqui?

--Não, não vimos, respondeu-lhe um.

Afastou-se devagar, passou-lhes adiante e dirigiu-se para o muro do
cemiterio, olhando sempre de soslaio. De súbito, sentiu vergarem-se-lhe
as pernas e tornarem-se-lhe pesadas, como se o gelo lh’as tivesse
pregado ao solo: à esquina da cadeia tinha apparecido um accendedor de
candieiros, corcovado sob pequena escada, a correr, como todos elles
costumam fazer. Toda a tremer de susto, olhou Pélagué para o lado dos
soldados. Tinham ficado parados em certo sitio; o cavallo brincava,
pulando-lhes á roda. Viu depois que o homem já tinha encostado a escada
ao muro e por ella trepava sem pressa alguma. Viu-o fazer um signal
com a mão, descer rápido, e sumir-se na esquina da cadeia. Pulsava
violentamente o coração de Pélagué; os segundos decorriam com lentidão.
A escada mal era visivel entre as grandes manchas da lama e da caliça
escalavrada, que deixava a descoberto os tijolos. N’isto, surgiu na
crista do muro a cabeça de Rybine, e logo o corpo appareceu, passou
para o outro lado e deslisou.

Segunda cabeça coberta de bonné de pello surgiu; rolou para o chão
uma especie de novelo preto que logo se sumiu na esquina do edificio.
Rybine aprumára-se e olhava em torno. Fez um signal com a cabeça.

--Foge! foge! segredou Pélagué, batendo o pé.

Tinha zumbidos nos ouvidos, parecia-lhe ouvir gritos, quando terceira
cabeça, esta loira, emergiu do espigão do muro. Comprimindo o peito ás
mãos ambas, Pélagué olhava, petrificada.

A cara loira e imberbe teve um impulso para cima, como para se separar
do corpo, e depois, desappareceu por detraz do muro. Os gritos de ha
pouco faziam-se mais ruidosos e traduziam maior alvoroço; o vento
levava-os pelo espaço, de mistura com trillos agudos de apitos.

Rybine caminhou ao longo do muro e depois transpôz um terreno que
separava a prisão dos predios da cidade. A Pélagué afigurava-se que ele
ia muito devagar e de cabeça alta demais; com certeza as pessoas que
com elle se cruzavam não lhe esqueceriam as feições.

--Depressa!... Mais depressa! murmurou ella.

No pateo da cadeia, houve qualquer coisa que se quebrou com ruido
secco, ouviu-se um tenido agudo de vidros partidos. Firmando os pés
no chão com toda a sua força, um dos soldados puxava pelo cavallo;
o outro, de mão ao lado da bocca, gritava o que quer que fôsse na
direcção do presidio, depois apurava o ouvido com a cabeça inclinada
n’esse sentido.

Em crispações de incerteza, a mãe de Pavel olhava para tudo aquillo; os
seus olhos, que tudo haviam visto, em nada queriam crêr. A evasão, que
ella imaginára coisa terrivel e complicada, effectuara-se tão rapida e
simplesmente, que d’ella mal lhe restava consciencia. Em baixo, na rua,
já não se divisava Rybine. Os unicos traseuntes eram agora um homem de
elevada estatura, vestido de comprido sobretudo, e uma rapariguinha.
Appareceram trez vigias á esquina.

Corriam, apertando-se uns contra os outros, com o braço direito
estendido para a frente. Um dos soldados precipitou-se ao encontro
d’elles, o outro mal podia acompanhar o cavallo, que, caprichoso e
rebelde, tentava recomeçar o brinquedo, esquivando-se e pulando.
Pélagué julgava vêr tudo em volta d’ella oscillar. Os apitos rasgavam
a atmosfera em trillos incessantes e desesperados. Compreendeu então
o perigo que corria. Toda trémula, foi andando ao longo do tapume do
cemiterio, sem perder de vista os guardas. Estes deitaram a correr para
a outra esquina da cadeia e desappareceram, assim como os soldados.

Logo depois viu o sub-director da prisão, que ella conhecia bem, tomar
a mesma direcção. Trazia a farda desabotoada. Accudiam policias;
formava-se um ajuntamento...

O vento soprava, deslocando-se em redemoinhos, como se quizesse
mostrar-se satisfeito; com elle chegavam aos ouvidos de Pélagué
fragmentos d’exclamações confusas:

--Ella ainda lá está!

--A escada?

--Vá para o diabo! Porque espera!...

De novo retiniram apitos estridentes. Todo este tumulto era do agrado
de Pélagué. Apressou o passo, ao mesmo tempo que ia pensando:

--Logo, era possivel!... E se elle quizesse, tambem o tinha podido
fazer!

De repente, ao voltar uma esquina do tapume, embateu em dois guardas,
acompanhados d’um policia.

--Pára! gritou-lhe este, offegante. Não viste um homem de barba a
correr? Não veio para aqui?

Ella apontou para os campos e respondeu com todo o sangue frio:

--Vi, sim, senhor. Foi para ali!...

--Jégourof! berrou o policia. Vá! Corre! Apita! E ha muito tempo?

--Ha de haver um minuto...

Mas teve a voz dominada pelo estridor do apito. Sem esperar a resposta,
o policia desatou a correr por entre os montões de lama gelada,
agitando as mãos na direcção dos jardins. De cabeça baixa e apito na
bocca, os outros precipitaram-se-lhe nas peugadas.

Ficou um momento a seguil-os com a vista e voltou para casa. Sem que
um pensamento particular predominasse n’ella, sentia, não obstante, o
pezar por alguma coisa; havia no seu coração amargura e despeito. Ao
chegar proximo da cidade, fêl-a parar um trem que ia passando. Ergueu
a cabeça e viu na carruagem um rapaz de bigode loiro, rosto pálido e
que revelava cançaso. Elle fitou-a tambem. Ia sentado de esguelha;
era talvez por isso que parecia ter o hombro direito mais alto que o
esquerdo.

Nicolao recebeu Pélagué com um suspiro de alivio.

--Chegou sã e salva? Então como se passou isso?

--Parece que conseguiram o que queriam.

E diligenciando rememorar os mais insignificantes pormenores, contou o
que tinha visto, como se estivesse a repetir inverosimil historia.

--Ora veja que temos sorte! disse Nicolao, esfregando as mãos. Mas que
susto em que estive por sua causa! Nem póde imaginar! Nada receei com
respeito ao julgamento. Quanto mais cedo fôr, tanto mais breve chegará
o dia da libertação do seu Pavel, creia! Talvez até possa evadir-se
quando fôr, a caminho da Sibéria... Quanto ao julgamento, aqui tem
pouco mais ou menos o que é.

Entrou a descrever-lhe o tribunal. A mãe de Pavel escutava-o, mas
presentia que elle receava alguma coisa e diligenciava tranquillisal-a.

--Está imaginando talvez que eu quero dirigir-me aos juizes,
entregar-lhes algum memorial! disse ella.

Nicolao levantou-se bruscamente, agitou a mão e exclamou em tom de
melindre:

--Que está dizendo? Nunca pensei n’isso!

--Tenho medo, isso é certo! Tenho medo e não sei de quê!

Calou-se. O olhar vagueava-lhe pelo aposento, ao accaso.

--Em certas occasiões, quer-me parecer que hão de mofal-o, que hão
de injurial-o e dizer-lhe: «Oh, campónio, filho de campónio! que
descoberta foi essa agora?» E o Pavel é orgulhoso; ha de querer
responder-lhes... Ou então é o André que vae para lá zombar d’elles.
São todos tão entusiastas, tão francos e leaes, os nossos!... É por
isso que eu digo comigo mesmo: «Se acontecesse alguma coisa, se um
d’elles perdesse a paciencia, os outros haviam de apoiá-lo e lá os
tinhamos todos condemnados... por maneira que nunca mais apparecessem!»

Nicolao, sombrio, atormentando a barba, permanecia silencioso.

--Não posso expulsar taes idéas d’esta cabeça! continuou ella mais
baixo. É terrivel, uma audiencia! Vão para ali pôr-se a examinar
tudo, a avaliar tudo... a procurar onde está a verdade! É deveras um
horror!... Não é o castigo que amedronta, é o julgamento... a avaliação
da verdade... Não sei como hei de dizer...

Sentia que Nicolao não compreendia o seu terror, e isto ainda mais a
embrulhava na demonstração.



XXIV


Este terror de Pélagué não fez senão augmentar durante os trez dias que
a separavam da audiencia e, quando esta chegou finalmente, levava ella
sobre si, para o tribunal, um fardo que toda a avergava.

Cá fora, reconheceu varios dos seus antigos visinhos do arrabalde,
inclinou-se em silencio para corresponder aos seus cumprimentos e
abriu á pressa caminho por entre a multidão tristonha. Nos corredores
e depois, na sala, topou com as familias dos seus. Falava-se abafando
a voz; trocavam-se frases que ella não compreendia. D’aquella turba
brotava pungente sentimento que se communicava a Pélagué e a opprimia
ainda mais.

--Senta-te! convidou Sizof, arranjando-lhe logar no banco, a seu lado.

Obedeceu, compôz as dobras do vestido e olhou em torno. Divisava
vagamente umas faxas verdes e encarnadas, umas manchas, uns fios
amarellos e delgados, que brilhavam.

--Foi o teu filho que levou o meu á perdição! murmurou uma mulher que
lhe ficava perto.

--Cala-te d’ahi, Nathalia! interrompeu Sizof com o semblante carregado.

Pélagué ergueu a vista para aquella mulher: era a mãe de Samoílof.
Um pouco mais adiante, estava o pae, calvo, de bello rosto ornado de
espessa barba ruiva talhada em leque. Semi-cerrava as palpebras e
olhava direito para diante de si, com um estremecimento involuntario de
vez em quando.

Pelas altas janellas entrava uma claridade uniforme e turva;
escorregavam flocos de neve pelas vidraças. Entre as janellas, havia
um immenso retrato do czar em grossa moldura doirada, e com reflexos
oleosos na pintura; e a um e outro lado do quadro, occultavam a
parede as pregas hirtas dos pesadissimos reposteiros que revestiam as
janellas. Frente ao retrato, uma meza coberta de panno verde, occupava
quasi toda a largura da sala; á direita, por detraz d’uma especie
de gelosia gradeada, dois bancos de pau; á esquerda, duas filas de
poltronas forradas de vermelho. Os officiaes de diligencias, de golas
verdes e botões doirados iam e vinham pela sala, nos bicos dos pés.

Na atmosfera, de equivoca pureza, perpassavam ruidos de vozes,
cochichando baixinho; pairava, vindo ninguem saberia d’onde, um vago
cheiro de farmácia. Todas aquellas côres vivas e aquellas scintillações
offuscavam a vista; penetravam no peito os odôres do ambiente d’envolta
com a respiração; o espirito sentia-se submerso n’uma especie de temor
inexprimivel.

De súbito, alguem começou a falar em voz alta. Toda a assistencia se
pôz de pé. Pélagué teve um sobresalto e ergueu-se tambem, agarrada ao
braço de Sizof.

No canto esquerdo da sala, tinha-se aberto uma porta alta, dando
passagem a um velhinho de oculos, muito alcachinado e de andar incerto.
Umas escassas suissas tremiam-lhe dos lados da carinha de côr terrosa,
o lábio superior, barbeado, quasi se lhe sumia na cavidade da bôca.
As maçãs do rosto e o queixo comprimiam-se-lhe sobre a altissima gola
da farda, dando a julgar que por baixo nada existia de pescoço. O
velho caminhava sustido por um rapaz alto, de cara de porcelana, muito
redonda e rosada. Atraz d’elles, vinham trez personagens revestidos de
uniformes recamados de bordados e mais trez sujeitos á paisana.

Por muito tempo, estiveram a deliberar entre si, em volta da mesa;
depois, sentaram-se. Logo que todos tomaram os seus logares, um
d’elles, rosto imberbe e com a farda desabotoada, entrou a falar ao
velho, com uns modos de indifferente indolencia e movendo com custo
os beiços entumecidos. O velho ia-o escutando. Conservava-se hirto e
immovel, e Pélagué distinguia-lhe duas manchasinhas esbranquiçadas por
detraz dos vidros dos oculos.

Junto de estreita secretária, na extremidade da mesa, um homem alto e
calvo folheava papeis, com uma tossinha sêcca.

O velho fez um movimento para diante e começou a falar. A primeira
palavra pronunciou-a elle distinctamente, mas as outras parecia que se
sumiam ao sahir-lhe dos lábios delgados e sem côr.

--Declaro...

--Olha! segredou Sizof á sua visinha com uma leve cotovellada. E pôz-se
de pé.

Por detraz do gradeamento abrira-se uma porta que dera passagem a um
soldado de espada desembainhada, ao hombro, e logo depois a Pavel,
André, Fédia Mazine, os irmãos Goussef, Boukine, Samoílof e mais
cinco rapazes desconhecidos de Pélagué. Pavel vinha a sorrir; André
cumprimentou Pélagué com um aceno de cabeça.

Aquelles rostos, aquelles sorrisos e gestos de animação fizeram parecer
menos frio o silencio e tornaram a sala mais luminosa; suavisaram-se
os reflexos opulentos de oiro dos uniformes; um alento de confiança,
uma aragem de força viril penetraram o coração da mãe de Pavel,
arrancando-a ao seu torpor. Por detraz d’ella, pelas bancadas onde até
ali a turba se conservava acabrunhada, á espera, murmurios surdos e
reprimidos iam respondendo ás saúdações dos reus.

--E é que não teem medo! ouviu ella Sizof segredar-lhe, ao passo que á
sua direita a mãe de Samoílof se desatava em soluços.

--Silencio! gritou uma voz severa.

--Tenho a prevenil-os... disse o velho.

Pavel e André tinham ficado lado a lado; a seguir, estavam Mazine,
Samoílof e os irmãos Goussef, todos na primeira bancada. André cortára
a barba; mas o bigode crescera-lhe tanto, que as guias pendiam e
reuniam-se, assemelhando-lhe a redonda cabeça á d’um gato. Trazia
impressa na fisionomia uma expressão nova: nos vincos aos cantos da
bôca, havia alguma coisa penetrante, irónica, e o olhar tornára-se-lhe
sombrio. Mazine tinha agora o lábio superior sombreado por dois traços
escuros, e o seu rosto engordára; o Samoílof tinha os mesmos cabellos,
tão encaracolados como d’antes.

O Ivan Goussef continuava a mostrar o mesmo amplo sorriso.

--Fédia! Fédia! suspirou Sizof, baixando a cabeça.

Pélagué respirava agora melhor. Apurava como podia, o ouvido ás
perguntas indistinctas do velho, o qual interrogava os reus sem olhar
para elles, com a cabeça entalada entre a gola da farda. Escutava as
respostas breves e calmas que seu filho ia dando. Queria-lhe parecer
que aquelle presidente e aquelles juizes não podiam ser más e crueis
pessoas. Examinava-lhes pormenorisadamente as fisionomias, tentando
perscrutar-lhes os sentimentos, e assomava-lhe ao coração uma nova
alvorada de esperança.

Indifferente, o homem da cara de porcelana estava lendo um documento; a
sua voz circumspecta enchia a sala d’um tedio que causava somnolencias
no publico. Em voz baixa e animadamente, quatro advogados conversavam
com os réus; tinham todos uma gesticulação saccudida e veemente e
faziam pensar em grandes passarolos negros.

Á direita do velho, um juiz ventrudo, de olhinhos sumidos entre as
papadas da gordura, enchia completamente toda a capacidade da poltrona;
á esquerda, estava um homem alquebrado, de bigode vermelho, de rosto
esmaecido. Reclinava com lassidão a cabeça no espaldar, de palpebras
semi-cerradas, meditando. O procurador tambem apparentava cansaço,
enfado e indifferença. Por detraz dos juizes, occupavam poltronas
varios individuos: um robusto e esbelto homem estava acariciando uma
das faces, com ares de grande concentração; o marechal da nobreza, já
grisalho, de rosto rubicundo e comprida barba, divagava o olhar dos
seus grandes olhos simplorios; o syndico do bailiado, a quem o enorme
abdomen visivelmente incommodava, diligenciava disfarçal-o sob uma aba
da blusa, que escorregava de contínuo.

--Aqui não ha criminosos nem juizes! proclamou Pavel com voz firme.
Aqui só ha captivos e vencedores!

Fez-se silencio. Durante alguns segundos, o ouvido de Pélagué nada
distinguiu além do ranger precipitado e estridente das pennas sobre o
papel e das palpitações do seu proprio coração.

O presidente do tribunal parecia que estava escutando ou esperando
alguma coisa. Os juizes seus collegas agitaram-se nas poltronas. Elle
então disse:

--Sim!... André Nakhodka!... Reconhece...

Ouviram-se vozes segredar:

--Levanta-te!... Levante-se!

André poz-se de pé com lentidão e ficou a olhar para o velho, de
soslaio, emquanto frisava e desfrisava o bigode.

--De que posso eu reconhecer-me culpado? disse, com um encolher de
hombros, o russo-menor, na sua voz cantante e arrastada. Eu não matei,
nem roubei: simplesmente protesto contra esta organisação da sociedade,
que obriga os homens a explorarem-se e a assassinarem-se uns aos outros.

--Limite-se a responder sim ou não! disse o velho com esforço mas
perceptivelmente.

Pélagué sentia que por detraz d’ella susurrava certa agitação;
todos falavam baixinho e mexiam-se muito nas bancadas, como para
desannuviarem os espiritos da teia d’aranha tecida pelo discurso
enfadonho do homem de porcelana.

--Vês como elles respondem? segredou Sizof para a mãe de Pavel.

--Sim!

--Fédia Mazine, responda!

--Não quero! declarou Fédia peremptoriamente, pondo-se de pé.

Estava muito córado pela commoção e com os olhos brilhantes. Sizof
soltou um «Ah!» de mal contido espanto.

--Não quiz defensor, portanto nada direi. Considero o julgamento
d’este tribunal como illegitimo!... Quem são os senhores? Foi o povo
quem lhes deu o direito de julgar-nos? Não, não foi o povo! Logo, não
os conheço!

Tornou a sentar-se e occultou o rosto rubro, por detraz do hombro de
André.

O juiz gordo curvou-se para o presidente, cochichando. O juiz de rosto
esmaecido lançou uma olhadela obliqua para os réus e, com o lapis,
passou um traço por cima do que quer que fôsse, escripto no papel que
tinha em frente. O syndico do bailiado abanou a cabeça e removeu os
pés do sitio em que os tinha, com precaução. O marechal da nobreza
conversava com o procurador; o administrador da communa prestava
attento ouvido ao que diziam e sorria, esfregando sempre uma das faces.

De novo se ouviu a voz triste e sumida do presidente.

Os quatro advogados escutavam attentos; os réus conversavam em segredo
uns com os outros; Fédia continuava a occultar-se ás vistas, sorrindo,
muito compromettido.

--Então, não viste aquillo?... Falou melhor que todos os outros!
murmurou Sizof ao ouvido da sua visinha. Ah, aquelle brejeiro!

Pélagué sorriu sem o compreender. Tudo o que se estava passando
não era para ella mais do que o prologo inutil e forçado d’alguma
coisa terrivel, que, ao surgir, havia de esmagar todo o auditório
sob gélido terror. Comtudo, as calmas respostas de Pavel e André
manifestavam tanta firmeza e decisão, como se as tivessem pronunciado
na modesta casinha do arrabalde e não perante juizes. A réplica
enthusiasta e juvenil de Fédia tinha-a divertido immenso. Pairava na
sala uma atmosfera de audácia e de mocidade, e, pela agitação de todo
o auditório, Pélagué sentia que não era ella só que lhe sentia os
effluvios.

--A sua opinião? perguntou o velho.

O procurador calvo ergueu-se com a mão apoiada na carteira e discursou
com verbosidade, citando numeros. Nada havia n’aquella voz que
infundisse terror. No emtanto, ao ouvil-o, Pélagué sentiu logo como uma
punhalada no coração: era um vago presentimento de alguma coisa hostil
e que se lhe afigurava ir desenvolvendo-se lentamente em uma fórma
indefinivel. Examinava tambem os juizes, mas não os compreendia: ao
contrario do que ella esperava, não os via zangar-se com Pavel e Fédia,
nem proferir palavras injuriosas contra os réus; queria-lhe parecer que
todas as perguntas que faziam não tinham para elles importancia alguma;
dir-se-ia que era de má vontade que as formulavam e que lhes custava
esperar as respostas; nada os interessava tudo sabiam já d’antemão.

Agora estava um policia postado na frente d’elles e falava com uma voz
de baixo profundo.

--Toda a gente apontava Pavel Vlassof como o principal cabeça de motim.

--E André Nakhodka? perguntou com indolencia o jury gordo.

--Esse tambem.

Levantou se um dos advogados e disse:

--Dá-me licença?...

O velho perguntou a alguem:

--Não tem objecção a apresentar?

Pélagué chegava a julgar que os juizes se achavam todos doentes.
Traduzia-se um cansaço mórbido na menor das suas attitudes, nas vozes e
nas fisionomias. Via-se que tudo os enjoava: os uniformes, a sala, os
policias, os advogados, a obrigação de estarem ali sentados n’aquellas
poltronas, de interrogarem e de ouvirem. Raras vezes Pélagué se
encontrára na presença de gente de posição elevada e havia alguns annos
que nem sequer a tinha visto, e assim, as feições dos juizes eram para
ella como uma coisa inteiramente desconhecida, incompreensivel, mas
mais compassiva do que severa.

Estava agora a falar o official de cara amarellada que ella conhecia
bem; referia-se a André e a Pavel, arrastando muito as palavras,
emfaticamente. E emquanto o ouvia, Pélagué commentava comsigo mesma:

--Não sabes nada d’isto, meu pateta!

Deixára de sentir compaixão ou receio pelos que se sentavam por detraz
do gradeamento; não temia pela sua sorte, e achava que lhes era inutil
a sua piedade, mas todos elles lhe inspiravam admiração e um sentimento
de amor que lhe acalentava docemente o coração.

Jovens e robustos como eram, estavam sentados á parte, junto da parede
e quasi nem intervinham na conversação monotona entre testemunhas
e juizes, nas discussões dos advogados e do procurador. De vez em
quando, um d’elles tinha um sorriso de desprezo e dizia baixo algumas
palavras aos seus companheiros. André e Pavel, esses, falavam quasi
continuadamente com um dos defensores, a quem Pélagué conhecia de o
ter visto na vespera em casa de Nicolao e que por este era tratado de
«camarada». Mazine, mais animado e irrequieto que os outros, prestava
attento ouvido a esta conversa. De vez em quando, Samoílof segredava
meia duzia de palavras ao ouvido de Ivan Gousef. E Pélagué, olhando
para tudo, comparava, reflectia, sem que pudesse compreender aquella
sensação de hostilidade que a invadia, nem achar termos para exprimil-a.

Sizof chamou-lhe a attenção com ligeira cotovellada; virou-se para
elle: estava com uns ares ao mesmo tempo satisfeitos e um tanto
preoccupados. Segredava:

--Olha para a presença de espirito com que elles estão, aquelles
garotos, an? Parecem verdadeiros fidalgos, não é verdade? E no
entretanto estão a ser julgados... para os ensinar a não se metterem
no que não é da sua conta.

Ella repetiu involuntariamente a si mesma:

--Estão sendo julgados...

Na sala, depunham testemunhas, com vozes incaracteristicas e
atabalhoadas; os juizes iam sempre interrogando, indifferentes e mal
humorados. O juiz gordo bocejava, dissimulando a bôca sob a mão inchada
de cieiro; o seu collega dos bigodes ruivos tornára-se ainda mais
lívido; por vezes, erguia o braço, premia fortemente uma das fontes com
um dedo, e ficava-se a fitar o tecto com o olhar morto.

De vez em quando, escrevia o procurador algumas linhas a lapis e depois
recomeçava a cochichar com o marechal da nobreza. O administrador
cruzára as pernas e tamborilava n’uma dellas, com o olhar fixado com
gravidade no movimento dos dedos.

Com o ventre descansando-lhe nos joelhos e sustentando-o prudentemente
entre as duas mãos, o syndico do bailiado quedára-se de cabeça pendida;
parecia ser elle o unico a escutar o murmurio monotono das vozes, além
do velho, enterrado na poltrona e immovel como um catavento quando não
sopra a brisa. Durou isto muito tempo e de novo o aborrecimento se
apoderava do auditório.

Pélagué sentia que a justiça, a justiça implacavel que põe friamente
as almas a descoberto, que as examina, que tudo vê e tudo aprecia com
os olhos incurruptiveis e tudo pesa com mão leal, não tinha ainda dado
entrada n’aquella sala. Nada via por emquanto que a amedrontasse com
uma manifestação de força ou de majestade. Rostos descoloridos, olhos
sem brilho, vozes fatigadas, o indifferentismo tristonho d’uma tarde de
outono, eis tudo o que presenceava.

--Declaro... disse o velho com clareza; e em seguida, depois de ter
abafado o resto da frase entre os delgados labios, ergueu-se.

Logo a sala se encheu de rumores, suspiros, exclamações suffocadas,
accessos de tosse e arrastar de pés. Os réus foram conduzidos para fóra
do pretorio; ao saírem, faziam signaes com a cabeça e sorriam-se para
parentes e amigos. Ivan Goussef chegou mesmo a gritar com affabilidade
para quem quer que fôsse:

--Não te deixes intimidar, camarada!

Pélagué e Sizof saíram para o corredor.

--Queres vir ao bufete, tomar chá? perguntou sollícito o velho
operário. Temos hora e meia para esperar.

--Não, obrigada.

--Bem, então tambem eu não vou. Viste os rapazes, an? Falam como se
elles fôssem os verdadeiros homens e os outros coisa nenhuma! Ouviste o
Fédia, an?

De bonné na mão, vinha chegando n’este momento o pae de Samoílof. Com
um sorriso triste, perguntou:

--Que dizem do meu filho? Não quiz advogado e recusa-se a responder...
Foi elle que teve a idéa.

O teu filho era pelos advogados, Pélagué; o meu disse que não os
queria. E houve quatro que lhe seguiram o exemplo.

A mulher esteve ao lado d’elle. Piscava de contínuo os olhos e limpava
o nariz com a ponta do lenço. Samoílof reuniu na mão toda a barba, n’um
punhado, e continuou:

--Outra coisa que me dá que pensar: quando a gente olha para aquelles
demónios, parece que elles fizeram tudo aquillo inutilmente, que
comprometteram a sua vida sem necessidade e, de repente, fica-se a
scismar se elles não terão razão...

E é bom não esquecer que lá na fabrica, o partido d’elles aumenta
continuadamente. De vez em quando, prendem-nos; mas nunca os apanham a
todos, assim como nunca se apanham os peixes todos d’um rio! E a gente
fica sempre a perguntar com os seus botões: «Quem sabe se elles dizem a
verdade!»

--Para nós, é difficil compreender esta questão! declarou Sizof.

--Sim, é certo! acquiesceu o outro.

A mulher interveio então, depois de ter respirado com ruido:

--Parece que estão todos de perfeita saúde, estes malditos juizes!...

E continuou, com um sorriso no seu rosto emmurchecido:

--Não estejas zangada, Pélagué, por eu te dizer ha bocado que o Pavel
era o culpado de tudo!... Para falar com franqueza, nem a gente sabe
qual é o mais culpado! Ouviste o que os espiões e os policias contaram
do nosso filho?...

Claramente se via que tinha orgulho d’aquelle filho, embora ella
própria talvez nem désse por isso; mas Pélagué, que avaliava bem tal
sentimento, abriu-se em bondoso sorriso.

--Os corações moços andam sempre mais próximos da verdade do que os
velhos! disse ella em voz baixa.

Passeava-se pelo corredor; formavam-se grupos em que se discutia
concentradamente, todos pensativos e animados. Ninguem se conservava
afastado, toda a gente sentia a necessidade de falar, de interrogar e
de escutar o que se dizia. No estreito recinto da passagem, entre as
duas paredes brancas, os grupos iam e vinham, como se, impellidos por
violenta rajada, procurassem apoio n’alguma coisa firme e segura.

O irmão mais velho de Boukine, um grande latagão de cara envelhecida
prematuramente, gesticulava, virando-se com vivacidade para todos os
lados. Protestava elle:

--O syndico do bailiado nada tem a ver para o caso; não está aqui no
seu logar!

--Cala-te, Constantino! exortava o pae, um velhinho, sempre a olhar em
volta, assustado.

--Não, senhor, eu quero falar! Dizem que o anno passado matou um
empregado... por causa da mulher d’este! Ora que espécie de juiz vem a
ser aquillo, fazem favor de me dizer? A viuva do empregado vive agora
com elle!... Que havemos de concluir?... Além d’isso, toda a gente sabe
que é ladrão...

--Ai, meu Deus!... Constantino!...

--Tens razão, sim senhor! apoiou Samoílof. Tens razão! Não é um juiz
sério!...

Boukine, que tudo ouvira, approximou-se rápido, levando atraz de si
numeroso grupo. Muito vermelho, de excitado, entrou de falar, com
grandes gestos:

--Quando se trata de assassinatos ou de roubos, são os jurados que
julgam, quer dizer: a gente habitual, trabalhadores, burguezes...
Agora, quando se trata dos que são contra o governo, quem os julga é o
próprio governo!... Isto póde ser?...

--Constantino!

--Mas escuta, estão elles realmente contra o governo? Vê lá, que dizes?

Não, espera! O Fédia Mazine tem razão. Se tu me offenderes e eu te der
uma bofetada e se tu tiveres de me julgar, com certeza é a mim que
chamarás culpado; e comtudo, quem insultou? Tu! Tu!

Um guarda já idoso, de nariz adunco e peito ornado de medalhas,
atravessou por entre o ajuntamento e foi dizer a Boukine, ameaçando-o
com o dedo:

--Olá! não grites! Onde imaginas que estás? É alguma taberna, aqui?

--Queira perdoar, cavalheiro... Eu percebo bem. Ora escutem: se eu
bater em alguem e esse alguem me retribuir as pancadas e se eu tiver
de julgal-o depois, como é que podem imaginar...

--Olha que te faço saír! disse o guarda severamente.

--Saír? para onde? Porquê?

--Para a rua! Que é para não berrares!

Boukine circumvagou o olhar pelo auditório e commentou a meia voz:

--Para elles, o essencial é que estejamos calados.

--Ainda não o sabias? replicou o velho com rudeza.

O outro baixou a voz.

--E depois, porque é que o publico não póde assistir ás audiencias, mas
tão somente os parentes?

--Se ha justiça nos julgamentos, é para serem presenceados por todos!
De que teem medo?

E Samoílof apoiou, mas com mais vehemencia:

--Isso é verdade! Estes tribunaes não satisfazem a consciencia pública.

Pélagué desejava tambem repetir o que Nicolao lhe dissera ácerca
da illegalidade do julgamento; mas não o havia compreendido bem e
esquecera em parte as expressões empregadas por Nicolao. Para tentar
rememoral-as, afastou-se da multidão e viu um rapaz de bigode loiro a
observal-a. Trazia a mão direita mettida na algibeira das calças, o que
fazia com que parecesse ter o hombro esquerdo mais baixo do que outro.
Esta particularidade lembrou-se Pélagué que já era sua conhecida.

Mas o homem virou-lhe as costas e, cançada do seu esforço de memoria,
Pélagué logo se esqueceu d’elle.

Instantes depois, distinguia um fragmento de conversa em segredo:

--Aquella? Á esquerda?

E alguem respondeu mais alto, com expansão:

--Essa mesma.

Olhou. O homem dos hombros de desigual altura estava ao lado d’ella e
conversava com o seu visinho, um homem corpulento de barba preta, com
umas enormes botas e casaco curto.

Estremeceu. Ao mesmo tempo, sentia o desejo de falar nas crenças de seu
filho, para ouvir as objecções que lhe pudessem apresentar e calcular a
decisão do tribunal pelas opiniões dos que a rodeavam.

--É isto por ventura fórma de julgar? começou ella a meia voz,
prudentemente, dirigindo-se a Sizof. Não compreendo isto. Os juizes só
tratam de averiguar o que fez cada um d’elles, mas não perguntam porque
o fez. Será isto justo? diga lá! E são todos elles velhos! Para julgar
gente nova são precisos homens novos!

--Sim! disse Sizof. Torna-se-nos difficil compreender todo este
negocio... muito difficil!

E abanava a cabeça, pensativo.

N’isto, o guarda abriu a porta da sala e gritou:

--Entrem os parentes! Mostrem os seus bilhetes.

Uma voz de mau humor commentou:

--Os bilhetes... como no circo!...

Sentia-se agora uma irritação geral e mal contida, uma colera vaga. Os
curiosos manifestavam maior semceremonia do que pouco antes, faziam
barulho, discutiam com os guardas.



XXV


Sizof retomou o seu logar resmungando.

--Que tens? perguntou-lhe Pélagué.

--Não tenho nada! O povo é estupido... Não sabe nada, vive ás
apalpadellas.

Resoou uma campainhada. Alguem annunciou com indifferença:

--O tribunal!

Todos se puzeram novamente de pé, como da primeira vez. Os juizes
entraram pela mesma ordem e sentaram-se. Foram introduzidos os
accusados.

--Attenção agora! segredou Sizof. Vae falar o procurador.

Pélagué estendeu o pescoço e toda se inclinou para a frente,
immobilisada na espectativa do terrivel acontecimento imminente.

De pé, virando a cabeça para o lado dos juizes, o procurador soltára
um suspiro e entrára a falar, agitando a mão direita. Pélagué não
percebeu as suas primeiras palavras. A voz do orador era facil e
grossa, mas, tão depressa lhe affluia com rapidez, como afroixava.
As palavras iam-se seguindo primeiro como em larga fita uniforme,
depois, voavam, redemoinhavam, tal um enxame de negras moscas sobre um
torrão d’assucar. Mas n’essas palavras não via Pélagué coisa alguma
ameaçadora ou terrificante. Frias como neve, indecisas como cinza,
iam-se succedendo e enchiam a sala de aborrecimento, de alguma coisa
horripilante como uma poeira fina e sêcca. O discurso, abundante em
palavras e falho de idéas, não chegava provavelmente aos ouvidos
de Pavel e dos seus companheiros, os quaes, sem mostrarem a menor
preoccupação, continuavam socegadamente a conversar entre si. Umas
vezes, sorriam, outras, faziam-se muito sérios para conterem o sorriso.

--Está mentindo! declarou Sizof baixinho.

Pélagué não saberia dizer ao certo se assim era.

Escutava o que elle dizia e compreendia que estava accusando toda a
gente, sem se referir directamente a ninguem. Quando citava o nome de
Pavel, punha-se a falar de Tédia; em seguida, depois de ter reunido
estes, juntava-lhes Boukine. Dir-se-ia que mettia todos os accusados no
mesmo sacco, apertados uns contra os outros. Mas o sentido externo das
suas palavras não satisfazia Pélagué, como tambem não a perturbava nem
mesmo impressionava. Comtudo, continuava esperando o pormenor terrivel,
e procurava-o obstinadamente sob aquelle fluxo de palavras, no rosto do
procurador, nos olhos, na voz, na mão muito branca que elle balanceava
com lentidão. E sentia que estava ali, n’aquelle homem, a coisa
assustadora, indefinivel e incompreensivel. De novo se lhe confrangeu o
coração.

Olhou para os jurados: o discurso estava-os claramente enfadando.
Os seus rostos macillentos, terrosos, inanimados, não apparentavam
expressão alguma; eram quaes manchas cadavéricas e immoveis. E aquellas
faces, umas de nutrição enfermiça, outras, demasiado magras, sumiam-se
cada vez mais em meio do cansaço que invadia a sala. O presidente não
fazia um só movimento, estatico e hirto; por vezes, as manchasinhas
pardacentas que lhe appareciam por detraz dos vidros dos oculos,
sumiam-se-lhe na palidez do rosto. Perante esta indifferença glacial,
esta frieza tíbia, Pélagué a si própria perguntava com desasocego:

--Estarão elles verdadeiramente a julgar?

De repente, como de improviso, terminou o procurador o seu libello.
O magistrado inclinou-se perante os juizes, a esfregar as mãos. O
marechal da nobreza fez-lhe com a cabeça um signal, ao mesmo tempo que
rebolava as pupillas. O administrador da communa estendeu-lhe a mão e o
syndico contemplou o seu abdomen, risonho.

Mas via-se que os juizes não haviam ficado satisfeitos com o
procurador: não tinham feito um só movimento.

--Cão tinhoso! resmungou Sizof.

--Tem a palavra... disse o velhinho, erguendo um papel até junto do
rosto. Tem a palavra o defensor de... Fédossief, Markof, Zagarof.

Levantou-se então o advogado que Pélagué vira em casa de Nicolao. Tinha
uma cara cheia e aspecto bonacheirão; os olhinhos irradiavam, parecia
ter nas orbitas dois pontos acerados, a cortarem no ar qualquer coisa,
como laminas de tesoura. Entrou a falar sem pressa, em voz nítida e
sonora; mas Pélagué não poude escutar o que dizia. Sizof segredava-lhe
de lado:

--Percebeste o que elle disse? Diz que são uns doidos, uns garotos de
genio brigão. É do Fédia que elle quer falar!

Acabrunhada pela sua cruel decepção, Pélagué não respondeu.

Sentia-se mais e mais humilhada, e esta humilhação opprimia-lhe a alma.
Compreendia agora porque esperava em vão a justiça, porque se enganara
pensando assistir a uma discussão leal e séria entre a verdade que seu
filho proclamava e a dos juizes.

Imaginára que os juizes iam interrogar Pavel, demoradamente e com
attenção, sobre a sua vida; que examinariam com olhos perspicazes
todas as idéas, todos os actos de seu filho, e o emprego de todos os
seus dias, e que, reconhecendo a sua hombridade, haviam de declarar
convictamente: «Este homem tem razão.»

Mas nada d’isso succedia. Era para crêr que os accusados e os juizes
estivessem a cem leguas uns dos outros e ignorassem mutuamente as suas
existencias. Fatigada pela tensão da espectativa, Pélagué deixára de
acompanhar o debate. Pensava de si para comsigo, melindrada:

--É então assim que se julga? O julgamento...

E pareceu-lhe vazia e sem sentido esta palavra; soava como um vaso de
barro, quebrado.

--É bem feito! murmurou Sizof, approvando com a cabeça.

--Parece que estão mortos, aquelles juizes! disse ella.

--Elles já voltam a si!

E com effeito, tornando a olhar para elles, viu-lhes nos rostos uma
expressão de desasocego. Era outro advogado que falava, um homensinho
de cara de fuinha, lívido e irónico. Os juizes interromperam-no logo.

O procurador levantou-se de chofre e em voz rápida e zangada, ameaçou-o
com uma autoação; depois, conferenciou com o velhinho. O advogado
ficou-os escutando, com a cabeça respeitosamente inclinada; em seguida,
proseguiu no uso da palavra.

--Vae catando! vae catando! aconselhou Sizof. Vê se descobres onde está
a alma!...

Na sala crescia a animação; começava a nascer uma exaltação
batalhadora. O advogado atacava os juizes por todas as fórmas,
aguilhoava-lhes as carcomidas epidermes com ditos causticos. Os juizes
parecia apertarem-se mais uns contra os outros, incharem e fazerem-se
mais corpulentos, para resistirem áquelle chuveiro de piparotes,
com toda a massa dos seus corpos amollentados e nullos. Pélagué
examinava-os; pareciam intumecer cada vez mais, como se receassem que
os botes do advogado lhes fizessem vibrar dentro do peito um eco capaz
de lhes perturbar a soberana indifferença.

Pavel pôz-se de pé. Estabeleceu-se súbito silencio.

A mãe inclinou para a frente todo o corpo.

Tranquillamente, Pavel declarou:

--Pertencendo eu a um partido, só reconheço o tribunal d’esse partido.
Não falo para defender-me, mas para satisfazer o desejo d’aquelles dos
meus companheiros que tambem não quizeram ser defendidos. Vou tentar
explicar-lhes o que os senhores não compreenderam. O procurador
qualificou a nossa demonstração, sob o estandarte da democracia
socialista, de revolta contra as autoridades supremas e falou
constantemente de nós como de revoltados contra o czar. Devo declarar,
comtudo, que, para nós, não é só o czar a grilheta a que anda amarrado
o corpo da nação; o czar não é mais do que o primeiro élo d’essa
cadeia, de que jurámos libertar o povo.

Fizera-se mais profundo ainda o silencio, sob o império d’aquella voz
varonil. A sala parecia tornar se mais vasta e Pavel afastar-se para
longe do auditório, mais luminoso e inspirado. Pélagué foi tomada de
uma sensação de frio.

Os juizes agitavam-se pesadamente nas cadeiras, cheios de inquietação.
O marechal da nobreza segredou algumas palavras ao juiz de modos
indolentes; este abanou a cabeça e falou com o velhinho, a quem o juiz
de aspecto doente estava tambem falando ao ouvido, do lado opposto.

O presidente, vacillante na sua poltrona, para a direita e para a
esquerda, dirigiu algumas palavras a Pavel, mas a voz sumiu-se-lhe no
curso amplo e igual da exposição que o mancebo ia proferindo.

--Somos socialistas. Significa isto que somos inimigos da propriedade
particular, que promove a desunião entre os homens, os leva a
armar-se uns contra os outros e cria uma rivalidade de interesses
irreconciliaveis, que mente quando pretende dissimular ou justificar
esta hostilidade e perverte os homens pela mentira, a hypocrisia
e o ódio. Somos de opinião que a sociedade, considerando o homem
unicamente como um meio de auferir riquezas, é anti-humana e torna
se nos declaradamente hostil; não podemos acceitar a sua moral com
duas caras, o seu cynismo sem vergonha e a crueldade com que trata
as individualidades que lhe são adversas; queremos luctar, e havemos
de luctar, contra todas as fórmas de subserviencia fisica e moral do
homem, em uso n’esta sociedade, contra todos os métodos de fraccionar
a collectividade em proveito da cubiça! Nós, os operários, somos quem
pelo nosso trabalho tudo cria, desde as máquinas giganteas até aos
brinquedos das crianças. E vêmo-nos privados do direito de luctar
pela nossa dignidade de homens; Cada qual arroga-se o direito de nos
transformar em instrumentos para attingir o seu fim! Queremos que nos
dêem liberdade bastante para que se nos torne possivel, com o tempo,
conquistar o poder. Quer-se o poder para o povo!...

Aqui, sorriu Pavel e passou de vagar a mão pelos cabellos; a luz dos
seus olhos azues brilhou com fulgor mais intenso.

--Tenha a bondade... Não saia do assunto! disse-lhe o presidente em voz
nítida e forte.

Virava-se agora todo para Pavel e fitava-o. Pareceu a Pélagué
distinguir-lhe nos olhos, até ali palidos e sem expressão, um brilho
cúpido e de maldade.

Todos os juizes tinham as attenções voltadas para o orador; os seus
olhos pareciam colar-se-lhe, aderir-lhe fortemente ao corpo, para lhe
sugarem o sangue e com elle reanimarem os seus membros exaustos. Pavel,
firme e resoluto, estendeu para elles o braço e proseguiu com voz
distincta:

--Somos revolucionários e sêl-o-emos emquanto uns só tratarem de
opprimir os outros. Havemos de luctar contra a sociedade, cujos
interesses os senhores foram mandados que defendessem; a reconciliação
só entre nós será possivel quando nós fôrmos vencedores. Porque havemos
de ser nós os vencedores, nós, os opprimidos! Os mandatários de todos
vós, senhores, não são tão fortes como se julgam. Essas riquezas que
accumularam e na defeza das quaes sacrificam milhões de infelizes
creaturas, essa força que lhes dá o poder sobre nós, criam entre
elles alternativas de hostilidade e arruinam-nos, a elles, fisica e
moralmente. A defeza do vosso poderio, senhores, exige uma constante
tensão d’espirito; e, na realidade, vós, nossos senhores, sois todos
mais escravos do que nós, porque são os vossos espiritos que jazem na
oppressão, ao passo que nós só fisicamente somos opprimidos. Não podeis
libertar-vos do jugo dos preconceitos e dos habitos, e isto mata-vos
moralmente; emquanto a nós, nada nos impede que sejamos intimamente
livres! E a nossa consciencia vae tomando vida, vae desenvolvendo
se sem cessar; inflamma-se dia a dia e arrasta comsigo os melhores
elementos, moralmente sãos, mesmo do próprio meio que é o vosso... E,
se não, vêde: já não possuis ninguem que possa lutar em nome do vosso
poderio contra a corrente das idéas; esgotastes já todos os argumentos
capazes de vos protegerem dos ataques da justiça da história; nada
mais podeis criar novo, no dominio da intellectualidade: sois uns
estereis de espirito. As nossas idéas, pelo contrário, desenvolvem-se
com força crescente, penetram nas massas populares e vão-nas dispondo
para a lucta pela liberdade, lucta incarniçada, lucta implacavel! Não
podereis travar este movimento, senão usando de crueldade e de cinismo.
Mas o cinismo é evidente demais e a crueldade não faz senão irritar
o povo. As mãos que hoje empregaes para nos suffocar, hão de ámanhã
apertar as nossas mãos em fraterno amplexo. A vossa energia é a energia
mecanica produzida pelo açambarcamento do oiro, e é essa energia que
vos desune em grupos rivaes, destinados a aniquilarem se mutuamente.
Emquanto que a nossa energia é a força viva e sem cessar crescente do
sentimento de solidariedade que liga todos os opprimidos. Tudo o que
praticaes é criminoso, porque só pensaes em escravisar o homem; o
nosso empreendimento, esse, liberta o mundo dos monstros e fantasmas
criados pelas vossas mentiras, pela vossa cupidez, pelo vosso ódio!
Mas, em breve, a grande massa dos nossos artifices e camponezes ha de
ser liberta e ha de criar um mundo livre, harmonioso e immenso. E assim
ha de ser!

Calou-se Pavel um instante e depois repetiu ainda com mais força:

--E assim ha de ser!

Os juizes cochichavam, com caretas estranhas, sem desviarem os olhos de
Pavel. A mãe pensava de si para comsigo, que aquelles olhares infamavam
o corpo vigoroso de seu filho, cuja saúde e fresca mocidade invejavam.
Os réus tinham escutado attentos as palavras do seu companheiro.
Pálidos ao principio, tinham agora nos olhares uma chamma de alacre
contentamento. Pélagué devorára as frases de seu filho; gravavam-se lhe
todas profundamente na memória.

O velhinho por diversas vezes interrompeu Pavel, para lhe explicar
ninguem saberia dizer o quê, d’uma das occasiões, esboçou até, um
sorriso triste. Pavel escutava-o em silencio e logo retomava a palavra
com voz severa mas serena. Todas as attenções convergiam para elle.
Durou isto muito tempo. Por fim, o presidente gritou algumas palavras,
ao mesmo tempo que estendia o braço na direcção do mancebo. Este
respondeu em tom levemente ironico:

--Eu vou concluir. Não foi idea minha offender pessoalmente os membros
d’este tribunal, bem ao contrário: forçado a assistir a esta comédia
a que chamaes uma audiencia, chego a sentir compaixão pelos senhores.
A despeito de tudo, os senhores são homens e é sempre para nós uma
humilhação ver homens, curvarem-se de tão vil maneira ao serviço da
violencia e perderem a tal ponto a consciencia da sua dignidade
humana... mesmo quando esses homens se mostram hostis aos nossos
intentos...

E sentou-se sem olhar para os juizes.

A mãe conteve a respiração, fitando, anelante, aquelles de quem
dependia a sorte de seu filho, e esperou.

André, radiante, apertou vigorosamente a mão de Pavel. Samoílof,
Mazine e todos os outros voltaram-se para elle. Pavel sorriu, um tanto
constrangido pelo entusiasmo dos seus companheiros e olhando para a
bancada em que se encontrava Pélagué, fez-lhe um signal de cabeça, como
para perguntar:

--Foi bem, assim?

Ella respondeu-lhe com profundo suspiro de contentamento, fremente,
inundada por uma ardente vaga de amor.

--Ahi está! Vae começar o julgamento! segredou-lhe Sizof. O teu filho
deixou-os em bonito estado, an?

Ella abanou a cabeça sem responder, satisfeita de ter ouvido o filho
falar com tal desassombro e talvez mais satisfeita ainda por elle ter
terminado o discurso. Martelava-lhe no cérebro uma idéa fixa:

--Meus filhos! que vae ser de vocês?

O que seu filho dissera não era novo para ella; conhecia bem as suas
opiniões; mas, fôra ali, perante aquelle tribunal, que pela primeira
vez sentira a força convincente e extraordinaria das suas teorias.
Impressionava-a a serenidade do mancebo, e no seu intimo, o discurso de
Pavel aliava-se á firme convicção da victoria e dos justos direitos de
seu filho, que lhe punham na alma a irradiação d’uma estrella.



XXVI


Julgava ella que os juizes iam discutir severamente com elle,
replicar-lhe coléricos, e expôr os seus argumentos.

Mas n’isto, levantou-se André, lançou um olhar de soslaio para o
tribunal e começou:

--Senhores defensores.

--Quem o senhor tem na sua presença é o tribunal e não a defeza!
gritou-lhe o juiz doente, com força, muito irritado.

Pélagué percebia pela fisionomia de André que o que elle queria era
gracejar; o bigode tremia-lhe de riso mal contido, e nos olhos, tinha
uma expressão ao mesmo tempo felina e meiga, bem conhecida d’ella.
Esfregou vigorosamente a cabeça com as compridas mãos e suspirou.

--Pois é possivel? perguntou, ao mesmo tempo que saccudia a cabeça.
Eu julgava que não era assim, que os senhores eram, não juizes, mas
unicamente defensores!...

--Queira fazer favor de se referir somente ao assunto principal!
intimou o velhinho com seccura.

--O assunto principal? Está bem. Quero pois crêr que os senhores são
realmente juizes, isto é: pessoas independentes, leaes...

--O tribunal não precisa da sua opinião!

--Como? Não precisa d’um elogio d’estes!... Hum!... Todavia, eu
continúo. Os senhores são homens que não estabelecem differença alguma
entre amigos e inimigos, os senhores são inteiramente livres no seu
juizo. Assim, teem agora na sua frente dois partidos: um queixa-se de
que o roubam e o maltratam; o outro responde que tem o direito de
roubar e de maltratar porque traz na mão uma espingarda.

--Tem alguma coisa a dizer concernente ao processo? perguntou o
velhinho, alteando a voz e com as mãos a tremer.

Esta irritação satisfazia immenso Pélagué. Mas a fórma de proceder de
André não lhe agradava; achava a discordante do discurso de Pavel.
Preferia ouvir travar-se uma discussão séria e ponderada.

O russo-menor fitou o velho, sem responder; em seguida, disse com
gravidade:

--O processo?... Para que lhe havia eu de falar do processo? O meu
companheiro disse-lhes o que os senhores deviam saber já! O resto,
outros lho dirão quando chegar o momento opportuno...

O velhinho sobreergueu-se da poltrona e declarou:

--Retiro-lhe a palavra!... Gregorio Samoílof!

O russo-menor apertou com força os dentes e deixou-se caír pesadamente
no banco. Ao lado d’elle, Samoílof pôz-se de pé, saccudindo os anneis
do cabello.

--O procurador disse que nós eramos uns selvagens, inimigos do
progresso...

--Fale só do que diz respeito á sua accusação!

--Mas é justamente o que estou fazendo!... Não deve haver coisa alguma
que não interésse á gente honesta... E peço-lhe o obsequio de não me
interromper. Assim, pergunto eu aos senhores: qual vem a ser o grau das
suas culturas intellectuaes?

--Não estamos aqui para discutir comsigo! Voltemos ao assunto! disse o
velho, mostrando rancorosamente os dentes.

Os gracejos de André haviam manifestamente irritado os juizes e como
que lhes tinham supprimido o que quer que fôsse das fisionomias.
Agora, nos rostos terrosos, appareciam-lhes manchas sanguineas,
brilhavam-lhes os olhares com scintillações frias e implacaveis. O
discurso de Pavel tambem os havia encolerisado, mas o tom de energia
em que fôra dito, reprimira-lhes o rancor e forçára-lhes o respeito.
O russo-menor, porém, conseguira quebrar esta contenção e puzera a
descoberto o que sob ella se occultava. Com crispações nas fisionomias,
os juizes segredavam entre si, tinham gestos mais saccudidos,
denunciadores da raiva que lhes ia no íntimo.

--Os senhores educam espiões, pervertem mulheres e donzellas, collocam
o homem sério na situação d’um gatuno, d’um assassino, envenenam-no
com a aguardente, deixam-no apodrecer nas masmorras!... As guerras
internacionaes, a mentira, o deboche, o embrutecimento de todo o
paiz--aqui está a vossa civilisação! Sim, somos inimigos de tal
civilisação!

--Tenha a bondade!... gritou o velhinho, saccudindo ameaçador o queixo.

Samoílof, rubro, o olhar em fogo, entrou a gritar ainda mais alto do
que elle.

--Mas a civilisação que nós amamos e respeitamos é a outra, a que foi
criada pelos que vós atirastes para as masmorras ou para os hospitaes
de doidos...

--Retiro-lhe a palavra!... Fédia Mazine!

O rapazinho levantou-se de chofre, como uma sovela a saír d’um furo e
exclamou com voz saccudida:

--Eu... juro!... Eu bem sei, os senhores vão condemnar-nos!

Suffocou; fez-se branco, só se lhe viam os olhos, muito brilhantes.
Estendeu o braço e proseguiu:

--Dou-lhes a minha palavra d’honra! Mandem-me para onde quizerem, que
eu hei-de fugir, hei de voltar, hei-de dedicar-me sempre pela causa do
povo... pela liberdade da nação... toda a minha vida! Dou-lhes a minha
palavra d’honra!

Sizof soltou um gritinho. Toda a assistencia, revolucionada por vaga
excitação, se mexia com um ruido surdo e singular. Chorava uma mulher;
alguem tossia, suffocando. Os guardas, alternadamente olhavam para os
réus com um espanto estupido e para a multidão do público, furiosos. Os
juizes agitaram-se; o velho gritou:

--Goussef Yvan!

--Não falo!

--Goussef Vassili!

--Não quero responder!

--Bouckine Fédor!

Loiro e meio descorado, ergueu-se pesadamente e disse com lentidão,
meneando a fronte:

--Os senhores deviam envergonhar-se!... Eu, que não passo d’um
ignorante, compreendo ainda assim o que deve ser a justiça!

Levantou o braço acima da cabeça e calou-se, com as palpebras
semi-cerradas, como se estivesse vendo qualquer coisa muito ao longe.

--Que diz? gritou o velho com attónito exaspero, reclinando-se na
poltrona. Olhe que você!...

Boukine deixou-se caír no banco tristemente. Havia nas suas palavras
desacompanhadas de significação, alguma coisa immensa e importante, e
ao mesmo tempo uma censura ingénua e penalisada. Foi esta a impressão
que todos receberam. Os próprios juizes apuraram o ouvido, como
para distinguirem um éco mais nitido de tal discurso. Nas bancadas
reservadas ao público, tudo se calou; apenas ficou resoando um leve
ruído de chôro. Depois sorriu-se o procurador e encolheu os hombros;
o marechal da nobreza tossiu; de novo se elevaram susurros que
serpenteavam vagamente pela sala.

Pélagué inclinou-se para Sizof e perguntou-lhe:

--Os juizes falarão?

--Não; está tudo terminado. Só falta pronunciar o veredicto.

--E não ha mais nada?

--Não!

Pélagué não podia acreditar. A mãe de Samoílof agitava-se anciosamente,
tocando em Pélagué com o cotovello e com o hombro, e perguntando em voz
baixa ao marido:

--Mas, como? É possivel?

--Bem vês!

--E o que é que vão fazer ao nosso filho?

--Cala-te! Deixa-me!

--Percebia-se que no público alguma coisa se havia perdido, anniquilado
ou transformado. Os olhos desvairados, pestanejavam como se ardente
lareira se lhes tivesse incendiado na frente. Embora não compreendessem
o grande sentimento que acabava de despontar n’elles tão bruscamente,
os curiosos iam, sem dar por isso, fragmentando-o em sensações
evidentes, accessiveis e futeis. O irmão de Boukine dizia a meia voz,
sem constrangimento algum:

--Perdão! Porque não os deixam falar? O procurador disse tudo o que
quiz e durante todo o tempo que quiz!

Perto da bancada estava uma sentinella. O soldado murmurava, agitando o
braço:

--Silencio! silencio!

O pae de Samoílof inclinou-se para traz, e, disfarçado com as costas da
mulher, continuou a pronunciar em voz surda frases entrecortadas:

--Evidentemente!... Admittindo que elles sejam culpados, o dever do
tribunal era deixal-os explicar-se... Contra quem se revoltaram elles?
Contra tudo! Eu gostava de compreender, afinal! Porque isto tambem me
interessa... De que lado está a verdade? Sim, eu queria compreender...
É preciso que os deixem explicar-se!

--Silencio! gritou de novo a sentinella, ameaçando-o com um dedo.

Sizof abanava a cabeça, apouquentado.

Pélagué não perdia de vista os juizes. Notava-lhes a crescente
excitação, via-os falar uns com os outros, mas não podia comprehender o
que diziam. O susurro frio e escorregadio das suas vozes perpassava-lhe
pelo rosto, fazia-lhe tremer nervosamente as faces e provocava-lhe
na bôca uma sensação desagradavel. Afigurava-se-lhe que estavam
falando todos elles do corpo de seu filho e do dos seus companheiros,
d’aquelles corpos robustos, dos seus músculos e dos seus membros cheios
de vermelho sangue e de força vivente. Estes corpos deviam excitar
n’elles uma inveja impotente e malvada, uma avidez ardente de esgotados
e doentes. Falavam com estalidos sêcos dos lábios, com o pezar de não
possuirem aquelles músculos, capazes de trabalhar e de enriquecer, de
gozar e de criar. Agora, iam aquelles corpos saír da circulação activa
da vida, renunciavam a ella, ninguem poderia mais chamar-lhes seus,
aproveitar a sua força, nem absorvel-os. E era por isso que inspiravam
aos velhos magistrados a animosidade vingativa e desconsolada das feras
já sem forças que teem diante de si a carne fresca, mas já não dispõem
da energia sufficiente para d’ella se apoderarem.

E quanto mais Pélagué olhava para elles, mais esta idéa grosseira
e singular se accentuava no seu espirito. Parecia-lhe que estavam
patenteando claramente a sua rapacidade e a sua sanha de esfomeados,
capazes, em tempos idos, de comer muito. Ella, a mulher e mãe, para
a qual o corpo do filho tinha sido sempre e a despeito de tudo, mais
querido do que a própria alma, sentia-se horrorisada com os olhares
sem viço que perpassavam pelo rosto d’elle, tateando o peito, os
hombros, os braços, roçando-se pela ardente pelle, como em busca de
uma possibilidade de se reanimarem, de requentarem o sangue das suas
veias endurecidas, dos seus músculos gastos de homens semi-mortos.
Parecia a Pélagué que o seu filho sentia aquelles contactos frios e que
estremecia quando para ella olhava.

O mancebo fixava em sua mãe os olhos um tanto fatigados, mas calmos e
affectuosos. Por momentos, sorria-lhe e fazia-lhe um signal de cabeça.

--Em breve estarei em liberdade! dizia este sorriso, que era uma
caricia para o coração de Pélagué.

N’este comenos, levantaram-se os juizes todos ao mesmo tempo. Pélagué
seguiu-lhes instinctivamente os movimentos.

--Vão-se embora! disse Sizof.

--Para os condemnar! perguntou ella.

--Sim...

Dissipára-se de súbito a tensão de espirito em que até ali estivera;
pesado cansaço lhe invadiu o corpo; aljofraram-lhe a fronte gotas de
suor. Um sentimento de cruel decepção e de humilhação impotente brotou
no seu coração e depressa se transformou em profundo desprezo pelos
juizes e pelo seu julgamento. Assaltou-a violenta dôr nas fontes;
esfregou a testa com a palma da mão e olhou em torno: os parentes
dos réus tinham-se approximado do gradeamento, a sala enchia-se de
um ruído surdo de conversações. Ella caminhou tambem para o filho,
apertou-lhe a mão e entrou a chorar, tomada a um tempo, de desgosto e
de contentamento. Pavel dirigiu-lhe algumas palavras de confôrto. André
ria e gracejava.

Mais por hábito do que por desgosto, todas as mulheres choravam. O
que se sentia não era aquella dôr que atordoa como estúpido golpe
descarregado bruscamente na cabeça: tinha-se a consciencia da triste
necessidade de abandonar os filhos, mas esta magua confundia-se,
sumia-se nas impressões que eram filhas da opportunidade. Os paes
olhavam para os filhos com uma expressão em que a desconfiança que
lhes era inspirada pela mocidade e pela consciencia da propria
superioridade, se confundia singularmente com uma espécie de respeito
por elles. Ao mesmo tempo que a si próprios perguntavam com tristeza
como passariam elles agora a viver, os velhos olhavam com curiosidade
para aquella nova geração que discutia audaciosamente a possibilidade
d’uma existencia differente d’aquella e melhor. Não sabiam exprimir
o que sentiam, pois faltava-lhes para tanto o hábito; as palavras
corriam abundantes, das bôcas, mas não se falava mais do que de coisas
vulgares, de fatos e roupas, de cuidados necessarios; aconselhavam até
os condemnados a não irritarem inutilmente os superiores.

--Todos andamos cansados d’isto! disse Samoílof ao filho. Nós tanto
como elles!

O mais velho dos Boukine agitava a mãe e exortava o mais novo:

--Ahi está a justiça d’essa gente! Custa acceital-a!

O rapaz respondeu:

--Has de tratar bem do estorninho, sim?... Gostava tanto d’elle!

--Ainda ha de ser vivo quando voltares!

Sizof tomára pela mão o sobrinho e dizia com vagar:

--Então foi assim que tu fizeste, Fédia? Foi assim?

Fédia curvou-se para elle e segredou-lhe o que quer que fôsse ao
ouvido, com um riso de esperteza. O soldado que lhes estava próximo
sorriu tambem, mas logo retomou os seus ares de gravidade e resmungou.

Pélagué limitava-se, como os outros, a conversar ácerca de arranjos de
roupas e cuidados de saúde, mas no coração reprimia mil interrogações
relativas a Pavel, a Sachenka e a si própria. E sob as suas palavras
banaes, lentamente se desenvolvia o sentimento de immenso amor que
dedicava ao filho, o ardente desejo de o captivar, de viver no seu
coração. A espectativa do acontecimento terrivel desapparecera,
deixando unicamente, apóz si, um arrepio desagradavel, quando se
lembrava dos juizes, agora ausentes.

Sentia nascer em si uma intensa alegria luminosa, mas não a compreendia
e isto trazia-a perturbada.

Viu que o russo-menor falava muito com todos os que o rodeavam,
e entendendo que elle, mais do que Pavel, precisava de confôrto,
disse-lhe:

--Não me agradou a audiencia!

--Porquê, mãesinha?! exclamou André. É um moinho velho, mas vae sempre
moendo!

--É uma coisa, afinal, que não mette medo algum, e é incompreensivel!
Nem ao menos se procura averiguar a verdade! disse ella hesitante.

--Oh! Era isso o que queria? exclamou André. Mas então imagina que
alguem se importa aqui com a verdade?

Pélagué suspirou.

--Eu imaginava que isto fôsse coisa muito séria... mais séria ainda do
que na igreja!... Que se celebrava o culto da verdade!...

--Querida mãe: onde a verdade é respeitada sabemol-o nós! disse Pavel
em voz baixa e no tom de quem perguntasse sem affirmar.

--E a mãesinha tambem o sabe! acrescentou o russo-menor.

--O tribunal!

Correram todos para os seus logares.

Com uma das mãos apoiada na mesa, o presidente occultou a cara por
detraz d’um papel e pôz-se a ler com uma voz debil qual zumbido:

«O Tribunal... depois de ter deliberado...»

--É a condemnação! disse Sizof, apurando o ouvido.

Fez-se silencio. Todos se haviam posto de pé, com os olhos fitos no
velhinho. Sêcco e hirto, assemelhava-se este a um cacete sobre o
qual mão invisivel se apoiasse. Os juizes estavam tambem de pé; o
syndico do bailiado, com a cabeça pendente no hombro, dirigia o olhar
para o tecto; o administrador da communa cruzava os braços no peito;
o marechal da nobreza afagava a barba. O juiz com cara de doente,
o seu collega barrigudo e o procurador, olhavam todos na direcção
dos accusados. E por detraz dos juizes, por cima das suas cabeças,
apparecia o czar, de uniforme encarnado.

Um insecto ia-lhe marinhando pela cara, pálida e indifferente; uma teia
d’aranha balouçava ao vento.

«são condemnados a deportação para a Sibéria»...

--O degredo! disse Sizof com um suspiro de alivio. Finalmente, já
passou, Deus louvado! Muita gente esperava os trabalhos forçados. Isto
assim, já não é tão mau, tiasinha; não vale mesmo nada!

--Eu já o adivinhava, disse Pélagué baixinho.

--Assim como assim, agora é certo!... Mas vá lá a gente saber, com uns
juizes d’estes!

Voltou-se para os condemnados, a quem faziam já abandonar o pretorio, e
disse alto:

--Até á vista, Fédia!... Até á vista, vocês todos! Que Deus os proteja!

Pélagué fez um signal de cabeça a Pavel e aos seus companheiros. A sua
vontade era chorar, mas conteve-a uma espécie de vergonha.



XXVII


Ao sair do tribunal, ficou Pélagué admiradissima com vêr que já
a noite caíra sobre a cidade, os candieiros das ruas accesos; as
estrellas scintillando no céu. Nas circumvisinhanças do palácio da
justiça, formavam-se pequenos agrupamentos; na gélida atmosfera,
ouvia-se o ruído da neve rangendo sob o andar; vozes de gente nova
interpellavam-se mutuamente. Approximou-se de Sizof um homem coberto
com um capuz cinzento e perguntou em voz rápida:

--Qual foi a sentença?

--O degredo.

--Para todos elles?

--Para todos...

--Obrigado!

O homem afastou-se.

--Bem vês! disse Sizof á mãe de Pavel. Bem vês como isto os interessa.

De súbito, encontraram-se cercados por uma dúzia de rapazes e
raparigas. Entraram a chover as exclamações, que attraíam ainda mais
gente para o grupo. Sizof e Pélagué tiveram de parar. Todos queriam
conhecer a sentença, saber como se tinham comportado os réus, quem
tinha pronunciado discursos e sobre que assunto. E em todas estas
perguntas vibrava a mesma nota de curiosidade ávida e sincera.

--É a mãe do Pavel Vlassof! gritou uma voz.

Calaram-se todos á uma.

--Permitta que lhe aperte a mão!

E logo uma mão sólida se lhe apoderou da sua, com vigor. A mesma voz
continuou, trémula de entusiasmo:

--O seu filho será para nós todos um nobre exemplo!

--Viva o operariado russo! gritou uma voz vibrante.

--Viva a revolução!

--Morra a autocracia!

Multiplicavam-se os brados, cada vez mais violentos; rebentavam pelo
ar, cruzando-se; accudia gente de todos os lados e apinhava-se em
torno de Sizof e Pélagué. Os apitos dos policias rasgavam o ar, mas
sem conseguirem dominar o borborinho. O velho ria. Quanto a Pélagué,
parecia-lhe tudo aquillo um bello sonho. Sorria, apertava centenas de
mãos, cumprimentava. Comprimiam-lhe a garganta lagrimas de felicidade;
vergavam-lhe as pernas de cansadas, mas o seu coração, transbordando de
triumfante alegria, reflectia as suas impressões como o claro espelho
da água d’um lago.

Perto d’ella, uma voz clara exclamou em tom enervado:

--Companheiros! amigos! O monstro que devora o povo russo, satisfez
hoje mais uma vez os seus appetites!...

--Vamo-nos embora! disse Sizof.

N’esse mesmo instante, appareceu Sachenka. Agarrou Pélagué por um braço
e puxou-a para o passeio opposto, aconselhando:

--Venha... A policia póde atirar-se para cima de nós e bater-nos... Ou
vão prender-nos... E então? Foi o degredo, não foi? Para a Sibéria?

--Sim, é verdade!...

--E elle que fez? Falou? Eu já sei tudo, afinal... É elle o mais
valoroso tambem, é certo! É sensivel e terno, mas sempre se acanha
quando tem de manifestar os seus sentimentos. É firme e resoluto como
a própria verdade!... É um grande homem, e tudo reside n’elle...
tudo! Mas a maior parte das vezes, elle próprio se constrange... com
o receio de não se entregar todo elle, d’alma e coração, á causa do
povo... Eu sei-o bem!

Estas palavras d’amor, segredadas em um desabafo de paixão, acalmaram
Pélagué, reanimando-lhe as desfallecidas forças.

--Quando vae encontrar-se com elle? perguntou á rapariga, em voz baixa
e affectuosa, puxando-a muito para si.

Sachenka respondeu, com o olhar fito na sua frente, e com tranquilla
decisão:

--Tão depressa encontre quem se encarregue do meu trabalho! Porque em
breve me tocará a vez de responder em juizo... Hão de mandar-me tambem
para a Sibéria. Direi então que desejo ser deportada para o sitio em
que elle estiver...

Por detraz das duas mulheres ouviu-se então a voz de Sizof:

--Faça-lhe os meus cumprimentos!... Chamo-me Sizof. Elle conhece-me:
sou tio do Fédia Mazine.

Sachenka parou para se voltar e estender-lhe a mão:

--Eu conheço o Fédia. O meu nome é Sachenka.

--E o seu nome de familia?

Ella lançou-lhe um breve olhar, e respondeu:

--Não tenho familia. Já não tenho pae.

--Morreu?

--Não, está vivo! declarou já excitada.

E alguma coisa obstinada, teimosa, lhe vibrou na voz e transpareceu nas
feições. É um proprietario rural, e é chefe do districto. Agora, rouba
a gente do campo... e maltrata-a!

--Ah! proferiu Sizof arrastadamente.

E apóz silencio, ajuntou, ao mesmo tempo que examinava a rapariga de
soslaio:

--Bem, então, adeus, tiasinha! Eu vou por aqui!... Apparece para tomar
chá e cavaquear um pedaço... quando quizeres!... Até mais vêr, minha
menina!... A menina é muito severa para com o seu pae!... Está claro
que isso é lá comsigo!...

--Se seu filho fôsse um homem inutil, prejudicial aos outros, o senhor
dizia-o? exclamou Sachenka, com paixão.

--Dizia, sim, senhora! respondeu o velho, depois de hesitar um momento.

--Por consequencia, a verdade merecer-lhe-ia mais apreço do que o seu
filho. Pois a mim merece-me mais apreço do que o meu pae...

O outro abanou a cabeça, e em seguida, suspirando:

--Ah! é astucioso, sim, senhora! Se tem assim resposta para tudo,
os velhos não pódem resistir-lhe! Sabe atacar pela certa! Até mais
vêr! Desejo-lhe todas as felicidades possiveis... Mas seja mais
condescendente com as pessôas sim? Que Deus vá comsigo! Adeus, Pélagué!
Se falares com o Pavel, diz-lhe que ouvi o seu discurso... Não percebi
tudo... Até me metteu medo em certas occasiões, mas o que elle disse é
a verdade!

Ergueu o bonné e desappareceu, sem se apressar, na volta da esquina.

--Deve ser um bom homem! observou Sachenka, seguindo-o com olhar
risonho.

Parecia a Pélagué vêr no rosto da sua companheira expressão mais meiga
e melhor do que de costume...

Chegadas a casa, sentaram-se no canapé, muito uma á outra. Pélagué
referiu-se de novo aos planos de Sachenka. Com as espessas sobrancelhas
muito erguidas, pensativa, a outra olhava para distante com os seus
grandes olhos de sonho. Lia-se-lhe no pálido rosto uma pacífica
concentração d’espírito.

--Mais tarde, quando tiverem filhos, tambem eu para lá irei, para
tratar d’elles. E não havemos de viver peor lá do que vivemos aqui... O
Pavel ha de encontrar trabalho; é muito habilidoso.

Sachenka olhava agora para ella, perscrutando-lhe os pensamentos.
Interrogou:

--Não deseja então ir juntar-se a elle desde já?

Respondeu, com um suspiro:

--Para quê? Nada mais iria fazer-lhe do que causar-lhe incómmodo, caso
elle quizesse fugir. E depois, elle não mo consentia...

Murmurou Sachenka:

--Não, com effeito...

--Além d’isso eu tenho que fazer aqui, accrescentou a mãe de Pavel com
um tanto de ufania.

--Sim, é verdade! secundou, pensativa, a outra. E sabe trabalhar muito
bem...

Mas de repente estremeceu, como se acabasse de libertar-se de um peso
qualquer, e logo annunciou com simplicidade, a meia voz:

--Decididamente, elle não se demora na Sibéria... Ha de fugir... É
certo!

--Mas, então, que ha de ser feito de si? E a creança, se a tiverem?

--Não sei; veremos. O que eu não quero é que elle viva em cuidados
por minha causa. Dou-lhe plena liberdade para fazer o que quizer,
em qualquer occasião que seja. Não sou mais do que uma simples
correligionaria. Bem sei que me ha de ser terrivelmente custoso
deixal-o... mas hei de saber conformar-me... Não quero importunal-o em
coisa alguma, isso não!

Sentia Pélagué que Sachenka era capaz de executar o que dizia. Cheia de
commiseração por ella, tomou-a nos braços:

--Minha querida... Muito tem que soffrer!...

Sachenka sorriu com meiguice; comprimiu-se toda contra o corpo de
Pélagué; subiu-lhe o rubor ás faces.

--Isso ainda vem longe... Mas não julgue que seja um sacrificio penoso
para mim. Sei o que faço, sei com o que posso contar, serei feliz
se elle se considerar feliz comigo... O meu desejo, o meu dever,
é aumentar a sua energia, dar-lhe toda a felicidade que esteja em
meu poder, muita felicidade! Amo-o muito... e elle ama-me, que sei
eu! Retribuir-nos-emos dos nossos sentimentos, enriquecer-nos-emos
mutuamente, tanto quanto pudermos; e, se assim fôr necessario,
separar-nos-emos como bons amigos...

Por entre um sorriso de felicidade, a mãe disse lentamente:

--Eu irei juntar-me a vocês ambos... Talvez eu tambem seja exilada...

E por muito tempo as duas mulheres permaneceram estreitamente
abraçadas, sem uma palavra, pensando n’aquelle que amavam. O silencio,
a tristeza, uma tépida suavidade, as envolviam.

Nicolao chegou n’este comenos, fatigadissimo. Rapidamente, emquanto se
despia, foi dizendo:

--Sachenka, vá-se depressa, se não depois talvez já não tenha tempo!
Desde esta manhã andam dois espiões a seguir-me tão ás claras que me
cheira a mandado de prisão... Tenho um presentimento... Deve-nos ter
acontecido alguma infelicidade, onde, ainda não sei... A propósito: ahi
tem o discurso do Pavel; foi decidido imprimil-o. Leve-o á Lioudmila,
supplique-lhe que o componham o mais breve possivel. O seu Pavel falou
muito bem, Pélagué!... Sachenka, tome cuidado com os espiões! Espere,
leve tambem estes papeis; dê-os ao doutor, por exemplo.

E ao dizer isto, esfregava vigorosamente uma contra a outra as mãos,
que trazia regeladas. Em seguida, foi á mesa, abriu as gavetas, d’onde
extraíu varios documentos. Preoccupadissimo e com os cabellos em
desalinho, entrou a folheal-os á pressa, rasgou uns, emmaçou outros.

--Olhem que não ha ainda muito tempo que eu puz tudo isto em ordem, e
vejam que montão enorme cá tenho outra vez! Demónio!... Talvez fôsse
melhor não dormir cá esta noite, Pélagué! Que lhe parece? Não é das
melhores coisas ter de assistir a essa comédia, os guardas são capazes
de a levar tambem... e é absolutamente necessário que vá por esses
campos distribuir o discurso do Pavel...

--Ora adeus! porque é que me haviam de prender? contestou ella. E
d’ahi, talvez se engane, talvez não venha ninguem...

Nicolao redargiu em tom de confiança e agitando a mão:

--O meu faro nunca me enganou!... Alem d’isso, vocemecê podia auxiliar
a Lioudmila! Vá-se emquanto é tempo ainda...

Na satisfação de ir cooperar na impressão do discurso de seu filho,
ella respondeu:

--Pois se assim é, cá me vou. Mas olhe que não é porque tenha medo...

E com admiração de si própria, proferiu estas palavras em voz baixa mas
decidida:

--Agora, já não tenho medo de nada!... Deus louvado! já sei tudo o que
queria...

--Ás mil maravilhas! exclamou Nicolao, sem a fitar. Ah! diga-me onde
está a minha roupa branca e a minha mala. A senhora de tudo tem cuidado
com tal carinho, que me vejo de todo incapaz de descobrir o que é minha
propriedade pessoal! Eu vou preparar-me. Os polícias é que vão ter uma
desagradavel surpresa!

Sachenka ia queimando no fogão os papeis rasgados. Quando os viu
de todo consumidos, teve o cuidado de misturar as cinzas com as do
combustivel.

--Vá, Sachenka, vá! disse-lhe Nicolao com um aperto de mão. Até á
vista! Não se esqueça de me mandar livros, se fôr publicada qualquer
coisa de novidade e intensa. Até á vista, cara correligionaria! E trate
sobretudo de ter prudencia...

--Julga estar muito tempo na prisão? perguntou Sachenka.

--O demónio que o julgue! Bastante tempo, com certeza... Teem diversos
pecadinhos a censurar-me... Pélagué, saia ao mesmo tempo com Sachenka.
É mais difficil seguir duas pessôas.

--Bem! concordou ella. Eu já me visto.

Observára Nicolao attentamente, e nada anormal descobrira n’elle, a não
ser a preoccupação que lhe velava o olhar bondoso e complacente. Não
lhe vira apparentar emoção alguma.

Igualmente attencioso para com todos, affectuoso e metódico, sempre
socegado e solitário, levava a mesma existencia, misteriosa no seu
fôro íntimo e como que antepondo-se a todas as deligencias alheias.
Pélagué estimava-o tal qual elle era, com um amor prudente, que parecia
duvidar de si mesmo. E agora experimentava por Nicolao uma compaixão
indizivel; mas dominava-a porque sabia que se elle lh’a notasse, havia
de commover-se e tornar-se um pouco ridículo, como habitualmente. Não
era sob este aspecto que Pélagué o queria vêr.

Já vestida, voltou ao gabinete. Nicolao estava apertando a mão de
Sachenka. Dizia-lhe:

--Optimamente! Estou certo de que ha de ser bom para elle, como para
si... Um poucochinho de felicidade pessoal nunca causa damno... Mas
olhe que não é bom que seja demasiada, para não perder o valor. Está
pronta, mãesinha!

Acercou-se d’ella, compondo os óculos.

--Bem! Então, até á vista!... d’aqui a trez, quatro ou seis mezes. É
muito tempo!... Que de coisas se podem fazer em seis mezes! Poupe-se,
sim? Peço-lh’o. Vá lá! Venha um abraço!

Passou os robustos braços em torno do pescoço de Pélagué e fitando-lhe
muito os olhos, disse com um riso muito franco:

--Parece-me que estou apaixonado por si... Não faço senão abraçal-a!

Sem lhe responder, ella beijou-o na testa e nas faces. As mãos
tremiam-lhe: deixou-as pender para que elle não o notasse.

--Então, vae partir?... Ás mil maravilhas!... Mas tome cautella, seja
prudente! Olhe: mande um rapazito aqui ámanhã pela manhã; a Lioudmila
tem um lá em casa. Por elle ficará sabendo o que se tiver passado. Bem,
até mais vêr, camaradas! Tudo vae bem!... Que tudo continue bem, é o
que se quer!

Pela rua, commentava Sachenka em voz baixa:

--Com aquella mesma simplicidade é capaz de ir para a morte, se fôr
preciso... Só com um pouco de pressa, como ainda agora. Quando lhe
chegasse a sua hora final, ajustava os óculos, dizia assim: «Ás mil
maravilhas!» e morria!

--Amo-o devéras! segredou Pélagué.

--Pois a mim, causa-me espanto! Quanto a amal-o, não! Estimo-o,
simplesmente. Acho-o muito sêco, ainda que lhe encontre certa
bondade e ás vezes até alguma ternura. Mas não possue em si bastante
humanidade... Parece-me que vamos sendo seguidas. Separemo-nos. Não vá
a casa da Lioudmila, se desconfiar que a vigiam...

--Bem sei! respondeu ella.

Mas Sachenka insistiu ainda:

--Não vá para casa d’ella... Se tal succeder, venha antes para a minha.
Até mais vêr!

Virou-se rápida e voltou pelo mesmo caminho.

A outra gritou-lhe:

--Até á vista!



XXVIII


Minutos depois, aquecia-se Pélagué junto do fogão, no quarto de
Lioudmila. Vestida de preto, esta ultima passeava devagar pelo estreito
aposento, que enchia com o rugir das suas saias e com a soberania
da sua voz autoritária. No fogão, a lenha estralejava e assobiava,
aspirando o ar do quarto. Vibrava a voz igual e monótona da dona da
casa:

--Os homens são infinitamente mais tôlos do que maus. Não sabem vêr
senão o que lhes fica perto, o que teem ao seu alcance immediato!...
Ora tudo o que nos fica próximo é mesquinho; só o que se encontra
afastado tem valor. Na realidade, seria vantajoso para todos que a
vida se tornasse mais facil e as creaturas mais intelligentes... Mas
para chegarmos a isso, forçoso é renunciar por emquanto a viver com
tranquilidade.

Aqui, estacou de súbito em frente de Pélagué e accrescentou mais baixo,
como para desculpar-se:

--Dou-me com tão pouca gente!... Quando alguem vem a minha casa,
ponho-me logo a discursar!... É ridículo, não é?

--Ora essa! Porquê?

Diligenciava Pélagué descobrir onde era que Lioudmila imprimia os
folhetos, mas não via em torno de si nada extraordinario. No quarto,
com trez janellas para a rua, havia um canapé, um armário com livros,
uma mesa, cadeiras, uma cama encostada a uma das paredes; n’um dos
cantos, o lavatório, n’outro, o fogão; pelas paredes fotografias. Tudo
isto com apparencia de novo, sólido e aceado. E n’este conjunto, a
figura quasi monástica da dona do aposento era principalmente o que
impunha severo aspecto. Presentia-se haver n’aquelle quarto o que quer
que fôsse misterioso e occulto.

Olhou depois para as portas: penetrára no quarto por uma d’ellas--a que
abria para uma exigua casa de entrada; perto do fogão, havia outra,
alta e estreita.

--Vim para tratar de certo negócio... disse ella um tanto confusa, ao
ver que Lioudmila a estava observando.

--Já sei. Ninguem vem a minha casa com outro motivo.

Pareceu a Pélagué vibrar na voz da sua interlocutora uma intenção
singular; via-lhe um sorrisinho nas delgadas commissuras dos lábios, e
as pupilas, baças habitualmente, brilhavam-lhe por detraz dos vidros da
luneta. Desviou portanto o olhar e apresentou-lhe o manuscrito com o
discurso de Pavel.

--Aqui está. Pedem-lhe que o imprima o mais depressa que possa.

E narrou os preparativos a que Nicolao procedera, prevendo a sua
captura.

Sem dizer uma palavra, Lioudmila entalou o papel no cinto e sentou-se
n’uma cadeira. Agitavam-se-lhe pelo rosto impassivel os reflexos do
lume.

--Quando os polícias vierem a minha casa, faço fogo para cima d’elles!
declarou. Tenho o direito de defender-me contra a violencia e o dever
de luctar contra ella, visto que instigo tambem os outros a fazel-o!

A vermelhidão das chammas desappareceu-lhe do rosto, o qual voltou a
mostrar-se severo e um pouco altivo.

«Deve ser bem trabalhosa a vida que levas»--foi o súbito pensamento que
accudiu ao espirito de Pélagué, acompanhado d’um sentimento d’affeição.

Ella pôz-se a lêr o discurso de Pavel, primeiro, sem vontade, depois,
curvando-se cada vez mais sobre o papel. Ia atirando rapidamente para
o chão as folhas já lidas. Finda a leitura, levantou-se, endireitou o
tronco e foi para a outra:

--Está muito bom! Ahi está do que eu gosto! É nitido e claro!

Inclinou a cabeça e reflectiu um instante.

--Não quiz falar-lhe do seu filho: nunca o vi e não me agradam as
conversas tristes. Eu sei o que se sente quando vemos um dos nossos ir
para o degredo!... Diga-me: é agradavel ter-se um filho como elle?

--Sim, muito agradavel!

--E deve ser coisa terrivel tambem?...

Com um sereno sorriso, Pélagué respondeu:

--Não; agora já não...

Lioudmila alisou com a mão, muito morena, os cabellos penteados em
bandós; depois, voltou-se para a janella: palpitava-lhe nas faces uma
leve sombra apaixonada.

--Vamos imprimir isso... Quer ajudar-me?

--Certamente!

--Vou compôr o mais depressa possivel. Deite-se; o dia deve-lhe ter
sido fatigante. Vê-se que está cansada. Deite-se n’aquella cama, que eu
não durmo hoje. Talvez tenha de a accordar de noite, para me auxiliar.
Antes de adormecer, apague o candieiro.

Accrescentou duas achas ao lume e saíu pela porta estreita, praticada
ao lado do fogão, que tornou a fechar cuidadosamente apóz si.

Pélagué seguira-a com o olhar. E emquanto se despia, pensava
maquinalmente na sua hospedeira:

«É um caracter severo... E vê-se que soffre, a pobre senhora!»

O cansaço esvaía-lhe a cabeça; no entretanto, sentia o coração
singularmente calmo; no seu espirito, tudo se illuminava com suave
e cariciosa luz. Pélagué conhecia já aquella tranquillidade, que
segue sempre ás grandes commoções; antigamente, inquietava-a, mas
agora, fazia que a sua alma se expandisse, revigorada em forte e
puro sentimento. Apagou o candieiro, deitou-se na cama muito fria,
encolheu-se, aconchegando a si os cobertores e adormeceu logo em
profundo somno.

Quando descerrou os olhos, estava o quarto banhado da claridade gélida
e branca d’um desanuviado dia d’inverno. Estendida no canapé, com um
livro na mão, Lioudmila fitava-a com uma expressão de ternura que a
transfigurava.

--Deus meu! exclamou Pélagué, confundida. Quanto tempo eu dormi! É
muito tarde, pois não é?

--Bom dia! respondeu-lhe Lioudmila. Vão dar as dez horas. Levante-se
para irmos almoçar.

--Porque não me accordou?

--Tive idéa d’isso; mas a senhora mostrava um sorriso tão bonito,
emquanto dormia...

N’um movimento ágil do seu corpo robusto e flexivel, Lioudmila
levantou-se, approximou-se do leito, curvou-se sobre o rosto d’ella; e
Pélagué poude distinguir nos olhos sem brilho da sua hospedeira alguma
coisa familiar, amigavel, compreensivel.

--... que não quiz despertal-a... Era um bello sonho que estava tendo,
com certeza...

--Não, senhora; não sonhei com coisa alguma.

--Pois é pena... Mas gostei de vêr aquelle seu sorriso: achei-o tão
meigo, tão santo!

E Lioudmila poz-se a rir, um rir aveludado e discreto.

--Entrei a pensar em si, na sua vida... Porque a sua existencia deve
ser ardua!

Pélagué contraíu os sobrolhos, pensativa.

--Não sei! respondeu, hesitante. Ha momentos em que me parece que
sim... mas não é verdade! Ha tantas coisas... coisas espantosas e
graves, que se seguem com tanta rapidez umas ás outras!...

Subia-lhe ao peito a onda de excitação que ella conhecia bem,
enchendo-lho d’imagens e de pensamentos. Sentou-se na cama e deu-se
pressa em revestir de palavras as suas idéas.

--Tudo o que estamos presenceando caminha para o mesmo fim, como o
fogo, quando arde uma casa, tende sempre a subir! Aqui, abre caminho,
mais além, brilha intensamente, sempre mais violento, sempre mais
luminoso... Ha tanta coisa que custa vêr! Se soubesse!... Essa pobre
gente soffre, é incommodada, espiada... Batem-lhes, batem-lhes com
crueldade... Elles, então, occultam-se a todas as vistas, passam a
viver como frades. Quantas alegrias ha que lhe são defezas!... E é
triste assim, a vida!

Lioudmila ergueu com vivacidade a cabeça e fitou Pélagué com profundo
olhar.

--Não é de si que está falando! observou em voz baixa.

--De mim!... repetiu ella, emquanto se ia vestindo. E póde alguem
collocar-se á parte, quando o nosso coração ama alguma coisa, quando
este ou aquelle nos é querido, quando se sente medo e compaixão por
todos?... Tudo isto se nos entrechoca na alma, attraída assim para cada
um d’esses infelizes... Como podemos collocar-nos á parte? Para nos
refugiarmos onde?

Já meio vestida, permaneceu um instante pensativa no meio do quarto.
E subitamente, afigurou-se-lhe que já não era ella a mesma creatura
que tanto se inquietára e alarmára pela sorte de seu filho; tal
personalidade já não existia, tinha-se desapegado e afastado d’ella.
Escutou-se então a si própria, no desejo de saber o que se passava no
seu íntimo, embora receasse despertar outra vez o seu velho sentimento
de anciedade.

--Em que está pensando? perguntou-lhe Lioudmila affectuosamente.

--Nem eu sei!

Calaram-se as duas, olharam uma para a outra e sorriram. Depois,
Lioudmila abalou do quarto, murmurando:

--Que estará fazendo o meu samovar?

Pélagué olhou então pela janella. Lá fóra, reinava a frialdade d’um
luminoso dia d’inverno. Ella, no âmago do coração, sentia tambem uma
claridade igual áquella, mas quente. O seu desejo seria falar de tudo;
demorada e jovialmente, n’um vago sentimento de gratidão por tudo o que
baixára á sua alma, tornando-lha assim bem formada. Sentiu, o que havia
muito não lhe succedia, um desejo de rezar. Veiu-lhe então á lembrança
um rosto moço e imberbe; na sua memória ecoou uma voz delgada: «É a mãe
do Pavel Vlassof...» Scintillavam os meigos olhos joviaes de Sachenka;
desenhava-se o negro perfil de Rybine; sorria o rosto valoroso e
bronzeado de Pavel; Nicolao piscava os olhos, acanhado. E de repente,
todos aquelles rostos amigos foram eclipsados em meio d’um suspiro
ligeiro mas de significação profunda; baralharam-se, confundiram-se
em uma nuvem transparente e multicolor, que envolvia o coração em um
sentimento de paz.

--O Nicolao tinha razão! disse Lioudmila ao regressar ao quarto. Foi
preso, não ha duvida possivel! Conforme me recommendou, mandei um
rapazito a casa d’elle. Já voltou. Diz que estão lá agentes de polícia
escondidos no páteo; que viu um por detraz da porta da rua. Os espiões
vigiam ao de redor da casa; o pequeno conhece-os.

--Ah! limitou-se Pélagué a dizer, com um meneio de cabeça. Pobre
Nicolao!

--N’estes ultimos tempos, elle fazia muitas prelecções aos operários
da cidade; estava desmascarado; era tempo e mais que tempo que
desapparecesse! proseguiu Lioudmila em tom sombrio mas sereno. Os
companheiros andavam sempre a dizer-lhe que saísse da cidade; elle não
quiz dar-lhes ouvidos!... A minha opinião é que, em taes casos, o que
se deve não é aconselhar as pessôas, mas obrigal-as!

Á porta appareceu um rapazito de cabello preto, pelle rosada, nariz
aquilino e bonitos olhos azues.

--Quer que traga o samovar? perguntou com voz sonora.

--Traz, sim, Sérgio, se fazes favor. É meu discipulo... Não o conhecia?

--Não.

--Tenho-o mandado algumas vezes a casa do Nicolao.

Pélagué, entretanto, achava Lioudmila muito mudada, parecia-lhe
mais singela de maneiras, mais compreensivel. Havia nos movimentos
graciosos do seu esbelto corpo, belleza e força, a attenuarem o que
no rosto pálido tinha de severidade. Com a noite perdida as olheiras
haviam-se-lhe cavado mais. Sentia-se-lhe nos modos um esforço
continuado, como se na sua alma vibrasse uma corda em demasiada tensão.

O rapaz trouxe o samovar.

--Sérgio, olha a senhora Pélagué Vlassof, a mãe do operário que foi
hontem condenado.

A criança inclinou-se em silencio, apertou a mão de Pélagué, tornou a
saír e voltou trazendo pão.

Sentou-se tambem á mesa. Emquanto ia servindo o chá, Lioudmila
aconselhou Pélagué a não voltar para casa sem que se soubesse quem era
a pessôa alvejada pelas deligencias policiaes.

--Talvez seja a senhora mesma... Hão de querer interrogal-a.

--Que me importa! redarguiu ella. Se for prêsa, a desgraça não será
grande! Só o que desejava era que o discurso do Pavel estivesse já
distribuido...

--Já está composto. Ámanhã teremos exemplares bastantes para a cidade
e para os arrabaldes... e tambem para o resto do districto. Conhece a
Natacha?

--Ora se conheço!

--Pois é preciso que lhe leve os folhetos.

A criança estava lendo um jornal. Parecia não ouvir o que diziam, mas
de quando em quando, erguia os olhos para Pélagué. Esta, quando lhe
surpreendia aquelle olhar tão vivo, sentia-se agradavelmente commovida.
A joven senhora falou novamente de Nicolao, sem lamentar sequer a sua
captura, o que de toda a maneira pareceu a Pélagué naturalissimo.
O tempo dir-se-ia passar mais veloz; era perto do meio dia quando
terminaram o almoço.



XXIX


De repente ouviu-se bater na porta, rapidamente. Levantou-se a criança
e dirigiu interrogador olhar á dona da casa.

--Abre, Sérgio! Quem poderá ser?

Com o maior socego, introduziu a mão na algibeira do vestido e disse á
sua hospede:

--Se fôr a polícia, colloque-se ali n’aquelle canto. E tu, Sérgio...

--Bem sei! respondeu a criança, baixando a voz. E saíu.

Pélagué sorria. Não a impressionavam taes preparativos; não tinha o
presentimento d’uma desgraça.

Quem entrou afinal foi o doutor. Annunciou logo com precipitação:

--O Nicolao foi preso!... Ah, está por cá, tiasinha?... Não estava em
casa quando o levaram?

--Não, senhor; foi elle que me mandou para aqui.

--Hum!... Não me parece que isso lhe seja de grande utilidade... Esta
noite, uns rapazes imprimiram com gelatina quinhentos exemplares do
discurso do Pavel. O trabalho ficou bom, está bem impresso, lê-se
bem. Tencionam distribuil-os pela cidade, esta noite. Não sou d’essa
opinião: para a cidade são preferiveis os folhetos impressos; os outros
é que devem ser expedidos para toda a parte.

--Eu os vou levar á Natacha! Dê-mos! exclamou Pélagué com vivacidade.

O seu grande desejo era fazer circular o mais depressa possivel o
discurso de Pavel; inundar a terra com as palavras de seu filho. E
fitava o médico attentamente, com olhar quasi supplicante.

--Não sei se será prudente que a senhora se metta agora n’essa empreza!
disse, indeciso. E puxou pelo relógio.--São onze horas e quarenta e
trez minutos... O comboio parte ás duas e cinco; póde chegar ao seu
destino ás cinco e quinze... Ia chegar de noite, mas não era muito
tarde... Além do que, não é isto o essencial...

--Não, não é isso o essencial! repetiu Lioudmila, franzindo o sobrolho.

--Então o que é? perguntou Pélagué, approximando-se d’elles. O
essencial é que a distribuição seja bem feita... e eu sei como me hei
de haver!

A dona da casa attentou n’ella fixamente e declarou, passando a mão
pela testa:

--É perigoso...

--Porquê? exclamou a outra.

--Aqui tem porquê! expôz o doutor com voz precipitada e desigual.
Vocemecê desappareceu de casa uma hora antes da prisão do Nicolao.
D’aqui a pouco, vae ser vista lá na fabrica, onde é tão conhecida. Logo
depois de lá chegar, entram a apparecer os folhetos revolucionarios...
Tudo isso são indícios que se lhe vão apertar na garganta como um laço
corredio...

--Mas é que não hão de dar por mim! objectou ella com animação
crescente. Se fôr presa quando de lá voltar, e me perguntarem onde
estive...

Interrompeu-se um momento e proseguiu:

--Sempre hei de achar resposta! Por exemplo: posso ir da fabrica
directamente ao arrabalde. Conheço lá um sujeito chamado Sizof. Pois
digo que logo em seguida ao julgamento fui para casa do Sizof, por me
achar incommodada com o desgosto soffrido... Tambem elle está muito
pezaroso: o sobrinho foi condenado juntamente com o Pavel!... Digo que
estive todo este tempo em casa d’elle, e elle ha de confirmar o que eu
disser... Bem vêem!

E porque os sentisse cederem aos seus argumentos, esforçava-se por
convencel-os e falava com crescente calor. Por fim, acquiesceram.

--Que se ha de fazer? Pois vá! concordou o doutor, mas de má vontade.

Lioudmila conservava-se em silencio; passeava pelo quarto, meditativa.
O rosto assombreára-se-lhe, as faces haviam-se-lhe cavado; os músculos
do pescoço pareciam ter-se distendido, como se a cabeça se tivesse
bruscamente tornado mais pesada e tombasse irresistivelmente para o
peito.

O forçado consentimento do doutor arrancára a Pélagué profundo suspiro.

--Andam todos a animar-me! disse, sorrindo. Mas os senhores são os
primeiros que não se poupam!

--Isso não é assim! replicou o doutor. Poupamo-nos todos; temos o
dever de nos poupar. E as nossas censuras nunca serão demasiadas para
aquelles que se expõem inutilmente! Por consequencia lá se lhe irão
levar os folhetos á estação.

Explicou-lhe o que tinha a fazer e em seguida accrescentou, fitando-a
bem de frente:

--O que desejo é que se saia bem! Está satisfeita, não é assim?

E foi-se descontente. Logo que ouviu fechar se a porta, Lioudmila
approximou-se de Pélagué.

--A senhora é uma excellente mulher!... Eu compreendo-a...

Travou-lhe depois do braço, e ambas entraram a passear pelo aposento.

--Tambem eu tenho um filho. Tem já doze annos. Mas vive com o pae. Meu
marido é procurador substituto; talvez seja já procurador effectivo,
não sei... E aquella criança está na sua companhia... Quantas vezes
pergunto a mim mesma qual será o seu futuro!...

Teve na voz, desfallecida, uma commoção, e depois proseguiu baixinho,
de novo meditativa:

--Se elle está sendo educado por um inimigo figadal d’aquelles que me
são queridos, d’aquelles que eu considero como as melhores creaturas
da terra!... E assim, meu filho póde vir a ser meu inimigo tambem...
Não me é licito trazel-o para a minha companhia, pois que vivo com nome
supposto. E ha oito annos já que o vi pela ultima vez!... Quanto tempo!
Oito annos!

Ao pé da janella, parou e ficou a olhar para o pálido e desolado céu.

--Se elle vivesse comigo, sentir-me-ia mais forte. Mesmo se morresse,
ficaria mais aliviada...

Apóz um instante de silencio, ergueu a voz para explicar:

--Porque então, ficaria sabendo que só estava morto; porque não poderia
tornar-se n’um inimigo d’aquillo que é superior ao próprio amor
materno, de tudo o que na vida ha mais precioso!...

--Minha querida amiga! murmurou brandamente Pélagué, sentindo o coração
confranger-se-lhe de dó.

--A senhora é feliz! proseguiu Lioudmila com um sorriso. É admiravel
vêr uma mãe e um filho caminharem lado a lado... É raro!

--Sim, é certo; é delicioso! exclamou Pélagué.

E explicou, baixando a voz, como para confiar um segredo:

--É como se tivessemos uma segunda vida! A senhora, Nicolao, todos,
emfim, os que luctam pela verdade, estão comnosco!... E assim,
tornamo-nos mais intimos uns dos outros... E eu compreendo-os... não o
que dizem, mas tudo o mais, sim, compreendo-o!... Tudo!

--Ah, é assim? exclamou a joven senhora. É assim!...

E logo Pélagué, pousando-lhe a mão no hombro:

--Os nossos filhos vão em marcha pela terra! Eis o que eu compreendo!
Vão em marcha pela terra, por toda a terra e em toda a parte caminham
para o mesmo fim! Arremessam se ao assalto os melhores corações e os
espiritos mais leaes, sem olharem para traz de si, para tudo o que é
mau e sinistro. E avançam, avançam... Debeis ou robustos todos dedicam
as suas inteiras forças á mesma causa: a justiça! Juraram triunfar da
desgraça; armaram-se para aniquílar o infortúnio da humanidade: querem
vencer o horror e hão de vencêl-o! «Havemos de accender um novo sol»
disse-me um d’elles. E hão de accendêl-o! «Havemos de reunir num só
todos os corações despedaçados!» disse outro. E hão de fazel-o!

Ergueu o braço para o ceu:

--Além ha um sol!

E, batendo no peito, concluiu:

--E aqui, outro se ha de accender, mais brilhante que o do ceu, o sol
da felicidade humana, que eternamente illuminará a terra inteira e
aquelles que a habitam, com a luz do amor de cada creatura por todos e
por tudo!

E Pélagué evocava as palavras das orações esquecidas para entusiasmar a
sua nova fé e lançava-as do coração como scentelhas:

--Os nossos filhos, caminhando pela senda da razão e da verdade, levam
o amor a todas as coisas, criam um novo ceu, accendem o lume sagrado
e incorruptivel que brota da alma, do âmago do coração. E é assim que
nos é offerecida uma vida nova no apaixonado amor dos nossos filhos
pelo mundo inteiro. E quem poderia extinguir este amor? Quem? Existe
força superior a esta? Quem poderia vencel-a? Foi a própria terra que
a gerou e a vida inteira exige a sua victória... a vida inteira!

Pélagué afastou-se de Lioudmila e sentou-se, offegante, quebrada pela
sua commoção. A joven senhora afastou-se tambem de mansinho, com
precaução, como se receasse quebrar alguma coisa. No seu passo agil,
atravessou o quarto, fixando para longe d’ali o olhar profundo dos seus
olhos sem brilho. Parecia ainda mais delgada, mais hirta e mais alta.
Tinha na cara chupada e severa uma expressão concentrada, comprimia
nervosamente os lábios. O silencio acabára por apaziguar a exaltação de
Pélagué. A meia voz, n’um tom de receio, perguntou:

--Talvez eu dissesse coisas que não deveria ter dito.

Lioudmila voltou-se com vivacidade, lançou-lhe um olhar assustado e
exclamou:

--Não! é assim mesmo! é assim mesmo!... Mas não falemos mais n’isso!
Fiquem as suas palavras taes quaes as pronunciou, sim!

E proseguiu depois, já mais calma:

--É forçoso partir... A estação fica longe d’aqui.

--Sim, vou já partir! Como me sinto contente! Se soubesse!... Levo
comigo as palavras do meu filho, as palavras do meu sangue! É como se
levasse a minha alma!

Sorria. Mas este sorriso não produziu mais que um pálido reflexo na
fisionomia de Lioudmila. Pélagué sentia aquella frieza regelar-lhe
a sua própria alegria. Assim, sentiu o desejo súbito de communicar
áquella alma severa o seu ardor, abraçar-se com ella, afim de a fazer
sentir em unísono com o seu coração de mãe. Tomou a mão de Lioudmila e
disse, apertando-lha com fôrça:

--Minha querida! Como é bom saber que ha na vida luz para todos os
homens e que, com o tempo, elles hão de acabar por vêl-a, por fundirem
n’ella as suas almas e por arderem todos da mesma chamma inextinguivel!

O seu rosto bondoso tremia de entusiasmo; os seus olhos radiantes e
as suas sobrancelhas agitavam-se, como para dar azas ao brilho das
pupillas. Sentia-se enebriada pela sublimidade dos seus ideaes, em que
punha toda a ardencia do coração, tudo o que experimentára, e encerrava
nos rijos e limpidos cristaes das palavras illuminadas as idéas
que floresciam e desabrochavam mais e mais no seu coração outonal,
illuminado pelo sol da fôrça creadora.

--É como se para nós tivesse nascido um novo Deus! Tudo para todos,
todos para tudo, a vida inteira em um só, em cada um a vida inteira!
E cada um para a vida inteira! É assim que eu compreendo; é para isso
que vós todos andaes pela terra, eu bem o vejo! Em verdade, todos sois
camaradas, todos sois da mesma familia, porque todos sois os filhos da
mesma mãe: a verdade! Foi a verdade que vos gerou e é pela sua fôrça
que viveis!

Pélagué retomou alento e continuou, com um gesto largo que parecia
abarcar tudo!

--E quando a mim própria pronuncio esta palavra «camaradas» parece-me
ouvil-os caminhar. De toda a parte vem em multidão. Oiço um ruido
atroador e alegre, como se os sinos de todas as igrejas da terra
entrassem a tocar!

Conseguira o que desejava: animára-se o rosto de Lioudmila; os lábios
tremeram-lhe; uma apóz outra, rolaram-lhe dos olhos pesados lagrimas
crístallinas.

Então, Pélagué tomou-a entre os braços; teve um riso silencioso,
meigamente ufana da victória obtida pelo seu coração.

Ao afastarem-se as duas mulheres, Lioudmila fitou Pélagué e perguntou
em voz baixa:

--Sabe que é muito agradavel estar na sua companhia?

E a si própria respondeu, rematando:

--Sim, parece que se está no cimo de uma alta montanha, ao nascer da
aurora...



XXX


Lá fóra, o ar sêco e glacial fustigava o corpo, irritava a garganta e
o nariz; suffocava a respiração. Pélagué parou a certa altura, olhando
em torno: perto d’ali, á esquina d’uma rua, estava um cocheiro com um
bonné de pello; mais longe, caminhava um homem, todo corcovado, com
a cabeça encolhida entre os hombros. Um soldado corria, aos pulos,
esfregando as orelhas.

«Provavelmente mandaram-no á loja, a comprar alguma coisa!» pensou
ella. Escutava com satisfação o ruído da neve que se lhe quebrava
sob os passos. Em breve chegou á estação; o comboio ainda não estava
formado; no entretanto, havia já muita gente na sala de espera da
terceira classe, enfumaçada e suja. O frio para lá escorraçára os
trabalhadores do caminho de ferro; e tambem vinham aquentar-se ali,
cocheiros e individuos mal vestidos, sem eira nem leira. Tambem ali se
encontravam viajantes: alguns campónios, um negociante gordo, vestido
de espessa capa de pelles, um padre com a sua filha, uma rapariguita
de rosto pálido, cinco ou seis soldados e alguns burguezes com ares de
atarefados. Fumava-se, conversava-se, bebia-se aguardente ou chá. Junto
ao bufete, ouviam-se grandes gargalhadas; pairava por cima das cabeças
o fumo do tabaco em densas nuvens. Ao abrir-se, a porta chiava, e
quando a tornavam a fechar, batia com estrondo e as vidraças resoavam
e tremiam. Assaltava violentamente as narinas um cheiro a tabaco e a
peixe salgado.

Pélagué sentou-se perto da porta, bem em evidencia, e esperou. Quando
entrava alguem, envolvia-a uma lufada d’ar frio; a sensação era
agradavel: respirava n’esses momentos a plenos pulmões. Apparecia gente
em pesados trajos, carregada de embrulhos; prendiam se desastradamente
na porta, praguejavam, atiravam os seus fardos para o chão; depois
limpavam da geada a gola e as mangas dos casacões, limpavam as barbas
ou os bigodes, resmungando.

Um rapaz, que trazia uma mala amarella, entrou, e depois de olhar
rapidamente em torno, foi direito a Pélagué.

--A Moscou? perguntou elle a meia voz.

--Sim! a casa de Tania.

--Ahi tem!

E dito isto, collocou a mala sobre o banco, ao lado d’ella, tirou um
cigarro da algibeira, accendeu-o rapidamente e tornou a saír por outra
porta, depois de ter erguido levemente o bonné. Pélagué passou a mão
pelo coiro frio da mala e encostou-se a ella. Satisfeita, emfim, pôz-se
a examinar quem estava. Instantes depois, levantou-se e foi sentar-se
n’outro banco, mais próximo da saída. Levava a mala n’uma das mãos com
a maior serenidade, de cabeça levantada e fitando as caras que lhe
passavam ao alcance da vista.

Um homem vestido d’um casaco curto e com a cabeça enterrada na
gola, erguida, deu-lhe um encontrão e afastou-se sem dizer uma
palavra, levando simplesmente a mão ao bonné. Pareceu-lhe tel-o já
visto. Voltou-se e viu que elle a estava observando. Sentiu-se como
trespassada por aquelle olhar claro; a mala entrou a tremer-lhe na
mão, como se tivese repentinamente aumentado de peso.

--Onde vi eu aquelle homem? perguntava a si mesma, como para repellir
a sensação desagradavel que lhe subia do peito até á garganta e
lhe enchia a bocca de amargo travor. Apoderou-se d’ella um desejo
irresistivel de se voltar e de olhar mais uma vez para elle: o homem
continuava no mesmo logar, firmando-se ora n’um pé, ora no outro e
parecia indeciso. Introduzira a mão direita entre os botões do casaco e
conservava a outra na algibeira, o que fazia parecer que tinha o hombro
direito mais alto do que o esquerdo.

Devagar, Pélagué caminhou até um banco, sentou-se lentamente, com
precaução, como se receasse quebrar alguma parte do corpo. A sua
memória, despertada por um agudo presentimento de desgraça, evocava
dois aspectos d’este homem: o primeiro datava do dia da evasão de
Rybine; o outro, da vespera. Lembrava-se ter visto no tribunal, ao
lado d’aquelle individuo o agente de polícia a quem fornecera a errada
indicação sobre o caminho que Rybine tomára na sua fuga. Tornára-se
pois conhecida, andava vigiada, era certo!

--Estarei eu apanhada? perguntou a si mesma. E respondeu, sentindo-se
estremecer: «Talvez ainda haja meio... Não, decididamente estou
apanhada, não ha nada a fazer...»

Olhou em roda, mas não viu nada suspeito. Uma apóz outra, como
scentelhas, surgiam-lhe e apagavam-se-lhe várias idéas dentro do
cérebro.

--Deixar a onda?... Ir-me embora?

Mas logo outra scentelha mais viva brilhou: «As palavras do meu
filho... atiral-as assim fóra! Deixal-as em semelhantes mãos!»

E chegou a mala mais para si.

«E se eu agarrasse n’ella e deitasse a fugir!...»

Chegava-lhe a parecer não serem seus os próprios pensamentos, que
alguem lh’os introduzia no cerebro, á fôrça. Eram como queimaduras
a corroerem-lhe dolorosamente a cabeça e o coração, levando-a para
longe de si mesma, para longe de Pavel, de tudo o que já fazia parte
integrante do seu coração. Sentia que uma fôrça hostil a opprimia
obstinadamente, lhe pezava nos hombros e no peito, a aviltava,
mergulhando-a em frio terror. Incharam-se-lhe as veias das fontes,
subiu-lhe á cabeça intenso calor.

Então, d’um só impulso vigoroso que a ergueu de chofre, suffocou em si
todos estes lampejos de tibieza, covardes e astuciosos, ordenando a si
própria com autoridade: «Não sejas a vergonha do teu filho!»

Aos seus olhos appareceu então um olhar tímido e desconsolado.
Passou-lhe pela memória a imagem de Rybine. Estes poucos segundos de
hesitação bastaram para fortalecer n’ella todas as crenças. O coração
pulsou-lhe com mais regularidade.

--Que irá acontecer? perguntou a si mesma, olhando em torno.

O espião acabava de chamar um guarda; segredava a este o que quer que
fosse, designando-a com o olhar. O guarda observou Pélagué e recuou.
Approximou-se outro guarda e pôz-se a escutar o que diziam. Era um
velho robusto, grisalho e de comprida barba. Fez um signal com a cabeça
ao espião e adiantou-se para o banco em que Pélagué se sentava. O
espião desappareceu como por encanto.

O velho caminhava sem pressa alguma, perscrutando attentamente com
olhar irritado a fisionomia de Pélagué. Ella encolheu-se toda no fundo
do banco.

«Com tanto que não me batam!... Deus permitta que não me batam!»

O guarda parou junto d’ella e, apóz silencio, perguntou com severidade:

--Que estás tu a olhar?

--Nada...

--Está bem... Ladra! Então és velha e andas n’essa vida?!

Com estas palavras julgou Pélagué que recebia uma bofetada. Irritadas
e roucas, faziam doer, como se lhe rasgassem as faces e arrancassem os
olhos.

--Ladra, eu?! Mentes! gritou com toda a fôrça dos pulmões.

Tudo o que a rodeava lhe parecia mover-se descompassadamente entre o
redemoinho da sua indignação; sentia o coração atordoado pela amargura
da injuria. Agarrou na mala, que logo se abriu por si.

--Olha! Olhem todos! exclamou, pondo-se em pé e agitando acima da
cabeça um maço de proclamações. Atravez dos zumbidos de que tinha
cheios os ouvidos, ouvia as exclamações das pessoas que accudiam de
todos os lados.

--Que se passa?

--É um agente da polícia secreta...

--Mas que aconteceu?

--Dizem que roubou, aquella mulher...

--Aquella mulher?

--Mas ella protesta.

--Ora adeus! Com aquelle todo tão respeitavel!

--Quem foi que prenderam?

--Eu não sou ladra! repetia ella com voz forte e serenando pouco a
pouco com o ver a attitude dos curiosos que a rodeavam em compacto
círculo.

--Hontem foram condemnados alguns presos politicos e entre elles o meu
filho... O meu filho chama-se Vlassof. Pronunciou um discurso: aqui
o teem! Ia leval-o á gente do povo, para que o leia e reflicta nas
verdades que elle encerra!

E porque um dos circumstantes, com precaução, tomasse um dos fasciculos
que ella tinha na mão, agitou os outros e atirou-os por sobre o
ajuntamento.

--Estás livre de receber felicitações pela maneira por que os
distribuiste! commentou a medo uma voz.

--Cuidado, que vae acontecer alguma! aconselhou outra voz.

Pélagué via que cada qual tratava de se apoderar dos papeis e de
escondel-os nas algibeiras ou no peito. Mais animosa, entrou a tomar
maços e maços de dentro da mala e a atiral-os á direita e á esquerda,
nas mãos ávidas e ligeiras que se lhe estendiam.

--Sabem porque condemnaram o meu filho e os que com elle estavam? Vou
dizer-vol-o! Creiam n’este coração de mãe! Condemnaram-nos porque vos
traziam a todos a santa verdade! E hontem mesmo eu vi como essa verdade
triunfou!... Ninguem póde luctar contra ella, ninguem!

A multidão, que se conservava muda de assombro, engrossava cada vez
mais, cercando Pélagué d’uma cadeia de seres viventes.

--A pobreza, a fome, a doença--eis o que o trabalho nos rende! Tudo é
contra nós. De dia para dia, morremos sob o trabalho, soffremos fome
e frio, prostrados sempre no lôdo e no ludíbrio; e são outros que se
fartam e se divertem á custa do nosso labor!... Como cães presos pela
trela, immobilisam-nos na ignorancia; nós nada sabemos e, na nossa
covardia, de tudo temos medo! A nossa vida é uma noite, uma noite
escura! É um pezadello horrendo!... Pois não é verdade?

--Sim! responderam algumas vozes surdas.

--Fecha-lhe a bôca!

Por detraz do ajuntamento, Pélagué avistou o espião acompanhado por
dois guardas. Deu-se pressa em distribuir os últimos maços, mas quando
a sua mão chegava mais uma vez á mala, sentiu o contacto de outra mão.

--Levem tudo! Levem tudo! disse ella, curvando-se. Para transformar
esta vida, para libertar todos os homens, para os resuscitar d’entre
os mortos, como eu resuscitei, nasceram creaturas filhas de Deus
que andam a semear pelo mundo a verdade santa. Operam em segredo,
pois, como bem sabem, ninguem póde dizer a verdade, sem que seja
logo perseguido, suffocado, atirado para uma enxovia, mutilado! A
verdade da existencia e a liberdade são inimigas para todo o sempre
irreconciliaveis d’aquelles que nos governam, d’aquelles que nos
opprimem. E são crianças, são creaturas purissimas e luminosas que vos
annunciam a verdade. Graças a ellas, ella ha de chegar emfim ás nossas
miseraveis existencias, ella ha de vir acalentar-nos e confortar-nos;
ha de libertar-nos da oppressão das autoridades e de todos os que lhes
venderam a alma! Creiam!

--Bravo, velha! gritou um.

Outro entrou a rir.

--Vamos, dispersem! regougaram os guardas, afastando brutalmente a
multidão.

O agrupamento recuou, resmungando, impedindo os guardas entre a
massa da gente e tolhendo-lhes os movimentos, mesmo sem querer.
Sentiam-se dominados por aquella mulher de cabellos grisalhos, olhar
de franqueza e modos bondosos. Indifferentes uns aos outros, isolados
pela vida, confundiam-se agora em um todo, acalentados pelo ardor
d’aquella palavra que muitos esperavam, sem duvida, ha muito tempo.
Os que ficavam mais perto de Pélagué permaneciam em silencio. Pélagué
sentia-lhes os olhares attentos fitos sobre si e o bafo das respirações.

--Sobe para o banco! gritou-lhe um.

--Vae-te d’aqui, velha!

--Vaes ser suffocada!

--Que insolente!

--Fala depressa, que elles ahi vem!

--Deixem o caminho livre! Vamos, a andar! gritavam outros guardas,
chegados n’este comenos.

Já em numero crescido, estes desviavam a multidão com mais violencia
ainda; toda aquella gente molestada, agarrava-se a quem lhe ficava
próximo.

Parecia a Pélagué ter na frente como que um férvido cachão e que todos
estavam prontos a compreendel-a e a acredital-a. O seu desejo era
dizer ali, depressa, tudo o que sabia, todos os poderosos pensamentos
que lhe subiam harmoniosamente, sem esforço, do âmago do coração;
mas faltava-lhe a voz, não lhe saíam do peito mais que sons roucos,
entrecortados e trémulos.

--A palavra do meu filho é a palavra pura d’um filho do povo, d’uma
alma integra! Pela audacia se reconhecem os que são íntegros; pela
verdade, quando ella o exija, sacrificam-se intrepidamente!

Entre o ajuntamento, olhos juvenis fitavam-na, a um tempo com
entusiasmo e terror.

Recebeu uma pancada no peito, cambaleou e caíu para cima do banco. Por
sobre as cabeças agitavam-se as mãos dos guardas, os quaes agarravam
brutalmente os circumstantes pela nuca ou pelos hombros e atiravam-nos
para o lado, arrancavam das cabeças os bonnés e arremessavam-nos ao
longe. Pélagué sentiu confundirem-se e vacillarem as coisas em frente
dos olhos, mas dominou a fadiga e serviu-se ainda da pouca voz que lhe
restava.

--Povo, reune as tuas fôrças em uma só fôrça!

Caíu-lhe no pescoço e saccudiu-a a mão enorme e encarniçada d’um guarda.

--Cala-te!

Foi bater com a nuca de encontro á parede. Durante um instante, teve o
coração envolvido n’uma névoa de ardente terror, mas este vapor logo se
dissipou ao entusiasmo que a aquecia.

--Anda para a frente! disse o guarda.

--...Não ha soffrimento mais amargo que o que dia a dia devora o
coração e exaure o peito...

O espião precipitou-se ao encontro d’ella e brandindo o punho em frente
da cara da presa, gritou com voz aguda:

--Cala-te, canalha!

Os olhos de Pélagué abriram-se desmedidamente e scintillaram; as
maxillas tremiam-lhe. Firmou os pés no lagedo escorregadio e gritou:

--Não se mata uma alma resuscitada!

--Cadella!

Com pequeno impulso, o capitão bateu-lhe no rosto.

--É bem feito para essa velha porca! gritou uma voz.

Uma coisa negra e vermelha cegou por instantes Pélagué; encheu-lhe a
bocca o sabor salgado do sangue.

Reanimou a uma explosão d’exclamações:

--Você não tem direito de bater!

--Camaradas!

--Que vem a ser isso?

--Ah, patife!

--Dá-lhe!

--... Não é com sangue que se ha de suffocar a razão!

Empurravam-na pelas costas, pelo pescoço, batiam-lhe na cabeça e no
peito; tudo oscillava e se sumia no sombrio turbilhão dos gritos,
dos lamentos e dos silvos dos apitos. Alguma coisa espessa e que a
ensurdecia lhe penetrava nos ouvidos e lhe enchia a garganta até á
suffocação. O solo fugia-lhe debaixo das pernas, que vergavam, o corpo
tiritava-lhe sob o aguilhão dos ferimentos; tropega e exausta, Pélagué
cambaleava. Mas continuava a distinguir em volta de si numerosos
olhares onde brilhava o entusiasmo decidido que ella conhecia bem e
que tão querido era ao seu coração. Levaram-na aos encontrões para uma
das portas.

Ella poude desembaraçar uma das mãos e agarrou-se ao batente.

--... Nem mesmo sob um mar de sangue a verdade desapparecerá...

Descarregaram-lhe logo uma pancada na mão.

--Só conseguis congregar os ódios, insensatos que sois! E este ódio,
este rancor, ha de subverter-vos!...

O guarda agarrou-a pela garganta e entrou a apertar-lh’a cada vez com
mais violenta pressão.

N’um estertor, balbuciou:

--Os desgraçados...

Respondeu-lhe alguem com prolongado soluço.

  FIM



Notas

Os problemas com a pontuação e a ortografia foram corrigidos.

Página 17: “Esmagar-te-ão. morrerás!” foi substituído por
“Esmagar-te-ão. E morrerás!”

Página 19: “Quando casei,” foi substituído por “Quando cresci”

Página 63-64: “trez annos; sado” foi substituído por “trez annos; fui
casado”

Página 70: A referencia ao rodapé foi adicionada no texto.

Página 122: “se não, me abraçava” foi substituído por “se não, não me
abraçava”

O texto original falta dois parágrafos na página 122, imediatamente
antes do capítulo XX. Isso foi mantido na versão digital.

Na versão original, a numeração dos capítulos na segunda parte pula o
número XIII. Isso foi mantido na versão digital.

Página 377: “Eu percebo n ” foi substituído por “Eu percebo bem”



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