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Title: Yayá Garcia
Author: Machado de Assis
Language: Portuguese
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COLLECÇÃO DOS AUTORES CELEBRES

DA

LITTERATURA BRASILEIRA



YAYÁ GARCIA



POR

MACHADO DE ASSIS



NOVA EDIÇÃO



LIVRARIA GARNIER

109, RUA DO OUVIDOR, 109--6, RUE DES SAINTS-PÈRES, 6

RIO DE JANEIRO--PARIS

1919



INDICE
CAPITULO I
CAPITULO II
CAPITULO III
CAPITULO IV
CAPITULO V
CAPITULO VI
CAPITULO VII
CAPITULO VIII
CAPITULO IX
CAPITULO X
CAPITULO XI
CAPITULO XII
CAPITULO XIII
CAPITULO XIV
CAPITULO XV
CAPITULO XVI
CAPITULO XVII



YAYÁ GARCIA



I


Luiz Garcia transpunha a soleira da porta, para sair, quando appareceu
um creado e lhe entregou esta carta:


                             «5 de Outubro de 1866.

«Sr. Luiz Garcia--Peço-lhe o favor de vir falar-me hoje, de uma a duas
horas da tarde. Preciso de seus conselhos, e talvez de seus
obsequios.--VALERIA.»


--Diga que irei. A senhora está cá no morro?

--Não, senhor, está na rua dos Invalidos.

Luiz Garcia era funccionario publico. Desde 1860 elegera no logar menos
povoado de Santa Thereza uma habitação modesta, onde se metteu a si e
a sua viuvez. Não era frade, mas queria como elles a solidão e o
socego. A solidão não era absoluta, nem o socego ininterrompido; mas
eram sempre maiores e mais certos que cá embaixo. Os frades que, na
puericia da cidade, se tinham alojado nas outras collinas, desciam muita
vez,--ou quando o exigia o sacro ministerio, ou quando o governo
precisava da espada canonica,--e as occasiões não eram raras; mas
geralmente em derredor de suas casas não ia soar a voz da labutação
civil. Luiz Garcia podia dizer a mesma cousa; e, porque nenhuma
vocação apostolica o incitava a abrir a outros a porta de seu refugio,
podia dizer-se que fundara um convento em que elle era quasi toda a
communidade, desde prior até noviço.

No momento em que começa esta narrativa, tinha Luiz Garcia quarenta e
um annos. Era alto e magro, um começo de calva, barba rapada, ar
circumspecto. Suas maneiras eram frias, modestas e cortezes; a
physionomia um pouco triste. Um observador attento podia adivinhar por
traz daquella impassibilidade apparente ou contrahida as minas de um
coração desenganado. Assim era; a experiencia, que foi precoce,
produzira em Luiz Garcia um estado de apathia e scepticismo, com seus
laivos de desdem. O desdem não se revelava por nenhuma expressão
exterior; era a ruga sardonica do coração. Por fora, havia só a
mascara immovel, o gesto lento e as attitudes tranquillas. Alguns
poderiam temel-o, outros detestal-o, sem que merecesse execração nem
temor. Era inoffensivo por temperamento e por calculo. Como um celebre
ecclesiastico, tinha para si que uma onça de paz vale mais que uma
libra de victoria. Poucos lhe queriam deveras, e esses empregavam mal a
affeição, que elle não retribuia com affeição egual, salvo duas
excepções. Nem por isso era menos amigo de obsequiar. Luiz Garcia
amava a especie e aborrecia o individuo. Quem recorria a seu prestimo,
era raro que hão obtivesse favor. Obsequiava sem zelo, mas com
efficacia, e tinha a particularidade de esquecer o beneficio, antes que
o beneficiado o esquecesse.

A vida de Luiz Garcia era como a pessoa delle,--taciturna e retrahida.
Não fazia nem recebia visitas. A casa era de poucos amigos; havia lá
dentro a melancolia da solidão. Um só logar podia chamar-se alegre;
eram as poucas braças de quintal que Luiz Garcia percorria e regava
todas as manhãs. Erguia-se com o sol, tomava do regador, dava de beber
ás flores e á hortaliça; depois recolhia-se e ia trabalhar antes do
almoço, que era ás oito horas. Almoçado, descia a passo lento até á
repartição, onde, se tinha algum tempo, folheava rapidamente as
gazetas do dia. Trabalhava silenciosamente, com a fria serenidade do
methodo. Fechado o expediente, voltava logo para casa, detendo-se raras
vezes em caminho. Ao chegar a casa, já o preto Raymundo lhe havia
preparado a mesa,--uma mesa de quatro a cinco palmos,--sobre a qual
punha o jantar, parco em numero, mediocre na especie, mas farto e
saboroso para um estomago sem aspirações nem saudades. Ia d'alli ver
as plantas e reler algum tomo truncado, até que a noite caía. Então,
sentava-se a trabalhar até ás nove horas, que era a hora do chá.

Não sómente o teor da vida tinha essa uniformidade, mas tambem a casa
participava della. Cada movel, cada objecto,--ainda os infimos,--parecia
haver-se petrificado. A cortina, que usualmente era corrida a certa
hora, como que se enfadava se lhe não deixavam passar o ar e a luz, á
hora costumada; abriam se as mesmas janellas e nunca outras. A
regularidade era o estatuto commum. E se o homem amoldara as cousas a
seu geito, não admira que amoldasse tambem o homem. Raymundo parecia
feito expressamente para servir Luiz Garcia. Era um preto de cincoenta
annos, estatura mediana, forte, apezar de seus largos dias, um typo de
africano, submisso e dedicado. Era escravo e livre. Quando Luiz Garcia o
herdou de seu pae,--não avultou mais o espolio,--deu-lhe logo carta de
liberdade. Raymundo, nove annos mais velho que o senhor, carregara-o ao
collo, e amava-o como se fora seu filho. Vendo-se livre, pareceu-lhe que
era um modo de o expellir de casa, e sentiu um impulso atrevido e
generoso. Fez um gesto para rasgar a carta de alforria, mas
arrependeu-se a tempo. Luiz Garcia viu só a generosidade, não o
atrevimento; palpou o affecto do escravo, sentiu-lhe o coração todo.
Entre um e outro houve um pacto que para sempre os uniu.

--És livre, disse Luiz Garcia; viverás commigo até quando quizeres.

Raymundo foi dalli em diante um como espirito externo de seu senhor;
pensava por este e reflectia-lhe o pensamento interior, em todas as suas
acções, não menos silenciosas que pontuaes. Luiz Garcia não dava
ordem nenhuma; tinha tudo á hora e no logar competente. Raymundo, posto
fosse o unico servidor da casa, sobrava-lhe tempo, á tarde, para
conversar com o antigo senhor, no jardinete, emquanto a noite vinha
caindo. Alli falavam de seu pequeno mundo, das raras occurrencias
domesticas, do tempo que devia fazer no dia seguinte, de uma ou outra
circumstancia exterior. Quando a noite caía de todo, e a cidade abria
os seus olhos de gaz, recolhiam-se elles a casa, a passo lento, á
ilharga um do outro.

--Raymundo hoje vae tocar, não é? dizia ás vezes o preto.

--Quando quizeres, meu velho.

Raymundo accendia as velas, ia buscar a marimba, caminhava para o
jardim, onde se sentava a tocar e a cantarolar baixinho umas vozes de
Africa, memorias desmaiadas da tribu em que nascera. O canto do preto
não era de saudade; nenhuma de suas cantilenas vinha afinada na clave
pezarosa. Alegres eram, guerreiras, enthusiastas; por fim calava-se. O
pensamento, em vez de volver ao berço africano, galgava a janella da
sala em que Luiz Garcia trabalhava e pousava sobre elle como um feitiço
protector. Quaesquer que fossem as differenças civis e naturaes entre
os dous, as relações domesticas os tinham feito amigos.

Entretanto, das duas affeições de Luiz Garcia, Raymundo era apenas a
segunda; a primeira era uma filha.

Se o jardim era a parte mais alegre da casa, o domingo era o dia mais
festivo da semana. No sabbado, á tarde, acabado o jantar, descia
Raymundo até á rua dos Arcos, a buscar a sinhá-moça, que estava
sendo educada em um collegio. Luiz Garcia esperava por elles, sentado á
porta ou encostado á janella, quando não era escondido em algum
recanto da casa para fazer rir a pequena. Se a menina o não via á
janella ou á porta, percebia que se escondera e corria a casa, onde
não era difficil dar com elle, porque os recantos eram poucos. Então
caíam nos braços um do outro. Luiz Garcia pegava della e sentava-a nos
joelhos. Depois, beijava-a, tirava-lhe o chapellinho, que cobria os
cabellos acastanhados e lhe tapava parte da testa rosada e fina;
beijava-a outra vez, mas então nos cabellos e nos olhos,--os olhos, que
eram claros e filtravam uma luz insinuante e curiosa.

Contava onze annos e chamava-se Lina. O nome domestico era Yayá. No
collegio, como as outras meninas lhe chamassem assim, e houvesse mais de
uma com egual nome, accrescentavam-lhe o appellido de familia. Esta era
Yayá Garcia. Era alta, delgada, travessa; possuia os movimentos subitos
e incoherentes da andorinha. A boca desabrochava facilmente em riso,--um
riso que ainda não toldavam as dissimulações da vida, nem ensurdeciam
as ironias de outra edade. Longos e muitos eram os beijos trocados com o
pae. Luiz Garcia punha-a no chão, tornava a subil-a aos joelhos, até
que consentia finalmente em separar-se della por alguns instantes. Yayá
ia ter com o preto.

--Raymundo, o que é que você me guardou?

--Guardei uma cousa, respondia elle sorrindo. Yayá não é capaz de
adivinhar o que é.

--É uma fructa.

--Não é.

--Um passarinho?

--Não adivinhou.

--Um doce?

--Que doce é?

--Não sei; dá cá o doce.

Raymundo negaceava ainda um pouco; mas afinal entregava a lembrança
guardada. Era ás vezes um confeito, outras uma fructa, um insecto
exquisito, um molho de flores. Yayá festejava a lembrança do escravo,
dando saltos de alegria e de agradecimento. Raymundo olhava para ella,
bebendo a felicidade que se lhe entornava dos olhos, como um jôrro de
agua pura. Quando o presente era uma fructa ou um doce, a menina
trincava-o logo, a olhar e a rir para o preto, a gesticular, e a
interromper-se de quando em quando:

--Muito bom! Raymundo é amigo de Yayá... Viva Raymundo!

E seguia d'alli a mudar de roupa, e a visitar o resto da casa e o
jardim. No jardim achava o pae já sentado no banco do costume, com uma
das pernas sobre a outra, e as mãos cruzadas sobre o joelho. Ia ter com
elle, sentava-se, erguia-se, colhia uma flor, corria atraz dos insectos.
De noite, não havia trabalho para Luiz Garcia; a noite, como o dia
seguinte, era toda consagrada á creança. Yayá referia ao pae as
anedoctas do collegio, as puerilidades que não valem mais nem menos que
outras da edade madura, as intriguinhas de nada, as pirraças de cousa
nenhuma. Luiz Garcia escutava-a com egual attenção á que prestaria a
uma grande narrativa historica. Seu magro rosto austero perdia a frieza
e a indifferença; inclinado sobre a mesa, com os braços estendidos, as
mãos da filha nas suas, considerava-se o mais venturoso dos homens. A
narrativa da pequena era como costumam ser as da edade infantil:
desegual e truncada, mas cheia de um colorido seu. Elle ouvia-a sem
interromper; corrigia, sim, algum erro de prosodia ou alguma reflexão
menos justa; fóra disso, ouvia sómente.

Pouco depois da madrugada todos tres estavam de pé. O sol de Santa
Thereza era o mesmo da rua dos Arcos; Yayá, porém, achava-lhe alguma
cousa mais ou melhor, quando o via entrar pela alcova dentro, atravez
das persianas. Ia á janella que dava para uma parte do jardim. Via o
pae bebendo a chicara de café, que aos domingos precedia o almoço. Ás
vezes ia ter com elle; outras vezes elle caminhava para a janella, e,
com o peitoril de permeio, trocavam os osculos da saudação. Durante o
dia, Yayá derramava pela casa todas as sobras de vida, que tinha em si.
O rosto de Luiz Garcia accendia-se de um reflexo de juventude, que lhe
dissipava as sombras accumuladas pelo tempo. Raymundo vivia da alegria
dos dous. Era domingo para todos tres, e tanto o senhor como o antigo
escravo não ficavam menos collegiaes que a menina.

--Raymundo, dizia esta, você gosta de santo de comer?

Raymundo empertigava o corpo, abria um riso, e dando aos quadris e ao
tronco o movimento de suas danças africanas, respondia cantarolando:

--Bonito santo! santo gostoso!

--E santo de trabalhar?

Raymundo, que já esperava o reverso, estacava subitamente, punha a
cabeça entre as mãos, e affastava-se murmurando com terror:

--Eh... eh... não fala nesse santo, Yayá! não fala nesse santo!

--E santo de comer?

--Bonito santo! santo gostoso!

E o preto repetia o primeiro jogo, depois o segundo, até que Yayá,
aborrecida, passava a outra cousa.

Não havia só recreio. Uma parte minima do dia,--pouco mais de uma
hora,--era consagrada ao exame do que Yayá aprendera no collegio,
durante os dias anteriores. Luiz Garcia interrogava-a, fazia-a ler,
contar e desenhar alguma cousa. A docilidade da menina encantava a alma
do pae. Nenhum receio, nenhuma hesitação; respondia, lia ou desenhava,
conforme lhe era mandado ou pedido.

--Papae quer ouvir tocar piano? disse ella um dia; olhe, é assim.

E com os dedos na borda da mesa, executava um trecho musical, sobre
teclas ausentes. Luiz Garcia sorriu, mas um veu lhe empanou os olhos.
Yayá não tinha piano! Era preciso dar-lhe um, ainda com sacrificio. Se
ella aprendia no collegio, não era para tocar mais tarde em casa? Este
pensamento enraizou-se-lhe no cerebro e turbou o resto do dia. No dia
seguinte, Luiz Garcia encheu-se de valor, pegou da caderneta da Caixa
Economica e foi retirar o dinheiro preciso para comprar um piano. Eram
da filha as poucas economias que ajuntava; o piano era para ella
egualmente; não lhe diminuia a herança.

Quando no seguinte sabbado, Yayá viu o piano, que o pae lhe foi
mostrar, sua alegria foi intensa, mas curta. O pae abrira-o, ella
accordou as notas adormecidas no vasto movel, com suas mãosinhas ainda
incertas e debeis. A um dos lados do instrumento, com os olhos nella,
Luiz Garcia pagava-se do sacrificio, contemplando a satisfação da
filha. Curta foi ella. Entre duas notas, Yayá parou, olhou para o pae,
para o piano, para os outros moveis; depois descaiu-lhe o rosto, disse
que tinha uma vertigem. Luiz Garcia ficou assustado, pegou della, chamou
Raymundo; a creança affirmou que estava melhor, e finalmente que a
vertigem passara de todo. Luiz Garcia respirou; os olhos de Yayá não
ficaram mais alegres, nem ella foi tão travessa como costumava ser.

A causa da mudança, desconhecida para Luiz Garcia, era a penetração
que madrugava no espirito da menina. Lembrara-se ella, repentinamente,
das palavras que proferira e do gesto que fizera, no domingo anterior;
por ellas explicou a existencia do piano; comparou-o, tão novo e
lustroso, com os outros moveis da casa, modestos, usados, encardida a
palhinha das cadeiras, roido do tempo e dos pés um velho tapete,
contemporaneo do sophá. Dessa comparação extrahiu a ideia do
sacrificio que o pae devia ter feito para condescender com ella; ideia
que a poz triste, ainda que não por muito tempo, como succede ás
tristezas pueris. A penetração madrugava, mas a dor moral fazia tambem
irrupção naquella alma até agora isenta da jurisdicção da fortuna.

Passou! Bem depressa os sons do piano vieram casar-se ao gorgeio de
Yayá e ao riso do escravo e do senhor. Era mais uma festa aos domingos.
Yayá confiou um dia ao pae a ideia que tinha de ser mestra de piano.
Luiz Garcia sorria a esses planos da meninice, tão frageis e fugidios
como suas impressões. Tambem elle os tivera aos dez annos. Que lhe
ficara dessas primeiras ambições? Um residuo e nada mais. Mas assim
como as aspirações daquelle tempo o fizeram feliz, era justo não
dissuadir a filha de uma ambição, aliás innocente e modesta. Oxalá
não viesse a ter outras de mais alto vôo! Demais, que lhe poderia elle
desejar, senão aquillo que a tornasse independente e lhe désse os
meios de viver sem favor? Yayá tinha por si a belleza e a instrucção;
podia não ser bastante para lhe dar casamento e familia. Uma profissão
honesta aparava os golpes possiveis da adversidade. Não se podia dizer
que Yayá tivesse talento musical: que importa? Para ensinar a
grammatica da arte, era sufficiente conhecel-a.

Resta dizer que havia ainda uma terceira affeição de Yayá; era Maria
das Dores, a ama que a havia creado, uma pobre catharinense, para quem
só havia duas devoções capazes de levar uma alma ao ceu: Nossa
Senhora e a filha de Luiz Garcia. Ia ella de quando em quando á casa
deste, nos dias em que era certo encontrar lá a menina, e ia de S.
Christovão, onde morava. Não descançou em quanto não alugou um
casebre em Santa Thereza, para ficar mais perto da filha de creação.
Um irmão, antigo forriel, que fizera a campanha contra Rosas, era seu
companheiro de trabalho.

Tal era a vida uniforme e placida de Luiz Garcia. Nenhuma ambição,
cobiça ou peleja vinha toldar-lhe a serenidade da alma. A ultima dor
séria que tivera foi a morte da esposa, occorrida em 1859, mezes antes
de ir-se elle esconder em Santa Thereza. O tempo, esse chimico
invisivel, que dissolve, compõe, extrahe e transforma todas as
substancias moraes, acabou por matar no coração do viuvo, não a
lembrança da mulher, mas a dor de a haver perdido. Importa dizer que as
lagrimas derramadas nessa occasião honraram a esposa morta, por serem
conquista sua. Luiz Garcia não casára por amor nem interesse; casara
porque era amado. Foi um movimento generoso. A mulher não era de sua
mesma indole; seus espiritos vinham de pontos differentes do horizonte.
Mas a dedicação e o amor da esposa abriram nelle a fonte da estima.
Quando ella morreu, viu Luiz Garcia que perdera um coração
desinteressado e puro; consolou-o a esperança de que a filha havia
herdado uma parcella delle.

Assim vivia esse homem sceptico, austero e bom, alheio ás cousas
extranhas, quando a carta de 5 de Outubro de 1866 veiu chamal-o ao drama
que este livro pretende narrar.



II


A hora aprazada era incommoda para Luiz Garcia, cujos habitos de
trabalho mal soffriam interrupção. Não obstante, foi á rua dos
Invalidos.

Valeria Gomes era viuva de um desembargador honorario, fallecido cêrca
de dous annos antes, a quem o pae de Luiz Garcia devera alguns obsequios
e a quem este prestara outros. Não havia entre ella e Luiz Garcia
relações assiduas ou estreitas; mas a viuva e seu finado marido sempre
o tiveram em boa conta e o tratavam com muito carinho. Defunto o
desembargador, Valeria recorrera duas ou tres vezes aos serviços de
Luiz Garcia; com tudo, era a primeira vez que o fazia com tamanha
solemnidade.

Valeria recebeu-o affectuosamente, estendendo-lhe a mão, ainda fresca,
apezar dos annos, que subiam de quarenta e oito. Era alta e robusta. A
cabeça, forte e levantada, parecia protestar pela altivez da attitude
contra a molleza e tristura dos olhos. Estes eram negros, a sobrancelha
basta, o cabello abundante, listrado de alguns fios de prata. Posto não
andasse alegre nos ultimos tempos, estava naquelle dia singularmente
preoccupada. Logo que entraram na sala, deixou-se cair n'uma poltrona;
caiu e ficou silenciosa alguns instantes. Luiz Garcia sentou-se
tranquillamente na cadeira que ella lhe designou.

--Sr. Luiz Garcia, disse a viuva; esta guerra do Paraguay é longa, e
ninguem sabe quando acabará. Vieram noticias hoje?

--Não me consta.

--As de hontem não me animaram nada, continuou a viuva depois de um
instante. Não creio na paz que o Lopez veiu propor. Tenho medo que isto
acabe mal.

--Póde ser, mas não dependendo de nós...

--Porque não? Eu creio que é chegado o momento de fazerem todas as
mães um grande esforço e darem exemplos de valor, que não serão
perdidos. Pela minha parte trabalho com o meu Jorge para que vá
alistar-se como voluntario; podemos arranjar-lhe um posto de alferes ou
tenente; voltará major ou coronel. Elle, entretanto, resiste até hoje;
não é falta de coragem nem de patriotismo; sei que tem sentimentos
generosos. Comtudo, resiste...

--Que razão dá elle?

--Diz que não quer separar-se de mim.

--A razão é boa.

--Sim, porque tambem a mim custaria a separação. Mas não se trata do
que eu ou elle podemos sentir: trata-se de cousa mais grave,--da patria,
que está acima de nós.

Valeria proferiu estas palavras com certa animação, que a Luiz Garcia
pareceu mais simulada que sincera. Não acreditou no motivo publico. O
interesse que a viuva mostrava agora em relação á sorte da campanha
era totalmente novo para elle. Excluido o motivo publico, algum haveria
que ella não quizera ou não podia revellar. Justificaria elle
semelhante resolução? Não se atreveu a formular a suspeita e a
duvida; limitou-se a dissuadil-a, dizendo que um homem de mais ou de
menos não pesaria nada na balança do destino, e desde que ao filho
repugnava a separação era mais prudente não insistir. Valeria
redarguia a todas essas reflexões com algumas ideias geraes acerca da
necessidade de dar fortes exemplos ás mães. Quando foi preciso variar
de resposta, declarou que entrava no projecto um pouco de interesse
pessoal.

--Jorge está formado, disse ella; mas não tem quéda para a profissão
de advogado nem para a de juiz. Goza por em quanto a vida; mas os dias
passam, e a ociosidade faz-se natureza com o tempo. Eu quizera dar-lhe
um nome illustre. Se fôr para a guerra, poderá voltar coronel, tomar
gôsto ás armas, seguil-as e honrar assim o nome de seu pae.

--Bem; mas vejamos outra consideração. Se elle morrer?

Valeria empallideceu e esteve alguns minutos calada, emquanto Luiz
Garcia olhava para ella, a ver se lhe adivinhava o trabalho interior da
reflexão, esquecendo que a ideia de um desastre possivel devia ter-lhe
accudido, desde muito, e se não recuara deante della, é porque a
resolução era inabalavel.

--Pensei na morte, disse Valeria dahi a pouco; e, na verdade, antes a
obscuridade de meu filho que um desastre... mas repelli essa ideia. A
consideração superior de que lhe falei deve vencer qualquer outra.

Em seguida, como para impedir que elle insistisse nas reflexões
apresentadas antes, disse-lhe claramente que, deante da recusa de Jorge,
contava com o influxo de seus conselhos.

--O senhor é nosso amigo, explicou ella; seu pae tambem foi nosso
amigo. Sabe que um e outro sempre nos mereceram muita consideração. Em
todo caso, não quizera recorrer a outra pessoa.

Luiz Garcia não respondeu logo; não tinha animo de acceitar a
incumbencia e não queria abertamente recusar; procurava um meio de
esquivar-se á resposta. Valeria insistiu por modo que era impossivel
calar mais tempo.

--O que me pede é muito grave, disse elle; se o Dr. Jorge der algum
peso a meus conselhos e seguir para a guerra, assumo uma porção de
responsabilidade, que não só me ha-de gravar a consciencia, como
influirá para alterar nossas relações e diminuir talvez a amizade
benevola que sempre achei nesta casa. O obsequio que hoje exige de mim,
quem sabe se m'o não lançará em rosto um dia como acto de leviandade?

--Nunca.

--Nesse dia, observou Luiz Garcia sorrindo levemente, ha-de ser tão
sincera como hoje.

--Oh! o senhor está com ideias negras! Eu não creio na morte; creio
só na vida e na gloria. A guerra começou ha pouco e ha já tanto
heroe! Meu filho será um delles.

--Não creio em presentimentos.

--Recusa?

--Não me atrevo a acceitar.

Valeria ficou abatida com a resposta. Após alguns minutos de silencio,
ergueu-se e foi buscar o lenço que deixara sobre um movel, ao entrar na
sala. Enxugou o rosto, e ficou a olhar para o chão, com um dos braços
cahidos, em attitude meditativa. Luiz Garcia começou a reflectir no
modo de a dissuadir efficazmente. Seu scepticismo não o fazia duro aos
males alheios, e Valeria parecia padecer naquelle instante, qualquer que
fosse a sinceridade de suas declarações. Elle quizera achar um meio de
conciliar os desejos da viuva com a sua propria neutralidade,--o que era
puramente difficil.

--Seu filho não é creança, disse elle; está com vinte e quatro annos;
pode decidir por si, e naturalmente não me dirá outra cousa... Demais,
é duvidoso que se deixe levar por minhas suggestões, depois de
resistir aos desejos de sua mãe.

--Elle respeita-o muito.

Respeitar não era o verbo pertinente; attender fora mais cabido, porque
exprimia a verdadeira natureza das relações entre um e outro. Mas a
viuva lançava mão de todos os recursos para obter de Luiz Garcia que a
ajudasse em persuadir o filho. Como elle lhe dissesse ainda uma vez que
não podia acceitar a incumbencia, viu-a morder o labio e fazer um gesto
de despeito. Luiz Garcia adoptou então um meio termo:

--Prometto-lhe uma cousa, disse elle; irei sondal-o, discutir com elle
os prós e os contras do seu projecto, e se o achar mais inclinado...

Valeria abanou a cabeça.

--Não faça isso; desde já lhe digo que será tempo perdido. Jorge
ha-de repetir-lhe as mesmas razões que me deu, e o senhor as acceitará
naturalmente. Se alguma cousa lhe mereço, se não morreu em seu
coração a amizade que o ligou a nossa familia, peço-lhe que me ajude
francamente neste empenho, com a autoridade de sua pessoa. Entre nisto,
como eu mesma, disposto a vencel-o e convencel-o. Faz-me este obsequio?

Luiz Garcia reflectiu um instante.

--Faço, disse elle frouxamente.

Valeria mostrou-se reanimada com a resposta; disse-lhe que fosse lá
jantar naquelle mesmo dia ou no outro. Elle recusou duas vezes; mas não
pode resistir ás instancias da viuva, e prometteu ir no dia seguinte. A
promessa era um meio, não só de pôr termo á insistencia da viuva,
mas tambem de encaminhar-se a saber qual era a mola secreta da acção
daquella senhora. A honra nacional era certamente o colorido nobre e
augusto de algum pensamento reservado e menos collectivo. Luiz Garcia
abriu velas á reflexão e conjecturou muito. Afinal não duvidava do
empenho patriotico de Valeria, mas perguntava a si mesmo se ella
quereria colher da acção que ia praticar alguma vantagem especialmente
sua.

--O coração humano é a região do inesperado, dizia comsigo o
sceptico subindo as escadas da repartição.

Na repartição soube da chegada de tristes noticias do Paraguay. Os
alliados tinham atacado Curupaity e recuado com grandes perdas: o
inimigo parecia mais forte do que nunca. Suppunha-se até que as
propostas de paz não tinham sido mais do que um engodo para fortalecer
a defesa. Assim, a sorte das armas vinha reforçar os argumentos de
Valeria. Luiz Garcia adivinhou tudo o que ella lhe diria no dia
seguinte.

No dia seguinte foi elle jantar á rua dos Invalidos. Achou a viuva
menos consternada do que deveria estar, á vista das noticias da
vespera, se por ventura os successos da guerra a preoccupassem tanto
como dizia. Pareceu-lhe até mais serena. Ella ia e vinha com um ar
satisfeito e resoluto. Tinha um sorriso para cada cousa que ouvia, um
carinho, uma familiaridade, uma intenção de agradar e seduzir, que
Luiz Garcia estudava com os olhos agudos da suspeita.

Jorge, pelo contrario, mostrava-se retrahido e mudo. Luiz Garcia, á
mesa do jantar, examinava-lhe a furto a expressão dos olhos tristes e a
ruga desenhada entre as sobrancelhas, gesto que indicava nelle o
despeito e a irritação. Na verdade, era duro enviar para a guerra um
dos mais bellos ornamentos da paz. Naquelles olhos não morava
habitualmente a tristeza; elles eram, de costume, brandos e pacificos.
Um bigode negro e basto, obra commum da natureza e do cabelleireiro,
cobria-lhe o labio e dava ao rosto a expressão viril que este não
tinha. A estatura esbelta e nobre era a unica feição que absolutamente
podia ser militar. Elegante, occupava Jorge um dos primeiros logares
entre os _dandies_ da rua do Ouvidor; alli podia ter nascido, alli
poderia talvez morrer.

Valeria acertava quando dizia não achar no filho nenhum amor á
profissão de advogado. Jorge sabia muita cousa do que aprendera; tinha
intelligencia prompta, rapida comprehensão e memoria vivissima. Não
era profundo; abrangia mais do que penetrava. Sobretudo, era uma
intelligencia theorica; para elle, o praxista representava o barbaro.
Possuindo muitos bens, que lhe davam para viver á farta, empregava uma
particula do tempo em advogar o menos que podia--apenas o bastante para
ter o nome no portal do escriptorio e no almanack de Laemmert. Nenhuma
experiencia contrastava nelle os impetos da juventude e os arroubos da
imaginação. A imaginação era o seu lado fraco, por que não a tinha
creadora e limpida, mas vaga, tumultuosa e esteril. Era generoso e bom,
mas padecia um pouco de fatuidade, que lhe diminuia a bondade nativa.
Havia alli a massa de um homem futuro, á espera que os annos, cuja
acção é lenta, opportuna e inevitavel, lhe dessem fixidez ao caracter
e virilidade á razão.

Não foi alegre nem animado o jantar. Falaram a principio de cousas
indifferentes; depois Valeria fez recahir a conversação nas ultimas
noticias do Paraguay. Luiz Garcia declarou que lhe não pareciam tão
más, como diziam as gazetas, sem comtudo negar que se tratava de um
serio revez.

--É guerra para seis mezes, concluiu elle.

--Só?

Esta pergunta foi a primeira palavra de Jorge, que até então não
fizera mais do que ouvir e comer. Valeria tomou a outra ponta do
dialogo, e confirmou a opinião de Luiz Garcia. Mas o filho continuou a
não intervir. Acabado o jantar, Valeria ergueu-se; Luiz Garcia fez o
mesmo; a viuva, pousando-lhe a mão no hombro, disse em tom familiar e
intencional:

--Sem ceremonia; eu volto já.

Uma vez sós os dous homens, Luiz Garcia achou de bom aviso ir de ponto
em branco ao assumpto que alli os reuníra.

--Não tem vontade de ir tambem ao Paraguay? perguntou elle logo que
Valeria desappareceu no corredor.

--Nenhuma. Comtudo, acabarei por ahi.

--Sim?

--Mamãe não deseja outra cousa, e o senhor mesmo sei que é dessa
opinião.

Uma resposta negativa roçou os labios de Luiz Garcia; a tempo a
reprimiu, confirmando com o silencio a pia fraude de Valeria. Tinha nas
mãos o meio de inutilisar o effeito do equivoco: era mostrar-se
indifferente. Jorge distraía-se em equilibrar um palito na borda de um
calix; o interlocutor, depois de olhar para elle, rompeu emfim a larga
pausa:

--Mas porque motivo cede hoje, depois de recusar tanto tempo?

Jorge ergueu os olhos, fez-lhe um signal e foram para o terraço.

--O senhor é amigo velho de nossa casa, disse elle; posso confiar-lhe
tudo. Mamãe quer mandar-me para a guerra, porque não póde impedir os
movimentos do meu coração.

--Algum namoro, concluiu friamente Luiz Garcia.

--Uma paixão.

--Está certo do que diz?

--Estou.

--Não creio, tornou Luiz Garcia depois de um instante.

--Porque não? Ella conta com a distancia e o tempo, para matar um amor
que suppõe não haver creado raizes profundas.

Luiz Garcia dera alguns passos, acompanhado pelo filho de Valeria; parou
um instante, depois continuaram ambos a passear de um para outro lado. O
primeiro reflectia na explicação, que lhe pareceu verosimil, se o amor
do rapaz era indigno de seu nome. Essa pergunta não se animou a
fazel-a; mas procurou uma vereda tortuosa para ir dar com ella.

--Uma viagem á Europa, observou Luiz Garcia depois de curto silencio,
produziria o mesmo resultado, sem outro risco mais que...

--Recusei a viagem; foi então que ella pensou na guerra.

--Mas se ella quizesse ir á Europa, o senhor recusaria acompanhal-a?

--Não; mas mamãe detesta o mar; não viajaria nunca. É possivel que,
se eu resistisse até á ultima, em relação á guerra, ella vencesse a
repugnancia ao mar e iriamos os dous...

--E porque não resistiu?

--Primeiramente, porque estava cançado de recusar. Ha mez e meio que
dura esta luta entre nós. Hoje, á vista das noticias do sul, falou-me
com tal instancia que cedi de uma vez. A segunda razão foi um
sentimento mau--mas justificavel. Escolho a guerra, afim de que se
alguma cousa me acontecer, ella sinta o remorso de me haver perdido.

Luiz Garcia parou e encarou silenciosamente o mancebo.

--Sei o que quer dizer esse olhar, continuou este; acha-me feroz, e eu
sou apenas natural. O sentimento mau teve só um minuto de duração.
Passou. Ficou-me uma sombra de remorso. Não accuso mamãe; sei as
lagrimas que lhe vae custar a separação...

--Ainda é tempo de recuar.

--O que está feito, está feito, disse Jorge erguendo os hombros.

--Sabe que mais? Acho mau gosto dar a este negocio um desenlace epico.
Que tem que fazer nisto a guerra do Paraguay? Vou suggerir-lhe um meio
de arranjaras cousas. Ceda metade sómente; vá á Europa sósinho,
volte no fim de dous ou tres annos...

Jorge sorriu desdenhosamente.

--Seu conselho mostra a differença de nossas edades, disse elle. Se eu
fosse para a Europa, que sacrificio faria á pessoa a quem amo? Pelo
contrario, a sacrificada era ella. Eu ia divertir-me, passear, ver
cousas novas, talvez achar novos amores. Indo á guerra, é differente;
sacrifico o repouso e arrisco a vida; é alguma cousa. Separados,
embora, não me negará sua estima...

--Sua estima? disse Luiz Garcia admirado.

Não continuou; mas Jorge comprehendeu, por aquella só palavra, a que
classe de mulheres elle suppunha pertencer a eleita de seu coração.
Fez um gesto; não se animou a dizer nada. Arrependeu-se talvez de haver
dito tanto. Sem ousar recommendar-lhe silencio, começou a insinual-o
delicadamente; tactica escusada, porque Luiz Garcia não era homem de
revelar o que se lhe confiava; e perigosa, porque fazia crescer as
proporções do mysterio. Luiz Garcia sorriu interiormente ao sentir a
arte cautelosa de Jorge; e quando ella lhe pareceu enfadonha:

--Descance, disse elle; não receie que eu vá publicar seus amores.
Repito-lhe o conselho: não se atire de cabeça para baixo n'uma
aventura sem fundo. Ir para a guerra é muito nobre, mas hade ser levado
de outros sentimentos. Um desaccordo por motivo de namoro, não é
o Porto Alegre nem o Polydoro, é um padre que lhe deve pôr termo.

Jorge sorriu com ar affavel, e despediu-se de Luiz Garcia; foi dalli
vestir-se para ir ao theatro. Luiz Garcia estava mais do que nunca
resoluto a deixar que os acontecimentos tivessem livre curso, sem
nenhuma intervenção sua. Logo que Jorge saiu, dispoz-se a fazer o
mesmo, despedindo-se de Valeria. Esta acompanhou-o ate á porta da sala.

--Não me diz nada? perguntou ella quando o viu prestes a transpor a
porta.

--Que lhe hei-de dizer?

--Falou a meu filho?

--Falei.

--Achou-o disposto?

--Não digo que não.

--Mas de má vontade?

--Não digo que sim.

Valeria sorriu com uma ponta de despeito.

--Vejo que este assumpto o aborrece.

Luiz Garcia disse que não. Valeria encostou-se ao portal.

--Ninguem! exclamou ella. Não tenho ninguem a meu lado. Só; ficarei
só.

--Sejamos francos, disse Luiz Garcia; seu filho cede, mas cede
violentado, e não vejo que se possa fazer delle um heroe. Que motivo
tão forte a obriga a exigir desse moço um sacrificio superior a suas
posses?

Valeria não respondeu.

--Sei o motivo, disse elle d'ahi a um instante.

--Sabe?

--Suspeito; e se me permitte ser franco, direi que o acho singular, pelo
menos não ha proporções entre a causa e o effeito. Seu filho ama.
Trata-se de uma mulher de certa especie? São correrias da mocidade, e
as delle não são taes que façam escandalo, creio eu. Trata-se de
alguma moça, cuja alliança lhe não pareça acceitavel? Nada lhe direi
a tal respeito; mas reflicta primeiro antes de o mandar ao Paraguay.

Valeria prendeu a mão direita de Luiz Garcia entre as suas; reflectiu
longo tempo; depois disse com voz sumida:

Supponha... que se trata... de uma senhora casada?

Luiz Garcia curvou a cabeça com um gesto de assentimento. Como seus
olhos baixassem ao chão não pode ver no rosto da viuva uma ligeira cor
que avermelhou e desappareceu. Se lh'a visse, se a fitasse
imperiosamente, talvez a viuva baixasse os olhos envergonhada de haver
mentido. Luiz Garcia não viu nada. Calou-se, approvou a viuva, e
prometteu auxilial-a.

Era noite quando Luiz Garcia saiu da casa de Valeria. Ia aborrecido de
tudo, da mãe e do filho,--de suas relações naquella casa, das
circumstancias em que se via posto. Galgando a ladeira a pé, detendo-se
de quando em quando a olhar para baixo, ia como apprehensivo do futuro,
supersticioso, tomado de temores intermittentes e inexplicaveis. Não
tardou a apparecer-lhe a luz da casa, e, dahi a pouco, a ouvir a
cantilena solitaria do escravo e as notas rudimentaes da marimba. Eram
as vozes da paz; elle apertou o passo e refugiou-se na solidão.



III


Luiz Garcia pouco trabalho teve no animo de Jorge. A resolução deste,
uma vez declarada, não recuou mais. Não desconhecia o moço que a
empreza a que mettia hombros era crespa de difficuldades. A guerra,
sobretudo depois do desastre de Curupaity, promettia durar muito; não
havia desanimo, e o governo era auxiliado efficazmente pela população.
Jorge obteve uma patente de capitão de voluntarios.

Vinte dias depois da conversa no terraço da rua dos Invalidos,
apresentou-se Jorge em Santa Theresa, fardado e prompto, de tal modo
porém que era ainda difficil separar o casquilho do militar. A mesma
tesoura que lhe cortava os fraques, talhara a farda de capitão. Trazia
á cintura uma banda vermelha, cujas pontas caíam graciosamente ao
lado. Calçava um botim reluzente, sobre o qual assentava a calça de
fino panno. Inclinado levemente á direita, o boné não lhe
desconcertava o cabello, penteado ao estylo de todos os dias; o bigode
tinha as mesmas guias longas, agudas e lustrosas.

Luiz Garcia não pode furtar-se a um sentimento de pena, ao vel-o entrar
fardado e prestes a seguir para o sul. Pareceu-lhe descobrir por traz
delle o perfil da morte, com o eterno sorriso sem labios. Mas esse
sentimento de commiseração passou; lembrou-lhe logo a ultima palavra
da viuva, e não pode deixar de condemnal-o. Viu até, com certa
repulsa, esse coração de vinte e quatro annos, que ia arriscar a vida
propria, e talvez a de sua mãe, para não rejeitar um sentimento mau.

--Estou a seu gosto? perguntou Jorge com um ar de benevola ironia.

--Ha de estar melhor no fim da guerra, Sr. general, respondeu o outro.

--General? Pode ser.

Dizendo isto, Jorge entrou a falar de suas esperanças e futuros. A
imaginação começava a dissipar a melancolia. Elle via já naquillo
uma aventura romanesca e mysteriosa; sentia-se uma resurreição de
cavalleiro medievo, saindo a combater por amor de sua dama, castellã
opulenta e formosa que o esperaria na varanda gothica, com a alma nos
olhos e os olhos na ponte levadiça. A ideia da morte ou da mutilação
não vinha agitar-lhe ao rosto suas azas pallidas e sangrentas. O que
elle tinha deante de si eram os campos infinitos da esperança. Comtudo,
o momento era grave, e difficilmente podia o espirito esquivar-se á
reflexão intermittente. Além disso, Jorge subira a Santa Theresa com a
resolução de contar tudo a Luiz Garcia, afim de deixar um confidente
austero e unico de seus amores; mas a palavra não se atrevia a sair do
coração. Ou a edade do outro ou a indole de suas relações tolhia
essa confidencia intima; ainda mais do que uma e outra razão, havia
naquelle momento o gesto singularmente preoccupado e duro de Luiz
Garcia. Jorge deu de mão ao projecto.

--Dê-me o abraço de despedida, disse elle; embarco amanhã.

--Já amanhã!

--Vim despedir-me do senhor.

Luiz Garcia considerou-o silenciosamente durante dous ou tres minutos;
depois apertou-lhe as mãos.

--Vá, disse; trabalhe pela terra; não se poupe a trabalhos, nem se
exponha sem utilidade; em todo o caso, obedeça á disciplina, e não se
esqueça um só dia de sua mãe.

Jorge saiu e desceu a passo largo e trémulo na direcção da rua de D.
Luiza. A meio caminho parou, como se quizesse tomar outra direcção;
ergueu os hombros e proseguiu. Ia mergulhado em si mesmo, e só deu
accordo ao parar deante de uma casa daquella rua.

Antes de lá entrar, vejamos quem eram os moradores.

O defunto marido de Valeria, no tempo em que advogava, tinha um
escrevente, que, mais ainda do que escrevente, era seu homem de
confiança; Chamava-se o Sr. Antunes. Foram serviços de certa ordem que
os ligaram mais intimamente. A fortuna troca ás vezes os calculos da
natureza; uma e outra iam de accordo na pessoa daquelle homem, nado e
creado para as funcções subalternas. Familiar com todas as formas da
adulação, o Sr. Antunes ia do elogio hyperbolico até o silencio
opportuno. Tornou-se dentro de pouco, não só um escrevente laborioso e
pontual, mas tambem, e sobretudo, um _fac-totum_ do desembargador, seu
braço direito, desde os recados eleitoraes até ás compras domesticas,
vasta escala em que entrava o papel de confidente das entreprezas
amorosas. Assim que, nunca lhe fez mingua a protecção do
desembargador. Viu crescer-lhe o ordenado, multiplicarem-se-lhe as
gratificações; foi admittido a comer algumas vezes em casa, nos dias
communs, quando não havia visitas de ceremonia. Nas occasiões mais
solemnes era elle o primeiro que se esquivava. Ao cabo de tres annos de
convivencia tinha consolidado a situação.

Justamente nesse tempo succedeu morrer-lhe a mulher, de quem lhe ficou
uma filha de dez annos, menina interessante, que algumas vezes visitara
a casa do desembargador. Este fez o enterro da mãe e pagou o luto da
filha e do pae. O Sr. Antunes, que não era de extremas philosophias,
tinha a convicção de que debaixo do sol, nem tudo são vaidades, como
quer o Ecclesiastes, nem tudo perfeições, como opina o doutor
Pangloss; entendia que ha larga ponderação de males e bens, e que a
arte de viver consiste em tirar o maior bem do maior mal. Morta a
mulher, alcançou do desembargador um enxoval completo para fazer entrar
a filha n'um collegio, visto que até então nada aprendera, e já
agora não podia deixal-a sósinha em casa. O desembargador dera o
enxoval; algumas vezes pagou o ensino; as visitas amiudaram-se; a
creança, que era bonita e boa, entrou manso e manso no coração de
Valeria que a recebeu em casa, no dia em que a pequena concluiu os
estudos.

Estella--era o seu nome,--tinha então dezeseis annos. Pouco antes
fallecera o desembargador. O Sr. Antunes recebeu dous golpes em vez de
um: o de o ver morrer, e o de o não ver testar. As aneurismas têm
dessas perfidias inopinaveis. Afim de emendar a mão á fortuna, o pae
de Estella concentrou na viuva a attenção que até então repartira
entre ella e o marido; facto que aliás decorria da propria obrigação
moral em que se achava para com a familia do desembargador. Estella
devia a essa familia educação e carinho; podia talvez vir a dever-lhe
um dote, um marido e consideração. Quem sabe? Talvez o coração de
Jorge vinculasse as duas familias. Esta ambição affagava-a o Sr.
Antunes no mais profundo de sua alma.

Jorge estava prestes a concluir os estudos em S. Paulo; ia na metade do
quarto anno. Vindo á Capital durante as férias, achou-se deante de uma
situação inesperada; a mãe esboçara um projecto de casamento para
elle. A noiva escolhida era ainda parenta remota de Jorge. Chamava-se
Eulalia. Tinha dezenove annos na certidão de baptismo e trinta no
cerebro. Era uma moça sem illusões nem vaidades, talvez sem paixões,
dotada de juizo recto e coração simples, e sobre tudo isso uma belleza
sem macula e uma elegancia sem espavento.--Uma perola! dizia Valeria
quando insinuou ao filho a conveniencia de casar com Eulalia. A perola,
entretanto, não parecia anciosa de ornar a fronte de ninguem. Quando
Valeria fez as primeiras sondagens no coração da joven parenta, achou
alli uma agua tranquilla, sem curso nem recurso de marés. Tratou de
saber se alguma brisa lhe roçara a aza, e descobriu que não; então
chamou em seu auxilio o sirocco e o pampeiro. Não foi difficil a
Eulalia perceber os desejos da viuva, nem resistiu quando chegou a
entendel-a. A razão disse-lhe que o casamento era acceitavel; esperou.
Valeria ficou satisfeita com o resultado, e deu-se pressa em sondar as
disposições de Jorge, quando elle voltou no fim do anno.

Graças á sua arte de assediar as vontades alheias, Valeria alcançou
do filho uma resposta condicional. Era já alguma cousa. O motivo da
insistencia da viuva era complexo; eram as qualidades da parenta, a
affeição grande que lhe votava, o receio de morrer subitamente e a
confiança que tinha em si mesma para conhecer e eleger caracteres.
Durante o ultimo anno da Faculdade, Jorge pensou algumas vezes no
casamento como se pensa n'um projecto remoto; mas, á proporção que o
tempo corria, o coração ia-se-lhe tornando retrahido e medroso. Uma
vez formado, deu de mão á ideia; não teve a franqueza de o declarar
á mãe, e Valeria esperou confiadamente que o coração do filho
dissesse n'outra lingua aquillo que ella já lhe havia dito na sua.

Para conhecer exactamente o motivo da repulsa de Jorge em relação a
uma moça, cujas qualidades deviam tentar qualquer outro, convem não
esquecer que essas qualidades eram justamente as mais avêssas á indole
do filho de Valeria. Não bastava ser elegante e bonita, discreta e
mansa; era preciso alguma cousa mais, que exactamente correspondesse á
imaginação delle; faltava-lhe um grão de romanesco.

A isto accrescia um sentimento novo, que se apossou delle, ao cabo de
tres semanas depois da chegada ao Rio de Janeiro. A vista quotidiana de
Estella produziu em Jorge uma impressão forte. Posto vivessem na mesma
casa, era difficil acharem-se nunca a sós, porque a filha do escrevente
passava todo o tempo ao pé da viuva; circumstancia que não teve a
virtude de mudar o curso aos acontecimentos. Não podendo passar de
palavras geraes e extranhas ao que lhe quizera confiar, Jorge falava-lhe
com os olhos,--linguagem que a moça não entendia, ou fingia não
entender. A imperturbavel seriedade de Estella foi um aguilhão mais,
não menos cruel que a gentileza de suas formas, e certo ar de
resolução que lhe transparecia do rosto quieto e pallido.

Pallida era, mas sem nenhum tom de melancolia ascetica. Tinha os olhos
grandes escuros, com uma expressão de virilidade moral, que dava á
belleza de Estella o principal caracteristico. Uma por uma, as feições
da moça eram graciosas e delicadas, mas a impressão que deixava o todo
estava longe da meiguice natural do sexo. Usualmente, trazia roupas
pretas, côr que preferia a todas as outras. Nu de enfeites, o vestido
punha-lhe em relevo o talhe esbelto, elevado e flexivel. Nem usava nunca
trazel-o de outro modo, sem embargo de algum dixe ou renda com que a
viuva a presenteava de quando em quando; rejeitava de si toda a sorte de
ornatos; nem folhos, nem brincos, nem aneis. Ao primeiro aspecto
dissera-se um Diogenes feminino, cuja capa, atravez das roturas, deixava
entrever a vaidade da belleza que quer affirmar-se tal qual é, sem
nenhum outro artificio. Mas, conhecido o caracter da moça, eram dous os
motivos--um sentimento natural de simplicidade, e, mais ainda, a
consideração de que os meios do pae não davam para custosos atavios,
e assim não lhe convinha affeiçoar-se ao luxo.

--Porque não põe os brincos que mamãe lhe deu a semana passada?
perguntou Jorge a Estella, um dia, em que havia gente de fóra a jantar.

--Os presentes mais queridos guardam-se, respondeu ella olhando para a
viuva.

Valeria apertou-lhe a ponta do queixo entre o pollegar e o
indicador:--Poeta! exclamou sorpudo. Você não precisa de brincos para
ser bonita, mas vá pol-os, que lhe ficam bem.

Foi a primeira e ultima vez que Estella os poz. A intenção era patente
de mais para não ser notada, e Jorge não esqueceu nem a resposta da
moça nem o constrangimento com que obedeceu. Não podia suppôr-lhe
ingratidão, porque via a affeição com que Estella tratava a mãe. Em
relação a elle não parecia haver affeição egual, mas havia
certamente respeito e consideração, rara vez familiaridade, e ainda
assim, uma familiaridade enluvada, um ar de visita de pouco tempo.

Jorge começou a achar mais agradavel a casa do que a rua; e as noites,
quando não havia pessoas de fora, passava-as á volta de uma mesa,
lendo ou jogando com as duas, ou vendo-as trabalhar, em quanto contava
anedoctas da academia, lia as correspondencias do Paraguay e de
Buenos-Ayres, ou simplesmente alguma pagina de romance. Nessa vida, meio
patriarchal, as horas corriam depressa, tão depressa, que elle não as
sentia. Ao cabo de cinco a seis semanas, fez-se elle seu proprio
confessor, examinou a consciencia, descobriu lá dentro alguma cousa que
não era a phantasia sensual do primeiro instante, e, longe da
absolver-se, condemnou-se á crua penitencia de abstenção. Voltou aos
antigos habitos e deixou os serões domesticos. Mas a applicação do
remedio, por mais sincera que fosse, já não podia muito contra a
acção do mal. Estella frequentava-lhe tenazmente a memoria; e na rua,
no theatro, nas assembléas a que ía, o perfil severo da moça vinha
metter-se entre elle e a realidade. Se pudesse deixar de a ver, a
convalescença não era ainda difficil; mas como fugir á lembrança de
uma mulher, cuja figura lhe apparecia durante algumas horas de cada dia?
Demais, a somnambula que elle tinha no cerebro vinha auxiliar a
fatalidade das circumstancias. No fim de um mez, a indole do sentimento
havia mudado: era mais pura; mas o sentimento não parecia disposto a
esvair-se: era mais violento.

Como o Sr. Antunes levasse a filha, uma noite, a visitar pessoa de sua
amizade, Jorge aproveitou a circumstancia para insinuar a Valeria a
conveniencia de restituir Estella a seu pae.

--Porque? perguntou a viuva.

--Sempre é um tropeço, uma pessoa extranha mettida entre
nós,--replicou Jorge. Não lhe nego que tem boas qualidades; mas... é
uma pessoa extranha.

--Que importa, se me dou bem com ella? Conheço-a desde pequena; é uma
companhia melhor que qualquer outra. Mas porque te lembras disso agora?

--Estive pensando na responsabilidade que pesa sobre nós. Se fosse
nossa parenta, vá, não se podia dispensar a obrigação; mas não
sendo, creio que era melhor libertarmo-nos.

--Descança; quando fôr tempo, caso-a. O que não admitto é algum
marido de pouco mais ou menos. Ha-de ser pessoa que a mereça. Não
sabes o que vale aquella menina. Não é só boa, tem certa elevação
de sentimentos; nunca me desattendeu e nunca me adulou.

Jorge confirmou com a cabeça e não disse mais nada. O que acabava de
fazer não passava de uma tentativa sincera, mas frouxa, para arredar
Estella da casa; era o imposto pago á consciencia; Quite com ella,
entregou-se aos acontecimentos, confessando a si mesmo que o perigo não
era tão grave, nem o remedio tão urgente; finalmente, que elle era
homem.

No meio de semelhante situação, que sentia ou que pensava Estella?
Estella amava-o. No instante em que descobriu esse sentimento em si
mesma, pareceu-lhe que o futuro se lhe rasgava largo e luminoso; mas foi
só nesse instante. Tão depressa descobriu o sentimento, como tratou de
o estrangular ou dissimular,--trancal-o ao menos no mais escuso do
coração, como se fora uma vergonha ou um peccado.

--Nunca? jurou ella a si mesma.

Estella era o vivo contraste do pae, tinha a alma acima do destino. Era
orgulhosa, tão orgulhosa que chegava a fazer da inferioridade uma
aureola; mas o orgulho não lhe derivava de inveja impotente ou de
esteril ambição; era uma força, não um vicio,--era o seu broquel de
diamante,--o que a preservava do mal, como o do anjo de Tasso defendia
as cidades castas e santas. Foi esse sentimento que lhe fechou os
ouvidos ás suggestões do outro. Simples aggregada ou protegida, não
se julgava com direito a sonhar outra posição superior e independente;
e dado que fosse possivel obtel-a, é licito affirmar que recusara,
porque, a seus olhos seria um favor, e a sua taça de gratidão estava
cheia. Valeria, que tambem era orgulhosa, descobrira-lhe essa qualidade,
e não lhe ficou querendo mal; ao contrario, veiu a aprecial-a melhor.

Pois o orgulho de Estella não lhe fez sómente calar o coração,
infundiu-lhe a confiança moral necessaria para viver tranquilla no
centro mesmo do perigo. Jorge não percebera nunca os sentimentos que
inspirara; e, por outro lado, nunca viu a possibilidade de os inspirar
um dia. Estella só lhe manifestava o frio respeito e a fria dignidade.

Um dia, vagando uma casa de Valeria no caminho da Tijuca, determinou-se
a viuva a ir examinal-a, antes de a alugar outra vez. Foi acompanhada do
filho e de Estella. Sairam cedo, e a viagem foi alegre para a moça, que
pela primeira vez ia áquelle arrabalde. Quando a carruagem parou,
suppunha Estella que mal tivera tempo de sair da rua dos Invalidos.

A casa precisava de alguns reparos; um mestre de obras, que já alli
estava, acompanhou a familia de sala em sala e de alcova em alcova. Só
elle e Valeria falavam; Estella não tinha voto consultivo, e Jorge
parecia indifferente. Que lhe importava a elle o rebôco de uma parede
ou o concerto de um soalho? Elle gracejava, ria ou sussurrava ao ouvido
de Estella um epigramma a respeito do mestre de obras, cuja prosodia era
execravel. Estella, que sorria com elle, cerrava entretanto o gesto aos
epigrammas.

De sala em sala, chegaram a uma pequena varanda, onde uma circumstancia
nova os deteve algum tempo. N'uma das extremidades da varanda havia um
pombal velho, onde elles foram achar, esquecido ou abandonado, um casal
de pombos. As duas aves, após vinte e quatro horas de solidão,
pareciam saudar as pessoas que alli appareciam repentinamente.

--Coitadinhos! disse Estella logo que entrou na varanda.

Valeria prestou um minuto de attenção, talvez meio, e seguiu a ver a
casa. Estella ficara a olhar para os dous pombos, e não a viu sair.

--Quer leval-os? disse a voz de Jorge.

A moça voltou-se e respondeu que não:--Comtudo, continuou ella, era
bom dal-os a alguem para não morrerem á fome. São tão bonitos!

--Mas porque não os ha de levar a senhora mesma?

--Vou pedir ao mestre que os tire dalli, disse ella dando um passo para
dentro.

--Não é preciso: eu vou tiral-os.

Estella recusou, mas o bacharel resolvera e ia satisfazer elle proprio o
desejo da moça. O pombal não ficava ao alcance da mão; era preciso
trepar ao parapeito da varanda, crescer na ponta dos pés e estender o
braço. Ainda assim, precisaria contar com a boa vontade dos pombos.
Jorge trepou ao parapeito. Se perdesse o equilibrio poderia cair ao
chão da chacara; para evital-o, Jorge lançou a mão esquerda a um
ferro que havia na columna do canto, e que o amparou; depois esticou o
corpo e alcançou com a mão o pombal. Um dos pombos ficou logo seguro;
o outro, a principio arisco, foi colhido depois de algum esforço.
Estella recebeu-os; Jorge saltou ao chão.

--A Sra. D. Valeria, se visse isto, havia de ralhar, disse Estella.

--Grande façanha! respondeu Jorge sacudindo com o lenço as mãos e a
aba do fraque.

--Podia cair.

--Mas não caí; foi um risco que passou. São bonitinhos, não são?
continuou elle apontando para os pombos que Estella tinha entre as
mãos.

A moça respondeu com um gesto e deu alguns passos, afim de ir ter com a
viuva. Jorge deteve-a, mettendo-se entre ella e a porta.

--Não se vá embora, disse elle.

--Que é? perguntou Estella erguendo tranquillamente os grandes olhos
limpidos.

--Disfarçada!

Estella baixou silenciosamente a cabeça e buscou dar outra volta para
entrar na sala ao pé; Jorge, porém, interceptou-lhe de novo o caminho.

--Deixe-me passar, disse ella sem colera nem supplica.

Jorge recuara até a porta, unica das tres que estava aberta. Era
arriscado o que fazia; mas, além de que Valeria e o mestre estavam no
pavimento superior,--elle ouvia-lhes os passos,--perdera naquella
occasião toda a lucidez de espirito. Era deserto o logar, e
naturalmente seria longo o tempo de que poderia dispôr para lhe dizer
tudo. Mas os labios ficaram cerrados alguns instantes, em quanto os
olhos diziam a eloquencia da paixão mal contida e prestes a irromper.

Não insistiu Estella, mas ficou diante delle, quieta e sem arrogancia,
como esperando ser obedecida. Jorge quizera-a supplicante ou desvairada;
a tranquillidade feria-lhe o amor proprio, fazendo-lhe ver que o perigo
era nenhum, e revellando, em todo caso, a mais dura indifferença. Quem
era ella para o affrontar assim? Era a segunda vez que formulava essa
pergunta; tinha-a feito nas primeiras auroras da paixão. Desta vez a
resposta foi deploravel. Cravando os olhos em Estella, disse com voz
tremula, mas imperiosa:

--Não ha de sair daqui, sem me dizer se gosta de mim. Vamos; responda!
Não sabe o que lhe pode custar esse silencio?

Não obtendo resposta, continuou depois de alguma pausa:

--É animosa! Saiba que posso vir a odial-a e que talvez já a odeio;
saiba tambem que posso tirar vingança de seus despresos, e chegarei a
ser cruel, se fôr necessario.

Estella suspirou apenas, e foi encostar-se ao parapeito, a olhar para a
chacara. Era sua intenção não irrital-o, com a resposta secca e má
que lhe dictava o coração, e esperar que Valeria descesse. Entretanto,
na posição em que ficara tinha as costas voltadas para Jorge,
circumstancia que não era intencional, mas que pareceu a este um
simples meio de lhe significar o seu desdem. A irritação de Jorge foi
grande. Após uns dous ou tres minutos de silencio, Jorge caminhou na
direcção do parapeito, onde estava Estella, com a cabeça inclinada, a
beijar a cabeça dos pombos, que tinha encostados ao seio. Deteve-se,
sem que a moça mudasse de posição. Contemplou-a ainda um instante, e
se Estella olhasse para elle veria que a expressão dos olhos era de
respeitosa ternura e nada mais.

Esse instante, porém, voou depressa, e com elle a consideração.
Inclinando-se para a moça, Jorge falou de um modo que nem a educação
nem a indole, mas só o despeito explicava.

--Porque hade gastar com esses animaes, uns beijos que podem ter melhor
emprego?

Estella estremeceu toda e ergueu para o moço uns olhos que fuzilavam de
indignação. Já não estava pallida, mas livida. Estupefacta, não
sabia que dissesse ou fizesse, e infelizmente não sabia tambem que a
pergunta de Jorge, por mais offensiva que lhe parecesse, não era ainda
a maxima injuria. Não era; Jorge tinha uma nuvem deante de si, atravez
da qual não podia ver nem o seu decoro pessoal nem a dignidade da
mulher amada; via só a mulher indifferente. Lançou-lhe as mãos
treabeça, puxou-a até si e antes que ella pudesse fugir ou gritar,
encheu-lhe a boca de beijos.

Soltos com o movimento, os pombos esvoaçaram sobre a cabeça de ambos,
e foram pousar outra vez na casinha de pau, onde nenhuma fatalidade
moral os condemnava áquelle amor sem esperança, áquella colera sem
dignidade.

Estella suffocara um gemido e cobrira o rosto com as mãos. Ouviam-se as
vozes de Valeria e do mestre, que se approximavam; Jorge teve um
instante de incerteza e hesitação; mas a reacção operara-se, e,
além disso, urgia apagar os vestigios daquella scena, de maneira que os
não visse a viuva.

--Ahi vem mamãe,--disse elle baixinho a Estella; não tive culpa no que
fiz, por que gosto muito da senhora.

Estella voltou-se para fora e enxugou o rosto; dahi a pouco entraram
Valeria e o mestre. Este saiu logo depois, tendo ajustado as obras que
era indispensavel fazer na casa. Valeria irritada com a vista dos
estragos que encontrou, criticava o desleixo dos inquilinos. Só depois
dos primeiros instantes reparou que nenhum dos dous lhe respondia nada,
Jorge parecia acanhado, e Estella triste. Posto houvesse enxugado as
lagrimas, Estella tinha o rosto desfeito e murchos os bellos olhos.
Jorge não ousava olhar para a mãe nem para Estella; olhava para a
ponta dos botins, onde ficara um pouco da caliça do parapeito; tinha as
mãos nas costas e estava arrimado a um portal. Valeria reparou na
attitude dos dous; mas como possuia a qualidade de dissimular as
impressões, não alterou nem o gesto nem a voz. Os olhos é que nunca
mais os deixaram.

Dahi a nada metteram-se no carro. Era tarde. A viagem foi quasi
inteiramente silenciosa; pelo menos, só Valeria disse algumas palavras.
Chegando á rua dos Invalidos, a viuva suspeitava que alguma cousa havia
entre os dous e grave. Todo aquelle dia meditou nos meios de conhecer a
natureza e os pormenores da situação, e nada achou melhor do que
interrogar directamente um delles. Jorge saíra de casa logo depois e
não voltou para jantar; Estella não sorriu em todo esse dia e quasi
não falou.

Não foi preciso interrogal-a. Logo na seguinte manhã, acabando de
levantar-se, entrou-lhe Estella na alcova, e pediu alguns minutos de
attenção. Expoz-lhe a necessidade de voltar para casa; estava moça,
devia ir prestar ao pae os serviços que elle precisaria de alguem e
tinha o direito de exigir da filha. Não era ingratidão, accrescentava;
levaria dalli saudades eternas; voltaria muitas vezes; seria sempre
obediente e grata. Cedia sómente á necessidade de acompanhar o pae.
Este pedido confirmava a suspeita de Valeria, mas só esclarecia metade
da situação. A retirada de Estella era um meio de fugir a Jorge ou de
lhe falar mais livremente? Valeria tratou de prescrutar o coração da
moça, dizendo-lhe que a razão dada era insufficiente e que alguma
causa occulta a movia; depois, recordou-lhe a amizade que lhe tinha e a
confiança a que Estella não devia faltar.

--Vamos lá, disse ella; confessa tudo.

Estella affirmou que nada mais havia; mas, insistindo a viuva, respondeu
curvando a cabeça,--o que importava meia confissão. Valeria lutou
ainda muito tempo; empregou a brandura e a intimação, mas a moça não
cedeu mais nada.

--Bem, disse a viuva; faça-se a tua vontade.

Foi assim que Estella, ao cabo de algum tempo de residencia na casa de
Valeria, regressou á casa do pae, na rua de D. Luiza. O Sr. Antunes
ficou desorientado com a noticia; disse que vivia perfeitamente só;
achou pouco decoroso e menos justo o procedimento de Estella, em
relação á viuva do desembargador; gastou largos conceitos, que lhe
não aproveitaram, porque Estella não recuou da resolução, nem a
viuva tentou dissuadil-a.

A separação não valia nada ou valia cousa peor; fez recrudescer o
amor de Jorge, por isso mesmo que entre um e outro rasgava espaço á
imaginação. Duas forças reagiram no coração do rapaz; o obstaculo,
que tornava mais intenso o amor, e o remorso que o fazia mais
respeitoso. Nenhum resentimento lhe ficara da resolução de Estella;
sentia-se culpado, e mais ainda, sentia-se victima da fuga da moça. Nem
tudo isso seria effeito sómente da paixão; cabia uma parte de
influencia á severidade do caracter de Estella, que acabou por incutir
no espirito de Jorge ideia differente da que elle a seu respeito fazia.
Valeria descobriu a pouco e pouco a inefficacia do remedio que
acceitara; estava certa da paixão do filho, e via que, longe de
expirar, entrava pela vida adeante, menos estouvada talvez, mas não
menos sincera e profunda; soube que Jorge frequentava a casa da rua de
D. Luiza; estremeceu pelo futuro e cogitou no modo de estrangular as
esperanças em flôr.

--Ou ella já o ama ou pode vir a amal-o, dizia comsigo.

Valeria encarava os dous desenlaces possiveis da situação, se a moça
lhe amasse o filho: ou seria a quéda de Estella, que a viuva estimava
muito, ou o consorcio dos dous, solução que lhe repugnava aos
sentimentos, ideias e projectos. Jamais consentiria em semelhante
alliança. Urgia prompto remedio.

Voltou energicamente ao projecto de casar o filho com Eulalia, e o
intimou a obedecer-lhe. Jorge começou resistindo e acabou dissimulando;
mas o artificio não illudiu a mãe. Valeria chamou logo em seu auxilio
a joven parenta. Eulalia, que tivera tempo de reflectir, francamente lhe
disse que não estava disposta a ser sua nora, porque Jorge não a
amaria nunca; e comquanto, não visse no casamento uma pagina de
romance, entendia que a antipathia ou total indifferença era o mais
frouxo dos vinculos conjugaes.

Desamparada desse lado, a viuva cogitou então a viagem á Europa; e,
quando elle lh'a recusou, recorreu á guerra do Paraguay. Não sem custo
lançou mão desse meio, violento para ambos; mas, uma vez adoptado,
luziu-lhe mais a vantagem do que lhe negrejou o perigo. Assim foi que de
um incidente, comparativamente minimo, resultara aquelle desfecho grave,
e de um caso domestico saía uma acção patriotica.



IV


Era noite fechada, quando Jorge chegou á casa de Estella. O Sr. Antunes
estava á porta e talvez contava com a visita; recebeu-o com alvoroço e
tristeza.

Quatro mezes haviam decorrido depois da scena da Tijuca, e durante esse
tempo Jorge fora muitas vezes á casa da rua de D. Luiza. Não lhe
fugira Estella nem o maltratara; usou a mesma serenidade e frieza de
outro tempo, falando-lhe pouco, é certo, mas com tamanha isenção, que
parecia não ter havido entre elles o menor dissentimento.

Pela sua parte, Jorge forcejava por apagar a lembrança daquelle
episodio, havendo-se com o respeito e consideração que lhe pareciam
bastantes para resgatar a estima perdida. Ás vezes ficavam a sós na
sala, porque o Sr. Antunes inventava algum motivo que o obrigasse a
eclipses parciaes, com o fim unico, dizia elle comsigo,--de ajudar a
natureza. Mas sobretudo nessas occasiões, aliás propicias, não
transpunha Jorge a linha que a si mesmo traçara, não lhe sussurrava
uma unica palavra amorosa, não lhe deitava um só olhar que a pudesse
fazer corar ou reagir. Qualquer allusão á scena da Tijuca, ainda de
submissão, seria prejudicial á causa de Jorge; elle evitava esse erro
trivial, nada dizendo que proxima ou remotamente pudesse lembral-a á
moça. Falavam pouco e de cousas indifferentes, como pessoas de nenhuma
intimidade.

Foi só quando perdeu de todo a esperança de a vencer pelos meios
ordinarios, que elle acceitou a proposta de se alistar no exercito. No
dia em que lhes deu a noticia, a impressão no pae e na filha foi
profunda, mas diversa, porque o pae ficou totalmente consternado e
morto, ao passo que a filha sentiu a alma respirar livremente, e se uma
voz secreta e medrosa lhe disse: não o deixes ir; outra mais dominadora
e forte lhe bradou que a partida era a liberdade e a paz. A viagem, a
distancia, o tempo, a natureza das occupações militares deviam
arrancar ao moço um sentimento que Estella temia fosse origem de
dissenções domesticas, e que em todo o caso a abatia a seus proprios
olhos.

--É então amanhã? perguntou o Sr. Antunes fazendo entrar o joven
capitão.

--Amanhã.

Estella recebeu-o como das outras vezes, sem embargo do pae, que parecia
apostado em lhe tornar amargos esses ultimos instantes. A tristeza do
Sr. Antunes era mortal. Elle pertencia á phalange daquelles espiritos
que, atravez dos annos e ainda nos regelos do inverno, conservam as
calcinhas da primeira edade, e para quem a vida tem sempre o aspecto dos
castellos de cartas que construiram na infancia. Uma vez penetrado da
ideia de casar a filha com o bacharel, viveu della, como se a vira
praticada. O incidente da guerra não lhe desvendou a realidade da
situação, mas pareceu-lhe que adiava o seu desejo, e bastava a
consternal-o. Agora que via fardado o filho de Valeria, prestes a
embarcar no dia seguinte, creu devéras na separação. Após meia hora
de conversa, o Sr. Antunes retirou-se alguns minutos da sala; ia ver
charutos.

--Tome um dos meus, disse Jorge.

--Nada; os seus são muito fortes.

Nunca os charutos de Jorge padeceram semelhante accusação da parte do
Sr. Antunes, que fumava regularmente os do filho como havia fumado os do
pae. Estella ficou humilhada com a resposta e a acção. Jorge que
estava de pé, junto a uma mesa, viu sair o pae de Estella, e ficou a
olhar para o chão. A moça cravou os olhos no trabalho, que estava
fazendo.

Jorge ergueu emfim os olhos e pousou-os na moça, cuja belleza lhe
pareceu naquella noite ainda mais limpida e espiritual, justamente
porque elle começava a vel-a atravez do nimbo da saudade. Ella attendia
ao trabalho com uma quietação laboriosa. As mãos, que podiam
emparelhar com as mais puras, moviam as agulhas sem apparente commoção
nem tremor. Ao mancebo já não humilhava esse aspecto indifferente e
digno; podia medir, em si mesmo, a differença das situações, o
caminho vencido, desde as primeiras ideias a respeito de Estella. Mas os
minutos corriam e o silencio acanhava-o cada vez mais; emfim, resolveu
rompel-o, e rompel-o de modo que tirasse daquelle minuto ou a salvação
ou o naufragio da vida que ia emprehender. Deu dous passos para Estella.

--Talvez não nos vejamos mais, disse elle.

--Porque? disse Estella sem levantar os olhos.

--Posso ficar enterrado no Paraguay.

--Sua mãe não gostaria de ouvir isso...

Seguiram-se ainda dous minutos. Jorge poz toda a alma nestas palavras,
ditas em voz baixa e triste:

--Embarco amanhã para o sul. Não é o patriotismo que me leva, é o
amor que lhe tenho, amor grande e sincero, que ninguem poderá
arrancar-me do coração. Se morrer, a senhora será o meu ultimo
pensamento; se viver, não quero outra gloria que não seja a de me
sentir amado. Uma e outra cousa dependem só da senhora. Diga-me; devo
morrer ou viver?

Estella tinha erguido a cabeça; quando elle acabou achava-se de pé.
Fitou-o alguns instantes com uma expressão muda e fria. A vaidade da
mulher podia contentar-se daquella solemne reparação, e perdoar; mas o
orgulho de Estella venceu, e não deu logar a nenhum outro sentimento de
justiça ou de humanidade. Um geito ironico torceu-lhe o labio, donde
saiu esta palavra má e desdenhosa:

--O senhor é um tonto.

Quando o pae voltou á sala, instantes depois, Jorge estava com uma das
mãos no encosto de uma cadeira, pallido como um defunto. Estella fora
até á porta da alcova da sala, resolvida a fechar-se por dentro.

O Sr. Antunes não tinha observação; mas, ao ver o rosto dos dous,
não era muito difficil adivinhar que alguma cousa se passara entre
elles. Adivinhou-o; comtudo, não atinara bem o que seria, se uma scena
de dolorosa despedida, se outra cousa menos propicia a seus calculos.
Foi ao joven capitão e pediu-lhe que se sentasse; mas Jorge declarou
que ia sair e despediu-se. Sem encarar Estella, estendeu-lhe a mão, que
ella apertou com o ar mais tranquillo do mundo. O pae espreitava uma
lagrima furtiva, um gesto disfarçado, qualquer cousa que falasse em
favor de suas esperanças. Nada; Estella não baixou o rosto nem
escondeu os olhos. Jorge, sim; não obstante o esforço que fazia,
tremia-lhe a mão ao apertar a do escrevente.

O Sr. Antunes acompanhou-o até a porta. Alli, antes de a abrir, quiz
abraçar o moço official.

--Dê-me essa triste honra, disse elle; creia que estes braços são de
amigo.

Jorge deixou-se ir, sem enthusiasmo; mas quando sentiu o corpo do pae de
Estella, pareceu-lhe que abraçava uma parte da moça, e apertou-o
fortemente ao peito. Esta manifestação lisonjeou extremamente o outro;
chegou a commovel-o.

--Conte commigo, murmurou elle; fico para ajudal-o.

Jorge ouviu-o, apertou-lhe machinalmente as mãos, recebeu um abraço
ultimo e atirou-se á rua.

Intoleravel é a dor que não deixa sequer e direito de arguir a
fortuna. O mais duro dos sacrificios é o que não tem as consolações
da consciencia. Essa dor padecia-a Jorge; esse sacrificio ia consumal-o.

Não foi dalli para casa; não ousaria encarar sua mãe. Durante a
primeira hora que se seguiu á saída da casa de Estella, não pode
reger os pensamentos; elles cruzavam-lhe o cerebro sem ordem nem
deducção. O coração batia-lhe rijo na arca do peito; de quando em
quando o corpo era tomado de calefrios. Ia despeitado, humilhado, com um
dente de remorso no coração. Quizera de um só gesto eliminar a scena
daquella noite, quando menos apagal-a da lembrança. As palavras de
Estella retiniam-lhe ao ouvido como um silvo de vento colerico; elle
trazia no espirito a figura desdenhosa da moça, o gesto sem ternura, os
olhos sem misericordia. Ao mesmo tempo, lembrava-lhe a scena da Tijuca,
e alguma cousa lhe dizia que essa noite era a desforra daquella manhã.
Ora sentia-se odioso, ora ridiculo.

--Tua mãe é quem tem razão, bradava uma voz interior; ias descer a
uma alliança indigna de ti; e se não soubeste respeitar nem a tua
pessoa nem o nome de teus paes, justo é que pagues o erro indo correr a
sorte da guerra. A vida não é uma egloga virgiliana, é uma
convenção natural, que se não acceita com restricções, nem se
infringe sem penalidade. Ha duas naturezas, e a natureza social é tão
legitima e tão imperiosa como a outra. Não se contrariam,
completam-se; são as duas metades do homem, e tu ias ceder á primeira,
desrespeitando as leis necessarias da segunda.

--Quem tem razão és tu, dizia-lhe outra voz contrária, porque essa
mulher vale mais que seu destino, e a lei do coração é anterior e
superior ás outras leis. Não ias descer; ias fazel-a subir; ias
emendar o equivoco da fortuna; escuta a voz de Deus e deixa aos homens o
que vem dos homens.

Jorge caminhava assim, levado de sensações contrarias, até que ouviu
bater meia-noite e caminhou para casa, cançado e oppresso. Valeria
esperava-o sem haver dormido. Essa dedicação silenciosa, occulta,
vulgar nas mães, natural naquella vespera de uma separação acerba e
longa, foi como um balsamo ao coração dolorido do rapaz. Foi tambem um
remorso. Pungiu-lhe a consciencia ao ver que esperdiçara algumas horas
longe da creatura, a quem verdadeiramente ia deixar saudades, unica
pessoa que pediria a Deus por elle. Valeria adivinhara onde estaria o
filho, e tremia de medo á proporção que as horas passavam, receiosa
de que, amando-o Estella, um e outro houvessem subtrahido a sua ventura
ao jugo das leis sociaes, indo refugiar-se em algum ignorado recanto.
Pensou isso, e fraqueou, e arrependeu-se, duvidando de si e da rectidão
de seus actos. Não duvidava da natureza do mal; mas não excedia a elle
o remedio escolhido? Suppondo que esse pensamento era a sua primeira
punição, reagiu fortemente, colligindo as energias abatidas e
dispersas e voltou a ser a mulher que era, com todas as suas fortes
qualidades naturaes ou contrahidas. De mais, a que viria o
arrependimento, se era tarde?

O filho entrou com as feições recompostas, mas tristes. Valeria
recebeu-o sem nenhuma expressão de censura ou magua. Nada lhe disse;
elle pouco falou e despediram-se sem expansão, aquella ultima noite que
ia o moço dormir sob o tecto de seus paes.

A noite foi para elle afflicta e melancholica. Quasi inteira gastou-a em
inventariar a vida que ia acabar, em dar busca aos papeis, queimar as
cartas dos amigos, repartir algumas prendas, e finalmente em escrever
disposições testamentarias e cartas a pessoas intimas. Perto das
quatro horas deitou-se; ás sete estava de pé. Valeria havia-se-lhe
antecipado. Algumas pessoas foram despedir-se delle e acompanhar a mãe
no solemne momento da despedida. Entre essas figurava o pae de Estella,
cuja tristeza, que era sincera, trazia uma mascara ainda mais triste.

Veiu emfim o momento da despedida. Valeria dominara-se até onde pode;
mas o ultimo instante concentrava tantas dores, que era impossivel
resistir-lhe. A organização moral da viuva era forte, mas a
resistencia fora prolongada, e a vontade gastou-se nesse esforço de
todos os dias. Quando soou o instante definitivo da separação
rebentaram dos olhos as lagrimas, não tumultuosas, cortadas de vozes e
gemidos, mas dessas outras que retalham silenciosamente as faces, resto
de uma dignidade que cede a custo á lei da natureza. Ella estendeu os
braços, ainda formosos, sobre os hombros do filho; nessa postura
contemplou-o algum tempo; depois beijou-o e apertou-o estreitamente ao
coração.

--Vae, meu filho, disse com voz firme. Eu fico rogando a Deus por ti;
Deus é bom e te restituirá a meus braços. Serve a tua patria, e
lembra-te de tua mãe!

Foram as ultimas palavras. Jorge não as ouviu; tinha o espirito
prostrado e surdo. Chorou tambem, menos silenciosamente que Valeria, mas
as mesmas lagrimas afflictas.

--Adeus, querida mamãe! disse elle arracando-se emfim de seus braços.

Saiu; Valeria não o viu sair; dera costas a todos e foi lastimar na
alcova seu voluntario infortunio.

Pouco tempo depois, perdendo de vista a cidade natal, sentiu Jorge que
dobrara a primeira lauda de seu destino, e ia encetar outra, escripta
com sangue. O espectaculo do mar abateu-o ainda mais: alargava-se-lhe a
solidão até o infinito. Os poucos dias da viagem desfiou-os nessa
atonia moral que succede ás catastrophes. Emfim, aportou a
Montevidéu,--seguindo dalli ao Paraguay.

A segunda viagem, as gentes extranhas, as novas cousas, o movimento do
theatro da guerra, produziram nelle saudavel transformação. O espirito
elastico e mobil sacudiu as sombras de pezar que o ennoiteciam, e, uma
vez voltado o rosto para o lado do perigo, começou de enxergar, não a
morte obscura ou ainda gloriosa, mas o triumpho e o laureado regresso.
Bebido o primeiro hausto da campanha, Jorge sentiu-se homem. A hora das
frivolidades acabara; a que começava era a do sacrificio austero e
diuturno. Ia encarar trabalhos não sabidos, expôr-se a perigos
inopinaveis; mas ia resoluto e firme, com a fronte serena e clara e o
lume da confiança acceso no coração.



V


As primeiras cartas de Jorge foram todas á mãe. Eram longas e
derramadas, enthusiasticas, descuidosas e até pueris. Descontada a
escassa porção de realidade que podia haver nellas, ficava um calculo,
que o coração de Valeria comprehendeu; era adoçar-lhe a ausencia e
dissipar-lhe as apprehensões.

Cedo se familiarisou Jorge com a vida militar. O exercito, acampado em
Tuyuty, não iniciava operações novas; tratava-se de reunir os
elementos necessarios para proseguir a campanha de modo seguro e
decisivo. Não havendo nenhuma acção grande, em que pudesse provar as
forças e amestrar-se, Jorge buscava as occasiões de algum perigo, as
commissões arriscadas, cujo exito dependesse de espirito atrevido,
sagacidade e paciencia. Esse desejo captou-lhe a sympathia dos chefes
immediatos.

O coronel que o commandava attentou nelle; sentiu-lhe a alma juvenil
atravez do olhar brando e repousado. Ao mesmo tempo observou que, no
meio dos gozos faceis e multiplos do acampamento, convertido pela
inacção em povoado de recreio, Jorge conservava um retrahimento
monachal, um casto horror de tudo o que pudesse divertil-o de curar das
armas, ou sómente de pensar nellas. O coronel era homem de seu officio;
amava a guerra pela guerra; morreu talvez de nostalgia no regaço da
paz. Era bravo e rispido. O que lhe destoou a principio na pessoa de
Jorge, foi o alinho e um resto de seus ademanes de sala. Jorge,
entretanto, sem perder desde logo o geito da vida civil, foi creando com
o tempo a crosta de campanha. O desejo de trabalhar, de arriscar-se, de
temperar a alma ao fogo do perigo, trocou os sentimentos do coronel, que
entreviu nelle um bom companheiro de armas, e ao fim de pouco tempo
procurou distinguil-o.

Posto que Jorge falasse do coronel nas cartas que escrevia á mãe, não
o dava como amigo seu, nem tinha amigos no acampamento, ou se os tinha
não os considerava taes. Ouvia confidencias de muitos, animava as
esperanças de uns, consolava as penas de outros, nunca abria porém a
porta do coração á curiosidade transeunte. Devia ser entretanto
interessante uma pagina sómente da vida daquelle militar, joven,
bonito, abastado, que não ia ao theatro nem aos saraus do acampamento,
que ria poucas vezes e mal, que só falava da guerra, quando falava de
alguma cousa.

Um dia, um major do Ceará foi achal-o sentado em um resto de carreta
inutil, lançado em sitio escuso, ora a olhar para o horizonte, ora a
traçar com a ponta da espada uma _estrella_ no chão.

--Capitão, disse o major, parece que você está vendo estrellas ao
meio dia?

Jorge sorriu do gracejo, mas não deixou de continuar, nos demais dias,
a traçar estrellas no chão ou a procural-as nas campinas do ceu. Os
officiaes, arrastados pela sympathia, não lhe ficavam presos pela
convivencia; Jorge era, não só taciturno, mas desegual, ora docil, ora
rispido, muitas vezes distrahido e absorto. Era distrahido, sobretudo,
quando recebia cartas do Rio de Janeiro, entre as quaes rara vez
acontecia que não viesse alguma do Sr. Antunes. O pae de Estella regava
com a agua salobra de seu estylo a esperança que não perdera. As suas
cartas eram epithalamios disfarçados. Falava muito de si, e muito mais
da filha, cuja alma, dizia elle, andava singularmente triste e
acabrunhada. Jorge resistia ao desejo de falar tambem de Estella; mais
de uma vez o nome da moça lhe caía dos bicos da penna; elle o riscava
logo, assim como riscava qualquer phrase que pudesse parecer allusiva
aos seus sentimentos; as que escrevia ao pae da moça eram seccas, sem
especial interesse, polidas e frias.

Um dia, porém, antes de meado o anno de 1867, não pode resistir á
necessidade de segredar o amor a alguem ou proclamal-o aos quatro ventos
do ceu. Ninguem havia ao pé delle que merecesse a confidencia; Jorge
alargou os olhos e lembrou-se de Luiz Garcia, unica pessoa extranha a
quem confiara metade do segredo que havia levado para a guerra. Os
corações discretos são raros; a maioria não é de gaviões brancos
que, ainda feridos, voam calados, como diz a trova; a maioria é das
pêgas, que contam tudo ou quasi tudo.

Já nesse tempo o coração de Jorge padecera grande transformação. O
amor, sem minguar de intensidade, mudara de natureza, convertendo-se em
uma especie de adoração mystica, sentimento profundo e forte, que
parecia respirar atmosphera mais alta que a do resto da creação. Elle
mesmo o disse na carta a Luiz Garcia, sem lhe denunciar o nome da
pessoa, nem nenhuma circumstancia que podesse pol-o na pista da
realidade; exigiu-lhe absoluto silencio e contou-lhe o que sentia:

«Não importa saber quem é, disse elle;--o essencial é saber que amo
a mais nobre creatura do mundo, e o triste é que não sómente não sou
amado, mas até estou certo de que sou aborrecido.

«Minha mãe illudiu-se quando suppoz que meu amor achara echo em outro
coração. Talvez desistisse de me mandar ao Paraguay, se soubesse que
esta paixão solitaria era o meu proprio castigo. Era; já o não é. A
paixão veiu commigo, apezar do que lhe ouvi na vespera de embarcar; e
se não cresceu, é por que não podia crescer. Mas transformou-se. De
creança tonta, que era, fez-se homem de juizo. Uma crise, algumas
legoas de permeio, poucos mezes de intervallo, foram bastantes a operar
o milagre.

«Não sei se a verei mais, porque uma bala pode pôr termo a meus dias,
quando eu menos o esperar. Se a vir, ignoro os sentimentos com que ella
me receberá. Mas de um ou de outro modo, este amor morrerá commigo, e o
seu nome será a ultima palavra que ha de sair de meus labios.

«Meu amor não sabe já o que seja impaciencia ou ciume ou
exclusivismo: é uma fé religiosa, que pode viver inteira em muitos
corações. Talvez o senhor me não comprehenda. Os homens graves ficam
surdos a estas subtilezas do coração. Os frivolos não as entendem. Eu
mesmo não sei explicar o que sinto, mas sinto alguma cousa nova, uma
saudade sem esperança, mas tambem sem desespero: é o que me basta.»

Jorge releu o escripto, e ora o achava claro de mais, ora obscuro.
Hesitou ainda algum tempo; emfim, dobrou a carta, fechou-a e remetteu-a
para o Rio de Janeiro.

Quando a resposta lhe chegou ás mãos, preparava-se o exercito para
deixar Tuyuty. Jorge estava todo entregue aos cuidados da guerra, a
sonhar batalhas, a acutilar mentalmente os soldados de Lopez. A resposta
de Luiz Garcia dizia pouco ou nada do objecto da carta de Jorge;
compunha-se quasi toda de conselhos e reflexões, dadas em linguagem
sobria e medida, reflexões e conselhos relativos quasi exclusivamente
aos deveres de homem e de soldado.

Jorge esperava aquillo mesmo; conhecia, ainda que pouco, o genio sêcco
e gelido de Luiz Garcia. Comtudo, ficou momentaneamente desapontado e
triste. Seria certo que nenhum coração sympathisava com seus secretos
infortunios ou suas venturas solitarias? Ao cabo de largos mezes de
separação, nem Estella pensaria nelle, nem elle achava pessoa com quem
partisse o pão das saudades, ultimo alimento de um amor sem conjuge. A
consciencia da solidão moral abateu-o um instante; esvaiu-se-lhe toda a
força accumulada durante aquelles mezes, e a alma caiu de bruços.

Poucos dias depois operou-se a marcha de Tuyuty a Tuyu-Cué, a que se
seguiu uma serie de acções e movimentos, em que houve muita pagina de
Plutarcho. Só então pode Jorge encarar o verdadeiro rosto á guerra, a
cujo principio não assistira; figurou em mais de uma jornada heroica,
correu perigos, mostrou-se valoroso e paciente. O coronel adorava-o;
sentia-se tomado de admiração deante daquelle mancebo, que combatia
durante a batalha e calava depois da victoria, que communicava o ardor
aos soldados, não recuava de nenhuma empreza, ainda a mais arriscada, e
a quem uma estrella parecia proteger com suas azas de luz.

Notou elle uma vez, em um dos combates mortiferos de Dezembro de 1868,
anno e meio depois da carta de Luiz Garcia, que a temeridade do mancebo
parecia ir além dos limites do costume, e que em vez de um homem que
combatia, era elle um homem que queria morrer. A fortuna salvou-o. Findo
o combate, recolhidos os feridos, repousados os corpos, o coronel foi
ter com elle na barraca, e achou-o tristemente quieto, com os olhos
inchados e parados. O coronel não reparou nisso; entrou a felicital-o
pelo comportamento que tivera, ainda que um pouco excessivo. Jorge
tinha-se respeitosamente erguido e olhava para o coronel sem dizer
palavra. Este encarou-o e viu-lhe signaes de abatimento.

--Que diabo tem você, capitão?

--Nada, respondeu o moço.

--Recebeu hontem cartas do Rio de Janeiro?

--Uma: de minha mãe.

--Está boa?

--De perfeita saude.

--Nesse caso...

O coronel parou e reflectiu; depois continuou:

--Já sei o que é.

--O que é! exclamou Jorge procurando sorrir.

--Ha-de fazer-se, continuou o coronel; a cousa está a caminho, ha-de
fazer-se, não lhe digo mais nada.

E bateu-lhe no hombro, com um gesto que tanto podia dizer: «socegue,
capitão», como: «parabens, senhor major.» Jorge entendeu esse
trocadilho gesticular, e apertou as mãos do coronel, agradecendo-lhe,
não o posto que lhe annunciava, mas a affeição que lhe tinha. O
coronel encarou-o paternalmente alguns minutos.

--Subir! Não sonham com outra cousa, rosnava elle comsigo.

E saiu.

Jorge ficou só, accendeu um cigarro, que não pode fumar até o fim.
Depois sentou-se desabotoou a farda, tirou uma carta, abriu-a e releu
algumas linhas do fim. A carta era de Luiz Garcia. Dava-lhe noticias de
sua mãe, que, por motivos de doença, fora tomar aguas a Minas, e
rematava com estas palavras assombrosas:

«... Resta-me dizer-lhe, se em alguma cousa lhe pode interessar minha
vida, que sabbado passado contrahí segundas nupcias. Minha mulher é a
filha do Sr. Antunes. Sua mãe serviu-nos de madrinha.»

Com os olhos fitos nessas poucas linhas, Jorge parecia alheio a tudo
mais. O papel, recebido na vespera, estava amarrotado, como se lhe
passara pelas mãos durante um anno. Olhava, relia e não podia
entender; quando chegava a entender, não podia acreditar. O casamento
de Estella era a seu ver um absurdo; mas após os intervallos de duvida,
a realidade apossava-se delle. A razão mostrava-lhe que semelhante
noticia devia ser certa. No fim de dous dias, tinha elle comprehendido
alguma cousa do silencio de sua mãe: o motivo era, sem duvida, o mesmo
que a impellira a mandal-o ao Paraguay. Nunca lhe falara de Estella, nem
do casamento de Luiz Garcia, silencio calculado para de todo extinguir
em seu coração os derradeiros murmurios de um amor sem echo.

Jorge sentiu então um phenomeno proprio de taes crises--um movimento de
odio a todo o genero humano, desde sua mãe até o seu inimigo.
Tornou-se descortez, violento, deliberadamente mau: effeito transitorio,
ao qual succedeu um abatimento profundo. Ferido dahi a dias em Lomas
Valentinas, retirou-se por alguns mezes do exercito, cujas operações
só continuaram depois de meado o anno seguinte. Jorge teve parte nas
jornadas de Pirebebuy e Campo Grande, não já na qualidade de capitão,
mas na de major, cuja patente lhe foi concedida depois de Lomas
Valentinas. No fim do anno estava tenente-coronel, commandava um
batalhão, e recebia os abraços de seu antigo commandante, contente de
o ver sagrado heroe.

Um acontecimento inesperado e desastroso veiu ainda golpeal-o
cruelmente, logo depois de Março de 1870, quando, acabada a guerra,
estava elle em Assumpção. Valeria fallecera. Luiz Garcia lhe deu essa
triste noticia, que elle antes adivinhou do que leu, porque as ultimas
cartas já lhe faziam presentir o lugubre desenlace. Jorge adorava a
mãe.

Se só a contra-gosto viera para a guerra, não é menos certo que esta
o cobrira de louros, e que elle os quizera depositar no regaço de
Valeria. O destino decidiu por outro modo, como se quizesse contrastar
cada um de seus favores fazendo-lhe sangrar o coração.

No fim de Outubro volveu ao Rio de Janeiro, Tinham passado quatro annos
justos. Penetrando a barra e descortinando a cidade natal, Jorge
comparava os tempos, as angustias e as esperanças da partida com a
gloria e o abatimento do regresso. Não se sentia feliz nem infeliz, mas
nesse estado medio, que é a condição vulgar da vida humana.
Comparava-se ao mar daquella manhã, nem borrascoso nem quieto, mas
levemente empolado e crespo, tão prestes a adormecer de todo, como a
crescer e arremeçar-se á praia. Que aragem somnolenta ou que tufão
destruidor, viria roçar por elle a aza invisivel? Jorge não o
prescrutou. Trazia os olhos no passado e no presente; deixou ao tempo os
casos do futuro.



VI


Antes de irmos direito ao centro da acção, vejamos por que evolução
do destino se operou o casamento de Estella.

Poucos poderiam suppôr, nos fins de 1866, que a campanha se protrahiria
ainda cêrca de quatro annos. O calculo do general Mitre, relativo aos
tres mezes de Buenos-Ayres a Assumpção, tinha já cahido, é certo, no
abysmo das illusões historicas. Proclamações são loterias; a fortuna
as faz sublimes ou vans. A do general argentino, que era já uma
affirmação errada, exprimiu comtudo, no seu tempo, a convicção dos
tres povos. Do primeiro embate com o inimigo, viu-se que a campanha
seria rija e longa; a illusão desfez-se; ficou a realidade, que nem por
isso encarámos com rosto afflicto. Não obstante, era difficil presumir,
em Outubro de 1866, que a guerra chegasse até Março de 1870.
Suppunha-se que um esforço ingente bastaria a reparar Curupaity, a
derrubar Humaitá, a vencer o dictador, não nos tres mezes do general
Mitre, mas em muito menos tempo do que viria a ser na realidade.

Isto posto, não admira que Valeria receiasse cada instante a
terminação da guerra e a prompta volta do filho. Se tal cousa
acontecesse, ella teria dado um golpe inutil, e o fogo podia renascer
das cinzas mal apagadas. Valeria preferia as soluções radicaes. Uma
vez arredado o filho, viu a necessidade de anniquillar as ultimas
esperanças, e o mais seguro meio era casar Estella. Assim procedendo,
satisfaria tambem a affeição que tinha á moça, affeição que nunca
lhe diminuíra. Sabia que entre Estella e o pae havia contrastes moraes
de difficil conciliação. Cada um delles falava lingua differente, não
podiam entender-se nunca, sobretudo (dizia ella comsigo), na escolha de
um consorte.

Dous mezes depois do embarque de Jorge, Valeria mandou chamar o Sr.
Antunes a Santa Thereza, onde tinha uma casa de verão. O recado foi
escripto, circumstancia que lhe deu certa solemnidade. Nunca até então
a viuva lhe escrevera. O Sr. Antunes leu e releu o bilhete, mostrou-o
duas ou tres vezes á filha, esteve tentado de mostral-o ao vizinho
fronteiro. Em quanto se vestia, pol-o sobre a mesa, lançando-lhe a
furto os olhos, pesando-lhe de cór as expressões cortezes,
espremendo-as, dissecando-as. Vestido, guardou-o cuidadosamente na
algibeira. Na rua, separou-se de um importuno dizendo emphaticamente
aonde ia. Quanto ao motivo do recado, não atinava qual fosse, nem teve
muito tempo para isso. Cogitou, entretanto, e suppoz que se tratava de
algum obsequio que ella lhe ia encommendar.

Era obsequio, e não lh'o pedia a viuva; prestava-o, e não se demorou
muito em dizel-o. Ao cabo de dez palavras, pediu-lhe licença para dotar
Estella.

--Não quizera fazel-o, sem o seu consentimento, concluiu ella; por isso
o mandei chamar.

Do mais infimo a que um homem haja baixado, a natureza pode fazel-o
grave, ainda que por um só minuto. Esse minuto teve-o o pae de Estella.
Immovel e sem fala a principio; depois, ainda sem fala, mas não já
immovel, o Sr. Antunes revellou em seu rosto, aliás vulgar, uma
commoção digna. A dignidade, porém, expirou com o silencio. Quando
elle abriu a boca para agradecer a prova de affeição que a viuva lhe
dava á filha, a alma readquiriu o tregeito habitual. Valeria cortou-lhe
o discurso com uma arte tão superior, que o pae de Estella antes sentiu
do que comprehendeu. A viuva tinha a verdadeira generosidade, que
consiste menos em prestar o obsequio do que em dissimulal-o; disse-lhe
que, dotando Estella, cumpria um desejo do desembargador, e sem esperar
pelo necrologio que o Sr. Antunes provavelmente ia recitar, fez um longo
e affectuoso inventario das qualidades da moça.

--É muito boa filha, concluiu a viuva; tem qualidades dignas de todo o
apreço, e, além do mais, sou amiga della.

--Isso, minha senhora, é a maior fortuna que lhe podia caber. Quanto a
ser boa filha não é por vaidade que o digo, mas creio que a senhora
tem razão. Saiu á mãe, que era uma santa alma.

--Estella não o é menos. É bonita! Emfim pode vir amar alguem, não
lhe parece?

--Pode, pode, assentiu o Sr. Antunes. Que eu, verdadeiramente, não sei
se ella já não amará. É tão calada! Ultimamente parece andar
triste...

--Triste?

--Distrahida... assim, como pessoa que não tem o pensamento socegado.
Não sei se aquillo é paixão, ou doença. Doença não creio que seja,
por que ella é forte e tem boa apparencia. Coitadinha! Mas sempre
alegre... isto é, alegre não... quero dizer, não anda sempre
triste... ou por outra...

Valeria sorriu mentalmente daquella confusão que o Sr. Antunes fazia, e
que attribuiu ao alvoroço que naturalmente a noticia do dote lhe
causára; interrompeu-o dizendo que fosse lá com a filha.

Estella ouviu dahi a meia hora a noticia da generosidade da viuva, que o
pae se apressou a ir dar-lhe, e, contra a expectação deste, ouviu-a
calada e severa. Não achando a explosão de alegria que esperava, o Sr.
Antunes abanou desanimado a cabeça.

--Não te entendo, filha! replicou elle. Has de dizer o que é que
queres ser neste mundo. Não és rica, nem menos que rica; não tens a
menor esperança no futuro. Eu não te posso deixar nada, por que nada
tenho. Ha uma senhora, que te estima, que te faz um beneficio, e tu
recebes isto como se fosse uma injuria.

A observação do pae chamou a filha á realidade da situação.

--Papae sabe que não sou de muito riso, disse ella; pode ficar certo de
que me alegrou muito a noticia que me deu.

Não alegrou nada. Nunca lhe pesara tanto a fatalidade da posição.
Depois do episodio da Tijuca, parecia-lhe aquelle favor uma especie de
perdas e damnos que a mãe de Jorge liberalmente lhe pagava, uma agua
virtuosa que lhe lavaria os labios dos beijos que ella forcejava por
extinguir, como lady Macbeth a sua mancha de sangue _Out, damnet spot_!
Este era o seu conceito; esta era tambem a sua magua. A altivez com que
procedera desde aquella manhã de algum modo lhe levantara o orgulho,
que o acto inconsiderado de Jorge havia por um instante humilhado. Mas a
acção da viuva, por mais espontanea que fosse, tinha aos olhos da
moça a consequencia de fazer decorrer o beneficio da mesma origem da
affronta. Estella não distinguia entre os bens da mãe e do filho. Era
tudo a mesma bolsa; e dalli é que lhe vinha o dote.

Com essa ideia oppressiva entrou ella em casa da viuva, cuja recepção
lhe desabafou o espirito do mais espesso de suas preoccupações.
Valeria beijou-a, com um gesto mais maternal que protector. Nem lhe
deixou concluir a phrase de agradecimento; cortou-a com uma caricia;
depois falou-lhe da belleza, das occupações, de cem cousas alheias ao
objecto que as reunia, dissimulação generosa, que Estella
comprehendeu, porque tambem possuia o segredo dessas delicadezas moraes.

Quinze ou vinte dias depois, Valeria interrogou directamente Estella, e
a resposta que obteve foi contraria a suas esperanças.

--Não amo ninguem, disse a moça; e provavelmente não amarei nunca.

--Porque? replicou vivamente a viuva.

Estella sorriu.

--Podia dizer-lhe, respondeu ella, que não tenho coração...

--Seria mentir. Mas vás talvez dizer que um bom marido não é cousa
facil de achar.

--Isso.

--Tens razão até certo ponto. De todas as aves raras a mais rara é um
bom marido; mas o que é raro não é impossivel. Metteu-se-me em
cabeça que heide descobrir uma joia. Se eu a encontrar, que farás-tu?

--Acceito, disse a moça depois de um instante.

--Assim, não; não quero que a acceites sem vontade; has-de acceital-a
com amor... porque eu não creio que não tenhas coração; é faceirice
de moça bonita. Deixa ver,--continuou a viuva collocando-lhe a mão no
peito;--tens, oh! tens um coração que parece querer despedaçar-te o
peito. Estella, tu estás doente!

--Que ideia! exclamou a moça rindo. Se eu vendo saude! Não estou
doente, estou commovida. Tratemos do noivo. Não me peça que o ame
apaixonadamente, porque eu não nasci para isso. Minha natureza é fria.
Mas um pouco de estima, certo interesse...

--Justo: a semente do amor. O tempo se encarregará de fazer a arvore.

Durante tres mezes não falaram do assumpto. No fim desse tempo,--tendo
Valeria descido de Santa Thereza, Estella foi passar algumas semanas na
rua dos Invalidos.--Ainda nada? perguntou a viuva logo que a viu.--Cousa
nenhuma, foi a resposta. Dada a situação de uma e outra, não era
facil a Valeria encontrar-lhe o noivo desejado a menos de o designar a
propria noiva, e essa era a mais improvavel de todas as hypotheses.

Entretanto, a convivencia fez renascer entre ambas alguns dos habitos
antigos. Valeria tornou a sentir a necessidade de a ter comsigo, de a
conversar, de depositar nella suas ideias e enxaquecas. Estella
offerecia todas as vantagens de uma velha amiga, com a circumstancia de
ser moça, e ainda mais, a de ser bonita, qualidade sympathica á viuva,
que fora uma das bellas mulheres de seu tempo. Nada lhes impedia
restaurar inteiramente a situação anterior, a não ser a memoria do
passado recente. Era isso que ainda estabelecia entre ambas tal ou qual
cautella, tal ou qual separação, que o Sr. Antunes chegava a suspeitar
ás vezes, sem poder comprehender nunca. Não falavam de Jorge, nem da
guerra, nem de cousa que podesse reviver a lembrança do passado.

Começado o verão de 1867, Valeria transportou-se a Santa Thereza, onde
Estella foi algumas vezes. N'uma dessas vezes encontrou alli a filha de
Luiz Garcia, que caminhava para os treze annos, e concluia os estudos de
collegio. Houve um instante de hesitação entre as duas; Yayá, que era
ainda a mesma creatura travessa e lepida, sentiu-se acanhada deante da
gravidade de Estella, mas esse instante foi curto e a affeição
immediata. Acabado o verão, a viuva resolveu não descer á rua dos
Invalidos; e, com o pretexto ou o motivo de que em Santa Thereza ficava
mais só, alcançou que Estella fosse lá estar algum tempo. Estella
subiu em Março.

Já então Yayá entrara na intimidade da casa, menos ainda pelo que
podia haver, e--havia,--sympathico e attrahente em sua pessoa, do que
pelo esforço proprio. A sagacidade da menina era a sua qualidade
mestra: assim viu depressa o que era menos agradavel, para evital-o, e o
que o era mais, para cumpril-o. Essa qualidade ensinava-lhe a syntaxe da
vida, quando outras ainda não passam do abecedario, onde morrem muita
vez. Obtida a chave do caracter de Valeria, Yayá abriu a porta sem
grande esforço.

Ia lá quasi todos os domingos, ás tardes, e algumas vezes de manhã,
com tal ou qual repugnancia do pae, para quem os domingos eram os dias
de ouro, e só o eram com a condição de exclusivismo. Luiz Garcia
cedeu, não por causa da viuva, mas para satisfazer a filha, que parecia
ter prazer em frequentar a casa.--É ainda creança pensou elle; convem
dar-lhe festas. Quando Yayá jantava em casa de Valeria, Luiz Garcia, ou
tambem jantava, ou ia buscal-a á noite, e trazia-a depois de uma hora
de conversa. A presença de Estella tornou ainda mais apraziveis á
mocinha aquellas visitas, e dentro de pouco tempo, era a affeição de
Estella que mais lhe occupava o coração.

A lei dos contrastes tinha ligado essas duas creaturas, porque tão
petulante e juvenil era a filha de Luiz Garcia, como reflectida e
placida a filha do Sr. Antunes. Uma ia para o futuro, em quanto a outra
vinha já do Passado; e se Estella tinha necessidade de temperar a sua
atmosphera moral com um raio da adolescência da outra, Yayá sentia
instinctivamente que havia em Estella alguma cousa que sarar ou consolar.

Um dia, Yayá foi encontrar Estella ao pé de uma mesa, com um album de
retratos aberto deante de si. A moça estava tão embebida, que só deu
pela presença de Yayá, quando esta parou do outro lado da mesa, e
inclinou os olhos para o album. Estella teve um pequeno sobresalto, mas
dominou-se logo.

--Seu pae tem uma physionomia de bom coração, disse ella.

--Não é verdade? retorquiu a menina com enthusiasmo.

Effectivamente, uma das paginas do album continha o retrato de Luiz
Garcia; mas na outra pagina estava o retrato de Jorge, um dos tres ou
quatro que a viuva possuia na collecção. Yayá, que adorava o pae,
achou que a observação de Estella era a mais natural do mundo, e não
olhou sequer para a outra photographia. Estella fechou depressa o album
com a mão tremula, e mal pode sorrir á insistencia com que Yayá
voltou áquelle assumpto. Tinha o seio offegante e o olhar vago, remoto,
esvaido nas campanhas do sul. O coração batia-lhe violentamente. Mas
essa commoção não durou mais de tres a quatro minutos.

--A senhora podia casar-se com papae, disse a menina depois de olhar
algum tempo para a outra.

Estella teve novo sobresalto, mas dessa vez era só espanto. Como Yayá
a abraçasse pela cintura, ella inclinou o rosto sobre o rosto da
menina, e perguntou sorrindo:

--Tinhas muita vontade de ser minha enteada?

--Tinha.

Estella abanou a cabeça, com um gesto, não de negativa, mas de
incredulidade. Já conhecia alguma cousa do caracter de Luiz Garcia;
rigorosamente era um esposo acceitavel. Via nelle um homem de
affeições placidas, mediocres, mas sinceras. Via-o respeitoso sem
abatimento, polido sem affectação, falando pouco, mas com alguma
ideia, em todo o caso com muita opportunidade, vivendo emfim para si e
para a filha. De tudo o que observara concluia que a sobriedade era a
lei moral desse homem, e que á taça da vida não pedia mais do que
alguns goles, poucos. Que importa? A vida conjugal é tão sómente uma
chronica; basta-lhe fidelidade e algum estylo. Com quanto houvesse
algumas semelhanças entre ambos, havia tambem differenças, mas Estella
podia fiar do tempo, que ajusta os contrastes. E, não obstante, se o
marido era acceitavel, não lhe parecia que fosse possivel. A gravidade
exterior como que o rodeava de uma atmosphera impenetravel.

Yayá não insistiu; mas dous ou tres domingos depois, estando todos na
chacara, interrompeu a conversa geral para perguntar a Estella se
deveras lhe tinha affeição.

--Ja disse que sim, acudiu Estella.

--Mas gosta muito de mim?

--Muito, repetiu Estella prolongando a primeira syllaba.

--Porque não vem morar commigo?

Riram-se os outros; Estella beijou-a na testa. Ficando sós, a viuva e
Estella jogaram uma partida de cartas, mas jogaram sem attenção;
depois tomaram chá, mas sem appetite; finalmente dormiram, mas sem
somno. Talvez a mesma ideia as preoccupava. No dia seguinte, Estella
perguntou sorrindo á viuva:

--Se eu lhe disser que já achei um projecto de marido?

--Quem?

--O Luiz Garcia.

Valeria apertou-lhe as mãos.

--Excellente homem, disse ella; marido digno e capaz. Conheço-o ha
muitos annos; nunca desmereceu da nossa estima. E... amam-se?

--Isso agora é mais complicado, replicou Estella; não posso dizer que
o amo; com tudo, desejaria ser sua mulher. Talvez elle não deseje ser
meu marido, mas é por isso mesmo que a consulto e lhe peço que me
diga, uma vez que approva a escolha, se posso esperar reciprocidade e se
devo...

--Não deves fazer nada; imcumbo-me de tudo.

Valeria não occultou o contentamento. Não lhe tinha occorido nunca a
ideia de os casar; Yayá fel-a nascer, Estella abriu-a em flôr; só
faltava o fructo, e era justamente a parte difficil, porque a indole de
Luiz Garcia affigurava-se-lhe inteiramente avessa ao desejo de contrahir
segundas nupcias. Mas Valeria não desanimou. Não se pode dizer que
elle seja o ideial de todas as noivas, pensava ella; não tem a
expansão nem o verdor da primeira edade; mas deve ser um excellente
marido. Luiz Garcia tinha agora melhor posição. Obtivera uma
promoção de emprego, e mediante isso, e alguns trabalhos
extraordinarios que lhe eram confiados, pode ficar inteiramente acoberto
das intempéries da vida. Estabelecera o futuro da filha e restaurara as
alfaias da casa, não por si, mas com a intenção de ser mais agradavel
a Yayá.

Estella, entretanto, impunha uma condição.

--Não desejo parecer que me offereço, disse ella; seria desairoso para
um e para outro, e não seria a realidade.

--Que te offereces, não; mas quem me pode impedir de ter adivinhado que
o amas? disse a viuva maliciosamente.

--Ou que o aprecio, emendou Estella. Para um bom casamento não é
preciso mais.

Luiz Garcia não ficou pouco admirado quando Valeria dahi a dias lhe
perguntou se não tinha vontade de passar a segundas nupcias. Sorriu e
ergueu os hombros; mas, insistindo a viuva, respondeu que a ideia de
casar era já serodea para elle.

--Não diga isso, tornou Valeria. Yayá está quasi moça, vai deixar o
collegio. O senhor vive só, e tendo de dar companhia a sua filha, é
melhor que lhe dê uma madrasta.

Luiz Garcia abanou resolutamente a cabeça.

--Não tenho vocação para o casamento, disse elle depois de uma pausa;
minha verdadeira vocação é o celibato.

--Foi por isso que enviuvou?

--Casei-me uma vez, é verdade, mas não foi por amor; além de que, era
rapaz.

--Quando teimo em alguma cousa, é difficil que não vença, disse a
viuva depois de alguns instantes. Ha duas pessoas de quem gosto muito,
ella e o senhor, ambas dignas uma da outra; e eu entendi que as devia
casar, e hei-de casal-as. Por que está a sorrir com esse ar incredulo?

Como Luiz Garcia não respondesse e continuasse a sorrir, Valeria
ergueu-se e foi até a varanda, donde se olhava para a chacara; depois
voltou-se para dentro:

--Ande ver sua noiva, disse ella.

Luiz Garcia foi até á varanda; a viuva apontou-lhe para o grupo de
Estella e Yayá.

Na chacara havia um canteiro circular, plantado de gramma, no centro do
qual jorrava a agua de um repucho. A bacia deste era orlada de plantas,
cujas folhas largas, rajadas umas de escarlate, outras de branco,
interrompiam a monotonia da relva. Dessas folhas colhera Estella
algumas, entretecera os talos formando uma capella, a pedido de Yayá.
Quando Luiz Garcia chegou á janella, a moça concluia o difficil
trabalho. Uma vez prompto, Yayá que olhava para ella, infantilmente
anciosa, inclinou a cabeça, e Estella cingiu-a com a grinalda rustica;
depois recuou alguns passos, approximou-se outra vez, concertou-a
melhor. As folhas caiam-lhe sobre os hombros irregularmente, ou
erguiam-se sobre a cabeça, e o todo daria ideia de uma nayade
casquilha. Estella mirou-a alguns instantes; inclinou-se para ella e
beijou-a repetidas vezes. Yayá quiz pagar-lhe o trabalho e a caricia
devolvendo-lhe a grinalda, e collocando-lh'a ella mesma na cabeça.
Estella recusou, mas como a menina insistisse, batendo impacientemente o
pé, cedeu ao desejo infantil. Inclinou-se; Yayá, que trepara a um
banco, cingiu-lhe a cabeça, como a outra lhe fizera, e, satisfeito o
seu capricho, saltou do banco ao chão.

Nesse momento, como Valeria falava a Luiz Garcia, não viram estes dous
que a menina, saltando precipitadamente e mal, caíra na areia; só
deram pelo desastre ouvindo um pequeno grito angustioso de Estella. A
moça correra á menina para a fazer levantar.

A quéda fora pequena; Yayá procurava sorrir, mas um seixo que havia no
chão, e sobre o qual caíra o rosto, fizera-lhe uma leve escoriação
na face.

--Não foi nada, dizia ella

--Nada! Você feriu-se... Ora, isto! Papae que ha de dizer... Anda cá.

Estella levou a menina pela mão até o repucho; molhou o lenço na
agua; lavou-lhe o sangue da face, inclinada sobre ella, que sorria
voluntariamente. Nesse momento, Luiz Garcia, que havia descido logo,
chegou ao grupo das duas.

--Não foi nada, papae, disse Yayá lendo no rosto do pae o motivo que o
trouxera; fui pular do banco e caí. Foi bem feito; é para eu não ser
travessa.

Luiz Garcia estendera a mão direita sobre a cabeça da filha e
examinava-lhe a escoriação, que era pouco mais de nada.
Tranquillisou-se e reprehendeu-a levemente, Estella, que interrompera a
operação, concluiu-a dizendo que o caso era de pouca monta, mas podia
ter sido mais grave. Luiz Garcia agradeceu-lhe o cuidado e o obsequio.

--Demais, a culpada fui eu, disse Estella, e sem desculpa, porque não
sou creança. Vamos? continuou ella pegando na mão da menina.

--Então? perguntou a viuva a Luiz Garcia logo que este voltou a ter com
ella.

--Não falemos nisso, ou faça-me um milagre, disse elle seccamente.

Não obstante a commoção que lhe ficou do procedimento affectuoso de
Estella, em relação a Yayá, Luiz Garcia riu no dia seguinte, ao
lembrar-lhe a proposta de casamento. Quando lá voltou, não ouviu falar
mais em semelhante assumpto, nem Estella lhe deu a entender a menor
pretenção. Pareceu-lhe que Valeria consultara apenas o seu desejo
particular.

Tratando a moça de perto, Luiz Garcia havia já observado duas cousas:
primeiro, o resguardo com que ella procedia, sem ostentar a intimidade
de Valeria, nem cair nos ademanes daservilidade; depois um ar de
tristeza, que era a sua feição habitual. Concluiu que Estella devia
padecer ou ter padecido alguma vez. Apreciou, além disso, algumas de
suas qualidades moraes. Suppôl-as verdadeiras, mas suppôl-as tambem
caducas, como as graças do rosto ou como a flor do campo; com a
differença, dizia elle,--que ha um prazo fatal para que as graças
percam o primitivo frescor, e a flôr expire o seu ultimo cheiro,--ao
passo que a natureza social tem a decrepitude precoce, e um principio de
corrupção, que destroe em breve termo todas as florescencias do
primeiro sol.

Estella não desistira da ideia e cogitava um meio de chegar á
execução, não obstante a confiança da viuva, que lhe
dizia:--Descança; a rede está lançada. Era justamente essa ideia de
rede, que repugnava ao espirito directo e simples de Estella.
Entretanto, cada dia que passava vinha confirmar a eleição da moça.

O resto foi obra de Yayá, obra dividida em duas partes, uma voluntaria,
outra inconsciente. Voluntaria, porque tambem a menina, no silencio
laborioso de seu cerebro, construira o projecto de os unir, e o dissera
mais de uma vez a um e a outro. Inconsciente, porque o amor que a ligava
a Estella, foi a mais poderosa força que modificou o pae. Era uma
affeição intensa a dessas duas creaturas; ao passo que Yayá dava a
Estella uma porção de ternura de filha, Estella achava no amor da
menina uma antecipação dos prazeres da maternidade. Luiz Garcia
testemunhou esse movimento reciproco e, por assim dizer, fatal. Se Yayá
devesse ter madrasta, onde a acharia mais completa? Discreta, moderada,
superior a seus annos, Estella tinha as condições necessarias para
esse delicado papel. A primeira insinuação da viuva foi a causa
primordial; mas o tempo, a convivencia, a affeição das duas, a
necessidade de dar segunda mãe á menina, e antes legitima que
mercenaria, finalmente, a certeza de que a Estella não repugnava a
solução, taes foram os primeiros elementos da decisão de Luiz Garcia.

Faltava só o milagre, e o milagre veiu. Yayá adoeceu um dia em casa de
Valeria, e a doença, posto que não grave nem longa, deu occasião a
que Estella manifestasse de modo inequivoco toda a ternura de seu
coração. Luiz Garcia foi testemunha da dedicação silenciosa e
continua com que Estella tratou da doente. Esse ultimo espectaculo
desarmou-o de todo. Entre elles, o casamento não era a mesma cousa que
costuma ser para outros; nada tinha das alegrias ineffaveis ou das
illusões juvenis. Era um acto simples e grave. E foi o que Estella lhe
disse a elle, no dia em que trocaram reciprocamente as primeiras
promessas.

--Creio que nenhuma paixão nos cega, e se nos casamos é por nos
julgarmos friamente dignos um do outro.

--Uma paixão de sua parte, em relação á minha pessoa, seria
inverosimil, confessou Luiz Garcia; não lh'a attribuo. Pelo que me
toca, era egualmente inverosimil um sentimento dessa natureza, não
porque a senhora o não podesse inspirar, mas porque eu já o não
poderia ter.

--Tanto melhor, concluiu Estella; estamos na mesma situação e vamos
começar uma viagem com os olhos abertos e o coração tranquillo.
Parece que em geral os casamentos começam pelo amor e acabam pela
estima; nós começamos pela estima; é muito mais seguro.

O casamento foi approvado pelo Sr. Antunes, com a mesma alma com que um
reu sanccionaria a propria execução. Não sómente se lhe iam embora
esperanças muito menos modestas, como lhe repugnava o caracter do
genro. Não cedeu sem hesitação e luta; hesitação perante a viuva,
luta em relação á filha; mas cedeu, porque elle nascera para não
resistir. Habil, no emtamto, em espremer algum lucro dos males
inevitaveis, uma vez perdida a confiança na efficacia da recusa,
acceitou o accordo, não sómente com apparencia cordial, mas ainda
enthusiasta.

--O dote faz-lhe foscas, gemia elle philosophicamente.

A viuva serviu de madrinha a Estella. Sua alegria era sincera, e tanto
ou quanto desinteressada. Quasi se não lembrava já do perigo que, dous
annos antes, lhe atordoara o espirito. As cartas de Jorge eram tão
livres de qualquer oppressão, tão exclusivamente militares! Além
disso, a consciencia ficava satisfeita de um desenlace que de certo
modo, compensava a perda, se alguma perda havia causado a Estella.
Finalmente, a satisfação com que a viu acceitar casamento, aliás
suggerido por ella propria, e a felicidade de que foi testemunha durante
os primeiros tempos, deram-lhe a convicção de que a moça estava já
inteiramente isenta, em relação ao filho. Não obstante a paixão
deste, tinha fé que o tempo fizera a sua obra.



VII


Tres mezes depois da chegada ao Rio de Janeiro, tinha Jorge liquidado
todos os negocios de familia. Os haveres herdados podiam dispensal-o de
advogar ou de seguir qualquer outra profissão, uma vez que não fosse
ambicioso e regesse com criterio o uso de suas rendas. Tinha as
qualidades precisas para isso, umas naturaes, outras obtidas com o
tempo. Os quatro annos de guerra, de mãos dadas com os successos
immediatamente anteriores, fizeram-lhe perder certas preoccupações que
eram em 1866, as unicas de seu espirito. A vida á redea solta, o
desperdicio elegante, todas as seduções juvenis, eram inteiramente
passadas.

O espectaculo da guerra, que não raro engendra o orgulho, produziu em
Jorge uma acção contraria, porque elle viu, ao lado da justa gloria de
seu paiz, o irremediavel conflicto das cousas humanas. Pela primeira vez
meditou; admirou-se de achar em si uma fonte de ideias e sensações,
que unica lhe deram os receios de outro tempo. Comtudo, não se pode
dizer que viera philosopho. Era um homem, apenas, cuja consciencia recta
e candida sobrevivera ás preoccupações da primeira quadra, cujo
espirito, temperado pela vida intensa de uma longa campanha, começa de
penetrar um pouco abaixo da superficie das cousas.

Querendo adoptar um plano de vida nova, renegou a principio todos os
habitos anteriores, disposto a dar á sociedade tão sómente a stricta
polidez. Teve primeiro ideia de ir estabelecer-se em algum recanto
silencioso e escuso no interior; mas desistiu logo, cedendo á
necessidade de ficar mais á mão de uma viagem transatlantica, ideia a
que aliás nunca deu principio de execução.

O primeiros tres mezes passaram depressa; foram empregados em liquidar o
inventario. Poucos legados deixara a viuva. Um delles interessa-nos,
porque recaiu em favor de Yayá Garcia. A viuva beneficiava assim,
indirectamente, o marido de Estella. Jorge approvou cordialmente o acto
de sua mãe. Não approvou menos o dote de Estella, mas o sentimento do
vexame que experimentou, logo que delle teve noticia, honrava a
delicadeza de seu coração.

Luiz Garcia dera-se pressa em visitar o filho de Valeria. A entrevista
desses dous homens, que o curso dos successos collocara em tão delicada
situação, foi cordial, mas não expansiva. Jorge não achou Luiz
Garcia mais velho; era o mesmo. Não o achou tambem menos reservado que
antes. A conversa, em começo não foi além dos factos geraes; falaram
da guerra e das victorias. Jorge referiu alguns episodios, que o outro
ouviu com interesse; e, como parecesse olvidar seus proprios feitos:

--Vejo que é modesto, observou Luiz Garcia; felizmente lemos as folhas
e as partes officiaes.

--Fiz o que pude, respondeu Jorge; era preciso vencer ou ser vencido.
Que é feito de tanta gente que ainda não vi? continuou elle para
desviar o assumpto.

--Cada qual segue o seu destino. Meu sogro creio que já o visitou...

--Já.

--A proposito, deixe-me agradecer os beneficios que devo a sua mãe...

Jorge quiz interrompel-o com o gesto.

--Perdão; e meu dever, continuou Luiz Garcia gravemente. A Sra. D.
Valeria quiz mostrar ainda á ultima hora a sympathia que sempre lhe
mereci. Duas vezes o fez, além de outras. Primeiramente, resolveu-me a
casar outra vez, cousa que estava longe de meus calculos. Foi ella a
primeira autora dessa transformação de minha vida, e em boa hora o
foi, porque não me podia fazer maior obsequio. Requintou o obsequio,
occultando até a ultima hora a prova de ternura que desde alguns mezes
antes dera a minha mulher; tinha-a dotado, como deve saber...

Jorge fez um gesto affirmativo.

--Achou que não era bastante e deixou, a minha filha um legado, que
será o seu dote... Gostava muito della. Não podendo agradecel-o á
bemfeitora, permitta que o agradeço ao...

--Desta vez hade obedecer-me, interrompeu Jorge com brandura; falemos de
outra cousa.

--Sim; falemos de minha mulher. Saiba que rematou dignamente a obra de
sua mãe; e mais uma vez me fez comprehender o beneficio do casamento.
Logo depois de casado, propoz-me acceitar, em favor de minha filha, a
parte com que a Sra. D. Valeria lhe manifestara sua affeição. Gostei
de a ouvir, por que era signal de desinteresse, mas recusei, e recusei
sem efficacia. Cedi, emfim; e não podia ser de outro modo. Folgo de lhe
dizer essas cousas porque são raras...

Jorge fechou o rosto ao ouvir essas palavras de Luiz Garcia. Adivinhara
a causa do desinteresse de Estella.--Eterno orgulho! pensou elle. Depois
reflectiu no caso e perguntou a si mesmo se a moça teria confiado ao
marido alguma cousa do que se passara entre elles. Era difficil
percebel-o, mas não era acertado suppôl-o. Nenhuma mulher o faria
nunca, Estella menos que nenhuma outra. Interrogou o rosto de Luiz
Garcia; achou-a placido e immovel. Após alguns segundos de silencio,
estendeu-lhe a mão.

--Permitte-me então que o felicite? disse elle.

--De coração, acudiu Luiz Garcia. E depois de erguer-se:--Se eu
tivesse o sestro de dar conselhos, dir-lhe-hia que se casasse.

--Póde ser.

--Não lhe pergunto pela outra paixão; creio que a esqueceu de todo.

--De todo.

Luiz Garcia apertou-lhe cordialmente a mão e saiu, depois de lhe
offerecer a casa. Jorge ficou alguns instantes pensativo. A noticia do
dote de Estella causara-lhe certo vexame; a noticia da doação feita
pela moça em favor da enteada, produzia-lhe agora um sentimento
mesclado de admiração e despeito. Ella sentia arder no mais fundo do
coração da moça um residuo de odio, e em seu proprio coração não
podia deixar de approvar o acto.

Sendo forçosa pagar a visita a Luiz Garcia, Jorge demorou o cumprimento
desse dever emquanto lhe foi possivel fazel-o sem reparo. Um dia, emfim,
sabendo por intermedio do Sr. Antunes que a familia não estava em casa,
foi a Santa Thereza e deixou lá um bilhete de visita.

A vida de Jorge foi então dividida entre o estudo e a sociedade, á
qual cabia sómente uma parte minima. Estudava muito e projectava ainda
mais. Delineou varias obras durante algumas semanas. A primeira foi uma
historia da guerra, que deixou por mão, desde que encarou de frente o
monte de documentos que teria de compulsar, e as numerosas datas que
seria obrigado a colligir. Veiu depois um opusculo sobre questões
juridicas e logo duas biographias de generaes. Tão depressa escrevia o
titulo da obra como a punha de lado. O espirito soffrego colhia só as
primicias da ideia, que aliás entrevia apenas. Uma vez, uma só vez,
lembrou-se de escrever um romance, que era nada menos que o seu proprio;
ao cabo de algumas paginas, reconheceu que a execução não
correspondia ao pensamento, e que não saía das effusões lyricas e das
proporções da anedocta.

Quando mais disposto se achava a compor essa autobiographia, occorreu
vagar a casa da Tijuca, a mesma aonde fora uma vez com sua mãe e
Estella, ponto de partida dos successos que lhe transformaram a
existencia. Quiz vel-a novamente; talvez alli achasse uma fonte de
inspiração. Foi; achou-a quasi no mesmo estado. Entrou curioso e
tranquillo. Pouco a pouco sentiu que o passado começava a reviver; a
resurreição foi completa, quando penetrou na varanda, em que da
primeira vez achara o casal de pombos, solitario e esquecido. Já lá
não estavam as pobres aves! Tinham voado ou morrido, como as
esperanças delle, e tão discretamente que a ninguem revelaram o
desastrado episodio. Mas as paredes eram as mesmas; eram os mesmos o
parapeito e o ladrilho do chão. Jorge encostou-se ao parapeito, onde
estivera Estella, com os pombos ao collo, diante delle, naquella fatal
manhã. O que sentia nesse outro tempo, posto frisasse o amor, tinha
ainda um pouco de estouvamento juvenil. Comtudo, a vista das paredes
nuas e frias da varanda abria-lhe na alma a fonte das sensações
austeras, e elle tornou a ver os olhos férvidos e o rosto pallido da
moça; pareceu até escutar-lhe o som da voz. Viu tambem a sua propria
violencia; e, como em meio de tantas vicissitudes, trazia ainda a
consciencia integra, a recordação fel-o estremecer e abater. Jorge
fincou os braços no parapeito e fechou a cabeça nas mãos.

--Olá, senhor dorminhoco! São horas de almoçar.

Jorge ergueu vivamente a cabeça e olhou para a chacara, donde lhe
pareceu que saíra a voz. Na chacara, a vinte passos de distancia,
estava um homem, que sorria para elle, com as mãos nas costas, seguras
a uma grossa bengala. Jorge sentiu um calefrio, como se lhe descobrissem
o segredo do passado. Só depois de desfeita a primeira sensação,
respondeu sorrindo:

--Não durmo; estou pensando nos alugueis.

--Muda-se para aqui?

--Não.

--A casa é sua?

--É. Suba cá.

O homem galgou os seis degraos da escada de tijolo e entrou na varanda,
onde Jorge assumira exclusivamente o papel de proprietario, olhando
attentamente para as paredes do edificio.

--Que faz por aqui, Sr. Procopio Dias, ás dez horas da manhã? disse
Jorge logo que o outro appareceu.

--Passei a noite na Tijuca; soube que esta casa vagara, vim vel-a; não
sabia que era sua. Está um pouco estragada.

--Muito.

--Muito?

--Parece.

Procopio Dias abanou a cabeça com um gesto de lastima.

Não é assim que deve responder um proprietario, disse elle. Meu
interesse é achal-a arruinada; o seu é dizer que apenas precisa de
algum concerto. A realidade é que a casa está entre a minha e a sua
opinião. Olhe, se está disposto a concordar sempre com os inquilinos,
é melhor vender as casas todas que possue.--Ou fica perdido... Com que
então esta casa é sua? A apparencia não é feia; ha alguma cousa que
pode ser concertada e ficará então excellente. Não é casa moderna;
mas é solida. Eu já a vi quasi toda; desci á chacara, e estava a
examinal-a, quando o senhor appareceu na varanda.

--Quer ficar com ella?

--Ingenuo! respondeu Procopio Dias batendo-lhe alegremente no hombro. Se
eu confesso que ella não está muito estragada é porque não a quero
para mim. É grande de mais; e depois, fica muito longe da cidade. Se
fosse mais para baixo...

--Mas no caso de que haja por ahi algum namoro? ponderou Jorge sorrindo.

--Falemos de outra cousa, acudiu o outro faiscando-lhe os olhos.

Os olhos de Procopio Dias eram cor de chumbo, com uma expressão
reflectida e sonsa. Tinha cincoenta annos esse homem, uns cincoenta
annos ainda verdes e prosperos. Era mediano de carnes e de estatura, e
não horrivelmente feio; a porção de fealdade que lhe coubera, elle a
disfarçava, quanto podia, por meio de qualidades que adquirira com o
tempo e o trato social. Fazia ás vezes um movimento que lhe descrevia
na testa cinco rugas horizontaes. Era uma das suas maneiras de rir.
Além dessa particularidade, havia o feitio do nariz, que representava
um triangulo de lados eguaes, ou quasi: nariz a um tempo sarcastico e
inquisidor. Não obstante a expressão dos olhos, Procopio Dias tinha a
particularidade de parecer simplorio, sempre que lhe convinha; nessas
occasiões é que ria com a testa. Não usava barba; elle proprio a
fazia com o maior esmero. Via-se que era homem abastado. As roupas,
graves no corte e nas cores, eram da melhor fazenda e do mais perfeito
acabado. Naquella manhã trazia uma longa sobrecasaca abotoada até
metade do peito, deixando ver meio palmo de camisa, infinitamente
bordada. Entre o ultimo botão da sobrecasaca e o unico do collarinho,
fulgia um brilhante vasto, ostensivo, escandaloso. Um dos dedos da mão
esquerda ornava-se com uma soberba granada. A bengala tinha o castão de
ouro lavrado, com as iniciaes delle por cima,--de forma gothica.

Jorge conheceu Procopio Dias no Paraguay, onde este fora negociar e
triplicar os capitaes, o que lhe permittiu collocar-se acima das
viravoltas da fortuna. Travaram relações, não intimas, mas frequentes
e agradaveis, e até certo ponto uteis a Procopio Dias, que obteve de
Jorge mais de uma recommendação. Não obstante a frequencia das
relações, estavam longe da amizade estreita; e isso, não por esforço
de Procopio Dias, cujas maneiras faceis assediaram por muito tempo a
inexperiencia de Jorge. O motivo de Procopio Dias cessou com a guerra,
desde que com a guerra cessara tambem o interesse mercantil. Jorge não
tinha motivo contra elle; quando o conhecera estava no periodo
melancholico.

--Ainda não respondeu á minha suspeita, disse Jorge dando o braço a
Procopio Dias.

--O namoro?

--Sim.

--Nem sombras disso, meu caro! Ou antes.... creio que vou entrar para um
convento: é a minha ultima ambição.

Procopio Dias tinha dous credos. Era um delles o lucro. Mediante alguns
annos de trabalho assiduo e finuras encobertas, viu engrossarem-lhe os
cabedaes. Em 1864, por um instincto verdadeiramente miraculoso, farejou
a crise e o descalabro dos bancos, e retirou a tempo os fundos que tinha
em um delles. Sobrevindo a guerra, atirou-se a toda a sorte de meios que
pudessem tresdobrar-lhe as rendas, cousa que effectivamente alcançou no
fim de 1869.

A não ser o segundo credo, é provavel que Procopio Dias só liquidasse
com a morte. Tendo chegado a uma posição solida, aos cincoenta annos,
achou-se deante de outra riqueza, não inferior áquella, que era o
tempo. Ora o segundo credo era o gozo. Para elle, a vida physica era
todo o destino da especie humana. Nunca fora sordido; desde as primeiras
phases da vida, reservou para si a porção de gozo compativel com os
meios da occasião. Sua philosophia tinha dous paes: Lucullo e
Salomão,--não o Lucullo general, nem o Salomão piedoso, mas só a
parte sensual desses dous homens, porque o eterno feminino não o
dominava menos que o eterno estomago. Entre os collegas de negocio foi
sempre tido como um feliz vencedor de corações francos. E, ao envez de
outros, não punha nisso a menor vaidade ou gloriola; preferia a
cautella e a obscuridade, não em attenção ao pudor publico, mas
porque era mais commodo. Nenhuma diva mundana teria jamais a audacia de
cortejal-o na rua ou sorrir-lhe simplesmente; perdia o tempo e o
sacerdote. Gozava para si, que é a perfeição sensual.

Não conhecia Jorge nem a vida nem o caracter do outro. Procopio Dias
tinha o peor merito que pode caber a um homem sem moral: era insinuante,
affavel, conversado; tinha certa viveza e graça. Era bom parceiro de
rapazes e senhoras. Para os primeiros, quando elles o pediam, tinha a
anedocta crespa e o estylo vil; se lhes repugnava isso, usava de atavios
differentes. Com senhoras era o mais paciente dos homens, o mais
serviçal, o mais boliçoso,--uma joia.

--Ninguem o vê, dizia elle d'ahi a duas horas, á mesa do almoço de
Jorge, na casa da rua dos Invalidos. Não conheço os seus amigos de
outro tempo, mas devo crer que todos lhe censuram essa vida de bicho do
matto.--Nos theatros.... nunca vae aos theatros?

--Quasi nunca.

--Vamos hoje?

--Corruptor? disse Jorge sorrindo.

De noite foram ao theatro. Procopio Dias estava de veia; a palestra, a
scena, o proprio tempo, tudo conspirou para dissipar as sombras de
melancholia que a manhã accumulara na fronte de Jorge.--Não se deixe
apodrecer na obscuridade, que é a mais fria das sepulturas, dizia
Procopio Dias, á mesa de um hotel, onde fora ceiar. Jorge não comeu
nada. Mau grado o prazer que achava em estar com elle, não quiz
acceitar-lhe o obsequio da ceia, apezar de lhe ter feito o do almoço.
Procopio Dias percebeu isso mesmo, mas não se molestou; abaixou a
cabeça, deixou passar essa onda de desconfiança, e surgiu fóra, a
rir. Sairam dalli uma hora depois. A evocação da Tijuca tinha-se
esvaido.

Jorge deixou-se persuadir dos conselhos do outro. Abriu mão do ultimo
livro planeado, contentando-se com tel-o vivido. Demais o tempo ia
minando a antiga sensação, e a vida social tornava a prendel-o em suas
malhas.

Entre as pessoas que tornou a ver, figurava a mesma Eulalia, com quem a
mãe quizera casal-o, alguns annos antes. Eulalia não ficara solteira;
estava na lua de mel, uma lua de mel que durava mais de um anno. O
casamento fora a vara mosaica, mediante a qual se lhe abrira no
coração uma fontesinha de ternura. Encontraram-se n'um baile. Nenhum
delles sentiu acanhamento; como nunca chegaram a tratar dos projectos de
Valeria, poderam falar com a mesma isenção de 1866. A differença é
que Eulalia, que era feliz, exagerava a felicidade para melhor mostral-a
a Jorge e convencel-o de que antes ganhara do que perdera com a recusa
delle.

--Vá lá á rua de Olinda, disse a moça; quero mostrar-lhe meu filho.

Jorge foi. Eulalia mostrou-lhe o filho, creança que valia por duas,
tão gorda e vigorosa era. Jorge chegou a pegar nelle, mas não sabia
haver-se com as rendas, os babados, as fitas. Eulalia que possuia já
toda a destreza materna, tomou-lh'o das mãos.--O senhor não entende
disto, disse ella. E depois de concertar a touca da creança, beijou-a
muitas vezes, riu-se para ella, fez-lhe um monologo, tudo com uma graça
e poesia, que Jorge estava longe de lhe suppôr cinco annos antes. Elle
contemplava essa joven mãe, elegante e natural, e sentia-se tomado de
inveja e cobiça.

--A felicidade é isto mesmo, pensou elle.

Voltou lá algumas vezes, fez-se intimo da casa. Começou a receber
tambem. Viu entre os frequentadores de sua casa o pae de Estella, que
achou nelle a benevolencia do desembargador. O Sr. Antunes era conviva
certo ao almoço dos domingos; dava-lhe noticias do genro e da filha.
Elle pranteava ainda a chimera esvaida, e achava não sei que dolorido
prazer em falar de Estella ao genro de suas ambições. Demais, era um
como desforço do outro, a respeito de quem aventurou mais de uma
queixa. Jorge, porém, ouvia-o sem lhe responder nada.

No meado do anno de 1871, fez Jorge uma excursão a Minas-Geraes, com o
fim de ajoelhar-se á sepultura de sua mãe, cujos ossos transportaria
opportunamente para um dos cemiterios do Rio de Janeiro. A excursão
durou seis semanas. Jorge visitou alguns parentes, e regressou nos
principios de Agosto.

Um incidente transtornou-lhe os planos.



VIII


Chegando ao Rio, Jorge teve noticia de que Luiz Garcia estava enfermo.
Não contava com o incidente, que o poz em grande perplexidade. Não
queria visital-o, e mal poderia deixar de o fazer. Luiz Garcia fora
prezado de seus paes; elle proprio lhe tinha estima e consideração:
motivos bastantes a aconselhar o desempenho de um dever de cortezia.
Mas, por outro lado, ir a Santa Thereza era arriscar-se á suspeita de
Estella. Jorge vacillou durante dous longos dias. Certo, elle sentiu
algum alvoroço, com a ideia de a ver; ideia que, se buscou rejeitar ao
espirito, lá ficou latente e dissimulada. Mas a razão que confessava a
si proprio era a da conveniencia.

Venceu a hesitação e foi a Santa Thereza, na tarde do terceiro dia. A
casa não era já a mesma; tinha dimensões um pouco maiores que a
outra. Era nova, ladeada de verdura, com as telhas ainda da primeira
cor. Havia duas entradas, uma para a sala, ficando a porta entre quatro
janellas, outra para o jardim, e era uma porta de grade de ferro, aberta
no centro de um pequeno muro, por cima do qual vinha debruçar-se a
verdura de uma trepadeira. Ahi achou Raymundo, mais velho do que o
deixara, mas não menos forte. Raymundo conheceu-o, apezar de queimado
do sol. Abriu-lhe a porta; acompanhou-o alegremente ao fundo do jardim.

--Meu senhor vae ficar muito contente, dizia elle fazendo-o entrar.

--Está melhor?

--Está, sim senhor. Olhe, está alli.

Raymundo apontou para um grupo de pequenas arvores, atravez de cuja
ramagem se descobriam vestidos de mulher. Jorge sentiu coar-lhe pelas
veias uma onda de frio. Mas passou depressa; e deu o primeiro passo tão
firme, como deante das legiões de Lopez.

--Quem é, Raymundo? cantou uma voz desconhecida, no meio das arvores.

Jorge viu apparecer uma moça, que representava ter dezoito annos e não
contava mais de dezeseis; reconheceu a filha de Luiz Garcia. Ella não o
reconheceu logo; os trabalhos da guerra tinham-n'o mudado. Demais, nas
poucas vezes que o vira não lhe havia prestado muita attenção. Jorge
foi conduzido até a cadeira onde se achava estirado Luiz Garcia, entre
duas outras, uma com um trabalho de agulha em cima, outras com um livro
aberto. Luiz Garcia recebeu-o com satisfação e cordialidade; Jorge
explicou a demora da visita pelo facto de estar ausente. A explicação
era uma cortezia nova; Luiz Garcia agradeceu-lh'a.

--Estive muito prostrado, disse elle; não sei mesmo se cheguei ás
portas da morte. Agora estou quasi bom.

Jorge sentara-se a um lado do convalescente, emquanto Yayá, do outro
lado, brincava com os cabellos do pae ou lhe apertava uma das mãos.
Luiz Garcia contou as peripecias da doença e exaltou a dedicação da
familia; Jorge falou pouco, já por evitar trahir a commoção que
sentia ao penetrar naquella casa, já por não prolongar a visita e
podel-a terminar no primeiro intervallo de silencio. No fim de quinze
minutos levantou-se.

--Espere um pouco, disse o convalescente. Yayá, vae chamar tua
madrasta.

Yayá levantou-se para obececer á ordem do pae; mas no momento em que
ia pousar nos joelhos deste o livro que tinha no regaço, ouviu-se um
passo na areia e logo depois esta subita palavra:

--Prompto!

Era Estella. O sobresalto de Jorge, por mais imperceptivel que fosse,
não escapou a Yayá, e fel-a sorrir á socapa; attribuiu-o ao susto.
Estella appareceu; mas, porque já sabia da presença de Jorge, pode
encaral-o sem nenhuma apparente commoção. Houve certa hesitação
entre um e outro, mas foi curta. A moça inclinou-se levemente e
estendeu-lhe a mão. Jorge apertou-lh'a.

--Ainda não tinha tido a satisfação de a ver depois de minha volta do
Paraguay, disse elle.

É verdade, respondeu a moça; vivemos muito retirados.

Estella chegou-se ao marido, affastando-se Jorge para deixal-a
passar.--Prompto, repetiu ella. Trazia-lhe um copo de geléa. Em quanto
Luiz Garcia tomava a refeição de convalescente, Estella ficou de pé,
ao lado delle; depois sentou-se e dirigiu a palavra ao filho de Valeria.
Naturalmente falou-lhe da campanha. Elle respondeu sem affectação, e
com tranquillidade.

--Ja tive occasião de lhe dizer que foi um dos heroes, interveiu Luiz
Garcia olhando para a mulher; mas o Dr. Jorge teima em escurecer os seus
proprios serviços. Yayá não é a mesma cousa.

--Sim? perguntou Jorge.

É verdade; durante toda a campanha matou pelo menos metade do exercito
paraguayo.

Yayá lançou ao pae um olhar de graciosa censura.

--Não precisa corar, disse Jorge; era uma maneira de ser patriota; mas
creia que havia menos perigo em matar o inimigo cá de longe.

--O senhor matou algum! perguntou Yayá no fim de um instante.

--Provavelmente. Na guerra é preciso matar ou morrer. Não me importava
morrer; mas ha occasiões em que o mais indifferente é um heroe. Eu fiz
o que pude.

Como a tarde começasse a escurecer, Estella disse ao marido que era
tempo de recolher-se a casa. Ergueu-se para lhe o dar o braço; Jorge
porém apressou-se a substituil-a. Estella foi adeante, e quando Jorge
entrou na sala com o convalescente, ella preparava a cadeira em que este
devia sentar-se, uma larga e extensa cadeira de vime. Luiz Garcia
esperou alguns instantes, em quanto a mulher collocava as almofadas,
resvalando serenamente de um lado para outro.

Durante essa curta espera, Jorge olhava para a moça, e era a primeira
vez que o fazia mais detidamente. Pouca era differença entre a Estella
de 1867 e a de 1871. Tinha o mesmo rosto pallido e os mesmos olhos
severos. As feições não haviam mudado; o busto conservava a graça
antiga; estava só um pouco mais cheio, differença que não destoava da
estatura, que era alta. Esta era a pessoa physica. Moralmente devia ser
a mesma; mas que contraste na situação! Assim,--a mulher que o levara
a servir por quatro annos uma campanha ardua e porfiosa, e cuja imagem
não esquecera no centro do perigo, essa mulher estava alli, deante
delle, ao pé de outro, feliz, serena, dedicada, como uma esposa
biblica. A comparação doeu-lhe; mas o coração começava a
repetir-lhe juvenilmente as mesmas horas que já havia batido. Para
refreal-o, Jorge despediu-se dez minutos depois.

--Já! exclamou Luiz Garcia. Foi visita de medico. Agradeço-lhe,
entretanto, a attenção. Esta casa é sua; sabe que todos nós o
estimamos.

Jorge seguiu para casa, contente e arrependido da visita que acabava de
fazer. Gastou as primeiras horas da noite a folhear dez ou doze tomos,
lendo a troncos duas ou tres paginas de cada um, quando os olhos estavam
mais attentos na pagina aberta, o espirito saía pé ante pé e deitava
a correr pela infinita campanha dos sonhos vagos. Voltava de quando em
quando; e os olhos que haviam chegado mecanicamente ao fim da pagina
tornavam ao principio, a reatar o fio da attenção. Como se a culpa
fosse do livro, trocava-o por outro, e ia da philosophia á historia, da
critica á poesia, saltando de uma lingua a outra, e de um seculo a
outro seculo, sem outra lei mais que o acaso.

O clarão da seguinte manhã dissipou uma parte dos cuidados da noite. O
primeiro alvoroço tinha passado. Jorge disse a si mesmo que bastava ser
homem, esquecer o incidente da vespera, e arredar para sempre a
possibilidade de outros. Não repetiria a visita a Luiz Garcia; e
provavelmente não os veria nunca mais. Na rua do Ouvidor encontrou
Procopio Dias, que lhe disse á queima-roupa:

--Entrei meia hora depois do senhor sair.

--Onde?

--Em Santa Thereza. Se se demora meia hora mais, encontrava-o e
poderiamos ter descido juntos. Conhece ha muito tempo o Luiz Garcia?

--Desde muito moço.

--Tambem eu; mas não o via ha dez annos. Está o mesmo homem; está
melhor, porque casou com uma mulher bonita. Que gente é aquella?

--A mulher foi educada por minha mãe.

--Vê-se que sim. Oh! falámos muito do senhor.

--Sim? perguntou vivamente Jorge.

Procopio Dias olhou fixamente um instante; depois riu com a testa.

--Muito, repetiu elle; eu e o Luiz Garcia travamos um duello de
louvores, e se não ha nisto vaidade creio que o venci; naturalmente por
que sou mais expansivo do que elle. Na verdade, elle é secco, mas o
pouco que disse, disse-o com sinceridade. Parece estimar-se muito
aquella familia.

Procopio Dias tornou a falar-lhe de Santa Thereza, na noite do dia
seguinte, em uma casa onde jantaram juntos. Falou-lhe primeiramente em
particular, depois deante de outros. A dona da casa, que era uma Diana
caçadora de boatos e novidades, farejou algum mysterio entre as rugas
da testa de Procopio Dias, e dobrando as pontas do arco disparou
subtilmente uma flecha que ninguem viu, mas foi enterrar-se no
coração de Jorge. Este fez boa cara ao tiro, mas lá dentro sangrou um
pouco de irritação e medo. Sentia no fundo da consciencia o calor de
um sentimento honesto, e comtudo a opinião tendia a apoderar-se delle e
a devassar-lhe as cinzas do passado; cinzas frias ou mornas, é o que
elle não podia ainda discernir. Confiado em si mesmo, Jorge tremia
deante da opinião,--a opinião do epigramma e da anedocta, que
começava a sacudir o seu riso escarninho e cru.

Inquieto e aborrecido, saiu dalli pouco depois de jantar. O gracejo da
dona da casa continuava a zumbir-lhe ao ouvido, ao mesmo tempo que a
figura de Estella lhe surgia aos olhos, com o seu aspecto do costume.
Já entrado na rua dos Invalidos, Jorge desandou o caminho e foi direito
a um theatro, com o fim de aturdir-se e esquecer mais depressa. Eram
nove horas e meia; assistiu a um resto de drama, que lhe pareceu jovial,
e a uma comedia inteira, que lhe pareceu lugubre. Não obstante, arejou
o espirito dos cuidados da noite, e caminhou para casa mais leve e
desassombrado. Era uma hora quando chegou; o creado entregou-lhe uma
carta.

--A pessoa que trouxe esta carta disse que era urgente.

Jorge reeebeu-a, sem conhecer a lettra do sobrescripto. Era lettra de
mulher. Abriu-a sem pressa, mas não sem curiosidade. Não era longa;
dizia simplesmente isto:--«Illm. Sr. doutor. Papae está muito mal;
pede-lhe o favor de vir a nossa casa.--_Lina Garcia._»

--A que horas veiu esta carta? perguntou elle ao creado.

--Ás sete.

Jorge fez um gesto de enfado e mandou buscar um tilbury. Dahi a uma hora
parava á porta de Luiz Garcia. Era tudo silencio. Jorge deteve-se
alguns instantes, incerto sobre o que convinha fazer. O perigo, se
perigo houve, podia ter passado, e toda a familia estaria em repouso.
Espreitou pela porta do jardim, e viu uma claridade frouxa, atravez de
uma veneziana. Logo depois ouviu passos na areia. Era o Sr. Antunes que
sentira parar o tilbury.

--Meu genro está mal, disse o pae de Estella; teve esta manhã uma
recahida e perto das oito horas cuidamos perdel-o.

Jorge entrou.

Luiz Garcia estava prostrado; a febre ardia-lhe sinistramente nos olhos.
De um lado e de outro do leito, viam-se a mulher e a filha,
apparentemente quietas, mas gastando toda a força moral em suster a
angustia que ameaçava fazer-se em lagrimas.

--Que tem? perguntou Jorge approximando-se do enfermo.

--Uma febrinha importuna, respondeu este.

A um signal, Estella e Yayá retiraram-se da alcova, onde só ficou
Jorge.

Mandando chamar o moço, Luiz Garcia punha em execução um pensamento
que lhe brotara no calor da febre. Ouviu do medico algumas palavras que
lhe fizeram suppôr a probabilidade da morte; e, não tendo amigos nem
parentes, e não querendo confiar a mulher e a filha ao sogro, lançou
mão da pessoa que lhe pareceu ter a sisudez bastante e a influencia
necessaria para as dirigir e proteger.

--Seu pae foi amigo de meu pae, disse elle; eu fui amigo de sua familia;
devo-lhe obsequios apreciaveis. Se eu morrer, minha mulher e minha filha
ficam amparadas da fortuna, por que o dote de uma servirá para ambas,
que se estimam muito; mas ficam sem mim. É verdade que meu sogro,
mas... mas, meu sogro tem outras occupações, está velho, pode
faltar-lhes de repente. Quizera pedir-lhe que as protegesse e guiasse;
que fosse um como tutor moral das duas. Não é que lhes falte juizo;
mas duas senhoras sósinhas precisam de conselhos... e eu... desculpe-me
se sou indiscreto. Promette?

Jorge prometteu tudo, com o fim de o tranquillisar, porque Luiz Garcia
parecia excessivamente afflicto com a ideia daquella eterna separação.
O pedido affigurou-se-lhe singular; attribuiu-o á exaltação febril do
doente. Soube depois que a vida de Luiz Garcia dependia da primeira
crise que fizesse a enfermidade, segundo havia declarado o medico.

Eram quasi quatro horas quando Jorge de lá saiu. Voltou ás nove e
achou o medico. A crise era esperada na tarde desse dia, e só então se
poderia dizer se a vida do enfermo estava perdida ou salva. Foi o que o
medico lhe repetiu, á porta do jardim, aonde Jorge o foi acompanhar.

--Não obstante, concluiu o medico, elle tem outra doença que o deve
matar dentro de alguns mezes, um anno ou anno e meio.

--Coração?

--Justamente.

Este noticia impressionou o moço.--Não será illusão da medicina?
perguntou elle. O medico abanou a cabeça, e saiu. Jorge encaminhou-se
para casa, mas teria dado apenas tres passos, quando viu Estella que
vinha ao seu encontro. A moça parou deante delle.

--Que lhe disse o medico? perguntou.

--Tem esperanças; logo de tarde poderá affiançar mais alguma cousa.

--Só isso?

--Só.

--Não o desenganou?

--Não.

Estella reflectiu um instante.

--Dê-me sua palavra, disse ella.

Jorge estendeu-lhe a mão, sobre a qual Estella deixou cair a sua, não
menos fria que pallida.

--Sou amigo de seu marido, disse Jorge depois de alguns instantes; creia
que elle pode contar com toda a minha dedicação.

Estella pareceu accordar do momentaneo torpor; attentou no moço,
retirou a mão e respondeu com um simples gesto de assentimento. A alma
subjugada tornara á natural attitude. Jorge viu-a entrar em casa e
ficou só alguns minutos, a recordar a revelação do medico, e a sentir
que, ao pé da tristeza que o pungia, havia alguma cousa semelhante a um
sentimento egoista e cruel.

Entre a esperança e receio gotejaram algumas horas longas, até que a
crise veiu e passou, sem levar comsigo a vida ameaçada. Na manhã
seguinte a alegria foi tamanha em redor do enfermo, que elle viu
claramente o perigo e a salvação. Nem a filha nem a mulher pareciam
alquebradas do trabalho e da vigilia; estavam frescas, risonhas, ageis,
partindo entre si o pio da alegria, como haviam partido irmãmente o
pão da angustia.

Durante a molestia e a convalescencia, Jorge visitou-os uma vez por dia;
e força é dizer que, se por um instante houve em seu coração um
impulso egoista, tal impulso não se lhe repetiu depois; serviu ao
doente com desinteresse e lealdade. A familia deste mostrou-se-lhe
agradecida. Luiz Garcia recordou ao moço o pedido que lhe fizera na
noite em que o mandara chamar, e recordou-lh'o, não só para lhe
agradecer a acquiescencia como para explical-o. Mas a explicação era
difficil, porque elle cedera principalmente á aversão que lhe
inspirava o sogro, em quem não tinha a minima confiança; não obstante
as meias palavras de que usou, Jorge entendeu tudo.

A frequencia trouxe a necessidade. Levado pelas circumstancias, Jorge
acostumou-se ás visitas, e amiudou-as. No mez de Septembro, a pretexto
de calor, que ainda não fazia, transferiu a residencia para a casa que
tinha em Santa Thereza, e que não ficava a longa distancia da de Luiz
Garcia. Não havia que reparar no caso; sua mãe tinha o costume de
passar alli tres a quatro mezes no anno. Demais nas ultimas semanas,
elle começara a fazer-se menos visto e menos frequentado. Podia
facilmente passar a outra vida mais reclusa.

Entretanto, como essa mudança antecipada para Santa Thereza podia não
ter em si mesma toda a explicação razoavel, Jorge buscou enganar-se a
si proprio reunindo os elementos e lançando ao papel as primeiras
linhas de um trabalho, que jamais devia acabar, mas que, em todo caso
legitimava a necessidade de repouso. Nos intervallos deste é que
visitava a casa de Luiz Garcia, uma ou duas vezes por semana. Aos
domingos, tinha sempre a jantar o Sr. Antunes, com quem jogava uma
partida de bilhar. Tentou ensinar-lhe o xadrez, mas desanimou ao fim de
cinco licções.

--Ah! mas nem todos têm o seu talento! exclamou triumphalmente o pae de
Estella.

Luiz Garcia jogava o xadrez. Era o recreio usual entre elle e Jorge;
outras vezes saiam a passeio até curta distancia. Luiz Garcia acceitava
de boa sombra essas distracções, que não eram turbulentas nem
cançativas, mas brandas e pausadas, como elle. Demais nem sempre eram
distracções sem fructo. Jorge apreciava agora melhor as conversações
que não eram puros nadas, e os dous trocavam ideias e observações.
Luiz Garcia era homem de escassa cultura, sobretudo irregular; mas tinha
os dons naturaes e a longa solidão dera-lhe o habito de reflectir.
Tambem elle ia á casa de Jorge, cujos livros lia de emprestimo. Era
tarde; já não estava moço; faltava-lhe tempo e sobrava-lhe fome;
atirou-se soffrego, sem grande methodo nem escrupulosa eleição; tinha
vontade de colher a flor ao menos de cada cousa. E por que era leitor de
boa casta, dos que casam a reflexão á impressão, quando acabava a
leitura, recompunha o livro, incrustava-o por assim dizer, no cerebro;
embora sem rigoroso methodo, essa leitura rectificou-lhe algumas ideias
e lhe completou outras, que só tinha por intuição.

A necessidade intellectual de Luiz Garcia contribuiu assim para tornar
mais intima a convivencia, unica excepção na vida reclusa que elle
continuava a ter, ainda depois de casado. Jorge pela sua parte não
desmentia até alli o bom conceito que o outro formava de suas
qualidades; e a familia viu lentamente estabelecer-se a intimidade e a
estima entre os dous homens. Uma noite, saindo Jorge da casa de Luiz
Garcia, este e a mulher ficaram no jardim algum tempo. Luiz Garcia disse
algumas palavras a respeito do filho de Valeria.

--Pode ser que eu me engane, concluiu o sceptico; mas persuado-me que é
um bom rapaz.

Estella não respondeu nada; cravou os olhos n'uma nuvem negra, que
manchava a brancura do luar. Mas Yayá que chegara alguns momentos
antes, ergueu os hombros com um movimento nervoso.

Pode ser, disse ella; mas eu acho-o insupportavel.



IX


A nova ordem de cousas perturbou profundamente o animo de Estella. O
procedimento de Jorge, por occasião da molestia do marido não lhe
pareceu esconder nenhuma intenção particular; mas durante a
convalescença, e sobretudo depois della, afigurou-se-lhe que a ideia do
moço era insinuar-se na familia. Para que? Estella suppunha que o amor
de Jorge, ao fim de tão longo periodo, estaria acabado de todo, como
producto da primeira estação. Não lhe negou um pouco de gratidão,
quando viu os obsequios que prestara ao marido enfermo, com tanta
solicitude, discrição e dignidade. Agora, porém, ao ver a frequencia
e a convivencia, suppoz alguma cousa mais do que a simples affeição
tradiccional. Que encanto podia offerecer a casa de uma familia retirada
e obscura a um homem creado em mais apparente plana social? Seu meio era
outro; tendencias de espirito ou ambições de futuro o deviam levar a
outra esphera. Esta consideração lhe pareceu decisiva. Concluiu que a
paixão, vencida ou comprimida, soltava outra vez o brado da revolta; e
se assim era, Jorge devia estar peor que em 1866, porque então os
sentimentos rompiam com violencia e sinceridade, ao passo que agora o
seu principal aspecto era a dissimulação. O amor, se amor havia,
trazia já os olhos abertos e dispunha da razão; de estouvado,
tornava-se cautelloso e subtil.

--Que ideia faz elle de mim? perguntou Estella a si mesma.

Quando esta palavra lhe soou no espirito, Estella sentiu-se diminuida e
humilhada aos olhos de Jorge. Cumpria pôr termo a uma vida de
reticencias e dubiedade. Estella cogitou no meio de fazer cessar a
intimidade dos dous homens; quando menos, a frequencia de Jorge naquella
casa. Pensou em pedil-o directamente a Jorge; mas rejeitou desde logo a
ideia, aliás incompativel com sua indole; depois, pensou em dizer tudo
ao marido.

Uma noite, na primeira semana de Novembro, Estella assentou
definitivamente revelar ao marido a unica pagina de seu passado. Estava
sósinha, no jardim, e vira desmaiar o crepusculo da tarde--uma tarde
cinzenta e amortecida. De quando em quando o espirito volvia ao passado,
e toda ella estremecia com uma sensação extranha, mysteriosa e
insupportavel. A noite caiu de todo, e a alma de Estella mergulharia
tambem na vaga e perfida escuridão do futuro, se a rude voz do escravo
não a viesse acordar.

--Nhanhã está apanhando sereno, disse Raymundo.

Estella ergueu-se e foi dalli ao gabinete do marido. Luiz Garcia
trabalhava, á claridade de um lampeão, que toda convergia para elle e
os papeis que tinha deante de si, graças ao effeito de um _abat-jour_.
O resto do aposento ficava na meia obscuridade.

--Que é? perguntou Luiz Garcia sem levantar a cabeça.

Estella parou do outro lado da secretaria; Luiz Garcia ergueu então a
cabeça e olhou para ella, sem lhe poder ver o transtorno das feições.

--Que é? repetiu.

Vendo-o entregue ao trabalho, por amor della e da filha, Estella
hesitou; pareceu-lhe crueldade dar-lhe, em troca da protecção e do
affecto, um desengano e uma afflicção. Hesitou um instante, e passou
da hesitação á renuncia. Conteve-se e saiu. Escolheu o silencio.

Mas o silencio só por si não melhorava nada; tarde ou cedo, o marido
viria a ler em seu rosto o constrangimento, em relação a Jorge,
constrangimento inexplicavel, que elle podia interpretar contra ella.
Foi então que a serpente lhe ensinou a dissimulação. A necessidade
deu-lhe a intuição machiavelica; isto é, a occasião não consentia
um rosto franco, sinceramente hostil, mas um ar ameno, uma cordialidade
de superficie, friamente cortez, mas cortez. Desse modo, salvava-se a
paz domestica, e era o essencial. Ao mesmo tempo mostraria a destemidez
de seu coração, capaz de affrontar todo o artificio do outro.

Com o tempo, verificou Estella que o procedimento de Jorge, se alguma
intenção escondia, não a deixava sequer suspeitar; não lhe parecia
já dissimulação, mas abstenção. Elle proprio a evitava; fugia ás
conversas longas, sobretudo ás conversas solitarias. Era respeitoso e
frio.

Com effeito, Jorge não havia cedido a nenhum plano preconcebido; ia á
feição do tempo; mettia-se por um atalho, sem saber se iria dar á
estrada recta ou a um abysmo. Nenhuma preoccupação lhe ensombrava a
fronte risonha e placida. Dir-se-hia que, após longa e trabalhosa
jornada, vingara o cume das delicias humanas.

A verdade é que o amor de Jorge tinha como que despido a qualidade de
sentimento para constituir-se ideia fixa. Nascido de uma primeira
explosão de juventude, curtiu alguns annos de ausencia. A ausencia
disciplinou os primeiros ardores, quebrou os impetos, afrouxou o alento;
o amor atou aos hombros as azas de um mysticismo quieto. Não parou
nessa evolução. Do coração em que pousava tomou impulso e alou-se ao
cerebro, onde assumiu a fixidez das resoluções definitivas. Não era
já uma paixão, mas uma convicção, isto é, outra cousa. Pensava
muitas vezes na consequencia de herdar em breve prazo a esposa de Luiz
Garcia, resolução que lhe parecia necessaria; era o que elle dizia a
si mesmo. E esse casamento tinha dous resultados: era uma reparação e
uma desforra: reparação do mal que elle fizera, desforra do tratamento
que ella lhe deu. Ambos tinham que reprochar um ao outro. O casamento
absolvia-os. Talvez na balança commum não fossem eguaes as dividas,
mas Jorge tinha certo fundo de equidade, e entendia que, se padecera
muito e longo, não excedeu o padecimento á injuria, que, a seus olhos,
fora grave.

Os ralhos da consciencia eram agora menos frequentes e menos rispidos:
é o effeito natural dessa ordem de situações violentas. Os mais
rigidos podem chegar assim ás complacencias inexplicaveis, e o que é
hoje nobre repugnancia, é amanhã hesitação pueril. Jorge não ficou
extranho a essa lei do costume. De si para si julgava-se innocente,
porque era impassivel, esquecendo a lettra do decalogo que não defende
sómente a acção, mas a propria intenção.

Duas circumstancias perturbaram, entretanto, o espirito de Jorge, antes
do fim daquelle anno.

A primeira foi a assiduidade de Procopio Dias, que lhe pareceu pouco
explicavel. Procopio Dias era recebido com agazalho mais cordial do que
elle. Em relação a Jorge, o procedimento de Estella era cautelloso e
apenas affavel; o de Yayá era de algum modo medroso ou hostil; uma e
outra pareciam alegrar-se quando Procopio Dias assomava á porta. Era
uma expressão differente. Este acompanhava-as ás vezes nos passeios,
ou conversava-as largo tempo, fazendo-as rir com uma espontaneidade, que
não tinham a falar com Jorge. Obedecia aos desejos da madrasta e aos
caprichos da enteada, quaesquer que fossem, com tamanha tolerancia e bom
humor, que fazia despeitar o outro, sem o saber. Jorge attentou nos
dictos e acções do intruso, e com o tempo veiu a tranquillisar-se.

--É um celibatario necessitado da companhia de mulheres, disse comsigo.

Procopio Dias não parecia outra cousa; a atmosphera feminina era para
elle uma necessidade; o ruge-ruge das saias a melhor musica a seus
ouvidos. Graças á edade, Yayá era mais familiar do que Estella; ás
vezes chegava a «judiar» com elle, excesso que o pae ou a madrasta
reprimia, e reprimia sem necessidade. Procopio Dias não manifestava nem
sentia o menor despeito; achava-lhe graça e chegava a fazer coro com
ella.

A segunda circumstancia que projectou alguma sombra no espirito de
Jorge, foi justamente a hostilidade de Yayá Garcia.

--Que diabo fiz eu a esta menina? perguntava Jorge a si mesmo.

Durante a molestia e a convalescença do pae, Yayá tratara Jorge com
muita gratidão e cordialidade. Algum tempo depois, começou a diminuir
essa apparencia, até que cessou de todo e se converteu n'outra cousa,
que visivelmente era repugnancia, com uma pontasinha de hostilidade.
Luiz Garcia viu logo a differença, tanto mais facil de notar quanto que
Estella, se não era já tão expansiva como nos primeiros dias, tratava
ainda assim o filho de Valeria com uma affabilidade, que salvava as
apparencias; a unica excepção era a filha. Não deixou de a advertir;
ponderou-lhe que Jorge era filho de uma pessoa a quem elles deviam
estima, e de quem ella mesma houvera uma recordação posthuma; que essa
circumstancia devia atenuar a antipathia, se Jorge lhe era antipathico.
Yayá ouvia e calava-se; emendava-se n'um dia, para reincidir toda a
semana.

--És uma extranhona, disse uma vez o pae depois de lhe repetir a
advertencia.

Podia ser estranhice. A vida que Yayá tivera durante largo tempo
dera-lhe o amor exclusivo da solidão e da familia. Mas no caso presente
parecia ser alguma cousa mais do que isso. O rosto com que recebia Jorge
não era o mesmo com que via outras pessoas. Jorge ás vezes chegava
quando ella estava ao piano; Yayá interrompia-se habilmente, fazia
gottejar dos dedos umas tres ou quatro notas soltas e divergentes e
erguia-se. Se elle ia conversar com ella e a madrasta, Yayá tomava a
parte minima do dialogo e esquivava-se cautelosamente. Não sorria nunca
se elle dizia uma cousa graciosa ou fazia cumprimento; não animava
nunca a adopção de qualquer projecto que viesse delle; não lia os
romances que elle lhe emprestava. Se era convidada a dizer o que pensava
de um ou outro desses livros, fazia descair os cantos da boca commum
gesto de indifferença. Não falava nunca de Jorge; apparecia-lhe o
menos que podia. Este procedimento constante, não affrontoso, porque
ella o disfarçava, impressionou o espirito do moço, que não lhe pode
descobrir a causa verdadeira, ou pelo menos verosimil.

A verdadeira causa era nada menos que um sentimento de ciume filial.
Yayá adorava o pae sobre todas as cousas; era o principal mandamento de
seu cathecismo. Instigara o casamento, com o fim de lhe tornar a vida
menos solitaria, e porque amava Estella. O casamento trouxe para casa
uma companheira e uma affeição; não lhe diminuiu nada do seu quinhão
de filha.

Yayá viu, entretanto, a mudança que houve nos habitos do pae, pouco
depois de convalescido, e sobretudo desde os fins de Setembro. Esse
homem sêcco para todos, expansivo sómente na familia, abrira uma
excepção em favor de Jorge; sem mostrar maneiras ruidosas, aliás
incompativeis com elle, era menos reservado, de mais facil e continuado
accesso. Não foi porém esse primeiro reparo que produziu em Yayá a
notada mudança; foi outro. Luiz Garcia deu a Jorge algumas
demonstrações de confiança pessoal, e no dia em que a filha viu a
primeira, recordou-se da carta que escrevera ao moço na noite em que a
molestia do pae se aggravara, e da confidencia dos dois, cujo assumpto
nunca lhe chegara aos ouvidos. Neste instante sentiu borbulhar no
coração uma primeira gotta de fel. Imaginou que Jorge viera roubar-lhe
alguma cousa. Não cogitou se haveria assumpto que dous homens devessem
tratar exclusivamente entre si; suppoz-se despojada de uma parte da
confiança do pae, e porque amava o pae sobre todas as cousas, seu amor
tinha os ciumes, as coleras, os arrebatamentos do outro amor, e
consequentemente os mesmos odios e lastimas.

Conhecia o pae toda a intensidade da affeição filial da moça, e não
era menor a do seu amor; mas elle dizia comsigo philosophicamente, e
não sem pezar, que a natureza se encarregaria de lhe ensinar outro
sentimento, menos grave, mas não menos intenso e imperioso. Quando elle
assim reflectia, contemplava a filha com um olhar já humido das
primeiras saudades.

Yayá estava então em toda a limpidez de uma aurora sem nuvens. Era
leve, agil, subita--com um pouco de destimidez; ás vezes aspera, mas
dotada de um espirito ondulante, esguio e não incapaz de reflexão e
tenacidade. Nisto podia ficar o retrato da menina, se não conviesse
falar tambem dos olhos, que, se eram limpidos como os de Eva antes do
peccado, se eram de rôla, como os da Sulamites, tinham como os desta
alguma cousa escondida dentro, que não era de certo a mesma cousa.
Quando ella olhava de certo modo, ameaçava ou penetrava os refolhos da
consciencia alheia. Mas eram raras essas occasiões. A expressão usual
era outra, meiga ou indifferente, e mais de infancia que de juventude.
Talvez a boca fosse um pouco grande; mas os labios eram finos e
energicos. Em resumo, as feições dos onze annos estavam alli
desenvolvidas e mais accentuadas.

Uma tarde Luiz Garcia recebeu ordem de ir immediatamente á casa do
ministro. Saiu, deixando a mulher e a filha, anciosas pelo resultado.
Jorge appareceu pouco depois. A demora de Luiz Garcia foi longa, e Jorge
ter-se-hia retirado, se não fora a chegada do Sr. Antunes, que deu um
sopro de vida á conversa que expirava. Nove horas, dez horas, onze
horas bateram sem que Luiz Garcia voltasse. Yayá estava impaciente;
receiava alguma doença subita do pae, um desastre qualquer. Eram onze
horas e um quarto quando este entrou offegante, porque viera depressa,
tendo encontrado Raymundo, que, ouvindo as ancias da moça, saíra a
encontral-o e a dizer-lh'as.

Yayá atirou-se-lhe aos braços.

--Medrosa! disse Luiz Garcia abrangendo-lhe a cabeça com as mãos.

Sentou-se um instante para repousar; com a mão esquerda comprimia o
coração. Logo depois ergueu-se, chamou Jorge e foi até uma das
janellas. Conversaram em voz baixa dez minutos. Disse-lhe que talvez
fosse obrigado a sair no fim daquella semana; tratava-se de uma
necessidade de serviço; salvo uma hypothese, a viagem era inevitavel.

Yayá não tirava os olhos de um e de outro; despediu-se de Jorge dando
lhe as pontas dos dedos. Foi no dia seguinte que Estella lhe disse que
talvez fossem obrigadas a sair por algum tempo. Ouvindo a noticia, Yayá
comprehendeu a confidencia da vespera, e ficou consternada. Ella era a
ultima que a recebia, e o primeiro fora um extranho, um intruso,--esteve
quasi a dizer um inimigo. Nenhuma palavra do pae; nenhuma communicação
directa.

--A ultima!

Esse resentimento exagerado era o proprio effeito da organização da
moça, e, outrosim, de sua educação quasi solitaria. Para affastal-a
de Jorge não foi preciso mais; o despeito apoderou-se inteiramente
della. Se até ali pouco lhe havia falado, esse pouco diminuiu ainda com
o tempo; fez-se quasi nada.

E essas duas forças, uma de impulsão, outra de repulsão, tendiam a
esbarrar-se, no caminho de seus destinos.



X


Ora, quatro ou cinco dias depois, Luiz Garcia que, na previsão de
viagem, começara a arranjar alguns papeis esparsos e antigos, dispoz-se
a concluir esse trabalho, não obstante haver sido dispensada a
commissão. Era dia de anno bom,--uma bella manhã, fresca, limpida,
azul. Tinham ido á missa na capella do convento; almoçaram em familia,
com a presença do Sr. Antunes, que inaugurara uma sobrecasaca, e trazia
nessa manhã um aspecto, não sómente venerador, mas até veneravel.

Yayá accordara extremamente alegre e boliçosa. O Sr. Antunes
levara-lhe um ramalhete de cravos, dizendo que era para que ella
recebesse outros ramalhetes durante todo o anno, e a menina, depois de o
receber e agradecer com uma mesura, foi pol-o n'um vaso, sobre o
parapeito da janella da alcova. O Sr. Antunes despediu-se della, meia
hora depois de almoçado.

--Já vae?

--Vou jogar uma partida de bilhar com o Jorge, disse familiarmente o pae
de Estella. Viremos cedo.

--Elle vem jantar?

--Quero ver se o trago.

--Mas... papae não está prevenido, objectou Yayá.

--Está; foi elle proprio que me autorisou a trazel-o. Verdade é que
fui eu que o pedi. Devemos muito áquelle moço, e ao defunto pae e á
mãe, a Sra. D. Valeria, que Deus tenha. Até logo.

Yayá ficou só, e um instante pensativa; mas, logo depois ergueu os
hombros, pegou de um trabalho de agulha, inventado para matar o tempo, e
caminhou para o gabinete do pae, onde o foi achar com Estella.

--Virgem Nossa Senhora! disse a moça parando á porta.

Ao pé da secretaria estava uma vasta cesta, transbordando de papeis;
sobre a secretaria papeis; papeis na mão de Luiz Garcia; outros na mão
de Estella; alguns esparsos no chão. Era uma liquidação de seis
annos. Luiz Garcia tinha o costume de guardar tudo, cartas, exemplares
de jornaes em que havia alguma cousa de interesse, apontamentos, simples
copias. De longe em longe inventariava e liquidava o passado. Havia já
alguns annos que não fazia a costumada operação. Começara quando
suppunha ter de deixar o Rio; agora tratava de concluir. Estella tinha
entrado pouco antes da enteada; sentara-se em uma cadeira rasa, e
entretinha-se a receber ou apanhar algum pedaço de jornal velho, e a
ler algum trecho em que os olhos acertavam de cair.

--Que é? disse Luiz Garcia logo que a filha soltara a exclamação.

--Papae vae ficar afogado em papel, disse a moça.

Luiz Garcia não respondeu; voltara os olhos para uma carta que tinha na
mão, e que sem duvida, lhe trazia alguma recordação amarga, porque
elle sorria tristemente. Leu-a toda; releu alguns trechos; depois fez um
gesto de desdem, rasgou-a e deitou os pedaços á cesta.

Yayá foi sentar-se do outro lado, a poucos passos do pae.

Na secretaria, ao pé deste, havia um maço de cousas que serviam, um
maço pequeno; a grande maioria era a dos destroços inuteis. Não é
isso mesmo a imagem do passado? Luiz Garcia desdobrava ás vezes um
jornal, avaramente guardado havia annos; duas cruzes ou alguns traços
indicavam o trecho que nesse tempo lhe chamara a attenção. Relia-o
agora; buscava o motivo da reserva e sorria. A impressão que
communicara algum interesse ao escripto desapparecera de todo; o
escripto era um esqueleto. Tambem as cartas eram assim. Raras escapavam
á destruição; as mais dellas eram dilaceradas, umas em dous
pedaços,--as infimas,--outras em trinta, as que podiam ter alguma
gravidade. Estella, que o ajudava, pegou casualmente em uma carta, cuja
lettra do sobrescripto lhe não pareceu extranha.

--Eu conheço esta lettra, disse ella.

--Deixa ver.

Estella deu-lhe a carta.

--É do Dr. Jorge, disse o marido.

Abriu-a, e depois de ler algumas linhas, sorriu. Leu-a depois até o
fim. Quando acabou, dobrou-a e ficou a olhar para a mulher; tornou a
desdobral-a machinalmente.

--Vou restituil-a, disse elle depois de curta pausa; talvez se
envergonhe de haver escripto estas cousas...

E dirigiu os olhos á carta, com uma insistencia de aguçar o mais
embotado appetite. Depois, volveu a cabeça um pouco para traz, onde
ficava a filha, a distancia, de olhos baixos; abafou a voz e disse a
Estella:

--Nunca soubeste do verdadeiro motivo que o levou á guerra?

Estella ficou ainda mais pallida do que era; o sangue todo refluiu-lhe
ao coração, donde lhe não saiu uma só palavra; foi com um gesto
negativo que ella respondeu. E se não podia empallidecer mais, podia
corar e corou de vergonha. Luiz Garcia não viu nem a primeira, nem a
segunda impressão de suas palavras. Enrolava e desenrolava com os dedos
um dos cantos da carta. Naturalmente relembrava os successos daquelles
cinco annos, as confidencias da mãe e do filho.

--Quem diria que depois de tamanho sacrificio.... O que são rapazes! O
que são paixões! Elle gostava de uma moça; não sei quem era, mas
supponho.... A mãe fez quando pode para domal-o; quando desesperou,
lembrou-se de o mandar para o sul; elle acceitou. Fui confidente de um e
de outro. Tempos depois de embarcar.... espera.... a data hade estar
aqui.... 67.... Ainda em 67 durava a tal paixão; afinal pareceu que só
esperava o fim da guerra para acabar tambem. Morreu-lhe a paixão e elle
engorda. Nunca suspeitaste nada?

--Não, murmurou Estella.

Luiz Garcia deu a carta á mulher, que a recebeu tremula e fria.

--Lê, que é interessante, disse elle.

Estella olhou para o papel e para o marido, vacilante, sem saber o que
faria e o que pensasse.

--Lê; é curioso, disse este, que voltara aos demais papeis, abrindo
uns, separando outros, tranquillo e indifferente.

Estella, sem levantar a cabeça, olhou ainda de esguelha para elle, como
a procurar-lhe na fronte a intenção escondida, se por ventura havia
alguma, e esse gesto era tão travado de receio e hesitação, era
sobretudo tão dissimulado, que ella propria o sentiu e arrependeu-se.
Cravou depois os olhos no papel, sem ler, sem fitar nenhuma linha, uma
palavra unica. Não via as lettras; via, ao longe, dous pombos que
voavam e a candura de seus labios embaciada por uns labios de homem;
nada mais. A mão tremia; ella firmou-a sobre a borda da secretaria; mas
o tremor, ainda que pouco perceptivel, não cessou.

--Leste? perguntou Luiz Garcia dobrando um jornal que acabava de passar
pelos olhos.

Estella fez um gesto para que esperasse um instante. Não reparava que
havia decorrido tempo sufficiente para haver lido a carta duas vezes.
Fez um esforço; voltou a pagina; duas ou tres phrases lhe feriram os
olhos: «Meu amor não sabe o que seja impaciencia ou ciume ou
exclusivismo; é uma fé religiosa que pode viver inteira em muitos
corações»--«O essencial é saber que amo a mais nobre creatura do
mundo»--«A paixão veiu commigo, e se não cresceu é porque não
podia crescer; mas transformou-se. De creança que era, fez-se homem de
juizo.» Chegou ao fim da carta ou pareceu ter chegado; dobrou-a, e não
se atreveu a dizer nada; depois tornou a abril-a.

--Que poesia, hem? disse Luiz Garcia sorrindo.

E o sorriso era tão natural, tão despreoccupado, tão honesto, que
Estella ficou tranquilla. Tinha em grande conta a dignidade e a
sinceridade do marido; não podia suppôr-lhe tanta hypocrisia nem
tamanha indifferença. Sorriu tambem, mas um sorriso de acquiescencia,
sem convicção nem espontaneidade. Luiz Garcia inclinou-se para ella;
falou-lhe com a mesma voz abafada de pouco antes; referiu-lhe o amor que
Valeria tinha ao filho e a estrategia usada para o fim de o arredar do
Rio de Janeiro.

--Naquelle tempo, disse elle, não sei se cheguei a arrepender-me de a
ter apoiado; hoje não. O filho ficou são e salvo de seus amores, com
um posto e honras de sobra.

--É verdade, murmurou Estella, que o escutara com a attenção dispersa
e impaciente.

Logo depois ergueu-se e foi á janella. Alli sacudiu a cabeça com um
gesto energico. Talvez lutavam nella forças contrarias; ou era o seu
passado que emergia da sombra do tempo, com todas as cores vivas ou
escuras, com as delicias occultas e nunca revelladas, e ao mesmo tempo
com as amarguras e resistencias. Era isso; era o coração que mordia
impaciente o freio da necessidade e do orgulho, e vinha pedir ainda uma
vez o seu quinhão de vida, e pedia-o em nome daquella carta, expressão
remota de um amor desenganado e impassivel. Estella suffocava esses
impetos, mas elles vinham. Após alguns minutos, deixou a janella,
tornou á cadeira onde estava. Luiz Garcia lia então um retalho de
jornal. Não chegou a levantar os olhos.

Defronte, Yayá tinha os olhos cravados na madrasta. Ouvira a principio
o nome de Jorge e não lhe prestara muita attenção; mas uma ou duas
palavras soltas do pae haviam-lhe despertado a curiosidade. Yayá ergueu
a cabeça, inclinou-a depois, ouviu a confidencia do pae, não obstante
ser feita em voz baixa, e emfim não retirou mais os olhos de Estella.
Viu-a receber a carta, com a mão tremula; viu-a empallidecer ainda
mais; viu-lhe a confusão e o enleio. Porque o enleio e a confusão? Um
amor extincto de Jorge, uma paixão que o levara á guerra, que tinha
ella, que tinham elles tres com isso?

Yayá olhou a principio com curiosidade, depois com espanto, até que os
olhos luziram de sagacidade e penetração. O estylete que elles
escondiam desdobrou a ponta aguda e fina, e estendeu-a até ir ao fundo
da consciencia de Estella. Era um olhar intenso, aquilino, profundo, que
palpava o coração da outra, ouvia o sangue correr-lhe nas veias e
penetrava no cerebro salteado de pensamentos vagos, turvos, sem
ligação. Yayá adivinhou o passado de Estella; mas adivinhou de mais.
Galgou a realidade até cair no possivel. Suppoz um vinculo anterior ao
casamento, roto contra a vontade de ambos, talvez persistente, mau grado
aos tempos e ás cousas. Tudo isso viu uma simples innocencia de
dezesete annos. Seu pensamento cristalino e virginal, nunca embaciado
pela experiencia, ignorava até as primeiras scismas de donzella. Não
tinha ideia do mal; não conhecia as vicissitudes do coração. Jardim
fechado, como a esposa do Cantico, viu subitamente rasgar-se-lhe uma
porta, e esses dez minutos foram a sua puberdade moral. A creança
acabara: principiava a mulher.

A impressão foi tão profunda, que apezar da força de resistencia que
havia em sua organização, Yayá não pode ter-se alli mais tempo. Saiu
e refugiou-se na alcova. Certo, aquelle amor intruso, se o havia, era
para affligir e prostrar um coração de filha, amassado de ternura,
para o qual a forma superior e exclusiva do sentimento era a paixão que
a prendia a seu pae, como um vinculo indestructivel. Depois vinha o
affecto que votava á madrasta, sua mãe electiva, affecto não menos
sincero e real, e que já agora podia diminuir, quem sabe até se morrer
todo?

Sentada na beira da cama, com os pés juntos, as mãos fechadas entre os
joelhos, os olhos cravados no espelho que lhe ficava defronte, Yayá
trabalhava mentalmente na sua descoberta. Confrontava o que acabava de
ver com os factos anteriores, de todos os dias, isto é, a frieza, a
indifferença, a stricta polidez dos dous, e mal podia combinar uma e
outra cousa; mas ao mesmo tempo advertia que nem sempre estava presente
quando Jorge alli ia, ou fugia-lhe muita vez, e podia ser que a
indifferença não passasse de uma mascara. Demais, a commoção da
madrasta era significativa. Estendeu o espirito pelo tempo atraz, até o
dia da primeira visita de Jorge, e lembrou-se que elle estremecera
ouvindo a voz de Estella, circumstancia que lhe pareceu então
indifferente. Agora via que não.

Uma hora inteira gastou nesse cogitar solitario, a sós com a suspeita e
o remorso. Tambem remorso, por que de quando em quando atterrada com a
vista do caminho andado, a alma recuava e estremecia; tinha horror de si
mesma. Mas a figura pallida da madrasta surgia ao pé della, com a
expressão que lhe vira pouco antes, e a consciencia fazia as pazes com
a malicia.

Vede a consequencia. Estella não era culpada; um incidente do passado
é que projectava tamanha sombra na vida presente; mas bastou o
espectaculo da commoção para turbar o espirito da enteada e lançar
lá dentro os primeiros germens da sciencia do mal. Que seria se fosse
culpada? Talvez o mais lastimoso effeito dos desvios domesticos é essa
corrupção dos corações ingenuos, impassiveis testemunhas do que
ignoram um dia, do que suspeitam, percebem e sabem na seguinte manhã:
primeira violação da virgindade.

Yayá agitava-se na alcova, de um para outro lado, desejosa e receiosa
ao mesmo tempo de ir ter com Estella. Duas vezes chegou á porta e
recuou. Uma das vezes, voltando para dentro, deu com os olhos no retrato
do pae que pendia junto á cabeceira,--uma simples photographia. Tirou-o
dalli, contemplou longamente a fronte austera e pura. Que! Haveria na
terra quem o amasse uma vez e não sentisse que o amor lhe dominaria a
vida inteira? Tão affectuoso! tão bom! vivendo exclusivamente para os
seus, sem nada invejar ao resto dos homens. Isto lhe dizia o coração,
emquanto ella ia beijando o retrato com respeito, com amor, afinal com
delirio. Grossas lagrimas e quentes lhe romperam dos olhos; Yayá
deixou-as cair: sorveu-as com seus proprios beijos. Quando essa primeira
explosão acabou, acabou para se não repetir mais. Enxutos os olhos
Yayá pode friamente reflectir, e a reflexão dominou a angustia.

O que se passou naquelle cerebro ainda verde, mas já robusto, foi uma
resolução sem plano. Deslindar o vinculo espurio era o essencial e
urgente, não cogitou no modo. Sua innocencia, assim como lhe
dissimulava toda extensão possivel do mal, assim tambem lhe encobria as
asperezas e os obices da execução. Era o coração que lhe designava
esse papel de anjo guardador. Natureza simples e intacta, ia direito ao
fim sem o temor que dá a experiencia e a contemplação da vida. Quem
sabe? Não conhecia a hypocrisia, mas acabava de suspeital-a; começava
talvez a apprendel-a.

Tinha-se demorado muito e era preciso sair do quarto; mas, como houvesse
chorado, podiam ler-lhe os vestigios da dor. Yayá foi ao lavatorio
deitou agua na bacia e começou a banhar os olhos e o rosto. O rumor da
agua impediu-lhe ouvir que alguem abria a porta. Estella appareceu-lhe
repentinamente.

--Que faz você aqui ha tanto tempo? disse a madrasta, parando á porta.

Yayá não se atreveu a olhar de rosto para ella; mastigou uma resposta
esquiva e continuou o que estava fazendo.

--Que tens? perguntou Estella pegando-lhe dos braços e fazendo-a voltar
para si. Você chorou? ... Chorou, sim; tem os olhos vermelhos. Que foi?
Yayá, fala; que é?

--Não é nada, acudiu a outra procurando sorrir.

--Não minta, Yayá.

A enteada olhou de relance para o espelho; viu que era inutil mentir.

--Foi uma tolice, disse ella.

--Alguma travessura?

--Antes fosse!

Yayá pegou do retrato que puzera na borda do marmore de lavatorio, e
olhou alguns instantes para elle. Estella quiz conchegal-a a si, mas a
enteada fugiu-lhe com o corpo.

--Trata-se... de teu pae? perguntou a madrasta.

Yayá fitou-a e respondeu:

--Sim, mamãesinha; estava a sacudir a poeira do retrato de papae, e
comecei a pensar... foi uma loucura... se elle... morresse?

Estella reprehendeu-a com uma interjeição; Yayá quiz continuar, mas a
outra interrompeu-a impetuosamente:

--Cala-te, disse; não penses em tolices. Dá cá o retrato.

--Não é verdade que elle é o melhor dos homens? perguntou Yayá, em
quanto Estella pendurava o retrato.

A unica resposta da madrasta foi caminhar para ella e dizer-lhe que
nunca mais pensasse em semelhante cousa.

--Não sou senhora dos meus pensamentos, respondeu a moça, erguendo os
hombros.

Após alguns segundos de silencio, Estella percebeu que alguma cousa
preoccupava a enteada, e disse-lh'o. Yayá respondeu negativamente. Mas
Estella insistiu:

--Não tens o teu ar do costume, e esses olhos andam vagamente de um
lado para outro. Talvez... quem sabe...

--Não é isso que a senhora pensa, interrompeu Yayá seccamente.

Depois sentou-se, a olhar para o jardim, a morder o labio, que lhe
tremia, e a comprimir os seios com a mão. Estella ficou um instante
calada; emfim sacudiu benevolamente a cabeça e approximou-se da menina.

--Tu não tens confiança em mim, Yayá, disse ella pousando-lhe a mão
no hombro. Se tivesses, dizias-me em que é que pensas, porque é de
certo em alguma cousa. Não é difficil deixar de pensar no Procopio
Dias; acho até que é a cousa mais facil; mas não será algum
pensamento da mesma natureza? Anda; sê franca; sou apenas tua madrasta,
e pouco mais velha que tu; posso ouvir tuas confidencias e
aconselhar-te. Onde acharás melhor amiga do que eu?

Yayá tinha applacado a primeira sensação; afivellou de todo a mascara
da tranquillidade, emquanto não a substituia por outra. Ergueu-se e
disse com affouteza:

--Pois bem, vou confiar-lhe uma cousa... não... supponha... é melhor
suppôr... tenho vergonha de dizer a verdade. Supponha que tive um amor
de collegio...

--Tu? Aos treze annos!

--Aos doze e meio.

--Bonito! Não foi começar tarde. Esse amor naturalmente expirou nos
braços da ultima boneca.

--Supponha que não, disse Yayá em tom serio. Ora, se eu tiver de casar
com o Procopio Dias...

--Quem te fala em casar com elle?

--Por ora é um gracejo; mas, se elle teimar, é possivel que nem a
senhora nem papae o desemparem, e ainda mais possivel que eu me deixe
vencer para contentar a todos. Mas é este o ponto de minha confidencia;
é uma ideia que me persegue ha dias. Devo eu casar com um homem amando
a outro? posso fazel-o? devo fazel-o?

Estella estremeceu levemente, sob o olhar impassivel e puro da enteada,
e não respondeu logo. Yayá parecia folgar com esse enleio de um
minuto; mas ao mesmo tempo o coração lhe sangrava, porque o enleio era
a confirmação de suas recentes supposições. A madrasta não tinha a
penetração da enteada; além disso, como suppôr nella o conhecimento
de um facto remoto e não divulgado? Estella nem cogitou nisso.
Escoou-se o minuto, e ella respondeu com tranquillidade:

--Não deves casar, se o amor pode ser satisfeito sem obstaculo. No caso
contrario, o casamento é uma simples escolha da razão: sacrifica-te.

Yayá, que tinha uma das mãos da madrasta entre as suas, largou-a
subitamente. Estella riu, e bateu-lhe na testa com a ponta do dedo.

--Esta cabecinha! disse ella. Ha aqui dentro muita cousa que é preciso
capinar...

No primeiro instante, Yayá empallideceu. Ao ultimo gesto de Estella,
respondeu com um sorriso forçado e sem cor. Logo que esta saiu,
deixou-se cair na cadeira e fechou o rosto nas mãos. Quando dalli saiu,
meia hora depois, não trazia nenhum signal de lagrimas, ou sequer de
tristeza. Não vinha alegre, de certo; serena, sim, daquella serenidade
com que o caçador do sertão se dispõe a encarar a onça.

Jorge foi jantar, e sobre a tarde appareceu Procopio Dias. Durante o
jantar e a noite, Yayá fez impressão na familia e nos extranhos, pela
singular alteração de seus modos. Estava um pouco pallida, mas a viva
luz dos olhos parecia communicar ao rosto uma porção do colorido
ausente. Mostrou-se expansiva, e não golhofeira. Suas phrases eram
longas, deduzidas, iam até o fim do pensamento, sem as interrupções e
saltos do costume. De costume, parecia que a moça pensava aos
fragmentos, porque era quasi impossivel ter com ella uma conversa
inteiriça e ordenada com a sua variedade propria. Naquelle dia era o
contrario. Como que a alma despira a roupa de bailarina, para enfiar um
roupão caseiro, simples, apertado, subido até o pescoço. Era melhor
assim? era peor? Nem uma nem outra cousa; era uma apparencia nova.

Mais do que ninguem, Jorge estimou essa alteração, porque em relação
a elle a moça tambem havia mudado alguma cousa. Yayá sentira nesse dia
mais repugnancia do que nunca ao ver o filho de Valeria, e chegou a
recuar instinctivamente a mão. Cedeu, porém, e o sorriso com que
corrigiu a recusa foi o primeiro que Jorge recebeu directamente della.
Nesse dia a moça respondeu-lhe sem custo, e talvez lhe dirigiu a
palavra alguma vez; o que tudo viu Luiz Garcia e attribuiu a effeito de
suas admoestações.

Nem Luiz Garcia nem Jorge poderiam suppôr que sobre a cabeça da
madrasta e da enteada a carta de 1867 agitava as suas lettras de fogo.
Essa carta importuna, poupada da destruição immediata, era a scentelha
subitamente lançada no amor adormecido de uma e no odio nascente de
outra; Jorge estava longe de o ler no rosto affavel de Yayá, e no olhar
fugidio de Estella.

Pouco depois das dez horas dispersou-se a reunião. O Sr. Antunes
aposentou-se por essa noite em casa do genro. Jorge e Procopio Dias
sairam juntos.

--Vae para a cidade a esta hora? perguntou Jorge.

--Repare que ainda me não offereceu cama, disse rindo o outro.

--Mas offereço-lhe agora.

--Acceito. Precisava justamente falar-lhe: negocio grave.

--Não é de certo algum fornecimento?

--Nem só de pão vive o homem, acudiu Procopio Dias.

--Que negocio é?

--Uma explicação.

--Sobre...

--Hade ser lá em casa; a noite é escura e os quintaes são
traçoeiros.



XI


Entrados em casa, Procopio Dias não se apressou a dar ou pedir a
explicação. Ceou primeiro, porque confessou haver adquerido esse
costume, e Jorge não se demorou em obsequial-o. A ceia improvisada,
composta de viandas frias e dous ou tres calices de vinho puro, deixou-o
em paz com a natureza. Satisfeita esta, era a hora da explicação.

Não veiu ella com facilidade. Indolentemente reclinado n'uma ottomana,
Procopio Dias fumava com volupia e falava com precaução, usando a voz
pausada e avara de um homem para quem o digerir, é meditar. Se alguma
ideia lhe avoaçava lá dentro, era difficil percebel-o atravez do olhar
exhausto e morbido. Entretanto, a curiosidade de Jorge não lhe
permittiu mais longa dilação e Procopio Dias foi compellido a
salisfazel-a, quando o moço, parando deante delle, fracamente lh'o
pediu.

--Parecia-me mais facil do que é, disse elle, sobretudo porque apezar
de nos conhecermos ha algum tempo, não estou certo da opinião que o
senhor forma de mim. Boa?

--Boa.

--Dê-me sua mão. Promette-me ser franco?

--Prometto:

--Qual das duas o leva á casa de Luiz Garcia?

Sobresaltado, Jorge retirou vivamente a mão.

--Bem vê, tornou Procopio Dias; é uma dellas.

Passada a primeira impressão, Jorge sentou-se tranquillamente, menos
comtudo do que affectava estar.

--Na verdade, a sua pergunta é das mais exquisitas que eu esperava
ouvir. Ignora as relações de amizade que me prendem áquella casa,
relações que herdei de minha familia, e que eu apenas continuo? Qual
das duas! Não ha alli duas; ha uma, uma sómente, uma... e...

--Não é essa? não é Yayá?

Jorge fez um gesto negativo.

--Acredite que me restitue a tranquillidade ao coração, disse Procopio
Dias sentando-se de todo. Não é meu rival? não tem nenhuma ideia?...
nenhuma ideia vaga?... É isso o que precise saber... é só isso, e é
tudo.

--O senhor gosta de Yayá?

Procopio Dias fez primeiro um gesto affirmativo; depois balbuciou a
confissão plena de seus sentimentos, mas com um ar de envergonhado,
meio sincero e meio fingido, e tão a ponto e natural, que era difficil
saber onde acabava a sinceridade e onde começava a simulação.
Animou-se a pouco e pouco, e não lhe escondeu nada. Confessou que a
filha de Luiz Garcia lhe transtornara de todo o espirito e que elle
estava resoluto aos maiores sacrificios para obter-lhe a mão.

--Ás vezes suppunha que o senhor andava nas minhas fronteiras, concluiu
elle, ideia que me affligia, porque o senhor tem sobre mim vantagens
incontestaveis. A suspeita desvanecia-se e eu tranquillisava-me. Hoje,
porém, confesso-lhe que a suspeita reappareceu e entrou a devorar-me o
coração; e ainda assim, tinha intervallos, porque ora me parecia que o
seu objecto era Yayá, ora que era a outra...

--Perdão, interrompeu Jorge; eu já lhe disse o que devia, e não posso
consentir que voltemos ao mesmo ponto. Uma de suas suspeitas é
injurias para mim.

--Tem razão; eu devia tel-o pensado, assentiu Procopio Dias. Mas que
quer? Nada se deve imputar aos dementes e aos namorados. Perdoa-me? Em
todo caso, pode crer que a minha indole não é tão tolerante com o
vicio que me fizesse desejar haver dado em balda certa. Não sou
rigoroso; sei que as paixões governam os homens, e que a força de as
reger não é vulgar. Por isso mesmo é que se estima a virtude. No dia
em que a natureza se fizer communista e distribuir egualmente as boas
qualidades moraes, a virtude deixa de ser uma riqueza; fica sendo cousa
nenhuma.

--Deixe-me falar-lhe com franqueza, disse Jorge, rindo; eu desconfio que
o senhor é ainda menos rigoroso do que diz. Parece-me que se a sua
suspeita, em relação á outra, tivesse fundamento, o senhor não me
ouviria com indignação.

--Talvez estimasse.

Jorge não disse nada; olhou sómente para o interlocutor, com um ar de
estupefacção, a que o outro sorriu benevolamente. Fez-se uma curta
pausa. Procopio Dias rompeu emfim o silencio:

--Talvez estimasse, sem deixar de indignar-me depois; isto é, a
indignação no momento seria abafada pelo interesse. Attenda-me,
doutor; sejamos justos com o natureza humana. Virtudes inteiriças são
invenções de poetas. Não me fazia bom cabello que a senhor gostasse
da outra, e menos ainda que ella lhe correspondesse, porque, em summa;
ambicionando entrar na familia, não desejaria que a familia tivesse a
menor macula. Esta é a realidade. Mas, eu amo, doutor; e por mais
ridicula que pareça esta confissão, por mais grosseira que seja a
minha casca, a verdade é que amo a enteada apaixonadamente: é o meu
pensamento de todos os dias. Ora, dado que o senhor amasse a outra, qual
era o primeiro movimento do meu coração? Ligal-os ao meu interesse.
Desde que entre os dous houvesse um segredo, e que esse segredo fosse
descoberto ou suspeitado por mim, o senhor e ella eram os meus melhores
alliados, e a resistencia daquella menina, e a vontade do pae, tudo
cedia em meu favor.

Procopio Dias proferiu estas palavras com simplicidade e convicção.
Seus olhos plumbeos pareciam duas portas abertas sobre a consciencia. A
expressão do rosto era a de um cynismo candido. Jorge contemplou-o
alguns instantes sem dizer palavra, ao parecer subjugado pelo
raciocinio. Ouvira-o pasmado e satisfeito. Tanta franqueza não mostrava
que Procopio Dias já não suspeitava nada? Jorge sorriu e replicou:

--O que o senhor acaba de dizer não será animador, mas persuado-me que
é a realidade pura. Admira-me sómente que tenha tanta penetração e
superioridade para ver e confessar os vicios da natureza humana...

--Sou pratico, tornou o outro sorrindo. Raras vezes me irrito, comquanto
lastime sempre o que é fraqueza ou perversão. Assim, por exemplo, eu
não lhe ficaria querendo mal se o senhor me houvesse illudido agora
acerca de seus sentimentos, porque o seu interesse e o seu dever é
negal-os.

--Perdão; já lhe dei minha palavra...

--Não deu, nem eu lh'a pedi, nem pediria, porque a palavra de honra
não obriga a consciencia, quando é dada para salvar uma questão de
honra. O senhor poderia dal-a sem sinceridade nem remorso. Já não é a
mesma cousa se me jurasse, por que o juramento, invocando o testemunho
de um ente superior, esse obriga a consciencia que não está
pervertida.

--Não exige de mim que jure, espero eu? disse Jorge.

--Ha ainda uma raiz de duvida, em meu coração, replicou Procopio Dias
sorrindo.

--Pois juro-lhe...

Procopio Dias levantou-se de subito.

--Não precisa mais, exclamou elle apertando-lhe as mãos. Agora creio;
creio de todo. Não é meu rival, nem corrompe a familia a que pretendo
unir-me. Se soubesse o prazer que me deu com a sua ultima palavra!
Obrigado! Agora creio. Ria-se de mim, ria-se; eu creio que esta
expansão pode ter um lado grotesco,--hade ter de certo. O que lhe
affianço é que se minha felicidade não é completa depende sómente
da fortuna não dos homens...

Sentou-se depois destas palavras, proferidas quasi sem respirar. Jorge
acompanhou-o nessa expansão de felicidade. Pareciam satisfeitos um do
outro. Procopio Dias confessou que era a primeira pessoa a quem falava
de seus sentimentos, e não se vexava de dizer que, ao cabo de alguns
mezes, nada podia saber do coração da moça. Ás vezes suppunha ser
acceito; outras, e eram as mais numerosas, tinha a persuasão contraria.

--O senhor naturalmente conhece-a e sabe que obra de contradicção é
aquella mocinha, disse elle. Ha occasiões em que sua familiaridade
commigo chega quasi á seducção. Talvez exagéro; mas que heide de
pensar de uma moça que me pede instantemente que vá lá, em certo dia,
com um modo grave e cheio de promessas? digo-lhe sim; vou, recebe-me com
um epigramma, ri-se de mim, abusa da complacencia e não sei se do amor,
porque, comquanto não lhe haja dito nada, acho natural que ella o tenha
descoberto nos meus olhos. Se fico despeitado e resolvido a não voltar
lá, ella torna-se mansa, como uma pomba, carinhosa, macia, e o meu
despeito evapora-se, e eu continuo a minha viagem interminavel.

--Nunca lhe deu a entender nada, ao menos por allusão?

--Nunca; receio que não me deixasse acabar.

--Não creia; eu supponho que ella gosta do senhor.

--Sabe disse?

--Não; mas é o que concluo do que me contou. As mulheres têm ás
vezes caprichos; e demais ha naquella uns restos de creança, que a faz
ainda mais caprichosa. Meu raciocinio é este: se ella percebeu, e não
o repelle absolutamente, é porque o senhor ainda pode ter
esperanças...

Procopio Dias não pode exprimir a alegria que estas palavras de Jorge
lhe entornaram na alma; seus olhos brilharam da uma luz extranha, depois
fecharam-se, emquanto a cabeça pendeu para traz, de um geito languido.
Durante essa pausa de alguns minutos, Jorge pode analysar as feições
de Procopio Dias, pouco proprias a fascinar uns olhos de dezeseis annos,
e achou natural que Yayá não se sentisse tomada de cego enthusiasmo.
Comtudo, não era impossivel corresponder-lhe de algum modo, se a razão
tomasse as redeas ao coração. Jorge suppunha até que houvesse em
Yayá uma semente de sympathia, que bastava fazer germinar.

Entrando no quarto que lhe fora destinado, Procopio Dias estava longe de
ter somno; a excitação trazia-o esperto. Entrou, abriu a janella e
olhou ao largo. O aroma vivo das plantas da chacara ainda mais lhe
apurou o systema. Não era homem de contemplar estrellas nem de fazer
philosophias acerca da solidão nocturna e do somno das cousas;
limitou-se a pensar no que acabava de ouvir.

--Gosta da Estella, murmurou elle; antes de jurar podia ser duvidoso;
depois do juramento é positivo, se ella não gosta delle faz mal; é um
rapaz de espavento.

Depois, abriu as azas ao pensamento e foi direito a Yayá, galgando o
espaço e derrubando paredes: foi e contemplou o seu somno de virgem,
que elle suppunha ser quieto e puro, mas que a essa mesma hora, era
turbado e já complicado das ideias do mal. Procopio Dias deixou-se ir
ao sabor da paixão, que era viva e sincera, uma conspiração surda e
mysteriosa de todas as forças sensuaes.

A figura terna e virginal de Yayá apparecera-lhe um dia, subitamente,
como uma visão não sonhada. Se elle a visse em algum salão
aristocratico pensaria nelle uma noite, talvez uma semana, até
esquecel-a ou substituil-a. Mas o que o prendeu a Yayá Garcia foi
justamente a mediocridade do nascimento. Possuil-a era fazer-lhe um
favor. Quantas outras lhe não levaram os olhos de satyro, ao descer de
uma carruagem, ou ao resvalar indolentamente o seu talhe na contradança
de bom tom? Elle via-as passar ou estar, com os hombros nus ou cingidos
da cachemira elegante, risonhas umas, outras sérias, todas altivas e
compassadas, e sentia que os annos, feições e maneiras o distanceavam
dellas; não era difficil apagal-as de memoria.

Yayá teria antes de agradecer a escolha; era a sua convicção, e foi o
que mais o ligou á filha de Luiz Garcia.

Quando a moça reflectisse que acharia no marido a satisfação de todas
as velleidades do luxo, o gozo das cousas superfinas, elegantes e raras,
devia ceder por força e preferil-o a quem lhe désse apenas coração,
trabalho e necessidades. Uma vez brotada a ideia, cresceu e tomou-lhe o
cerebro todo. Yayá era então a figura presente a seus olhos, ora
divina e casta, ora ardente e lubrica,--lubrica, porque elle em sua
imaginação conspurcava-a, antes mesmo de a possuir.

No dia seguinte acordaram tarde e almoçaram juntos, sem tomar no
assumpto da vespera. No fim do almoço, Procopio Dias referiu-se a elle,
dizendo que fora excessivo na noite anterior, e pedindo a Jorge que o
não levasse a mal; porquanto era tudo filho de um sentimento que não
pécca por moderado na suspeita, nem equitativo na apreciação.

--Não podia attribuir-lhe outro motivo, redarguiu Jorge sorrindo.

--Não ficou mal commigo?

--Mal? A prova é que se dependesse de mim casal-o, casava-o amanhã
mesmo.

Procopio Dias agradeceu-lhe a sympathia e o obsequio, e saiu. Jorge foi
dalli vestir-se para ir passar alguns minutos no escriptorio. Emquanto
se vestia, pensava na situação do ex-fornecedor do exercito. Não eram
amigos, mas o caso de Procopio Dias interessava-o; era sympathico a seus
olhos. Não indagou se essa sympathia brotava do medo; persuadia-se
ingenuamente do contrario. Um marido apaixonado e opulento! Duas
vantagens que uma moça nas condições de Yayá, devia acceitar com
ambas as mãos. Talvez Procopio Dias não fosse mal acceito ao coração
da moça; sómente, havia nesta uns vestigios de creança, que o tempo
devia apagar.

--Naquella edade um pretendente é uma especie de boneca, dizia Jorge
atando a gravata; o que é preciso, a todo trance, é fazer da boneca um
esposo.

Chegando ao escriptorio, ao meio dia, Jorge encontrou o Sr. Antunes
consternado. Tinha dormido até onze horas, chegara tarde á casa em que
trabalhava, o patrão convidara-o a fazer as contas. Era uma pequena
casa de commercio, onde o Sr. Antunes, que entendia de escripturação
mercantil, trabalhava desde algum tempo, graças ao obsequio de Jorge:

--Mas já foi despedido? perguntou este.

--Devo fazer as minhas contas e retirar-me no fim do mez.

Jorge escreveu duas linhas ao patrão do Sr. Antunes. De tarde, foi este
a Santa Thereza. Jorge ia sentar-se á mesa do jantar; o Sr. Antunes já
tinha jantado, mas acompanhou-o.

--Venha, venha, disse o moço; preciso ralhar-lhe.

Vexado e timido, o Sr. Antunes sentou-se defronte de Jorge, que não lhe
disse nada durante os primeiros minutos. Jorge falou emfim,
reprehendendo-o amigavelmente; disse-lhe que as exigencias do
commerciante não eram exageradas, e em todo caso não havia meio de
oppôr-se a ellas, salvo se quizesse deixar a casa.

--Isso mesmo, disse o pae de Estella.

--Não faça isso; não se ganha nada em andar de emprego em emprego.
Demais, francamente, não vejo que entrar antes das dez horas seja cousa
difficil. Seu genro faz isso ha muitos annos.

--Meu genro!... meu genro!... disse o Sr. Antunes sacudindo a cabeça
com um gesto de enfado.

Jorge fingiu não attender ao gesto e ao tom do pae de Estella, e tratou
de o converter á pontualidade, obra que começava a ser difficil,
porque o Sr. Antunes entrava já nas consequencias logicas e naturaes de
uma longa dependencia; preferia o favor ao trabalho, e os annos
contribuiam para esse amor da inercia e do beneficio gratuito. A maior
ambição que o animou, se a fortuna a houvera realisado, dar-lhe-hia
todos os meios de envelhecer tranquillo. Agora tinha encanecido, e o
corpo, embora lesto, começava a suspirar pela inacção.

Jorge deixou o assumpto para não vexar o antigo protegido do pae, e
acabou o jantar alegremente. No fim recebeu um bilhetinho de Procopio
Dias. «Não imagina, dizia este, que dia tenho passado, depois da nossa
conversa de hontem. Teimo em dizer que fui excessivo, e ainda uma vez
lhe peço me releve a falta. Poderia o senhor castigar um doido? O amor
não tem imputação. Queime este bilhete; em todo caso não o revele a
ninguem, sobretudo á pessoa de que se trata.» Jorge sorriu e releu o
bilhete; depois fechou-o na secretaria e escreveu esta simples resposta:
«Ainda uma vez, não ha que perdoar. O senhor foi apenas desconfiado,
como todos os ciumentos; mas, como não inventou o ciume, não lhe faço
carga disso.» Entregue a resposta, Jorge olhou para o Sr. Antunes, que
fumava discretamente um charuto do bacharel.

--Ouvi dizer hoje uma cousa, disse Jorge com ar indifferente; ouvi dizer
que Yayá vae casar.

--Casar? repetiu o Sr. Antunes com um sobresalto. E depois de um
instante:--É possivel; naquella casa o ultimo que sabe das cousas sou
eu.

--Talvez não passe de balella. Nem me disseram com quem. Provavelmente
ha algum namorado ou apparencia disso, e então os novelleiros vão logo
ao fim. Mas haverá deveras algum pretendente ou namoro?...

--Que eu saiba, nada, asseverou o Sr. Antunes. E até, deixe-me
dizer-lhe o que penso, duvido que ella cuide por ora de semelhante
cousa. Aquella menina não tem cabeça.

--Oh! exclamou Jorge rindo.

--Não tem, digo-lhe eu. Está alli, está no hospicio. Não se póde
dizer que seja travessura, porque não está em edade disso; é pancada.
Se soubesse as cousas que ella faz ás vezes!

--Não me parece; quando a vejo, é sempre com um modo comedido, e
muitas vezes serio...

--Lá isso. é porque ella não gosta do senhor.

--Não gosta de mim? perguntou Jorge admirado.

--Não digo que absolutamente não goste, obtemperou o pae da Estella;
não lhe tem muita sympathia, é o que é.

--Como sabe você disso?

--Ouvi uma vez o pae reprehendel-a, por que de proposito voltara as
costas ao senhor; e então ella levantou os hombros, assim com um ar de
pouco caso. O pae tornou a dizer que aquillo não era bonito, mas perdeu
o tempo; Yayá pregou os olhos nas unhas, com a testa franzida, e eu sai
porque já não podia aturar nem um nem outro.

Jorge ficou alguns instantes pensativo. Era certo que Yayá o tratara
sempre com muito resguardo e frieza; mas, supposto que isso não
significasse sympathia, e até lhe sentisse alguma hostilidade, estava
longe de attribuir-lhe declarada aversão. Do gesto a que o Sr. Antunes
alludira, não se lembrava absolutamente, mas era possivel. Demais,
pensou elle, o Sr. Antunes não o inventaria na occasião; não era
callumniador; faltava-lhe essa ferocidade. Mas, porque motivo não
gostaria delle a filha de Luiz Garcia? Era a segunda vez que Jorge fazia
essa pergunta, sem lhe achar resposta plausivel. Em seguida, recordou-se
da noite anterior, e observou ao pae de Estella que Yayá o tratara na
vespera com alguma cordialidade.

--Milagre de anno bom! explicou o Sr. Antunes. Tambem lhe digo que não
perde nada se ella não gostar do senhor; é uma fortuna. Porque ella,
quando gosta de uma pessoa, é de fazer-lhe perder a paciencia.

--Mas parece ter bom coração, e creio que gosta muito do pae.

--Tambem Estella gosta de mim.

Jorge fechou neste ponto a conversação. Seu pensamento voltou á
revelação inopinada do Sr. Antunes. Por mais indifferente que Yayá
lhe fosse, Jorge sentia-se molestado com a certeza de que a moça não
gostava delle. Porque seria? Simples antipathia ou outra cousa?

A preoccupação desvaneceu-se na tarde do dia seguinte, quando Jorge
appareceu em casa de Luiz Garcia. Foi a propria Yayá quem veiu
abrir-lhe a porta do jardim dizendo, alegremente:--Entre, Sr. doutor,
que já se fazia esperado. Jorge não pode esconder o assombro que lhe
produzira aquella recepção; nem o assombro nem a alegria. Entrou e
estendeu-lhe a mão.

--Não posso, tornou a moça mostrando a sua, fechada; só se adivinhar
o que está aqui dentro.

--Não é uma estrella.

--Não, senhor; é um cavallo.

No fundo do jardim estava Luiz Garcia, com o taboleiro do xadrez:
acabava de dar uma licção á filha, que lh'a pedira desde antes do
jantar. Yayá levou até lá o filho de Valeria. Pela primeira vez
sentou-se ao pé dos dous para vel-os jogar; fincou os cotovellos na
mesa e encostou o queixo nas mãos; queria aprender, dizia ella, em tres
semanas.

--Tres semanas! repetiu o pae a sorrir e a olhar para Jorge.

Das qualidades necessarias ao xadrez, Yayá possuia as duas essenciaes:
vista prompta e paciencia benedictina; qualidades preciosas na vida, que
tambem é um xadrez, com seus problemas e partidas, umas ganhas, outras
perdidas, outras nullas.



XII


Quinze dias depois, Procopio Dias appareceu em casa de Jorge com o luto
no vestuario e no rosto. De Buenos-Ayres chegara-lhe na vespera, á
tarde, a noticia da morte de um irmão, seu ultimo parente, noticia que
o obrigava a embarcar no dia seguinte e demorar-se no Rio da Prata cinco
a seis semanas. Não se pode dizer que elle estivesse triste; estava
serio,--serio e preoccupado. A viagem a Buenos-Ayres não tinha por fim
o cadaver do irmão, mas a herança, que posto não fosse grande, valia
alguma cousa.

Procopio Dias offereceu seus serviços ao filho de Valeria, que de sua
parte prometteu-lhe algumas cartas de apresentação, se precisasse.
Procopio Dias acceitou uma. Jorge levou-lh'a no dia seguinte. Elle
recebeu-a com demonstrações de agradecido e quasi terno. E depois de
um momento de silencio:

--Já agora entrego-lhe pessoalmente esta carta, que devia ser levada
amanhã por um portador.

Jorge quiz abrir:--Não, acudiu o outro; prometta-me que só a abrirá
amanhã.

--Porque não hoje de noite?

--Podia ser hoje de noite; mas é bom que entre a impressão da
despedida e a leitura desse papel decorra o espaço da noite e o somno.
Talvez seu juizo seja differente.

Jorge prometteu. Procopio Dias partiu. No dia seguinte abriu a carta e
leu estas poucas palavras: «Seja o meu anjo de guarda durante a minha
ausencia.»

--Porque não? disse elle comsigo.

De tarde, saiu a cavallo, costeando o aqueducto segundo costumava, e ia
pensando seriamente na conveniencia de casar os dous. Naquellas duas
semanas tivera tempo de apreciar um pouco as qualidades da moça, que
lhe pareceram boas, com quanto lhe achasse tambem alguma cousa original,
mysteriosa ou romanesca, muito acima da comprehensão ou do sentimento
de Procopio Dias. Jorge não se illudia acerca da paixão do
pretendente; suppunha-a sincera, mas não lhe attribuia a virgindade das
primeiras ou das segundas commoções: era uma paixão da ultima hora,
um occaso ardente e abraseado entre o dia que lá ia, e a noite que não
tardava a sombrear tudo. Ainda assim a alliança lhe parecia
conveniente. Yayá possuia de certo a força necessaria para dominar
desde logo o marido; e o titão encadeado teria ao pé de si, em vez de
um abutre a picar-lhe o figado, uma formosa rôla destinada a
prolongar-lhe as illusões da juventude.

Se eram boas as impressões que Yayá lhe deixara nos ultimos dias, não
eram ainda assim isentas de algum enfado, aliás passageiro. Uma ou duas
vezes, Yayá lhe pareceu singularmente aspera, e sem motivo nem
duração. Esses assomos porém, eram logo compensados por uma
afabilidade, que parecia mais viva, mais ruidosa, talvez um pouco
importuna. Occasião houve em que Estella disse á enteada, com um
sorriso de reprehensão:--Não amofines o Sr. doutor Jorge. Não
comprehendeu Jorge porque motivo essa palavra simples, dita em tom
brando, deu ao rosto de Yayá uma expressão indignada; lembrava-se
porém que a expressão foi passageira, e que ella passou do singular
amúo á habitual alegria:--Bem vê, replicou Estella, bem vê que é
uma creança.

Jorge ia assim a reflectir, e já de volta, quando ouviu uma voz que
dizia o seu nome. Era Yayá que descia da casa da velha ama. Jorge parou
o cavallo.

--Em que vae pensando? disse ella.

--Na senhora, respondeu o moço affoutamente, depois de verificar que
ninguem os podia ouvir.

Yayá caminhou até á rua, acompanhada de um homem velho, o irmão de
Maria das Dores.

--Que anda fazendo aqui? continuou Jorge inclinando o busto sobre o
pescoço do cavallo.

--Vim visitar a Maria das Dores. Coitada! esta tão abatida!

--Bem; eu logo lhe direi o que é; vá ver a doente.

--Já a vi; volto agora para casa. O Sr. João vae acompanhar-me.

Jorge apeou-se.

--Deixa-me acompanhal-a tambem? perguntou.

--Deixo; mas é só por ser curiosa. Quero saber o que ia pensando a meu
respeito. Vamos, Sr. João?

Jorge enfiou a redea no braço e collocou-se ao lado della; Yayá
tomou-lhe affoutamente o outro braço.

--Vá, conte-me tudo.

--O Procopio Dias embarcou hoje.

Yayá, que já havia dado os primeiros passos, estacou.

--Para onde? disse.

--Para o Rio da Prata; morreu-lhe um irmão em Buenos-Ayres.

--Mas sem se despedir de nós!

--Naturalmente, custava-lhe fazel-o, e quiz poupar-se á dor da
separação. Esteve porém commigo, e prometteu-me que a demora seria
curta. Vi-o muito afflicto com a viagem, tão afflicto que não sei se
lhe diga que era... era, decerto, era maior a dor da viagem do que a da
morte do irmão. Talvez lhe faça injuria nisto, mas parecia.

--Porque? perguntou a moça erguendo os olhos para elle.

--Não sei se lhe deva dizer porque, acudiu Jorge. E dahi, não se
tratando de nenhuma cousa do outro mundo... É verdade que as moças
bonitas como a senhora, costumam ser crueis... Não sei... Ha
situações um pouco...

--Ridiculas, concluiu Yayá.

--Como ridiculas?

--Por exemplo, a sua.

Jorge enfiou um pouco; mas a um homem de sociedade, Yayá não parecia
de força a fazer perder o equilibrio. Sorriu levemente, e retorquiu sem
azedume.

--Não é ridiculo ser affectuoso; eu cuidava responder á linguagem de
seu coração.

--Suppunha que a ausencia de Procopio Dias me deixava saudades...

--Suppunha.

--Que tem o senhor com isso?

A resposta de Jorge foi um simples gesto negativo. Comtudo, não pode
zangar-se, porque sentia tremer o braço da moça, e olhando de esguelha
para ella via-a pallida e com os olhos no chão. Se a pallidez e o
tremor eram de colera não chegou a sabel-o; mas provavelmente não era
outra cousa porque ao cabo de tres a quatro minutos, Yayá ergueu os
olhos e estendeu-lhe a mão, dizendo:

--Façamos as pazes.

--Nunca estivemos em guerra, acho eu.

--Talvez em vespera da guerra.

--Não por culpa minha...

--Nem minha, acudiu a moça. E erguendo o chapellinho do sol para o ceu.
Talvez por culpa daquelle, disse ella suspirando.

Após o suspiro, veiu uma risadinha secca e forçada, mas longa ainda
assim como o som de um golpe no crystal. Tinham andado poucos minutos e
esses poucos eram já de sobra para espertar a curiosidade de Jorge, e
para lhe dar direito a pedir uma explicação. Jorge pediu-lh'a em
termos affectuosos, perguntando por que razão era o ceu culpado em uma
guerra que devia romper entre ambos, e sobretudo qual seria o pretexto
dessa guerra. Yayá reflectiu um instante, e começou a falar com os
olhos baixos.

--O motivo é o senhor mesmo, disse ella.

--Eu?

--O senhor, que é meu inimigo, que me detesta. Não me dirá que mal
lhe fiz eu? continuou ella erguendo subitamente os olhos. Escusa fazer
esse gesto de espanto; sei que o senhor me detesta, e por mais que
pergunte a mim mesma--não sei, não me recordo... Diga, fale com
franqueza.

--Tanto melhor! exclamou Jorge. Vejo que havia entre nós um equivoco e
é chegada a occasião de o desfazer. Quer que lhe fale com franqueza?
O inimigo não sou eu, é a senhora; é a senhora, ou antes, era ou
parecia ser. Agora comprehendo; retribuia-me a aversão que suppunha
haver em mim. Tanto melhor! Façamos as pazes de uma vez.

Yayá apertou a mão que elle lhe offereceu e chegaram alegremente a
casa. Jorge quiz retirar-se logo, mas a moça ordenou a Raymundo que
conduzisse o cavallo, e Jorge foi compellido a entrar por alguns
minutos. Luiz Garcia não estava em casa. Estava o Sr. Antunes. Yayá
mal deu tempo aos primeiros comprimentos.--Ande jogar commigo, disse
ella.

--Em boa paz?

--Em boa paz.

Yayá preparou o xadrez, no gabinete contiguo á sala; Jorge sentou-se
pacientemente deante da adversaria, rectificou a posição de duas
peças, excluiu as que lhe dava de pardido e adiantou o primeiro pião.

--Vá, disse; é a sua vez.

Yayá não obedeceu ao convite. Olhava para elle, com ar inquieto.

--Dá-me sua palavra de honra de que me não negará o que lhe vou
perguntar? disse ella ao cabo de alguns instantes de silencio.

Jorge hesitou um pouco.

--Conforme.

--Exijo.

--Que me pedirá ella que lhe não possa affirmar? pensou Jorge. E em
voz alta respondeu:

--Dou.

--Foi elle quem lhe encommendou...

--O sermão? interrompeu Jorge sorrindo. Serei franco; foi elle mesmo.

Yayá baixou os olhos ao taboleiro, cavalgou a torre com o bispo, como
distrahida, e em voz ainda mais baixa do que lhe falara, perguntou:

--O senhor é homem de segredo!

--Sou, redarguiu afoutamente Jorge.

--Pois bem, continuou Yayá, eu gosto delle, gosto muito, mas não
desejo que elle saiba.

--Deveras? não está gracejando?

--Não estou.

Jorge estendeu-lhe a mão:--Magnifico, disse elle alegre; não é
preciso mais. Uma vez que se amam, virão naturalmente a...

Não pode acabar, porque a moça, erguendo-se de subito, affastou-se da
mesa, com um arremeço, e dirigiu-se á janella, que dava para o jardim.
Jorge ficou espantado. Não entendia o que estava vendo. Inclinou-se
sobre o taboleiro e começou a mover as peças, sósinho, sem plano,
machinalmente. Assim jogando, ouvia o som do tacão de Yayá que feria o
ladrilho do chão, com um movimento precipitado e nervoso. Durou isto
cinco minutos. Yayá voltou-se para dentro, saiu da janella e
approximou-se da mesa. Jorge ergueu então a cabeça para ella e sorriu.

--Não me dirá que lhe fiz eu, para ficar tão zangada commigo?
perguntou com benevolencia.

--Nada; eu é que fui estouvada e não sei se mais alguma cousa.

Jorge protestou que não.--Foi rispida sómente disse elle; e se o foi
sem querer, não foi sem motivo. Não me dirá que motivo é esse?
Parece-me que não a tratei mal...

--Não.

--Nesse caso, o motivo está na senhora mesma; e se eu não tivesse medo
de que se zangasse outra vez commigo, atrevia-me a pedir-lhe que me
dissesse tudo--ou pelo menos alguma cousa.

--Para que? Vamos jogar.

--Está escurecendo.

--Mando vir luzes.

Vieram luzes; começaram a jogar. Entre elles o xadrez não podia
offerecer interesse, mas dado que pudesse, não seria naquella
occasião. Um e outro estavam distrahidos e preoccupados. A primeira
partida foi concluida, em pouco tempo, quasi sem calculo.

--Outra? perguntou Yayá.

--Vamos.

Antes de começar, disse ella collocando as peças, e sem olhar para
Jorge, quero dizer que tem um meio seguro de nunca brigar commigo.

--Qual é?

--É ser meu confidente.

--Senhor de seus segredos?

--Todos.

--O meio é facil; só eu ganho na troca.

--Nisso dou prova de grande coração.

Já não era a menina rispida de alguns instantes; dissera as ultimas
palavras com muita graça e placidez. Ao mesmo tempo, continuava a
arranjar methodicamente as peças. Acabou e reclinou-se no dorso da
cadeira.

--Não me declarou ainda se acceitava, disse ella.

Jorge hesitou um instante. Era gracejo ou proposta séria? A um gracejo
responde-se com outro, a uma proposta responde-se com seriedade. Jorge
hesitava em tomar sobre os hombros uma parte de responsabilidade dos
sentimentos da moça. Quaes seriam elles? que projectos despertariam
naquelle cerebro provavelmente indomavel? Não podiam ser outros senão
os de casamento com Procopio Dias, visto que ella confessava amal-o.
Esta reflexão fel-o declarar affoutamente que acceitava a confidencia.

--Sabe o que acceita? perguntou Yayá.

--Farejo.

--Toque! disse ella estendendo-lhe a mão.

Jorge deu-lhe a sua.

--Não se trata em todo caso de nenhum assassinato? perguntou rindo.

--Não.

A segunda partida foi mais animada, mas só por parte de Yayá. A moça
ria ás vezes, mas a maior parte do tempo fazia convergir toda a sua
attenção para o jogo. Quando falava, era moderada e docil. Essa
alternativa e contraste de maneiras interessava naquelle momento o
espirito de Jorge. Que especie de mulher fosse, imperiosa como uma
matrona, travessa como uma creança, incoherente e enigmatica, era cousa
que elle não podia em tão pouco tempo descobrir; mas o enigma
aguçava-lhe attenção. Em quanto ella tinha os olhos no taboleiro,
Jorge buscava ler-lhe a alma na fronte lisa e candida; mas não via a
alma, via só uns fiapos castanhos do cabello, que lhe caíam sobre a
testa e esvoaçavam levemente ao sopro da aragem que entrava pela
janella, e lhe davam um ar de puericia. A boca fina e pensativa corrigia
aquella expressão da cabeça; era a primeira vez que elle lhe descobria
um forte indicio de energia e tenacidade.

Quando era a vez de Jorge, Yayá affastava o busto, reclinava-se no
espaldar de cadeira e ficava a olhar para elle, como elle havia olhado
para ella. Mas nesse olhar não scintillava curiosidade; era uma luz
velada e baça, como alheia ao mundo exterior. Encontravam-se assim os
olhos de um e de outro, e a partida continuava, até chegar ao fim sem
novo incidente.

Prestes a acabar, Estella entrou no gabinete, sem os interromper.
Sentou-se caladamente a um canto da janella. O jogo cessou no momento em
que entrou Luiz Garcia.--Perdi duas partidas, papae, disse a moça; mas
por um triz não ganhei a segunda. Jorge quiz sair logo depois; foi
obrigado a demorar-se, porque Yayá lembrou-se de ir tocar piano. Era a
primeira vez que Jorge conseguia ouvil-a. A moça escolheu uma pagina de
Meyerbeer; Jorge confessara uma vez que era esse o autor de sua
predilecção.

No dia seguinte a impressão deste era um tanto complexa e perplexa.
Aquella mistura de franqueza e reticencia, de aggressão e meiguice,
dava á filha de Luiz Garcia uma physionomia propria, fazia della uma
personalidade; mas a physionomia era ainda confusa e a personalidade
vaga. Jorge sentia-se empuxado e retido, ao mesmo tempo, por dous
sentimentos contrarios; tinha curiosidade e repugnancia de penetrar o
caracter da moça, e conhecer e distinguir os elementos que o compunham.
O que lhe parecia claro e definitivo era que as primeiras palavras de
Yayá, tão duras e tão seccas, não passavam de uma expressão de
despeito, por suppôr da parte delle a aversão que não existia; e se
as palavras em si o magoavam, a explicação lisongeava-lhe o
amor-proprio. O resto era inexplicavel. Jorge resolveu, entretanto, não
lhe falar mais de Procopio Dias, apezar da confissão aliás contrastada
ou diminuida pelo gesto que se lhe seguiu.

Yayá pareceu perder a disposição aggressiva; á força de
affabilidade apagou inteiramente os vestigios da antiga rispidez. A alma
não se lhe tornou mais transparente, nem o caracter menos complexo; mas
a exquisita urbanidade dos modos fazia supportaveis os saltos mortaes do
espirito, e augmentava o interesse do que havia nella obscuro ou
irregular; finalmente, era um correctivo á tenacidade com que a moça
confiscava litteralmente o filho de Valeria. Jorge estimou, sobre todas,
esta circumstancia, porque lhe tornou mais facil a frequencia da casa.
Elle pertencia ao pae ou á filha--muitas vezes aos dous. Yayá
atirou-se ao xadrez com um ardor incomprehensivel, e dizendo-lhe Jorge
que era preciso ler alguns tratados, ella pediu-lhe um, e porque elle
só os tivesse em inglez, Yayá pediu que lhe ensinasse inglez.

--Mas eu sou um mestre muito rispido, observou elle.

--A discipula é muito peor.

Estella assistia algumas vezes ás lições do idioma e do jogo;--duas
cousas que lhe pareciam incompativeis com o espirito da enteada. Verdade
é que Yayá mudara tanto naquellas ultimas semanas! Não lhe suppuzera
nunca tão longa paciencia, nem tão repousada attenção. Yayá gastava
uma a duas horas por dia a decorar os verbos e os substantivos da nova
lingua, e essa paixão recente tinha o condão singular de irritar a
madrasta. Jorge, pelo contrario, sentia em si os jubilos do pedagogo. O
professor é o pae intellectual do discipulo; Jorge contemplava
paternalmente aquella intelligencia fina, paciente e tenaz servida por
dous olhos de pomba e duas mãos de archanjo.

No meado de Fevereiro tornaram a falar de Procopio Dias, a proposito de
uma carta que Luiz Garcia recebera.

--Veja lá, disse a moça; elle escreveu a papae e nem uma palavra
especial para mim. «Lembranças a D. Estella e a Yayá.» Nada mais.
Elle escreveu-lhe?

--Até agora, não.

--Não ha nada como a ausencia para fazer esquecer tudo--isto é,
esquecer os que ficam. Talvez já não pense em casar commigo. Foi um
capricho que passou, como todos os caprichos; foi como a chuva de
hontem, que deu apenas alguns salpicos de nada. E com tudo parecia que
vinha abaixo o ceu. Não é? a paixão delle não é como a trovoada?
ameaçou no Rio de Janeiro e foi cair em Buenos-Ayres. Aposto que vem de
lá casado. Verá que não é outra cousa. Que me diz a isso? Vamos;
diga alguma cousa.

--Não posso, redarguiu Jorge. A senhora deu-me o cargo de confidente e
não de conselheiro; limito-me a ouvil-a. Verdade é que o tal cargo
até agora parece simples sinecura.

--Que é sinecura?

Jorge sorriu e definiu-lhe a palavra.

--Não é sinecura, acudiu Yayá; pelo contrario, é um cargo muito
espinhoso.

--Não creio. A confidencia unica até hoje não me pareceu sincera. A
senhora não ama o Procopio Dias.

Yayá franziu a testa.

--Porque me diz isso?

--Porque, se o amasse, falaria de outro modo, e sobretudo não falaria
tanto. O amor, nessa edade, vive de reticencias, não de phrases e menos
ainda de phrases tão compostas.

--Cale-se! interrompeu ella batendo-lhe com a grammatica na ponta dos
dedos. E depois de uma pausa:--Se elle lhe escrever, mostra-me a carta!

Como Jorge lhe dissesse que sim, Yayá fez um movimento para rasgar o
volume em dous pedaços. Jorge perguntou-lhe o que tinha.--Nervoso!
respondeu a moça sacudindo os hombros com um calefrio. Depois, como a
amparar-se, lançou-lhe a mão a um dos pulsos. Jorge sentiu a pressão
de uns dedos de ferro; e parece que outros dedos invisiveis tambem
comprimiam as faces da moça, vermelhas como se vertessem sangue.



XIII


Jorge achou em casa, nessa mesma noite, uma carta de Buenos-Ayres.
Procopio Dias narrava-lhe a viagem e os primeiros passos, e dizia ter
toda a esperança de se demorar pouco tempo. Tudo isso era a terça
parte da carta. As duas outras terças partes eram saudades, protestos,
expressões de sentimento, e um nome no fim, um nome unico, e que era a
chave do escripto. Jorge leu attentamente essas confidencias, e na mesma
noite esboçou uma resposta. Não era facil combinar a discrição que
quizera conservar em suas relações com Procopio Dias e a necessidade
de lhe mandar algumas esperanças. Embora com esforço, redigiu a
resposta conveniente, contando-lhe as boas impressões que tinha; só as
boas, não lhe disse as duvidosas; sobretudo não desceu a nenhuma
realidade, a nenhum nome proprio; nada mais que uma extensa serie de
locuções egualmente animadoras e vagas.

No dia seguinte não foi á casa de Luiz Garcia; choveu torrencialmente.
Mas no outro dia foi, logo depois do jantar. Achou reunida a familia.

--_Good evening, my dear_ mestre! bradou Yayá logo que o viu entrar na
sala.

--Faltava mais uma lingua a esta tagarella, disse Luiz Garcia rindo;
daqui a pouco tempo ninguem a poderá aturar.

Jorge não esperava, de certo, encontrar na moça a mesma expressão que
lhe deixára na antevespera, quando de um gesto nervoso lhe comprimira
o pulso. Tinham passado quarenta e oito horas, e para que ella se
restabelecesse bastariam apenas quarenta e oito minutos. Contava com a
mudança; não obstante procurou ler-lh'a nos olhos, e achou-os tão
alegres como o tom em que ella o saudara. A licção isolou-os, e foi
tambem o pretexto mais favoravel para lhe mostrar a carta de Procopio
Dias. Yayá viu-a sellada e comprehendeu tudo; arrebatou-a ás mãos de
Jorge.

--Ah! disse este, seu gesto vale um discurso.

--Posso ler?

--Pode.

Yayá desdobrou a carta e leu-a para si, Emquanto lia, Jorge fitava-a.
Não lhe via nenhuma confusão, alvoroço ou alegria; os olhos seguiam
lentamente de uma linha a outra, e a mão firme voltava a pagina. No
fim, quando leu o proprio nome, teve um movimento de tedio, e
inconscientemente amarrotou o papel; mas emendou-se logo, alisou a carta
com a mão e restituiu-a silenciosamente. Durante alguns segundos
occupou-se em traçar com um lapis alguns circulos na margen da folha
aberta da grammatica; ergueu emfim os olhos e perguntou sem rir:

--Acredita no que diz essa carta?

--Acredito; tudo o que está ahi escripto, já o ouvi de viva voz, e com
a mesma sinceridade e calor. Quem sabe? pode ser que seja o primeiro
amor desse homem.

--O primeiro... o primeiro... repetiu ella entre dentes.

--Talvez o primeiro, insistiu Jorge; e para uma moça, acho que deve ter
algum encanto ser amada por um homem, considerado superior ás paixões.
A vida de Procopio Dias teve sempre outra ordem de interesses...

--Conhece-o ha muitos annos?

--Ha muitos, não; conheço-o desde o Paraguay.

--Acha que eu fazia bem em me casar com elle?

--Bem ou mal, conforme o amor que lhe tiver. Esse é o ponto necessario,
e em meu conceito, o ponto duvidoso. Receio que a senhora o não ame
deveras; já tive occasião de o dizer.

--Preciso de alguns esclarecimentos. O senhor amou de certo alguma
vez...

--Nunca.

--Nunca? Nunca teve um amor, um só que fosse? Não creio. Um coronel!
Nada; não creio; só se me jurasse; era capaz de jurar?

--Juro.

--Em nome de sua mãe? concluiu ella fitando-lhe uns olhos cuja
expressão imperativa contrastava com o tom submisso da palavra.

Jorge hesitou um instante. Tinha scepticismo bastante para proferir uma
formula vaga de juramento; mas recuou deante da formula positiva.
Hesitou e ladeou a pergunta.

--Esse nome resume justamente o meu unico amor, disse elle; amei a minha
mãe.

Yayá sorriu com ar de duvida; depois olhou para elle commovida.--Eu amo
meu pae, redarguiu ella; nossos corações podem entender-se.

A esta palavra não havia que replicar; pareceu-lhe a condemnação do
pretendente. Apertou a mão que a moça lhe estendeu, e sentiu-a fria.
Após uma curta pausa, abanou a cabeça, murmurando:

--Assim pois, nenhuma sombra de esperança...

--Faça o que entender, disse a moça no fim de outra pausa. Em todo o
caso desejo ler a resposta que lhe der.

Jorge abriu a carteira, e tirou de lá o rascunho da carta que pretendia
mandar a Procopio Dias.

--A resposta, disse elle, já está escripta. Não querendo matal-o, puz
aqui algumas gottas de esperança; não ousaria comtudo mandar o
remedio, sem ouvil-a.

Yayá recebeu o papel dobrado, olhou um instante para elle, outro para
Jorge.--Leia, disse este. Yayá não obedeceu: pegou do lapis, e sobre
a folha do papel dobrado começou a lançar os traços de um desenho.
Posto que a luz batesse em chão no papel, Jorge não pode ver desde
logo o que era; mas esperava, em frente da moça, que ella rematasse o
capricho. Nessa occasião, Estella foi ter com elles.

--Já acabou a licção? perguntou.

--Agora é uma licção de desenho, ao que parece, disse Jorge.

Estella poz a mão no hombro da enteada.--É o Procopio Dias! disse ella
olhando para o desenho. Era, mas o desenho frisava com a caricatura; a
fealdade de Procopio Dias excedia as proporções verdadeiras, o nariz
era enormemente triangular, as rugas da testa grossas e infinitas: um
monstro comico. Estella sorriu da travessura, mas reprehendeu-a.

--Deixe ver, disse Jorge quando ella acabou.

--Para que? retorquiu Yayá com indifferença.

E levando o papel á chamma, queimou-o. Jorge interrogou-o com os olhos;
ella encarou-o sem se perturbar. Depois folheou a grammatica lentamente.

--Continuemos a licção, disse ella. _I love_. Vá; onde estavamos?
Aqui, era aqui.

Estella assistiu á licção toda, com a paciencia da curiosidade. Não
olhava nunca para o mestre, dividia a attenção entre a discipula e o
livro. A licção foi longa, mais longa do que era necessario, porque o
proprio mestre não acompanhava pontualmente o texto e a leitura. Yayá
tinha deante de si dous juizes, cada um dos quaes buscava decifrar-lhe
na fronte a inscripção que lá lhe teria posto o seu destino.
Percebia-o, e não se enfadava. Ia de um tempo a outro, e do indicativo
ao imperativo, voltando ao começo logo que chegava ao fim, fitando os
dous inquisidores com um olhar em que pareciam dormir todas as
ignorancias da terra.

A tranquillidade era apparente. Nessa noite, recolhida aos aposentos, a
moça deu largas a dous sentimentos oppostos. Entrou alli
prostrada.--Que estou eu fazendo? disse ella apertando a cabeça entre
os punhos. Abriu a veneziana da janella e interrogou o ceu. O ceu não
lhe respondeu nada; esse immenso taciturno tem olhos para ver, mas não
tem ouvidos para ouvir. A noite era clara e serena; os milhões de
estrellas que scintillavam pareciam rir dos milhões de angustias da
terra. Duas dellas despegaram-se e mergulharam na escuridão, como os
figos verdes do Apocalipse. Yayá teve a superstição de crer que
tambem ella mergulharia alli dentro e cedo. Então, fechou os olhos ao
grande mudo, e alçou o pensamento ao grande misericordioso, ao ceu que
se não vê, mas de que ha uma parcella ou um raio no coração dos
simplices. Esse ouviu-a e confortou-a; alli achou ella apoio e
fortaleza. Uma voz parecia dizer-lhe:--Prosegue a tua obra;
sacrifica-te; salva a paz domestica. Restaurada a alma, ergueu-se do
primeiro abatimento. Quando abriu de novo os olhos, não foi para
interrogar, mas para affirmar,--para dizer á noite que naquelle corpo
franzino e tenro havia uma alma capaz de encravar a roda do destino.

Tarde conciliou o somno. Já dia claro, sonhou que ia calcando a beira
de um abysmo, e que uma figura de mulher lhe lançava as mãos á cinta
e a levantava ao ar como uma pluma. Pallida, com o olhar desvairado, a
boca ironica, essa mulher sorria, de um sorriso triumphante e mau;
murmurava algumas phrases truncadas que ella não entendia. Yayá
bradou-lhe em alta voz:--Dize-me que não amas e eu te amarei como te
amava! Mas a mulher sacudindo a cabeça com um gesto tragico, e
collando-lhe os labios nos labios, soprou alli um beijo convulso e frio
como a morte. Yayá sentiu-se desfallecer e rolou ao abysmo. Accordou
agitada e deu com a madrasta, a contemplal-a, ao pé da cama. No
primeiro instante, fechou os olhos e recuou até a parede; mas logo
depois voltou a si.

--Tive um pesadelo horrível, disse ella respirando largamente; rolei no
fundo de um abysmo, empurrada por duas mãos de ferro. Ainda estou fria.
Veja as minhas mãos. Tenho o peito opprimido. Felizmente passou. Está
aqui ha muito tempo? Eu agitei-me muito?

--Falaste em voz bem alta.

--Que foi?

--«Dize-me que não amas e eu te amarei como te amava,» Não sei que
estas palavra se possam dizer no fundo de um abysmo. Tu confundes os
sonhos...

--Talvez; não me lembra outra cousa. Só me lembro do abysmo, que
felizmente não passou da minha imaginação. É muito tarde, não é?

--Nove horas.

--Nove horas!

Estella foi a janella, e, abrindo a veneziana, mostrou-lhe o sol. Depois
encostou-se alli a olhar para fóra. Entrara alguns minutos antes,
admirada do prolongado somno da enteada, e ia pousar-lhe a mão no
hombro, quando ouviu aquella palavra balbuciada no meio de grande
agitação; palavra mysteriosa e vaga, mas que se lhe embebeu no
coração como um espinho. De sua parte, Yayá não estava menos
inquieta. Receiava que houvesse dito alguma cousa mais,--um nome ou uma
circumstancia precisa;--em todo caso, era bastante o que ouvira a
madrasta, para imaginar que o sonho lhe escancarara as portas da
consciencia. Uma e outra espreitavam-se desconfiadas e medrosas. A
madrasta deixou a janella e foi sentar-se na beira da cama. Ambas
sorriam com esforço e nenhuma conseguia falar primeiro. Correram assim
tres longos minutos de acanhamento e observação reciproca. Estella foi
a primeira que rompeu o silencio.

--O teu pesadelo foi um castigo, disse ella; foi o castigo da caricatura
que hontem fizeste. Aquillo não é bonito. Todos sabem que o Procopio
Dias é bem recebido em nossa casa. Que se hade pensar de nós, quando
virem que se tratam assim as pessoas ausentes?

Yayá reflectiu um instante.--Era preciso, disse ella; era uma maneira
de desenganar de uma vez as pretenções desse senhor.

--Mas quem te falou nellas?

--O Dr. Jorge, que parece protegel-o. Não é possivel que haja ninguem
mais feliz do que aquelle homem. Bastou gostar de mim, para que todos se
empenhem em approval-o e aconselhar-me que não devo tomar outro marido.
Parece-lhe que eu...

--A que proposito te falou nisso o Dr. Jorge?

--A proposito de cousa nenhuma; falou porque é amigo delle. Não lhe
disse eu uma vez que um dia, se todos teimarem, serei obrigada a casar
com o Procopio Dias? Receio muito que assim aconteça.

--Não, disse Estella vivamente; não hade acontecer assim,
primeiramente por que eu não o consentirei nunca; depois, por que tu
amas a outro...

--Eu?

--O teu amor de collegio, aos doze annos e meio...

--Ah! disse Yayá. E depois de alguns instantes continuou, com um gesto
de grande vergonha:--Fiz mal em lhe dizer aquillo; peço-lhe que não
repita a ninguem.

Estella não ouviu as ultimas palavras. Erguera-se outra vez para
dissimular a commoção, que parecia crescer. Entretanto, Yayá enfiou
um roupão e enterrou o pé na chinellinha matinal. Quando, cinco
minutos depois, encontrou os olhos de Estella, achou-os sombrios, como
os da figura do pesadelo, e insensivelmente buscou ver se teria um
abysmo ao pé de si.

--Yayá, disse Estella em tom secco, tu amas, tu confessas que amas a
alguem; quero que me digas o nome desse homem, ouves? Exijo sabel-o para
avaliar o que te convem. Sabes que tenho autoridade de mãe.

Yayá sentiu ferver-lhe o sangue nas veias.

--Minha mãe morreu, redarguiu com egual sequidão; estou prompta a
obedecer a meu pae.

Estella apenas disfarçou a sensação interior; após alguns instantes
de silencio, saiu.

Longe da enteada, a madrasta deu inteira expansão aos sentimentos que a
combaliam. Fechou-se no gabinete do marido; depois evocou o passado,
como uma força contra o presente, porque era o presente que ameaçava
tragal-a. Um instante abalada pela leitura da carta de 1867, buscou
recobrar a antiga quietação, mas a interferencia de Yayá perturbou
essa obra de sinceridade. O procedimento da enteada, a subita conversão
ás attenções de Jorge, toda aquella intimidade visivel e recente,
accordara no coração de Estella um sentimento, que nem aos orgulhosos
poupa. Ciume ou não, revolvera a cinza morna e achou lá dentro uma
braza. Suspeitou a rivalidade da outra, e não foi preciso mais para que
o grito de rebellião fizesse estremecer aquella alma solitaria e
virgem. O pensamento perdeu a habitual placidez. O coração começou de
bater com a celeridade e a violencia das grandes febres.

Eram as energias latentes de um amor comprimido, mas intenso, como uma
cratera que acaso fechasse uma abobada de gelo; peor que tudo, tinha a
fatalidade de um longo constrangimento, a luta de duas forças
egualmente pujantes, indomaveis e cegas. O orgulho vencera uma vez;
agora era o amor, que, durante os annos de jugo e compressão, criara
musculos a saía a combater de novo. A Victoria seria uma catastrophe,
porque Estella não dispunha da arte de combinar a paixão espuria com a
tranquillidade domestica; teria as lutas e as primeiras dissimulações;
uma vez subjugada, iria direito ao mal.

Ora no meio desse duello, já doloroso, embora ainda curto, ouviu
Estella a ultima palavra da enteada, commentario da que lhe escapara na
agitação do pesadelo. Saiu dalli atterrada, tacteando as sombras, e
desviando os olhos quando algum clarão de realidade se lhe accendia ao
longe. Não podia crer na rivalidade consciente e declarada de Yayá;
era inverosimil, seria a sua propria vergonha e condemnação. Mas as
palavras retiniam-lhe ao ouvido, e o gesto frio e duro da enteada
parecia clarear o que havia obscuro nellas.

Não podia durar muitas horas a situação em que a fatalidade das
circumstancias havia posto as duas mulheres. Yayá era a mais ductil, e,
outrosim, a mais interessada. Logo que Estella a deixou só, caiu em si
e comprehendeu que, além de ferir cruelmente a mulher que lhe servia de
mãe, levantara uma ponta do veu em que trazia envolto o pensamento; ao
demais, a injuria produzira a reacção do amor,--do amor que lhe tinha
e não perdera de todo, apezar dos acontecimentos ultimos. Na seguinte
manhã foi ter com a madrasta.

--Confesso que fui excessiva e desobediente, disse ella; não o devia
ser, mas a senhora falou com um modo tão secco! tão duro! Pareceu-me
que duvidava de mim; fosse o que fosse, não era o seu modo do costume.
Sempre a respectei como minha mãe; não nego, não poderia negar nunca
os seus direitos, assim como não desconheço a sua amizade; mas a
senhora mesma tem um bocadinho de culpa; sempre me tratou antes como
irmã do que como filha. Dahi veiu alguma confiança, alguma liberdade,
e foi por isso que hontem cheguei a esquecer quem eramos, para a tratar
como não devia. Foi isso sómente; foi um excesso, uma leviandade, nada
mais. Consulte o seu proprio coração e elle lhe responderá que não
foi mais do que isso. Vá; pergunte-lhe, elle me conhece.

Estella escutou-a silenciosamente, sem vergar a altivez da fronte, mas
tambem sem nenhuma expressão de despeito ou desafio. Luzia-lhe nos
olhos alguma cousa que espreitava a alma da outra por baixo das
palpebras descidas. Yayá falara de um jacto, mas não de um só tom;
simplicidade, timidez, faceirice,--havia de tudo na maneira porque se
exprimiu durante aquelles poucos segundos. A explicação era a um
tempo sincera e habil, mas de tal modo se confundiam os dous caracteres,
que a propria habilidade não tinha consciencia de si: era antes um
instincto do que um calculo.

--Que me pedes tu? disse Estella no fim de alguns instantes. Que te
perdoe? Que esqueça a tua imprudencia? Uma cousa é mais facil do que
a outra. Estás absolvida; faze agora com que eu esqueça.

--Porque não? eu consegui fazer com que me amasse, quando a senhora
não sabia ainda se eu era má ou boa.

--Era facil. Tua mãe era tua mãe; mas não te amou mais do que eu. Se
alguma vez o reconheceste, não foi hontem; hontem cedeste a um mau
preconceito contra as madrastas, e levantaste entre mim e ti um
espectro, que se podesse falar seria para te condemnar tambem. Não me
queixo; nunca me queixei de cousa nenhuma: quando estimo alguem,
perdôo; quando não estimo, esqueço. Perdoar e esquecer é raro, mas
não é impossivel; está nas tuas mãos.

Subjugada pelo tom com que a madrasta falara, simples, severo e
levemente repassado de tristeza, Yayá cedeu a um nobre impulso de
submissão. Pegou-lhe nas mãos e beijou-as. A madrasta sentiu nellas
uma lagrima. Não recusou esse testemunho do coração, e tel-a-hia
apertado ao seio se lh'o permittisse a inflexibilidade do espirito.
Limitou-se a contemplal-a com os olhos amoraveis de outro tempo.

Quando se separaram dahi a alguns minutos, alguma cousa dizia á
consciencia de ambas que não vinham de fundar a paz, mas simples
tregoas. Essa persuasão cresceu nos demais dias, porque uma e outra
sentiam-se mutuamente observadas. Como houvesse entre ellas um accordo
tacito para não turbar a paz domestica, Luiz Garcia não percebeu essa
situação nova; Jorge ainda menos do que elle. Yayá não alterou os
habitos dos ultimos dias, comquanto usasse mais alguma cautella; as
relações dos dous eram, aliás tão frequentes e familiares como
d'antes. Uma vez, como a ausencia de Jorge se houvesse prolongado além
do costume, Yayá mostrou-se-lhe um pouco retrahida: e, perguntando-lhe
elle o que tinha, respondeu affoutamente, que a ausencia a magoara
muito.

--Quatro dias apenas, observou elle.

No primeiro domingo de Março, Jorge foi alli ás onze horas da manhã,
e só achou Luiz Garcia e Estella. Yayá tinha ido á casa de Maria das
Dores. Quando a moça voltou, Jorge e Estella estavam no jardim, ao pé
da porta da sala; entre ambos havia uma cadeira vaga,--a de Luiz Garcia,
que fora dentro alguns minutos antes. Nenhum dos dous falava nessa
occasião; Estella estalava as unhas, Jorge batia na testa com o castão
da bengala. Era constrangimento? Era dissimulação? Yayá não soube
decidir; mas o aspecto dos dous deixou-a sem pinga de sangue.

No dia seguinte voltou á casa de Maria das Dores; sabia do passeio
usual de Jorge; queria vel-o, falar-lhe. A doente não contava com a
visita tão proxima da outra. Yayá esteve com ella apenas alguns
minutos, e saiu fóra, a pretexto de que fazia calor e queria ver a
tarde. A tarde era bella; o ceu tinha todos os tons, desde o escarlate
até o opala; ao nascente, algumas nuvens, raras e finas, manchavam de
branco o fundo azul.

A casa ficava n'uma pequena elevação; Yayá sentou-se numa pedra lisa,
que servia de banco, e d'ali circulou um olhar pelo horizonte; depois
desceu os olhos á cidade e ao mar, e esse espectaculo, tão sahido
delles, levou-a aos tempos, não mui remotos, em que entre ella e o pae
nenhum coração viera interpôr-se. No meio das reflexões, viu parar
um homem, ao longe; era Jorge; vinha a pé, em attitude de quem medita.
Passaria elle sem a ver? Ergueu-se; viu-o approximar se, parar de novo e
olhar na direcção da casa. Cortejou-o de longe e fez-lhe signal para
que subisse. Jorge obedeceu sem difficuldade.

Maria das Dores, doente de uma paralysia, ficou estupefacta quando viu
entrar um desconhecido pela mão de Yayá. Interrogou a moça com os
olhos, e Yayá, depois de um instante de acanhado silencio, respondeu
com desgarre:

--É meu noivo, que vem vel-a. Quero que o conheça e não diga nada a
ninguem, ouviu?

Dizendo isto, approximou-o mais da paralytica. A boa velha contemplou-o
alguns instantes, disse-lhe algumas palavras de conselho, pediu-lhe que
fizesse feliz a sua filha de creação, e não obteve delle uma palavra
ou um gesto de assentimento. Suppol-o commovido; mas elle estava
simplesmente attonito.

Saindo fora da casa, assentaram-se á porta, na mesma pedra, assaz larga
e extensa para dous.

--Foi preciso dizer-lhe aquillo, explicou Yayá, porque eu desejo
conversar com o senhor, e os noivos conversam mais á vontade. Demais,
ella não é só paralytica; tem a vista fraca; amanhã posso
substituil-o, sem que ella dê pela mudança. Agora falemos de nós e
daquella carta... E antes da carta, diga-me, sabia que eu estava aqui?

--Não; mas não vim até estes lados sem esperança de a encontrar. Já
que fala na carta, deixe-me dar-lhe uma explicação; se a não dei até
hoje, é porque não quizera voltar a um assumpto, aborrecido para a
senhora e para mim.

--Para o senhor?

--Para mim.

Yayá apertou-lhe a mão com força.--Vá, disse; tambem tenho de lhe
dizer alguma cousa grave; mas ouçamos primeiro a sua explicação.

--Oh! custa pouco, acudiu Jorge. Escrevi o esboço da carta por me
parecer que podia ser-lhe agradavel. Lembra-se que uma vez me havia
falado naquelle sentido? Duvidei mais tarde, e disse-lh'o. Comtudo,
havia tanta incerteza e contradicção entre suas palavras e acções,
que não era difficil suppôr alguma cousa; ha paixões que começam
assim caprichosamente. A carta era um meio de dizer ao pretendente que
seus suspiros podiam não ser inuteis. Era isso; só isso. Confesso que
adoptei o papel mais passivo, desinteressado, e não sei até se...
creio que a senhora já o qualificou de ridiculo. A forma podia não ser
grave, mas a intenção era affectuosa, e se merecia um riso, tambem
merecia um aperto de mão. Esboçada a carta, não a mandaria sem
mostral-a; foi o que fiz; mas sua reprovação foi tão eloquente, que
me fez cair em mim e reconhecer que a carta era de mais.

--Era de menos.

--Queria então que fosse eu proprio a Buenos-Ayres? perguntou Jorge
sorrindo.

--Queria, se ao chegar lhe dissesse:--Pense em outra cousa; Yayá não o
ama.

--Para isso, basta que lhe não diga nada.

--Não o ama, repetiu a moça; não o ama, não o ama.

--Desta vez é serio e definitivo?

--Que admira? replicou a moça com gravidade. Não lhe parece a cousa
mais natural do mundo que uma moça não ame o Procopio Dias? Não sei o
que são os outros homens; poucos tenho visto; nossa vida é tão
retirada! Mas, emfim, não me parece que o Procopio Dias seja homem de
se ficar morrendo por elle. E comtudo elle morre por mim. Meu coração
perdoa-lhe; é o mais que pode fazer. Acceital-o seria impossivel. Já
reparou nos olhos delle? Tem ás vezes uma expressão exquisita, que
não vejo nos olhos de papae nem nos seus. Não gosto delle; não
poderia gostar nunca.

Desta vez foi Jorge que lhe apertou a mão.

--Tem razão, disse elle; se o não ama deveras está tudo acabado. Não
lhe digo que elle fosse um noivo perfeito; não podia ser; mas
acceitavel era. Hoje percebo que entre a senhora e elle ha alguns
contrastes; mas o que é que não concilia o tempo? Esqueça o que lhe
disse a tal respeito; e assentemos não falar mais de semelhante
assumpto. Provavelmente não escreverei nada; é duro dizer a um homem
que todas as suas esperanças são vans.

--A paz do meu espirito não valerá esse sacrificio?

--Vale mais; posso fazel-o.

Yayá reflectiu.

--Não, não é preciso; não lhe diga nada; elle ha de entender tudo.

Como fizessem uma pausa longa, viram duas ou tres pessoas, que passavam
em baixo, olharem para cima com certo ar curioso e indiscreto. Jorge
ergueu-se.

--Estamos dando na vista, disse elle; hão de suppôr que somos dous
namorados...

--Sente-se, disse Yayá em tom intimativo. E continuou:--Que perde o
senhor com isso? Dirão que não tem mau gosto em amar uma moça bonita.

--Se dissessem que eramos dous namorados, erravam de certo, por que eu
sei... eu suspeito que a senhora ama a outro. Uso dos meus direitos de
confidente, exigindo que me diga a verdade.

--Toda, respondeu Yayá, e era esse o ponto grave de que lhe queria
falar. Ainda uma vez, o senhor estima-me? tem-me amizade sincera?

--Pois duvida?

--Eu duvido de tudo e de todos; até de mim. Mas em fim, preciso de
alguem que me ouça, a quem eu conte o que penso e o que sinto, e até o
que receio, porque tambem receio, e ha horas em que tremo sem saber de
que. É verdade, ha occasiões em que me parece que uma grande
infelicidade vae cair sobre mim, e dahi a nada penso justamente o
contrario; penso que vou receber maior felicidade do mundo, e fico
alegre como um passarinho. Cousas de criança, não é?

--Não, cousas de moça. É certo que ama? a quem?

Yayá olhou para elle algum tempo, satisfeita da impaciencia que parecia
ler-lhe na fronte.

--Respondo que sim e que não, disse ella. Se me pergunta a quem amo,
digo-lhe que não sei, não amo ninguem; mas sinto alguma cousa
mysteriosa e exquisita, e não sei... desconfio... não sei que seja.
Porque é que as mesmas cousas, que me eram indifferentes, agora me
parecem interessantes, e até chego a suppôr que me falam? Ainda ha
pouco, antes de o ver, estava a olhar embebida para o ceu, quasi sem
pensar, mas ainda assim curiosa ou anciosa; olhava para o ceu e para o
mar; o coração apertou-se-me; depois alargou-se-me como se quizesse
devorar tudo. Ha dias em que me levanto alegre e viva, como uma
creança; papae diz que são os meus dias azues. Ha outros em que tenho
vontade de quebrar tudo, e não digo mais de duas palavras em cada hora;
são os meus dias negros. Ouço ás vezes uma voz que me fala; penso que
é alguem e reconheço que a voz é a da minha propria imaginação.
Tudo será imaginação, creio; mas é tão novo e tão bom! Em todo
caso, parece-me extraordinario, e se não é loucura... É verdade, ás
vezes penso que vou ficar douda, e nessas occasiões tenho medo. Será
isso?

--Não, acudiu Jorge, não é loucura, é sabedoria, é a grande
sabedoria da natureza. Isso que sente, não será amor; mas é a
necessidade de amar; é o rebate que lhe dá o coração. Alguem virá
um dia, e a voz anonyma que a senhora costuma ouvir, lhe falará então
pela boca do homem que o coração lhe apontar.

Yayá escutava-o como encantada, mas sem olhar para elle. Quando Jorge
acabou, fez-se entre ambos uma longa pausa. A moça tinha os olhos no
horizonte onde as cores da tarde desmaiavam rapidamente. Jorge
contemplava-a tomado de interesse e até de inveja; comprehendia os
primeiros sobresaltos desse coração em flôr, e dizia a si mesmo que
ha sensações que o tempo leva para não restituir mais.

Yayá accordou de suas reflexões.

--Francamente, disse ella; o senhor não se ri de mim?

--Rir? A senhora não me conhece. Não ha que rir de sentimentos
sinceros; e seria praga muito mal a confiança de que me dá prova. Não
me julgue um espirito vulgar...

--Papae faz-lhe muitos elogios.

--Hade saber, ou fica sabendo que minha natureza sympathisa com o que
está acima do commum. A senhora vale muito; posso dizer que ha dous
mezes eu ainda a não conhecia...

--Não tente a minha vaidade, interrompeu Yayá; prefiro que me dê um
bom conselho.

--Dou-lhe um, disse Jorge depois de curta pausa; resista um pouco a
essas sensações, cujo excesso pode perturbar-lhe a existencia. Não é
só o coração que lhe fala, é tambem a imaginação, e a
imaginação, se é boa amiga, tem seus dias de infidelidade. Dê um
pouco de poesia á vida, mas não cáia no romanesco; o romanesco é
perfido. Eu, que lhe falo, lastimo não ter já essa ordem de
sentimentos em flôr, e comtudo não sei se ganharia com elles.

--Que! não seria capaz de amar?

--Meu coração não envelheceu ainda.

--Entendo; amaria hoje de outro modo...

--De outro modo, e tão sinceramente como d'antes; um amor de olhos
abertos.

--Penso que o amor verdadeiro, ou ao menos o melhor, é o que não vê
nada em volta de si, e caminha direito, resoluto e feliz aonde o leva o
coração. Para que servem os olhos abertos?

--A senhora quer saber muita cousa, disse Jorge sorrindo. Não basta que
o coração lhe diga: ame a este; é preciso que os olhos approvem a
escolha do coração. Admira-se? Ouça-me até o fim; eu desejo
preserval-a de alguma escolha má. Eleja um marido digno, um espirito
que a entenda, que a admire, um homem que a possa honrar; não se deixe
levar dos primeiros olhos que pareçam responder aos seus...

Yayá abaixou a cabeça.

--Não acharei nenhuns, disse ella; eu creio que este amor morrerá
commigo...

Como essa ideia parecesse entristecel-a, Jorge sentiu-se tomado de
compaixão, ao ver que persistia naquella aurora pura uma sombra de
superstição romanesca. Pegou-lhe na mão, viu-a estremecer,
recusar-lh'a e cruzar os braços.

--Tem medo de mim? disse elle ao cabo de um instante.

--Tenho.

Jorge calou-se. Com a bengala entrou a reproduzir no chão umas
reminiscencias de geometria. Sentia-se atalhado, curioso, e tanto
desejava como lhe custava sair d'alli. Não chegava a entendel-a
claramente; a verdade, quando ia a tocal-a, parecia inverosimil.
Entretanto, Yayá não rompia o silencio; tinha a fronte pendida e
meditava. Talvez meditava na palavra que acabava de proferir, fructo da
situação violenta em que ella propria ou os acontecimentos a haviam
collocado. Era a rebellião do pudor. De quando em quando, sacudia a
fronte como a expellir uma ideia enfadonha ou cruel. N'uma dessas vezes,
Jorge disse com brandura:

--Para que negal-o? a senhora padece; não sei se com razão ou sem
ella, mas parece padecer muito?

--Oh! muito!

E dessa vez a palavra era tão angustiosa, tão sincera, tão vinda do
coração, que elle cedeu antes a um impulso de generosidade do que á
conveniencia de não ser repellido segunda vez Pegou-lhe nas mãos e
pediu-lhe que fosse até o fim da confiança, dizendo-lhe a causa de
seus males. Talvez elle pudesse removel-os.

Yayá inclinou o rosto sobre as mãos de Jorge. Este sentiu nellas
algumas lagrimas, vertidas sem soluços. Não passava ninguem: mas elle
nem teve tempo de reflectir na possibilidade de um extranho. Inclinou-se
tambem e perguntou-lhe affectuosamente o que tinha. Yayá ergueu a
cabeça, e enxugou os olhos, mas não respondeu nada.

--A senhora não tem confiança em mim, disse Jorge.

--Ha cousas que se não fazem, outras que se não dizem; algumas
ficarão entre mim e Deus, retorquiu ella como se fizesse uma reflexão
para si. Depois fitou-o e pediu-lhe a promessa de que não diria nada do
que acabava de ver e ouvir.

--Essa promessa não se faz; está feita por si. Quanto ao seu segredo,
não quero violental-o, mas tenho esperança de que a senhora mesma o
hade dizer um dia; eu saberei obter-lhe esse resto de confiança que
ainda me nega.

--Já! exclamou a moça vendo Jorge levantar-se.

--Repare que a noite vem caindo; não posso ficar nem mais um minuto. Um
confidente tem limites. Olhe; não peço muita cousa, mas desejo alguma
cousa mais. Confidente é pouco; mestre é ainda menos. Dê-me outro
titulo ou cargo; deixe-me ser seu... seu que? seu... seu irmão. Sim?

--Não! disse ella energicamente.

Jorge empallideceu, como se acabasse de ver o fundo da alma da moça. A
negativa era alguma cousa mais do que um capricho. Não retorquiu;
estendeu-lhe a mão.

--Até quando? disse ella.

--Até amanhã.

Tres minutos depois, Jorge estava na rua. A noite descia rapidamente.
Elle não olhou para traz; se olhasse viria a figura de Yayá envolta
já na meia sombra do crepusculo. Veria mais; vel-a-hia reflectir um
pouco e espalmar a mão no ar, como uma ameaça, na direcção em que
elle ia.

Yayá entrou na casa da doente.

--Seu noivo? disse esta.

--Já foi.

--Quando é o casamento?

--O dia não sei. E depois de uma pausa:--

Mas que se hade fazer é certo. Ou eu não sou quem sou.



XIV


Guiando para casa, Jorge ia agitado e inquieto; recapitulava a
conversação que escabava de ter com a filha de Luiz Garcia. O acaso
propuzera-lhe um enigma; o tempo dava-lhe a decifração. Seria a
decifração? O espirito do moço recuava, não dava credito á
realidade, pelo menos á realidade apparente; mas esta impunha-se-lhe de
quando em quando, e Jorge recompunha todas as circumstancias daquellas
ultimas semanas e ainda dos mezes anteriores. Que era a esquivança, a
rispidez, a hostilidade de Yayá, senão a mascara de um sentimento
contrario, a vingança de um coração atordoado pelo supposto desdem de
outro? Esta reflexão vinha tão de molde com os factos dos ultimos
tempos, que era difficil achar mais ajustada explicação. Logo depois,
considerava que seria absurdo attribuir á moça uma ligeireza e um
desgarre inconciliaveis com a prudencia que reconhecia nella, a despeito
dos assomos de travessura intermittente.

--Impossivel! disse elle sacudindo o hombro.

Mas esse impossivel tornava a descer ás regiões da probabilidade, até
galgar os limites da certeza. A observação lhe mostrava que Yayá
tinha a audacia no sangue, e a razão lhe dizia que um amor sem freio
possue todas as imprudencias e vertigens; que umas naturezas são
stoicas, outras rebeldes; finalmente, que ha situações moraes
incomportaveis, e que a uma candura de dezesete annos é licito não
distinguir entre o sentimento que fala e a conveniencia que restringe.
Esta era a interpretação benevola; depois vinha a interpretação
pessimista. Podia ser que todos aquelles atrevimentos encobrissem um
calculo,--o calculo da ambição, que intentasse trocar a belleza pelo
beneficio de uma posição ostensiva e superior. Quando essa suspeita
lhe brotou no espirito, Jorge não sentiu diminuir a admiração nem a
estima; porquanto, a ambição, se ambição havia, parecia ser de boa
raça. Mas era impossivel combinar o calculo com as lagrimas daquella
tarde, e e elle as sentira quentes, silenciosas, e não podia crer que
uma vida quasi adolescente possuisse já a arte da hypocrisia.

Não ha vida tão physica ou tão alheia ao sentimento da personalidade,
que em tal situação não padecesse, ao menos, trinta minutos de
insomnia. A insomnia de Jorge durou mais algum tempo. De envolta com as
conjecturas havia um pouco de satisfação pessoal. A certeza ou a
probabilidade de que, sem nenhuma acção propria, iniciara nos
mysterios do amor, uma alma ainda nova e ingenua, dava ao coração
delle alguma cousa da volupia do egoismo; sensação que, aliás,
diminuiu quando lhe occorreu que talvez esse amor obscuro lhe houvesse
já custado lagrimas e desesperos. Elle tinha razão quando dizia não
ser espirito vulgar. Afrouxara-se-lhe o ardor dos primeiros tempos, a
imaginação tinha o vôo mais curto; mas a generosidade juvenil ficara
intacta, e com ella a faculdade de resentir as dores alheias.

--Pobre menina! dizia comsigo.

No dia seguinte, Jorge examinou detidamente se lhe convinha tornar á
casa de Luiz Garcia, ao menos com a assiduidade do costume. A situação
moral de Yayá tendia a aggravar-se com a presença continua d'elle; em
taes casos, a ausencia, era um acto de criterio e até de misericordia.
Misericordia foi o que elle disse comsigo, e sorriu logo depois, com um
sorriso de modestia envergonhada. A verdade é que Jorge anciava por lá
voltar; tinha curiosidade de contemplar a sua obra, agora que a
descobria ou presumia havel-a descoberto; senão é que a noite lhe
trouxera uma sombra de duvida, e elle queria verificar definitivamente
a realidade.

De noite foi. Luiz Garcia estava um pouco andado e abatido.--Venha,
doutor! disse elle quando viu entrar o filho de Valeria; este coração
é o meu importuno. A mulher procurava animal-o; a filha tinha o terror
nos olhos. Jorge auxiliou a familia no trabalho de o confortar; tres
quartos de hora depois a molestia cedia, e tornava ao trabalho surdo da
destruição. Luiz Garcia era outro, logo que passava uma dessas crises;
tornava-se garrulo e risonho, com o fim de reanimar elle proprio a
familia, e communicar-lhe a esperança que lhe começava a faltar. Jorge
não se deixou contaminar da illusão; recordou a sentença do medico e
sentiu a proxima extincção daquelle homem. Yayá não conhecia a
sentença do medico; mas o espectaculo da afflicção do pae tinha-a
prostrado muito. Apparentemente não se lembrava da entrevista da
vespera; podia até suppôr-se que, de quando em quando, não se
lembrava da presença de Jorge.

Jorge achou-a nos subsequentes dias, tal qual era nos outros, menos
travessa, porém, e muito mais senhora. Ao cabo de uma semana, trazia
todos os elementos de convicção:--Ama-me! pensava elle ao sair d'alli
uma noite. A convicção, por mais que a suspeita a houvesse prevenido,
atordoou o espirito de Jorge, que nessa mesma noite resolveu não voltar
lá; resolução varonil, que durou quarenta e oito horas.

Alguns dias, tres semanas, decorreram assim na mais aprazivel
familiaridade. Jorge, se não obtivera o titulo, exercia realmente as
funcções de irmão mais velho; era um guia, um conselheiro, uma
autoridade. Escutava-a com interesse; recebia a confidencia dos
sentimentos da moça, e as ambições de um coração cuja sêde parecia
contentar-se da agua que pudesse conter a propria mão, no primeiro
arroio do caminho. Ao mesmo tempo, buscava temperar-lhe o romanesco com
uma forte dose de realidade.

Durante esse tempo, nenhuma phrase egual ás daquella tarde veiu sacudir
o espirito de Jorge; nenhuma lagrima lhe caiu nas mãos. Mas, se a
palavra não vinha, a voz era insinuante e commovida, ás vezes; se os
olhos não choravam, luziam ou quebravam-se de um modo pouco commum.
Jorge fingia não comprehender; mais do que isso, forcejou por se
persuadir a si proprio que não comprehendia: resultado util, que lhe
dava a vantagem de saborear em silencio o gozo de se saber amado, sem
perder o de contemplar uma natureza original, moralmente exhuberante e
forte, que, além de tudo, tinha para elle a fascinação do mysterio.

No fim daquellas tres semanas encontraram-se em casa da paralytica. Não
houve accordo, mas nada foi casual.--Vou amanhã á casa de Maria das
Dores, disse Yayá uma noite, prestes a despedir-se delle. E no outro
dia de tarde, Jorge, que havia rareado os passeios daquelles ultimos
tempos, acertou de caminhar para alli, e com tão boa fortuna, que achou
a moça sentada no mesmo banco de pedra em que lhe falára da primeira
vez.

Outra vez, quando Yayá alli voltou, já encontrou Jorge, ao pé da
enferma. Maria das Dores estava ainda mais contente com a honra da
visita do que com a esmola que elle dissimuladamente lhe levara
envolvida em um lenço de ramagens. Jorge animava-a, dizia-lhe que ainda
iriam á Penha naquelle anno. Yayá parou á porta, espantada e
contente.

--Venha, disse a enferma, ande ver como seu noivo está caçoando com a
velha.

--Agradeço-lhe, disse Yayá; creia que ella merece todas as
consolações.

Na noite desse dia, quando Jorge entrou em casa, um pouco inebriado da
entrevista, achou uma carta de Procopio Dias, que o encheu de
contentamento. Procopio Dias tinha necessidade de se demorar ainda uns
dous mezes. Dous mezes! Era a eternidade. Jorge sentiu-se confortado com
a noticia de tão longa ausencia. Que importava a presença, se ella o
não amava? Essa reflexão não a fez Jorge, mas a filha de Luiz Garcia,
quando elle lhe deu a noticia da carta:

--Que tenho eu que elle esteja ausente ou presente? elle ou um extranho
é a mesma cousa.

A eternidade foi um minuto; os dous mezes voaram como um tufão. Um dia,
no ultimo desses dous mezes, Yayá disse ao filho de Valeria que achara
emfim um marido.

--Um marido? repetiu Jorge empallidecendo.

--Parece que um marido. Não me approva?

--Se ainda o não conheço.

--Não sei se é um marido, continuou Yayá depois de um instante; mas
achei o homem a quem amo.

--É a mesma cousa.

--Ou quasi.

Houve entre ambos uma longa pausa, durante a qual Yayá tinha os olhos
fitos no moço, emquanto este não tinha os seus em parte nenhuma;
vagavam de um ponto a outro. Yayá repetiu que achara um marido.

--É a segunda vez que me diz isso, redarguiu Jorge com a voz tremula e
irritada; se o achou, tanto melhor; casará com elle.

--Não me disse uma vez que não me deixasse ir com os primeiros olhos
que parecessem responder aos meus? não me disse que era conveniente
escolher um homem...

--O que eu disse foram palavras sem sentido, tornou Jorge; não se dão
conselhos ao coração que ama. O casamento vem talhado do ceu, segundo
diz o povo; outros dirão que vem do acaso; ou é o destino de cada um,
ou é uma loteria. A senhora não me pede certamente que lhe diga o
numero em que ha de sair a sorte grande? Compre bilhete e deixe correr a
roda. Alguns dias de paciencia e nada mais...

A excitação de Jorge era extraordinaria, mas não foi longa. Alguns
instantes de silencio bastaram a applacal-a ou diminuil-a; pelo menos o
gesto não trahiu a agitação interior. Pallido, sim, estava pallido;
mas a voz, se não era firme, perdera a aspereza do primeiro instante.

--Reflecti depois da nossa conversa, disse elle e não desejo tomar
nenhuma responsabilidade em um acto de que depende a felicidade de sua
vida.

--Então, não me estima, é o que é, disse Yayá em voz queixosa.

Jorge respondeu com um olhar, e a resposta que elle quizera fosse um
simples protesto, transgrediu esse limite: foi um protesto, uma queixa
e acaso uma interrogação. Yayá abaixou os olhos; uma onda de sangue
lhe avermelhou a face; Jorge viu-a offegante e acanhada durante alguns
segundos. Não indagou o motivo; ergueu-se para sair. Yayá retevo-o
pela aba do fraque.

--Nega-me então todo o auxilio? disse ella. Depois de alguns mezes de
uma vida em que me acostumei a ouvir seus conselhos, o senhor recusa-me
este. Que lhe fiz eu?

--Nada.

Jorge saiu.--Que tenho eu que ella ame, que se case ou não se case? Sou
eu sou pae? seu tutor? Quando assim falava, sentia dentro de si uma
resposta; a consciencia desvendava-lhe a realidade. Sim, tu amas,
dizia-lhe ella, tu não fazes outra cousa ha dous mezes; deixaste-te
envolver nos fios invisiveis; não sentiste que essa intimidade de todos
os dias era a gotta d'agua que te cavava o coração. Ah! tu querias
saciar a curiosidade e sair dalli sem deixar alguma cousa, sem receber
tambem alguma outra cousa? Não se brinca com um inimigo; e ella o era,
e continuará a sel-o, por que tu estás definitivamente atado.

A esta voz importuna e verdadeira, Jorge erguia os hombros. Tentou
refugiar-se no somno. O somno rejeitou-o de si. Então fumou, desceu á
chacara, fatigou o corpo para melhor adormecer o espirito; mas a lua que
batia no repucho mostrava-lhe, ora um casebre de Santa Thereza, ora uma
varanda da Tijuca, como se fossem o verso e o anverso da medalha de seu
coração, toda a historia da vida que elle vivera até alli. A
differença entre uma e outra dessas duas phases é que presentemente o
desengano não o levaria á guerra, nem lhe daria os desesperos do
primeiro dia. Não; Jorge levantou-sa na manhã seguinte um pouco
atordoado, mas não inteiramente abatido. Sentia alguma oppressão
moral, um desejo de saber quem era o adversário preferido.
Merecel-a-hia? Que a merecesse, embora; elle tinha um direito anterior e
superior; desde que a amava, excluía todos os outros.

A força de pensar naquillo, chegou a entrever a realidade; perguntou a
si mesmo se a declaração da moça não seria antes um estratagema.
Podia ser; tinha-a visto corar, inclinar o collo, ficar por algum tempo
acanhada e commovida. Essa conjectura desabafou-lhe um pouco o espirito,
e, por isso que era a conjectura da esperança, não tardou em
transferir-se a evidencia. Relembrou todas as acções de Yayá, suas
palavras, as circumstancias e os termos de reconciliação, as lagrimas
sem motivo, a paciencia, o interesse, o gosto de o conversar;
finalmente, esse quê mysterioso que divulga a uma alma a preferencia de
outra. Quando pouco a pouco lhe penetrou no coração essa ideia, Jorge
reconheceu que havia sido precipitado. Queria escrever-lhe e recuou;
queria lá voltar, mas resolveu o contrario.

--Se é um estratagema, pensou elle, ella terá nisto o seu castigo; se
verdadeiramente ama a outro, que vou lá fazer agora?

Pensou isto; pensou mais; só não pensou em Estella.

Yayá não se pode conter. Ao cabo de sete dias de ausencia determinou
ir ao logar onde mais de uma vez encontrara o filho de Valeria.

--Vae chover, disse Luiz Garcia; guarda a visita para amanhã.

Yayá teimou na resolução.--É uma nuvem que passa, disse ella; em
saindo a lua verá como o tempo fica limpo.

Estava inquieta, preoccupada, tinha estremecimentos nervosos; não
attendeu á segunda observação do pae. O pae dizia-lhe que não havia
necessidade de desobedecer para realisar um capricho. Como repetisse a
expressão, Yayá ficou pallida e não ousou responder; mas Estella, que
assistia callada aos conselhos de um e á resistencia de outro, disse
sorrindo á enteada:

--Vá; seu pae deixa-a ir.

Yayá ia agradecer a intervenção; mas, quando os olhos das duas
mulheres se encontraram, detiveram-se por um instante longo. Poucos
minutos depois chegava a moça á casa de Maria das Dores. Despediu
Raymundo; a porta estava aberta; entrou. Da sala, onde se deteve, ouviu
n'outra sala interior a voz de Jorge.

--Não se esqueça; hade entregar-lhe isto, quando ella vier; não mande
lá á casa; é um livro.

Yayá entrou.

--Não contava commigo? disse ella.

--Não; por isso deixava-lhe este livro, respondeu Jorge tirando o
embrulho á doente e entregando-o á moça; é um romance, creio que lhe
falei nelle uma vez.

Yayá tomou-lhe o livro, abriu-o, folheou-o com soffreguidão, como
certa de achar uma pagina marcada. Estava marcada uma pagina, e a marca
era um bilhete. Abriu-o; dizia assim: «A senhora deu-me uma vez um
titulo que eu esperei viesse a ser verdadeiro. Diga se me enganei, se o
ceu lhe destinou outro noivo, ou se meu coração pode ter ainda uma
esperança. Não lhe custará muito; não custa muito uma simples
palavra.»

Emquanto ella lia rapidamente estas linhas, e tornava-as a ler, Jorge
affastou-se até á sala da frente. A carta era das que não permittem a
presença do autor; precisam do prestigio da ausencia; são, para assim
dizer, expressões truncadas que a imaginação perfaz e amplia. Jorge
ia a sair, quando ouviu o rumor dos passos de Yayá; deteve-se a esperar
a resposta. A moça parou deante delle, e entre ambos houve um momento
de silencio e hesitação.

--Cego! disse emfim Yayá estendendo-lhe as mãos com um ar de
simplicidade e confiança.

Jorge recebeu-as nas suas, e a linguagem que a alma não quiz confiar do
labio do homem, elles a disseram com os olhos, durante alguns minutos
largos. Jorge perguntou finalmente:--É certo? ama-me?--Yayá cingiu-lhe
o pescoço com os braços, e inclinou a cabeça com um gesto de
submissão. Jorge inclinou-se tambem, e nos cabellos,--nos fios de
cabello, que lhe pendiam na testa, pousou o mais puro e fugitivo dos
beijos. Ao contacto daquelle labio, Yayá enrubeceu e estremeceu toda;
mas não fugiu, não retirou os braços; deixou-se ficar subjugada e
feliz.

Homero conta que Venus, descendo ao campo da batalha entre gregos e
troyanos, saiu d'alli ferida e ensanguentada. Yayá teve a sorte da diva
homerica; interpondo-se entre Jorge e Estella trouxe d'alli ferido o
coração. Naquelle espaço de alguns mezes, obra de paciencia e luta,
de violencia e simulação, para o qual fizera convergir todas as
forças moraes, não suspeitou que, vencendo ao outro, podia vencer-se
a si mesma. Queria ser uma barreira entre o passado e o presente, sem
cogitar na difficuldade do plano, nem nas consequencias possiveis delle.
Sobretudo, não pensou na moralidade da acção. Que podia ella saber
d'isto? A suspeita ia até admittir a persistencia do amor no coração
da madrasta, mas não lhe attribuia mais do que uma aspiração ou
saudade silenciosa; não sabia mais. Para combater esse inimigo inerte,
é que poz em campo a porção de astucia que a natureza lhe dera, as
graças do rosto e a, rara penetração de espirito.

Yayá transpoz a soleira e saiu; precisava de ar, de espaço, de luz; a
alma cobiçava um immenso banho de azul e ouro, e a tarde esperava-a
trajada de suas purpuras mais bellas. Jorge acompanhou-a; a commoção
delle era sincera e forte, mas menos intensa, menos desvairada que a de
Yayá, cujos olhos pareciam dizer a tudo o que a rodeava, desde o sol
poente até ao ultimo grelo de capim:--olhae, vede as bodas do meu
coração; este é o meu amado.

Perto da noite, Raymundo veiu buscal-a; Jorge acompanhou-a. Yayá
lembrou-se de traçar com um grampo, no musgo que reveste o aqueducto, o
nome de Jorge e a data; instando com elle, Jorge escreveu tambem o nome
d'ella. Raymundo sorria entre dentes. Em caminho falaram do presente e
do futuro; e, n'um intervallo, tocaram levemente no passado.

--Sabe que eu tinha um desgotosinho? disse Yayá. Jorge interrogou-a com
os olhos. É verdade, um capricho, continuou ella. Quizera que o senhor
nunca tivesse gostado de outra pessoa, e é bem possivel que não seja
este o primeiro amor de seu coração.

--Não é, respondeu Jorge depois de um instante de reflexão. Amei uma
vez, ha muito tempo; mas todo esse passado acabou.

--Está certo de que acabou?

--Creança! Que noiva receiou nunca de um amor antigo, começado e
acabado, antes d'ella ser amada tambem? Que o novo amor seja sincero e
fiel, eis o que se deve pedir e exigir. Quanto ao passado, é como os
defuntos; reza-se por elle, quando se reza.

--Tenho medo de almas do outro mundo, tornou Yayá sorrindo.

Yayá mostrou-se tão expansiva n'aquella noite e nos seguintes dias,
derramou de tal modo a vida que a enchia que Estella comprehendeu tudo o
que se passava entre a enteada e Jorge. Ha uns amores, aliás
verdadeiros, a que precedem muitas contrafacções; primeiro que a alma
os sinta, tem despendido a virgindade em sensações intimas. Yayá
ignorava tudo; não soletrara o amor, aprendera-o de um lance. Trazia o
coração intacto. Seu accordar foi uma aurora subita, mas rutilante e
limpida. No meio da embriaguez que lhe dava o novo sentimento, não
cogitou nas possiveis consequencias d'elle; não perguntou a si propria
se era verdade que no coração da madrasta havia uma saudade ou uma
esperança silenciosa, e se isso podia ser a raiz de largos odios e
dissenções domesticas. Não interrogou o futuro. Phenomeno curioso! A
lembrança do pae foi por um instante esquecida; o egoismo do amor
devorou-a.



XV


A fronte de Estella não tinha a tristeza dos vencidos. O amor persistia
no coração, como um mau hospede; e o espectaculo daquelles ultimos
mezes não fizera mais do que irrital-o. Mas a força moral de Estella
subjugou-o. A luta fora longa, violenta e cruel; a consciencia do dever
e o respeito de si propria acabaram vencendo. Talvez não fosse difficil
perceber, por baixo da serenidade do rosto, o cançasso que deixam as
grandes tempestades moraes. A tempestade ninguem lh'a viu.

Não obstante, no dia em que a paixão dos dous lhe pareceu evidente,
Estella sentiu rugir-lhe no coração um vento de colera; vento forte e
instantaneo. Dessa vez, o olhar penetrante de Yayá não pode ler no
fundo da alma da madrasta; e por ventura lhe diminuiu a suspeita, quando
a viu contemplar sem irritação nem abatimento a situação nascida de
seu esforço unico.

Entretanto, a molestia, que solapava a existencia de Luiz Garcia,
aggravou-se por aquelle tempo, e o enfermo foi compellido a pedir alguns
mezes de licença. Chamado a vel-o, o medico reconheceu que a
enfermidade tocava ao desenlace, e com a enfermidade a vida. Não o
disse á familia, mas não o escondeu de Jorge, quando este directamente
lh'o perguntou.

--Está condemnado á morte, disse elle; a molestia devorou-o
lentamente, mas com segurança. Pode viver dous a tres mezes.

Jorge ficou atterrado, Os acontecimentos tinham tomado tal feição, que
elle já pedia a vida de Luiz Garcia. Quem lh'o dissera alguns annos
antes? Não sómente padeceria com a morte do enfermo, mas teria de ver
padecer Yayá, de cuja adoração filial era testemunha, e chegava a
receiar que o golpe lhe fosse fatal. Nada disse; affectou tranquillidade
e indifferença, mas entendeu que os successos o designavam a proteger a
familia e dispunha-se a assumir esse papel, quando fosse occasião.

Estella não receiou menos do que na molestia anterior; mas dessa vez
não interrogou Jorge, com quanto o visse falar ao medico. Nos ultimos
tempos, o seu silencio era mais continuo e habitual. Parecia
desinteressada de tudo, menos do marido. Suspeitou da gravidade da
molestia, interrogou o medico, e ouviu deste palavras de esperança:

--Não lhe peço esperanças illusorias, disse Estella; peço-lhe que me
diga toda a verdade.

--A verdade é cruel de dizer.

--Perdido? disse ella com voz surda.

O silencio do medico foi a confirmação d'aquella palavra. Estella
sentiu fugir-lhe todo o sangue; mas não soltou uma lagrima. Pode
reflectir no perigo de ser vista essa denuncia do mal, e dominou-se.
Quando se achou só comsigo, deu livre campo ás angustias; encarou a
catastrophe e pensou nas consequencias da morte e no incerto futuro que
a aguardava dentro de poucos dias. O futuro trouxe-a ao presente, o
presente levou-a ao passado. A vida só lhe dera alegrias medias e dores
maximas. Não foi a paixão que a levou ao casamento, mas sómente a
conveniencia e o raciocinio. No casamento achara os sentimentos de
apreço, a mutua consideração, a brandura das relações domesticas;
esse fogo, porém, cuja intensidade não dura, mas que é o férvido sol
dos primeiros dias, precursor necessario da tarde repousada e da noite
tranquilla, esse fogo, essa fusão de duas existencias, esse ardor
expansivo, condição de sua natureza moral, não os conheceu Estella.
Ou o destino ou o orgulho privou-a de achar no casamento a paixão
sanctificada. Pois bem, se alguma cousa podia compensar-lhe a falta, era
a longa duração de uma felicidade segura, embora tibia; era
envelhecer sob a monotonia de um horizonte sem sol nem tempestade. O
destino negava-lhe a compensação.

Não tinha Estella ao pé de si com quem repartisse as tristezas. O pae
seria o ultimo de todos. A viuvez deixal-a-hia sem familia. Esta ideia
trouxe outra,--a de apressar o casamento da enteada, de modo que nenhum
vinculo moral lhe sobrevivesse ao marido. Uma noite, tendo Luiz Garcia
adormecido, Estella deu a perceber á enteada que o estado do pae era
grave. Yayá empallideceu. Jorge fez um gesto de reprovação.

--A molestia não é leve de certo, disse este; nas não se segue dahi
que se deva...

--Tudo se deve prever, tornou Estella. Pela minha parte, entendo que
prevenir um caso fatal não é fazer com que elle se dê. Yayá sabe o
amor que lhe tem seu pae; seria para elle uma fortuna poder abençoal-a.
Vamos lá, continuou ella, pegando nas mãos de um e de outro, por que é
que se não casam?

Momentaneamente acanhados, nenhum delles assentiu nem recusou. Yayá
olhava espantada para a madrasta.

--O silencio é uma maneira de responder, continuou esta; querem dizer
que concordam commigo, não é? Nesse caso, seremos tres para fazer a
cousa mais simples do mundo, que é casar duas creaturas, que se amam...
Porque não a pede o senhor amanhã? O casamento pode ser feito dentro
de poucos dias, á capucha, cousa simples...

Yayá tinha emfim sahido do primeiro instante de estupefacção.--Mas,
papae, está mal? disse ella.

--Todos nós estamos mal, apezar de termos saude, respondeu Estella;
n'um dia cae a casa. A doença delle é grave, é coração...

--Tem razão, interveiu Jorge; podemos concluir tudo em poucos dias,
duas semanas, quando muito, ou tres.

Jorge não ficou pouco impressionado da intervenção de Estella.
Conhecendo os sentimentos que a distinguiam, admirava essa
impassibilidade moral que esquecia ou fingia esquecer. Depois
examinou-se a si proprio; sentiu que o amor que o dominava agora, posto
fosse profundo, não era violento, não lhe queimava o coração.
Comparou-se ao que tinha sido, e esse cotejo, no primeiro instante, não
foi importuno; foi antes licção e philosophia. Mentalmente sorriu. Era
elle o mesmo homem? Outrora caminhara resoluto ás soluções tragicas;
agora, com egual sinceridade, entregava o coração a outra mulher. Na
fronte desta mal ousara roçar um osculo medroso e casto, elle, que
fizera a scena da Tijuca. O homem não era o mesmo. Embora a isenção
presente, Jorge experimentou um pouco da nostalgia do passado; sorria
sem amargura, mas com um travo de melancolia.

--Aquelle orgulho é ainda maior do que eu pensava, dizia elle.

No dia seguinte, Procopio Dias veiu accordal-o em casa.

--Quando chegou? perguntou Jorge.

--Hontem de tarde, a primeira visita que faço é esta. Demorei-me mais
do que queria; mas emfim cá estou,--cá estou, e mais magro. O senhor
é que me parece mais gordo.

Procopio Dias falou compridamente da politica argentina e da
magistratura de Buenos-Ayres; falou tambem um pouco das mulheres
platinas. De quando em quando, abria um claro, como para deixar que o
outro intercalasse alguma cousa menos extrangeira; Jorge, porém, falava
pouco e sem appetite; o constrangimento delle foi visivel quando
Procopio Dias o interrogou, acerca da familia de Luiz Garcia;
respondeu-lhe sem interesse. Procopio Dias fitou-o durante alguns
segundos; as rugas da testa engrossaram-se-lhe extraordinariamente.

--E Yayá! disse elle; parece-lhe então que nenhuma esperança...

Fez uma pausa; Jorge preencheu-a com um sorriso descorado, mas assaz
explicativo. Procopio Dias começou a farejar a realidade, mas nenhuma
das linhas do rosto denunciou a impressão que esta lhe causara. Após
um silencio largo, entrou a rir de bom humor.

--Quer que lhe diga uma cousa? perguntou elle. Saiba que volto curado.
Quando penso na molestia tenho vergonha; é verdade, tenho vergonha da
figura que fiz. Já sou muito maduro para cavallarias altas. A doença
ainda me durou algum tempo; sarei com a mudança de clima; o amor, ao
menos na minha edade, é uma especie de beri-beri... Hade ter-se rido de
mim; é justo, porque eu não faço hoje outra cousa.

Jorge contestou com um simples gesto; mas Procopio Dias falava com tanta
naturalidade, ria com tamanha franqueza, que a explicação deu á
conserva a vida que ella tendia a perder. Jorge foi mais expansivo, mais
alegre; não lhe confiou a nova situação, mas o segredo parecia
debruçar-se-lhe das palpebras e dos cantos da boca. Essa alegria era um
respiro da consciencia, que se sentia um pouco vexada em presença
daquelle homem, cuja confiança fora a origem de seu recente amor; era
tambem a satisfação de não ter conseguido ligal-o á filha de Luiz
Garcia; consorcio repugnante, hybrido, cujo resultado seria dar á moça
uma longa amargura sem certeza de resgate.

Quando Procopio Dias saiu d'alli ia suspeitoso da realidade.--Mas a
outra? dizia elle comsigo. Sacudiu os hombros, e não ficou mais
tranquillo. Levava já no peito um pouco de impaciencia e irritação;
tinha a fronte obscurecida por uma nuvem. Mais tarde allumiou-a um
clarão subito, ainda que frouxo, era um reflexo de esperança. Talvez
houvesse julgado com precipitação: era possivel attribuir a reserva de
Jorge, não á competencia pessoal, mas a uma maneira de entender as
maximas do decoro. Quem sabe? Elle podia ter-se arrependido de haver
permettido tanto. Essa reflexão arejou um pouco o espirito, sem lhe
tirar de lá o miasma corruptor. Era força conhecer a verdade. Nesse
mesmo dia, foi elle a Santa Thereza.

Luiz Garcia concedera n'aquella manhã a mão da filha. Na occasião em
que Procopio Dias alli entrou, tinha-a elle ao pé de si, e
contemplava-a com amor e saude,--duas vezes saudade, porque tambem a
morte os viria desunir. Entre si recordava os tempos em que elle e ella
eram, um para o outro, toda a terra e todo o ceu; e perguntava á
natureza se era justo sobrepor ao primeiro vinculo outro vinculo
extranho, e a natureza lhe respondia que não sómente era justo, mas
até necessario. Então o pae sentia-se feliz com a felicidade da filha,
cujo egoismo lhe ensinava a abnegação. Se ella devia amar a outrem,
que faria elle mais do que ceder? Quanto ao noivo eleito, merecia-lhe
todas as approvações; era o unico extranho que lhe penetrara um pouco
mais na intimidade; amante, bemquisto e opulento, podia dar á moça,
além da felicidade do coração, todas as vantagens sociaes, ainda as
mais solidas, ainda as mais frivolas:--e esse homem obscuro, enfastiado
e sceptico, saboreava a ventura que a filha iria achar no turbilhão das
cousas, que elle não cobiçara nunca.

Uma noite bastou a Procopio Dias para conhecer a situação. Não
obstante as declarações do pretendente, que acceitou como sinceras,
Jorge buscou dissimulal-a. Se Procopio Dias não tornasse a ver a moça,
é possivel que o tempo lhe abafasse a paixão. Mas viu-a, e viu-a mais
bella do que a deixara.

--E a outra? dizia elle.

Dessa vez a pergunta não passou vagamente; trouxe uma ideia comsigo,
deante da qual Procopio Dias chegou a recuar. Esse ideia era envenenar
na propria origem a affeição recente; nada menos que denunciar a
madrasta á enteada. Se alguma cousa pudesse attenuar a perversidade de
semelhante recurso, era a persuasão que elle tinha de que diria a
verdade. Cria deveras no amor secreto dos dous; com algum esforço
poderia fazer suppôr que o casamento da filha de Luiz Garcia era uma
suggestão da madrasta. Elle proprio achava essa combinação verosimil,
conveniente, reparadora.

--Maganão! a duas amarras! dizia o pretendente em tom surdo.

A occasião veiu. Um pouco irritada com a assiduidade de Procopio Dias e
a confiança que parecia renascer nelle, Yayá assentou de lhe dizer
francamente que estava prestes a casar. Procopio Dias empallideceu.
Suppunha apenas provavel o que era já definitivo. Olhou longamente para
ella; a extincção da esperança não implicava a extincção do
desejo; pela contrario, vinha pungil-o e açulal-o. Seus olhos mostraram
então duas expressões diversas; a primeira involuntaria, a mesma com
que os dous velhos de Israel espreitavam a filha de Helcias, um olhar
terreno e mau; a segunda voluntaria, não de queixa, não de supplica,
mas de lastima. A ideia ruim tornava a arder-lhe no cerebro.

--Não sabia, disse elle, depois de curta pausa. Com quem?

--Com o Dr. Jorge.

--Ah!

Procopio Dias riu com a testa, e tornou a deitar-lhe um olhar de
lastima.--Pobre moça! murmurou elle entre dentes. Yayá fitou-o
severamente; depois, sorriu e perguntou com alguma ironia:

--Não approva a escolha?

--A escolha é excellente, disse elle; mas ha circumstancias que fazem
do optimo pessimo. Ouça-me; a senhora sabe que eu a amei; suppõe
talvez que já não a amo e engana-se; amo-a como no primeiro dia. Tive
ideia de casar com a senhora; perdi a ideia, mas guardei o sentimento.
Talvez isso lhe diminua a sinceridade das minhas palavras; mas eu cedo
á voz da consciencia, sem calcular com a sua approvação...

Fez uma pausa.

--Acabe, disse a moça.

--Ha cousas que um coração inexperiente não pode entender; cousas que
talvez se lhe não devam referir. Quer um conselho? não acceite o
casamento; desfaça-o, não para casar commigo, mas desfaça-o.

Yayá fez-se pallida. Procopio Dias, pasmado do proprio arrojo,
comprehendeu que havia ido muito longe naquellas poucas palavras; mas
já não havia meio de as explicar de modo verosimil. Como se fizesse um
monologo interior, abanava a cabeça ou levantava a ponta do labio,
emquanto os olhos, perdidos no ar, tinham o aspecto vitreo das fortes
concentrações. Yayá olhou para elle atonita e confusa: não sabia o
que pensasse, não podia ou não queria entender. Afinal, collingido
todas as forças, perguntou audazmente porque motivo lhe cumpria
desfazer o casamento.

--Qualquer que seja o motivo, disse elle, não lhe aconselho que o
acceite logo como decisivo. Reflicta antes de resolver; a
responsabilidade será sua, do mesmo modo que o beneficio ha de ser seu.
Meu conselho é que o desfaça.

--Porque muitas vezes o casamento é... é uma mascara, uma... Seu noivo
ama a outra pessoa... Que tem?

Yayá fizera-se livida. Terror, indignação, abatimento, sua alma
passou por todos esses estados, padeceu-os até simultaneamente, sem que
a boca achasse uma só palavra de resposta ou de protesto. A delação
fulminara-a; nunca Procopio Dias chegou a comprehender o motivo de
tamanho e tão subito effeito. O effeito aterrou-o em parte, e em parte
o consternou; alguma fibra lhe ficara intacta, no meio da decomposição
moral de todo o seu ser, essa bastou a resentir o golpe que elle mesmo
vibrara.

--Outra... Que outra? balbuciou Yayá segurando-lhe um dos braços.

Procopio Dias abanou a cabeça solemnemnte, como a dizer que não podia
ir mais longe. A esse gesto seguiu-se um silencio largo, durante o qual
a moça pode vencer a primeira commoção e reflectir sobre o que lhe
convinha entender.

--Ama a outra? disse ella. Quem quer que seja essa rival, já agora o
noivo é meu; e é natural que me ame mais do que a ella, visto que
prefere casar commigo...

Não obstante a firmeza que procurava dar á palavra, a palavra era
difficil e a voz parecia morrer-lhe na garganta. Procopio Dias
comprehendeu que a commoção estava apenas dominada, e que o veneno
penetrara abaixo da epiderme. Era a primeira vez que lhe via esse
aspecto dolorido; antes de embarcar, conhecia-a menina caprichosa;
depois do regresso, achou-a senhora reflectida; naquella occasião, a
dor, occulta embora, como que lhe dava um encanto mais. Effectivamente o
rosto de Yayá trahia o estado do coração; os olhos não correspondiam
ao esforço que ella fazia para os fixar.

--Se lhe parece, esqueça o meu conselho, disse elle, e não me leve a
mal se lhe preguei um susto. Talvez o susto haja passado. Não importa;
creia que ha casamentos impossiveis; casamentos destinados a... não sei
a que... pode ser que a cousa nenhuma... ou a cousa muito grave, muito
grave.

--Cale-se! rugiu surdamente a moça.

Procopio Dias continuou:

--Uma só palavra, disse elle. Hade attribuir ao despeito o aviso que
lhe dei. É verdade; ha uma grande porção de despeito em mim. Porque
lhe falaria eu, se não tivesse um motivo pessoal? Esse homem trahiu-me;
eu tinha-lhe confiado o deposito do meu amor; elle abusou da confiança:
fez-se amado em meu logar. Não me queixo da senhora. A senhora não me
devia nada;--um pouco de sympathia, talvez;--no futuro, pode ser que me
deva tambem um pouco de gratidão.

Procopio Dias saiu logo depois destas palavras. Estava satisfeito; desde
que pode formular em um ou dous raciocinios o sentimento occulto que o
fazia agir, achou nelle a legitimidade de tudo o que acabava de dizer.
Era um duello; recebera um golpe na espadua, respondia com outro no
coração, mais certeiro e provavelmente mortal; e se não era duello,
era emboscada por emboscada; direito de represalia.

Prostrada com o golpe que acabava de receber, Yayá não teve sequer as
lagrimas do desespero nem as da indignação. Ha dores seccas, como ha
coleras mudas. A suspeita, que o tempo devia carcomer de todo, e que o
amor de Jorge ia já tornando problematica, essa ruim suspeita renascia
tão vivaz e pertinaz como alguns mezes antes, quando arrancou aos olhos
de Yayá as primeiras lagrimas de mulher. Não podia crer que o amor de
Jorge não fosse sincero; era-o; parecia-o, ao menos. Mas a existencia
do outro amor, não era já o coração que lh'o dizia, era uma voz
extranha que a vinha delatar: circumstancia nova, que fazia convalescer
a duvida anterior, até o ponto de lhe dar todos os visos da realidade.
Yayá sentia-se arrojada outra vez ao vasto e escuro espaço de suas
antigas cogitações;--erma, desamparada de toda protecção humana,
não lhe restava mais que duvidar e gemer, até achar na propria
ductilidade de seu espirito a força que lhe não podia dar nenhuma
origem exterior.

A madrasta foi ter com ella meia hora depois de sair Procopio Dias.
Pouco antes, o marido tivera tamanha afflicção, que Estella chegou a
receiar o ultimo golpe; agora ficava prostrado. Estella appareceu á
enteada com o olhar ainda assustado e o passo mal seguro; Yayá não viu
essa mudança, nem ouviu as primeiras palavras com que ella lhe falou do
pae. Olhava só, emquanto o coração parecia querer despedaçar-lhe a
arca do peito.

--Yayá, ande ter com seu pae; seu pae está hoje muito doente.

Vendo que a moça não se movia, Estella lançou-lhe o braço á roda da
cintura.--Vamos, disse. Yayá estremeceu toda; depois, mettendo-lhe as
mãos nos hombros, empurrou-a violentamente e caminhou para a porta.

--Yayá! bradou a madrasta.

A enteada voltou-se, e, estendendo o dedo sobre os labios, impoz-lhe
silencio. O olhar desvairado e inconscio parecia antes de loucura que de
indignação. Estella ficou estupefacta.

Luiz Garcia foi o laço que ainda pode conservar atadas essas duas
existencias, já agora antipathicas uma á outra. A vida delle era
necessaria a ambas. Uma punha nella todas as esperanças de um coração
credulo; outra apenas lhe dava aquella porção ultima, que não
desampara os necessitados. Tregoas houve, mas sombrias e violentas. Não
se falavam as duas, não trocavam um só olhar na ausencia de Luiz
Garcia; deante delle, mostravam-se como d'antes. Esta situação
incomportavel parecia, aliás, definitiva.

Jorge percebeu-a; elle proprio sentiu a principio o effeito de um
acontecimento, que não podia adivinhar e necessariamente era grave.
Yayá, porém, venceu-se depressa em relação a elle. A alma, se o
vento lh'a fizera dobrar, para logo retomou a posição dos outros dias;
mostrou-se terna com elle, affavel, impaciente de concluir o casamento.
Um só pensamento influia nella: confiscar aquelle homem, arrastal-o
comsigo, dominal-o depois, despedaçar de uma vez o laço que suppunha
atal-o ao coração da madrasta.

Marcou-se um sabbado para o casamento; mas os primeiros dias da semana
foram de tão mau agouro, que a familia resolveu deferil-o para melhor
occasião. O enfermo peiorou rapidamente. A molestia entrou no ultimo
periodo.

Yayá viu morrer tristemente o sol do sabbado, e não viu nascer mais
aprazivelmente o de domingo. Não pensava ainda na morte do pae, mas
alguma cousa lhe fazia tremer o coração. A presença de Jorge é que
lhe dava animo e conforto, posto que elle proprio se sentisse
apprehensivo com o desenlace proximo da enfermidade de Luiz Garcia.

Lenta e caprichosa nos primeiros tempos, a enfermidade teve rapido e
inflexivel o periodo ultimo. No fim de poucos dias a morte foi declarada
imminente. Estella, não obstante achar-se preparada para o golpe, mal
pode resistir ao primeiro abalo. Yayá ficou como douda. O pae fora a
sua primeira e continua adoração. Durante alguns annos não conheceu
outro mundo, outro affecto, outra familia, além daquelle homem grave e
terno, cujos olhos a protegiam e alumiavam. No primeiro instante não
pode crer na triste nova. Mas a realidade avultou a seus olhos, e foi
então que a alma tentou romper todos os elos e voar, antes d'elle, a
esperal-o na immensa vastidão azul, para emprehenderem juntos a
derradeira viagem. Não chorou nas primeiras horas; a dor trancara-lhe
as lagrimas; mas estas vieram logo depois, e ella as verteu em silencio,
suffocando os soluços, estorcendo-se na solidão da alcova.

Luiz Garcia reiterou a Jorge o pedido que lhe fizera um vez, em
relação á familia; mas agora restringia-o a Estella.

--Peço-lhe que não desampare os meus. Sei que morro, e quero ter a
certeza de que só deixo algumas saudades. O senhor vae casar com minha
filha; nada me inquieta a este respeito. Mas Estella, que não é mãe
de Yayá, ou é sómente mãe de coração, Estella vae ficar só, e eu
não quizera morrer com a ideia de que a deixo infeliz. Promette-me que
não a desamparará nunca?

Jorge prometteu. Estella, que estava presente, procurou tranquillisar o
enfermo, e pediu-lhe que não falasse tanto. Luiz Garcia não attendeu;
exaltou as virtudes da mulher, a dedicação, o zelo, a affeição que
lhe tinha.

--Digo-lhe que fui feliz, concluiu elle; minha alma era já velha,
quando a d'ella se lhe uniu, e comtudo... sim, minha alma rejuvenesceu
um pouco...

--Já tem falado muito, interrompeu Estella, descance, não quero que
diga mais nada.

Luiz Garcia pediu ainda á mulher e á filha que se amassem como até
alli. Tinha falado excessivamente; ficara abatido. D'alli em deante, a
morte não fez mais do que apoderar-se, trecho a trecho, da sua victima.
Já a noite d'esse dia foi mais cruel que as anteriores; todo o seguinte
dia foi de angustia para as duas mulheres. Na manhã do outro começou a
agonia d'elle, que durou algumas horas.

Ao vel-o morrer, as duas mulheres ficaram longo tempo prostradas. Era a
primeira vez que contemplavam a morte. Nenhuma d'ellas vira nunca
expirar uma só creatura humana, e a primeira que a seus olhos se
despedia da vida representava para ellas largos annos de affeição
terna e profunda, e o mais forte laço moral que as ligava uma a outra.
N'esse instante solemne, abraçaram-se sem reflexão; a dor impelliu-as
com a mão de ferro, e, madrasta e enteada confundiram alli suas nobres,
tristes e inuteis lagrimas.

Aos pés da cama, com o gesto dolorido, Jorge via a afflicção duas das
mulheres, sem lhes poder nem querer valer. Quanto a Raymundo, não pode
ver expirar o senhor; correu ao jardim, onde ficou longo tempo sentado
no chão, com a cabeça encanecida entre os joelhos, sacudido pela
violencia dos soluços.



XVI


A morte de Luiz Garcia foi uma complicação mais. Passados os primeiros
dous mezes, Jorge pensou em realisar o casamento, sem apparato, como um
simples acto de interesse domestico, aliás necessario pela situação
em que se achavam as duas senhoras. O Sr. Antunes fora morar com ellas,
e era o chefe natural da familia; mas Jorge não esquecera que Luiz
Garcia nenhuma confiança tinha na pessoa do sogro; demais, entregara
directamente a Jorge a chefia da casa. Ora, cumpria legalisar e
sanctificar a designação do moribundo.

Mas, se isto lhe parecia claro e necessario, não se atrevia ainda assim
propôl-o á noiva, e por duas razões. A primeira era o natural
respeito á dor da filha, que elle podia magoar ainda mais falando-lhe
desde logo no casamento. Era a segunda a frieza e o silencio com que
esta o tratava depois da morte do pae. A differença era positiva e
inexplicavel; mas a boa fé explica tudo, e Jorge attribuiu essa nova
feição da moça ao profundo golpe que o desastre lhe desfechara. Sabia
da paixão filial de Yayá; era testemunha dessa adoração constante,
que parecia contar com a eternidade da vida.

A ideia de falar a Estella apenas lhe passou pela mente; rejeitou-a sem
esforço. Limitou-se a esperar, e ia alli com a assiduidade que lhe
permittia a condição de noivo. Ia ás noites, não todas; passava uma
ou duas horas, a atar e desatar uma conversação frouxa, muita vez sem
interesse. Sobre todos tres, mas principalmente sobre as duas, pesava
ainda a lembrança do finado. O Sr. Antunes tomava parte nessas
conversações intimas, e era elle quem forcejava por lhes dar a perdida
animação; temperava-a com algum dito folgazão, ouvido com
indifferença, quando não com tedio. Posto que o casamento de Jorge com
a enteada da filha estivesse tratado, elle nutria a esperança de que
alguma cousa o viria desfazer, e nessa carta incerta jogava todo o
futuro.

Uma noite, Jorge propoz directamente a Yayá a necessidade de apressar o
casamento.

Não sendo a ceremonia publica, disse elle, não daremos que falar aos
outros, se alguma cousa ha que falar...

--Quer a minha resposta hoje mesmo? interrompeu Yayá.

--Podia ser hoje.

Estella que estava presente, apoiou a reflexão de Jorge.--Convem
decidir quanto antes, disse ella; não vale a pena deixar passar mais
tempo sem utilidade.

--Sem utilidade, repetiu Yayá olhando para o tecto.

--Decerto...

Yayá baixou os olhos aos dous; fitou-os a um e outro, longo tempo, com
severidade; depois, retorquiu em tom rispido:

--Deixem-me ao menos o tempo de chorar meu pae!

Jorge proferiu algumas palavras de affeição; Estella não protestou
nem retorquiu; erguendo-se silenciosamente e deixou-os. O silencio foi
longo. Jorge não tomara á má parte a supplica da noiva; attribuiu-a
ao sentimento de piedade filial, que era nella mais forte que qualquer
outro.

--Yayá, disse elle, ninguem lhe nega o direito de chorar seu pae; se
insistimos é em beneficio da familia. Seu pae recommendou-me que
olhasse pelos seus, e eu quizera poder fazel-o, não como extranho, mas
como parente; por isso lembrei a conveniencia de realisar o casamento
quanto antes, mas se lhe parece que pode ser addiado...

--Pode.

--Até quando?

--Até um dia.

--Que dia?

--Sabbado de Alleluia, por exemplo.

--Falemos serio, disse Jorge.

--Serio? Dia de S. Nunca.

Jorge franziu a testa.

--Que quer isso dizer? Retira a sua palavra? Em todo o caso, tenho
direito de saber o motivo, porque algum motivo ha de haver...

Yayá tinha-se levantado, pegou-lhe na mão e levou-o até á janella. O
transtorno das feições era visivel; os olhos luziam de impaciencia,
emquanto a palavra parecia medrosa e recalcitrante. Pasmado do que via,
e curioso do que ella lhe iria dizer, Jorge não pensou sequer em a
aquietar; se lhe pegou nas mãos foi por um movimento instinctivo; mas
quando as sentiu geladas e tremulas ficou atterrado.

--Que tem Yayá? Você padece; vamos, fale, diga-me tudo. Já me não
ama?

--Se o não amo! disse vivamente a moça deitando os olhos ao ceu, como
a tomal-o por testemunha da sinceridade de seu coração; mas logo
depois arrependeu-se e continuou de um modo compassado e frio.--Amei-o;
não importa saber se muito ou pouco, mas amei-o. O senhor foi a
primeira pessoa que me fez bater o coração de um modo differente do
que elle batia; foi a primeira pessoa que me disse palavras novas, que
me fizeram bem...

Jorge lançou-lhe o braço a cintura e conchegou-a ao coração.--Pois
sim, disse elle; eu repetirei essas palavras em todo o resto da nossa
vida. Seja boa, e sobretudo seja franca. Para que ha de negar o que se
está vendo? Eu sei que ainda me ama...

--Eu? disse a moça deslaçando-se-lhe dos braços. Eu tenho-lhe horror.

Jorge sorriu.--Horror, por que? disse elle. Mas o gesto da moça veiu
apagar-lhe o sorriso começado. Yayá levara as mãos ao seio, como se
quizera conter os impetos do coração; os olhos luziam-lhe de
extraordinario fulgor. Offegante, por alguns minutos, não pode
articular uma só palavra; quando chegou a falar disse simplesmente:

--Que razão ha agora para que nos casemos? E depois de uma
pausa:--Tenho ciumes do passado, e o senhor amou já uma vez. Assim como
eu ia entregar-me ao senhor, com o coração limpo de qualquer outro
affecto, assim quizera que o senhor nunca houvesse amado a ninguem. Que
é o seu coração para mim? Um sobejo de outra; talvez nem isso; esse
mesmo resto não me pertence, não é meu; fiquemos neste ponto, e tome
cada um de nós a sua liberdade.

Yayá recusou outra explicação, aliás desnecessaria; a linguagem era
transparente. Jorge saiu dalli com o espirito transtornado e confuso. O
motivo da recusa, para ser sincero, era pueril ou romanesco demais;
nenhuma noiva teve ciumes de um amor anonymo e extincto; logo, a
allusão de Yayá não era vaga e sem objecto, mas ia direito á pessoa
de Estella. Seria isso? Jorge não queria crer e mal podia duvidar.

No dia seguinte, acabado o almoço, appareceu-lhe o pae de Estella.

--Yayá manda-lhe isto, disse elle saccando da algibeira uma carta.

Jorge recebeu-a presurosamente e abriu-a; leu estas palavras
unicas:--«Não posso ser sua mulher; esqueça-me e seja feliz.»
Empallideceu; tornou a ler a carta, sem a entender, posto que ella não
fosse mais do que a formula escripta e secca do que Yayá lhe dissera na
vespera. Mas entre as queixas e effusões de uma hora de desanimo e
aquella intimação, havia um abysmo; a carta trazia o cunho da
resolução definitiva, que elle não achara ou não quizera achar nas
declarações verbaes da moça.

--Yayá deu-lhe isto agora mesmo?

--Antes do almoço, respondeu o Sr. Antunes, cujo olhar forcejava por
soletrar no rosto de Jorge algumas linhas do drama que suppunha haver
lá dentro.

--Não lhe parece que Yayá anda triste? perguntou Jorge no fim de um
minuto.

--A morte do pae prostou-a muito.

Jorge foi dalli ao gabinete; o Sr. Antunes acompanhou-o. A
preoccupação do moço era uma chuva benefica ás esperanças do pae de
Estella, que todas pareciam reflorir. Como este falasse da filha com a
prolixidade astuta do pretendente, Jorge attentou n'uma ideia, que a
principio lhe pareceu absurda, mas com a qual se familiarisou a pouco e
pouco; mordeu-lhe o coração a suspeita de que o procedimento de Yayá
era uma desforra de Estella, uma como vingança posthuma. O inexplicavel
da carta podia justificar até certo ponto essa suspeita sem fundamento
nem verosimilhança, que afinal acabou por não achar nenhuma repulsa na
consciencia delle.

Duas horas depois Jorge escrevia estas poucas palavras á viuva de Luiz
Garcia:

«Yayá mandou-me ha pouco o incluso bilhete. Peço-lhe o favor de uma
explicação.»

A carta de Yayá fora escripta naquella manhã, depois de uma noite de
agitação e luta. Nem foi a unica. Yayá escrevera outra, menos
laconica, a Procopio Dias. Morto o pae, esse homem fora alli tres vezes,
sem trocar com a moça uma só palavra relativa á extranha confidencia
que lhe fizera antes. Eram visitas de meia hora, não mais; durante esse
curto lapso de tempo, Procopio Dias não discrepava um instante da
gravidade um pouco triste que adoptara. Não era o folgasão primitivo,
mas tambem não era um poeta desesperado e pallido; ficava a egual
distancia de um e outro modelo. Os acontecimentos pareciam
aconselhar-lhe uma discreta ausencia; mas, além de não ter melindres
nem escrupulos, floria-lhe no peito a esperança, a esperança tenaz dos
cabiçosos. Não a sussurrava ao ouvido da moça, nem a ostentava nos
olhos, na compostura, nos meneios, todos elles impregnados da submissão
de uma alma desenganada e passiva. Yayá tratava-o com bondade, já
agora mais constante; posto não lhe passasse pela cabeça a ideia de
vir a desposal-o, não lhe destoava o aspecto dessa paixão resignada e
muda.

Depois de soltar a palavra decisiva, Yayá entendeu que lhe devia dar a
forma ultima, desligando-se da solemne promessa. Não o fez sem muita
lagrima solitaria. A pobre creança amava o filho de Valeria com a
singeleza de um coração quasi adolescente, e só então mediu todo o
imperio que elle adquirira sobre ella. Mas duas circumstancias a
induziam ao desfecho; era a primeira a revelação de Procopio Dias,
confirmação de suas suspeitas; a segunda foi o espectaculo que se lhe
offereceu aos olhos, naquella noite, logo depois de se despedir do
noivo. Sabendo que a madrasta estava no gabinete do pae, alli foi ter e
espreitou pela fechadura; viu-a sentada com a cabeça inclinada ao
chão, desfeito o penteado, mas desfeito violentamente, como se lhe
mettera as mãos em um momento de desespero, e caindo-lhe o cabello em
ondas amplas sobre a espadua, com a desordem da peccadora evangelica.
Yayá não a viu sem que os olhos se humedecessem.

--Que se casem! disse a moça resolutamente.

Desligando-se da promessa feita, Yayá reflectiu que ia ficar só, e que
precisava forçosamente de um amparo; foi então que lhe lembrou
Procopio Dias. Não encarou a ideia sem repugnancia; acceitavel na
palestra, Procopio Dias era-lhe antipathico para a convivencia conjugal.
Não o podia amar, e, uma vez resoluta a acceital-o, começou logo de o
aborrecer. Que muito? Era um marido; não exigia outro merito. A carta
que lhe escreveu não saiu de um jacto, foi trabalhada e repizada; o
texto definitivo dizia que fosse alli sem demora para lhe falar de
objecto que interessava á felicidade de ambos. Isto, e nada mais que
uma lagrima, que lhe resvalou dos cilios no papel como um protesto contra
o que ia nelle escripto.

Raymundo, chamado para levar essa carta, recebeu-a depois de alguma
hesitação. Olhou para o papel e para a sinhá moça. Depois sacudiu a
cabeça com um ar de duvida. Yayá simulou não ver nada, mas o gesto do
preto impressionou-a. Ia affastar-se, Raymundo reteve-a dizendo:

--Yayá me desculpe... esta carta... Raymundo não gosta de falar
áquelle homem.

--Não lhe fales; basta deixar a carta em casa delle.

Raymundo não insistiu; acompanhou com os olhos a filha de seu antigo
senhor, abanando a cabeça com o mesmo ar de alguns momentos antes.
Depois olhou para a carta, como se quizesse adivinhar o que ia dentro.
Não era só presentimento, mas tambem deducção do que elle via
naquellas ultimas semanas. Tinham-lhe dado noticia do casamento;
falara-se nisso todos os dias antes da morte de Luiz Garcia. Morto este,
cessou toda a allusão ao projecto, que parecia dever executar-se dentro
de pouco tempo. O coração do preto dizia que aquella carta era alguma
cousa mais do que um recado sem consequencia. Quiz leval-a a Estella;
mas rejeitou o expediente, por lhe parecer infidelidade. Dez minutos
depois saiu em direcção á casa de Procopio Dias.

Entretanto, chegavam ás mãos de Estella o bilhete de Jorge e o de
Yayá. A viuva não podia crer o que lera. A carta da enteada era um
acto de insubordinação, inexplicavel na essencia e na forma: e se essa
carta a fez pasmar, a de Jorge fel-a gemer. O noivo desenganado recorria
á intervenção de Estella. A primeira amada desse homem era agora a
sua confidente, a quem elle escrevia sem saudade, sem remorso, talvez
sem hesitação.

--Sogra! concluiu Estella com amargura; e erguendo os olhos do papel
para o espelho, que pendia da parede fronteira, contemplou caladamente
as suas graças ainda em flor. Yayá entrou nessa occasião. A madrasta
chamou-a ao pé de si, e mostrando-lhe o bilhete que escrevera ao noivo,
perguntou-lhe o que queria dizer aquillo. A enteada ficou silenciosa
durante alguns segundos; mas a resolução deu-lhe força e
tranquillidade.

--Quer dizer o que ahi está escripto, respondeu ella; não posso casar
com o Dr. Jorge.

--Porque?

--Não posso.

--Porque? repetiu Estella com autoridade.

--Amo a outra pessoa.

--Não creio; tem de certo outro motivo.

--Que motivo?

--Nenhum que seja sensato, acudiu a madrasta, mas algum ha de haver, que
não seja esse. O passo que deu é grave; não é proprio de uma moça
obediente; chega a ser contrario á cortezia. Não importa; tudo se pode
explicar; explique-me esta carta.

Yayá não obedeceu á intimação da madrasta, e para tirar á recusa
qualquer apparencia offensiva, conservou um ar de modestia e
resignação. Estella não se deu por vencida; demonstrou-lhe que só um
motivo grave podia justificar semelhante procedimento, e que era
forçoso dizel-o ao noivo; lembrou-lhe finalmente a estima que sempre
houvera entre Jorge e o pae. Neste ponto Yayá estremeceu e fitou na
madrasta uns olhos que não eram os de pouco antes. Parecia-lhe
sacrilegio evocar o nome do pae. Não se pode ter; deu um passo e
interrompeu-a com sequidão:

--Não posso casar, porque a senhora gosta delle.

Estella, que já então estava sentada, ergueu-se de golpe ao ouvir esta
subita e inesperada explicação. A face pallida, que o traje de viuva
ainda mais empallidecia, tingiu-se de uns longes de vermelho. Podia ser
confusão ou indignação. Durante uma pausa relativamente longa, Yayá
não tirou os olhos da madrasta. Essas duas lampadas buscavam
examinar-lhe, no momento supremo todos os recantos da consciencia, e
todos os atalhos do passado. Não disse nada, para melhor gozar do abalo
que acabava de produzir em Estella; era o juro do sacrificio. Mas
Estella sentou-se dahi a pouco, e foi a primeira que rompeu o silencio.

--Tu estás maluca, disse ella tranquillamente. Quem te metteu
semelhante ideia na cabeça?

--Não examinemos agora quem foi ou o que foi que me fez adivinhar a
verdade, respondeu Yayá; basta saber que decidi romper o casamento, que
o mandei dizer ao Dr. Jorge, e que talvez dentro de poucos dias outra
pessoa lhe pedirá minha mão.

Estas palavras transtornaram de todo a viuva, que, atonita e irritada,
deu alguns passos na sala, buscando conter a explosão de seus
sentimentos. Yayá foi ter com ella, falou-lhe com brandura e
submissão.

--Não se zangue, mamãesinha, se lhe não disse antes o que fiz agora
mesmo; estava certa de que approvaria, ou me perdoaria, quando menos. O
homem de que lhe falo ama-me, e a senhora mesma não rejeitou a ideia de
me ver casada com elle.

--Não tens culpa da imprudencia que commetteste, disse Estella; porque
antes disso tinhas perdido a razão. Vem cá; disseste-me ahi uma
palavra absurda, e é preciso que me digas outra com que expliques a
primeira. Porque eu gosto delle? continuou depois de alguns
instantes. Que quer dizer com isso?

Yayá curvou a cabeça.

--Fala!

--Não direi nada; essa palavra explica tudo. Se gosta como eu creio, é
a sua felicidade que lhe trago, não digo a troco da minha, porque seria
lançar-lhe em rosto o sacrificio, mas a troco de uma illusão, e nada
mais. Não pense que lhe quero mal; não posso querer mal a quem me tem
ou teve alguma affeição e substituiu dignamente minha mãe. Se lhe
quizesse mal, é provavel que não fizesse o que fiz.

Em quanto falava a enteada, Estella tinha a fronte inclinada e
pensativa; attitude em que se conservou ainda durante algum tempo.

--Bem vê que acertei, disse Yayá; seu silencio confirma a minha
supposição.

--Eu! exclamou Estella estremecendo. Tu não entendes nada dos
sentimentos, não conheces o coração. Eu amal-o? eu? Não! não é
possivel!

--Talvez não, mas o que está feito, está feito.

A madrasta quiz retel-a, mas não pode; Yayá saiu sem dizer nada.
Estella ficou atordoada, confusa e até medrosa; reboavam-lhe aos
ouvidos as palavras de Yayá, não como um som exterior, mas como o
brado da propria consciencia. Venceu o abatimento, reagiu depressa como
lh'o pediam as circumstancias e a propria necessidade de sua natureza.
Não teve tempo de cogitar no modo por que a enteada chegara a suspeitar
um sentimento que ella recalcara no coração. Urgia reparar o mal feito
pela imprudencia da moça. Estella dispoz-se a responder desde logo á
carta de Jorge, e não sabia ainda claramente o que lhe havia de dizer.
Tratou primeiro de chamar Raymundo, e vendo que elle não acudia foi ter
com Yayá.

--Raymundo foi levar uma carta minha ao Procopio Dias, respondeu esta.

Estella caiu n'uma cadeira. Pela primeira vez, alumiou-lhe o espirito
uma ideia cruel: a ideia de que a suspeita de Yayá fosse mais do que
uma simples e innocente conjectura. Os olhos que lançou á moça ardiam
de indignação. Cobriu-os depressa, não para chorar, mas para fugir
aos da outra. O olhar de Estella fez vacillar por um instante a
convicção da enteada; a colera pareceu-lhe sincera e até excessiva;
mas o gesto que se lhe seguiu attenuou e desvaneceu a primeira
impressão. Yayá suppoz ver na attitude da madrasta uma confissão
involuntaria, uma expressão de abatimento e desespero, como de pessoa
que entrevê a felicidade propria e julga dever sacrifical-a á de
outrem. Era generosa. Caminhou para ella, dobrou as curvas, pousou-lhe
no regaço os braços, tremulos de commoção; com as mãos desviou as
de Estella e fitou-lhe os olhos, que estavam sombrios.

--Fui estouvada, confesso, disse ella; devia tel-a consultado antes de
fazer o que fiz. Mas eu temia a sua opposição, e não queria tornal-a
desgraçada. Sou mais moça que a senhora; se tivesse de consolar-me,
consolava-me despressa. Mas não tenho; não amava; cedi a um capricho,
e não sinto a menor dor ao despedir-me delle. Ande, perdôe-me; e
esteja certa de que não a amarei menos do que até agora.

Ergueu-se e procurou beijal-a. A madrasta recuou instinctivamente a
cabeça; era um resto de repugnancia, que a physionomia ingenua e pura
de Yayá para logo dissipou. Em tão verdes annos, sem nenhum trato
social, era licito suppôr na menina tamanha dissimulação? Estella
concluiu que a acção da enteada vinha, não de uma supposição
ultrajante, mas de um impulso desinteressado. Qualquer que fosse o
fundamento da suspeita, o procedimento da enteada trazia o cunho da
candura e da boa fé; assim pensando, Estella sentiu desopprimir-se-lhe
a alma. Não era generosa,--ou tinha sómente a generosidade fria e
altiva, que nasce da soberba. Mas não era insensivel, e o desinteresse
da menina tocou-lhe profundamente o coração. Inclinou-se para ella,
tomou-lhe a cabeça entre as mãos e fitou-a, com um olhar severo e
maternal ao mesmo tempo.

--Perdoo-te, disse finalmente, porque não sabes o que fizeste. A
intenção é que te salva do meu odio; digo mal, do meu desprezo. Se
queres medir bem a profundidade do abysmo que acabas de cavar, fica
sabendo que me injuriaste, pensando servir-me, e que o resultado do teu
erro pode talvez arrancar-te lagrimas amargas e inuteis. Teu castigo
será que só eu os enxugarei;--ouves bem? só eu.

Dizendo isto, soltou a cabeça da enteada com um gesto rispido, em que
havia ainda um pouco de irritação. Yayá estava pallida. Sentiu na
palavra secca e fria da madrasta um alento de indignação sincera; e a
alma caiu-lhe prostrada, mais ainda do que o corpo, que não podendo
suster-se, procurou amparar-se no movel que achou mais proximo. A
duvida, que já antes atravessara o espirito da moça, começou a
invadil-o. Yayá fitou Estella com o mais agudo de seus olhares,
acompanhou-a de um lado para outro, por que a madrasta, logo depois das
palavras que lhe disse, entrara a andar e a reflectir. Se a viuva era
sincera, Yayá acabava de fazer gratuitamente a sua propria desgraça;
foi o que a moça pensou. No atordoamento moral em que esta hypothese a
lançou, Yayá achou-se entre dous desejos, mal definidos, mas
inteiramente oppostos um ao outro. Quizera e não quizera ter-se
enganado; aspirava a conciliar o coração e a consciencia. Seu espirito
evocou a hora inicial da suspeita,--aquella funesta manhã, em que a
carta de Jorge foi lida por Estella; recordou o gesto da madrasta, o
tremor, a lividez, os vivos symptomas da consternação, do medo ou do
remorso. Seria engano aquillo? não era evidente que elles se haviam
amado, que se amavam ainda naquella occasião; e, dada affirmativa, era
acaso impossivel que Estella, ao menos, o amasse ainda hoje?

Yayá ateve-se a esta conclusão, embora confirmasse a ruina de suas
esperanças; a conclusão, porém, contrastava com a impassibilidade da
madrasta. Já então perdera Estella o alvoroço do primeiro momento.
Depois de alguns minutos de reflexão, parara em frente da enteada. Era
difficil ver na attitude quieta, no aspecto de matrona severa e digna
alguma cousa que se parecesse com as ancias, o triumpho ou o abatimento
de uma rival. Yayá deixou-se estar deante della, a fital-a e a
revolvel-a. A porção da alma que transparecia do rosto da viuva era
tão fria, tão indifferente, que mal se podia combinar com o sentimento
que Yayá lhe attribuia. Foi o que esta pensou ver com seus olhos
finamente sagazes; e no meio desse contraste entre o aspecto presente e
a revelação passada, Yayá acabou por não saber definitivamente onde
ficava a verdade, e esteve a ponto de lh'a pedir de joelhos.

Achavam-se então no gabinete de Luiz Garcia, defronte da secretaria,
onde o finado encontrara, com outros papeis, a carta que dera logar ás
conjecturas de Yayá. Não havia mudança nem no numero nem na
disposição dos moveis. Só a luz era differente, porque a daquelle dia
era viva e clara, coada atravez de uma atmosphera serena, como a vida
anterior dessa familia, ao passo que a de hoje vinha turva e meia
apagada pelas nuvens de um ceu chuvoso e triste. Na longa pausa que
houve entre a madrasta e a enteada, os unicos sons que se ouviam eram o
rufar da chuva na folhagem do jardim e o tic-tac de um relogio de
parede.

--Escuta, disse finalmente Estella; se alguma razão tens para crer que
amo esse homem, é necessrio mostrar-te a realidade das cousas.

Estella abriu duas ou tres gavetinhas da secretaria, e depois de alguma
busca entre os maços de cartas que ahi encontrou, tirou uma, abriu-a e
deu-a á enteada. Yayá recebeu-a com as mãos tremulas de curiosidade;
leu-a toda; devia ser a mesma que o pae mostrara á madrasta.

--Essa moça era a senhora? murmurou ella como se ainda esperasse
resposta negativa.

--Era eu.

Yayá deixou-se cair n'uma cadeira raza, a mesma em que Estella estivera
sentada, quando ouviu a confidencia do marido.

--Vês? disse Estella; foi por mim que elle fez o sacrificio de ir para
a guerra, sem esperança de ser retribuido nem de contar um dia com a
minha gratidão. Foi para a guerra, lutou, padeceu, fiel ao sentimento
que o tinha levado, até o ponto de o crer eterno. Eterno! Sabes quanto
durou essa eternidade de alguns annos. É duro de ouvir, minha filha,
mas não ha nada eterno neste mundo; nada, nada. As mais profundas
paixões morrem com o tempo. Um homem sacrifica o repouso, arrisca a
vida, affronta a vontade de sua mãe, rebella-se, e pede a morte; e essa
paixão violenta e extraordinaria acaba ás portas de um simples namoro,
entre duas chicaras de chá...

--A senhora não o amou nunca? interrompeu Yayá, ao sentir o tremor e o
despeito com que a madrasta proferira as ultimas palavras.

--Havia entre nós um fosso largo, muito largo, disse Estella. Eu era
humilde e obscura, elle distincto e considerado; differença que podia
desapparecer, se a natureza me houvesse dado outro coração. Medi toda
a distancia que nos separava e tratei simplesmente de evital-o. Foi
então que elle embarcou; interiormente approvei-o. Talvez lhe não
neguei um pouco de compaixão silenciosa, mas nada mais. Casamento entre
nós, era impossivel, ainda que todos trabalhassem para elle; era
impossivel, sim, porque o consideraria uma especie de favor, e eu tenho
em grande respeito a minha propria condição. Meu pae já me achava, em
pequena, uns arremeços de orgulho. Como querias tu que, com tal
sentimento, pudesse desposar um homem, socialmente superior a mim? Era
preciso dar-me outra indole. Todas as felicidades do casamento achei-as
ao pé de teu pae. Não nos casamos por amor; foi escolha da razão, e
por isso acertada. Não tínhamos illusões; pudemos ser felizes sem
desencanto. Teu pae não tinha os mesmos sentimentos que eu; era mais
timido que orgulhoso. Qualquer que fosse a razão do seu desapego ao
mundo, bastava que o tivesse, para me fazer feliz; vivemos assim alguns
annos de inteiro isolamento, sem conhecer o amargor, que é o que fica
no fundo da vida, sem necessidade da dissimulação... Minto; tive
necessidade de fingir, desde que aquelle homem aqui appareceu; era
necessario. Um dia teu pae mostrou-me essa carta e referiu-me a paixão
encoberta que ahi se conta; podes imaginar se ouvi tranquilla. Mas fóra
desse acontecimento, que outro podia perturbar minha alma? Não vi
nenhuma porta abrir-se-me por obsequio, nenhuma mão apertou a minha por
simples condescendencia. Não conheci a polidez humilhante, nem a
afabilidade sem calor. Meu nome não serviu de pasto á natural
curiosidade dos amigos de meu marido. Quem é ella? donde veiu? Ninguem
me perguntou donde vinha, não é verdade? Perguntaste-me quem era eu?
Não; amaste-me como tinhas amado tua mãe, e eu amei-te, como se foras
minha filha. E para isso bastou-nos estender os braços; não foi
preciso descer nem subir.

--Não foi, bradou Yayá commovida, apertando-lhe as mãos.

--Já vês quem eu era e sou; uma especie de animal feroz, que prefere a
charneca ao jardim. Não me senti lisongeada com a paixão que inspirei;
rejeitei, talvez, um marido digno das ambições de qualquer mulher. Era
isto o que querias saber? Pois ahi tens a minha historia, a historia,
dessa carta, que já agora podemos rasgar...

Estella pegou na carta e rasgou-a lentamente, em pedaços miudos,
emquanto a enteada reflectia nas revelações que acabava de ouvir. A
madrasta deitou os fragmentos do papel á cesta.

--Resta concertar a imprudencia e casar, disse Estella dando á palavra
um tom galhofeiro.

--Não sei! murmurou Yayá. O que a senhora me disse é grave; não ha
sentimentos eternos. Parece que depois de tamanha paixão, qualquer
outro affecto não terá longa vida.

--Porque não? Não has de querer agora uma paixão, que o leve á
guerra; seria um desastre. Mas está nas tuas mãos fazer que elle te
ame sempre e muito.

Yayá reflectiu um instante.

--Jure-me que o não ama!

Estella franziu o sobr'olho; depois mostrou-lhe o bilhete que Jorge lhe
escrevera pouco antes, e cuja redacção dissiparia á moça qualquer
duvida em relação ao noivo. Era uma evasiva para lhe não confessar
nem mentir. A primeira vez que lhe negara o amor, foi antes um grito do
coração que queria enganar-se a si proprio: agora preferia calar-se. A
certeza da isenção de Jorge importava muito mais que a de Estella; a
alma de Yayá no primeiro instante, respirou á larga. O respeito que
tinha á madrasta, e um pouco de ciume retrospectivo que a mordia, ao
pensar naquella paixão tão violenta e tão desenganada, empeciam á
moça qualquer outra manifestação. Quando se achou a sós comsigo,
levava o espirito arejado da suspeita que o opprimira durante largos
mezes; mas o vento que o lavou das sombras, lá lhe queimou algumas das
flores desabotoadas ao calor do primeiro sol. A felicidade tinha um
travo de desgosto e humilhação; o coração tremia de medo.

Quando mais absorta estava nesse contraste de sensações, viu Raymundo
transpor a porta do jardim.



XVII


Yayá foi ter com Raymundo.

--Entregaste?

--Não entreguei, disse o preto.

Yayá ficou alguns instantes immovel. Raymundo tirou a carta do bolso, e
esteve com ella nas mãos, sem atrever-se a levantar os olhos;
levantou-os emfim e disse resolutamente:

--Raymundo não achou bonito que Yayá escrevesse áquelle homem, que
não é seu pae nem seu noivo, e voltou para falar a nhanhã Estella.

--Dê cá, disse a moça seccamente; não é preciso.

Raymundo entregou-lhe a carta, e sacudiu a cabeça encanecida, como se
quizera repellir os annos que sobre ella pesavam, e retroceder ao tempo
em que Yayá era uma simples creança, travessa e nada mais. Tinha-lhe
custado a resolução; tres vezes investira a porta de Procopio Dias
para obedecer á filha do seu antigo senhor, e tres vezes recuara, até
que venceu nelle o presentimento,--uma cousa que lhe martellava no
coração, dizia elle dahi a pouco a Estella, quando lhe referiu tudo.

Estella não se deteve mais. Na carta, que escreveu a Jorge, disse que a
enteada era apenas uma menina romanesca, desconfiada e curiosa; queria
desfazer o casamento, porque suppunha não ser amada com egual ardor ao
seu.--«Yayá adora-o, concluia Estella, e não se sente adorada. Venha
prostrar-se ao pé do altar, e terá em mim a mais piedosa sacristã.»

Yayá teve noticia da carta, e já tarde para oppôr qualquer
objecção. O primeiro impulso foi agradecer a pia fraude da madrasta;
mas a alma, picada por um resto de ciume, depressa conteve o impulso, e
a unica resposta da moça foi um gesto de acanhamento e um silencio
largo. Ouviu-a depois sem azedume nem impaciencia, attenta á menor
hesitação que lhe truncasse a palavra, ou á minima sombra de desgosto
que lhe velasse os olhos. A verdade é que a ternura da madrasta e a
jovialidade recente de seus modos traziam certa nota desusada e
violenta, e esse excesso fazia reflectir a enteada.

Entretanto, a carta de Estella chegou ás mãos de Jorge, que a leu duas
vezes para conseguir entender-lhe o sentido. A explicação tinha o
defeito de ser um pouco subtil; mas a alma de Jorge conservava sempre
uma porta aberta aos sentimentos extraordinarios. Demais, qualquer
explicação favoravel era um beneficio, e aquella tinha a vantagem de
affagar o amor-proprio, além de vir ajustada com o espirito inquieto e
subito da noiva. Leu a carta sem cotejar o texto com a assignatura, sem
attentar naquella sacristã em cujos hombros quizera outr'ora atar a
veste sacerdotal.

Nessa mesma noite foi á casa da noiva, que o recebeu sem contentamento
nem mortificação, um pouco laconica e meditativa. Nem um nem outro
alludiu aos successos ultimos; fel-o Estella com muita pertinencia e
tacto. Não obstante, como a explicação da viuva não correspondia
exactamente á realidade das cousas, a situação ficou ainda obscura e
vaga, e por ventura exagerou o acanhamento reciproco. A persuasão de
que Yayá exigia da parte delle maior intensidade de sentimento, não
inclinara o espirito de Jorge a nenhuma ostentasão theatral,--mas
acabou por lhe infundir deveras maior ternura, e augmentou a vitalidade
de um sentimento, que é a forma desinteressada do egoismo,--a
felicidade de fazer outrem feliz.

--Marquemos o casamento para esta semana, disse Estella na noite de um
domingo.

--Ainda não, respondeu a enteada.

Posto visse dissipada a tempestade que lhe negrejara sobre a cabeça,
Yayá enxergava ainda para o lado poente um spectro, e para o lado do
nascente uma possibilidade. Esses dous pontos negros vinham estragar a
belleza azul do ceu e tornal-o pesado e melancholico. O mysterio do
futuro unia-se ao mysterio do passado; um e outro podiam devorar o
presente, e ella receiava ser esmagada entre ambos. A convivencia da
familia atterrava-a. Que seria para ella o casamento, se tivesse de
penetrar nelle com a perpetua ameaça deante dos olhos, uma antiga
semente de amor, que a primara brisa da primavera podia fazer brotar e
crescer de novo? Acreditava na isenção presente da madrasta, e na
inteira cura do marido, mas o futuro? A belleza de Estella estava ainda
longe do declinio, e a modestia de Yayá fazia-a persuadir de que, ainda
no declinio, seria superior á sua.

Uma noite, entrou o Sr. Antunes e deu uma carta á filha, que a leu
silenciosamente.

--Olha, disse ella apresentando a carta á enteada.

Yayá leu-a; eram duas paginas escriptas de alto abaixo, e por lettra
desconhecida. Uma antiga condiscipula de Estella, residente no norte de
S. Paulo, acceitava a proposta que esta lhe fizera, de ir dirigir-lhe o
estabelecimento de educação que alli fundara desde alguns mezes.

--Bem vês que é necessario casar-te quanto antes, disse Estella logo
que a enteada acabou a leitura.

Yayá sentiu os olhos humidos e atirou-se aos braços da madrasta. A
effusão era sincera; havia alli affecto, reconhecimento e admiração.
Mas, por isso mesmo que era sincera, deveria molestar a madrasta, se
alguma cousa podesse já molestal-a. Estella sorriu,--um sorriso que
queria dizer:--Bem sei que sou de mais. A lingua, porém, não proferiu
uma palavra unica.

--Que quer dizer isso? perguntou o pae de Estella, que nada sabia da
carta, e consequentemente nada entendia daquella expansão da moça.

Estella mostrou-lhe a carta. O pae não pode acabar de ler: a primeira
pagina fizera-lhe comprehender tudo. Seus olhos iam do papel á filha e
da filha ao papel, sem que a boca se atrevesse a formular nenhuma queixa
ou censura.

--Não digo que me obedeças, murmurou elle; mas parece que podias
consultar-me...

--Eu estava certa da sua approvação, respondeu Estella. Ou parece-lhe
que fiz mal?

--Nunca fizeste bem em cousa nenhuma, disse tristemente o pae. E
pegando-lhe nas mãos:--Tão moça! tão bonita!

O dia do casamento foi definitivamente marcado naquella noite. Como
Estella declarasse que ella propria serviria de madrinha, Yayá procurou
dissuadil-a cautelosamente; tambem ao noivo repugnou a intervenção
espiritual da viuva. Mas Estella não se deu por entendida. O papel de
acolyta, que a si mesma distribuira, tinha-o desempenhado com lealdade e
dignidade. Quiz ir até o fim. Era o melhor modo de se mostrar isenta e
superior. Jorge sentia-se vexado e transportado ao mesmo tempo, ao
observar a simplicidade e o desvello que a viuva punha naquelle acto.
Yayá sentia só admiração e gratidão. Tinha já certeza de que o
passado era pouca cousa, e de que o futuro seria cousa nenhuma. O
casamento ia separal-as, reconciliando-as.

Casados os dous, Estella preparou-se para seguir viagem, não obstante a
resistencia do pae, que foi tenaz e habil. O pae ficaria. Estava já
tão cançado para viagens longas! A differença do clima, a falta de
relações, a necessidade de não abrir mão do emprego, eram motivos de
grave peso para não arriscar-se a deixar o Rio.

--Ao menos, promettes vir ver-me de quando em quando? disse o Sr.
Antunes sentindo tremer-lhe nos olhos uma lagrima sincera.

Estella respondeu que sim; depois pediu-lhe que acceitasse uma mezada. O
pae recusou commovido.--Tu vales muito, exclamou elle. O tom com que
preferiu estas palavras deu uma esperança á filha.

--O senhor pode valer ainda mais do que eu, disse ella.

Depois contou-lhe a paixão de Jorge e todo o episodio da Tijuca, causa
originaria dos acontecimentos narrados neste livro; mostrou-lhe com
calor, com eloquencia, que, recusando ceder á paixão de Jorge,
sacrificara algumas vantagens ao seu proprio decoro; sacrificio tanto
mais digno de respeito, quanto que ella amava naquelle tempo o filho de
Valeria. Que pedia agora ao pae? Pouca e muita cousa; pedia que a
acompanhasse, que cessasse a vida de dependencia e servilidade em que
vivera até alli; era um modo de a respeitar e respeitar-se. O pae
escutava-a attonito.

--Tu chegaste a amal-o! exclamou elle. Não aborrecias? Amaram-se? E só
agora sei... Bem digo eu; tu és uma fera. Não tens, nunca tiveste pena
de minha velhice... Elle é tão bom! tão digno! E se morresse por tua
causa? não terias remorsos? não te havia doer o coração quando
soubesses que um moço tão bem nascido, que gostava de ti... Sim, elle
gostava muito de ti; e tu tambem... e só hoje!

Estella fechou os olhos para não ver o pae. Nem esse amparo lhe ficava
na solidão. Comprehendeu que devia contar só comsigo, e encarou
serenamente o futuro. Partiu; o pae despediu-se della com o desespero no
coração,--e desta vez a dor era desinteressada e pura. Jorge
consolou-o depressa. Não houve interrupção na convivencia, e o Sr.
Antunes continuou a achar alli a mesma protecção e cordialidade. Se o
casamento fora um attentado, elle os absolveu disso, e repartiu com
ambos infinita solicitude. Outra vez comensal assiduo, tornou a ser o
homem de confiança. Fóra dalli, as horas de lazer que lhe deixava o
pouco trabalho, eram empregadas nas sessões do jury, nas galerias da
camara dos deputados ou nos bancos do Carceller. Não tendo já a
aspiração de uma alliança vantajosa, adoptou a devoção da loteria.
Era elle quem dava, secretamente, noticias de Estella a Yayá.

Esta achou no casamento a felicidade sem contraste. A sociedade não lhe
negou carinhos e respeitos. Se antes de casar, Yayá possuia o
abecedario da elegancia, depressa aprendeu a prosodia e a syntaxe;
affez-se a todos os requintes da urbanidade, com a presteza de um
espirito sagaz e penetrante. Nenhuma nuvem do passado veiu sombrear a
fronte de um ou de outro; ninguem se interpunha entre elles. Yayá
escrevia algumas vezes a Estella, que lhe respondia regularmente, e no
mais puro estylo de familia. De longe em longe a enteada presenteava a
madrasta, que lhe retribuia logo na primeira occasião. Quanto a
encontrarem-se, era difficil; Estella applicava todos os seus cuidados
á nova occupação.

Procopio Dias viu a morte de todas as esperanças ultimas, com uma
philosophia que não suppunha ter em si. Naturalmente padeceu alguns
dias de despeito; mas o despeito acabou com o amor. Verdade é que o
ambiciado casamento abriu nelle o desejo de não morrer solteiro; e,
perdida uma opportunidade, tratou de haver outras á mão. Ultimamente
voltou á religião do celibato. Duas ou tres vezes encontrou Yayá e o
marido. A ultima foi n'um sarau. Jogou o voltarete com Jorge e
acompanhou a mulher até á carruagem, não sem lançar um olhar furtivo
ao estribo, onde Yayá pousou o pé, cançado de valsar.

No primeiro anniversario da morte de Luiz Garcia, Yayá foi com o marido
ao cemiterio, afim de depositar na sepultura do pae uma corôa de
saudades. Outra corôa havia sido alli posta, com uma fita em que se
liam estas palavras:--_Á meu marido_. Yayá beijou com ardor a singela
dedicatoria, como beijaria a madrasta se ella lhe apparecesse naquelle
instante. Era sincera a piedade da viuva. Alguma cousa escapa ao
naufragio das illusões.



FIN



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