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Title: Innocencia Author: Alfredo d'Escragnolle Taunay, Visconde de Taunay Language: Portuguese As this book started as an ASCII text book there are no pictures available. *** Start of this LibraryBlog Digital Book "Innocencia" *** VISCONDE DE TAUNAY INNOCENCIA Decimo Primeiro Milheiro 1906 N. FALCONE & Cia.--editores 65--Rua de S. Bento--65 S. PAULO INDICE CAPITULO I. O sertão e o sertanejo II. O viajante III. O doutor IV. A casa do mineiro V. Aviso previo VI. Innocencia VII. O naturalista VIH. Os hospedes da meia-noite IX. O medicamento X. A carta de recommendação XI. O almoço XII. A apresentação XIII. Desconfianças XIV. Realidade XV. Historias de Meyer XVI. O empalamado XVII. O morphetico XVIII. Idyllio XIX. Calculos e esperanças XX. Novas historias de Meyer XXI. Papilio Innocentia XXII. Meyer parte XXIII. A ultima entrevista XXIV. A villa de Sant'Anna XXV. A viagem XXVI. Recepção cordial XXVII. Scenas intimas XXVIII. Em casa de Cesario XXIX. Resistencia de corça XXX. Desenlace EPILOGO. Reapparece Meyer A José Antonio de Azevedo Castro AMIGO DE INFANCIA _Azevedo Castro_, _Se nos antigos tempos da Grecia, me fora possivel erigir custoso templo, dedicava-o á Amizade para no frontispicio gravar o teu querido nome._ _Daquelle vivo sentimento permitte-me hoje, amigo, dentro do circulo de fracos e limitados meios, qualquer demonstração._ _Não é em valioso monumento que vou inscrever a tua lembrança; simplesmente na primeira pagina de uma narrativa campestre e despretenciosa, de um livro singelo e sem futuro._ _Aceita-o como um dos mais espontaneos movimentos da minha alma, que n'esta declaração sincera julga assentar direitos a completo indulto._ A. D'ESCRAGNOLLE--Taunay. _Rio de Janeiro, 8 de Julho de 1872._ PREFACIO Em pouco mais de dous annos esgotou-se a sexta edição de _Innocencia_ e a setima; os dous mil e quinhentos exemplares impressos em meiados de 1903 espalharam-se com relativa rapidez attendendo-se ao facto de que o romance appareceu em 1873 e que a procura de livros no Brazil infelizmente ainda não é das maiores. Nos ultimos dous annos foi _Innocencia_ muitas vezes publicada em folhetim por periodicos brazileiros e portuguezes; em volume porem só temos conhecimento de duas edições novas; uma allemã, da traducção de Karl Schuler, illustrada por Max Tilke e impressão da casa D. Dreyer & Comp. de Berlim e outra da versão japoneza de Kawana Kwandzo pela revista _Fastos Japonezes_. Actualmente conta pois a formosa novella oito traducções enfeixadas em volume das quaes, duas francezas, duas allemãs, uma ingleza, uma hespanhola, uma italiana e uma japoneza; existindo alem dessas, publicadas na imprensa uma em polaco e outra em dinamarquez. É provavel que brevemente appareça mais uma edição ingleza de nova versão dedicada ao Conselheiro José Antonio de Azevedo Castro, padrinho do livro, a quem o Visconde de Taunay dedicava a mais extremada amizade e affeição retribuida da mais forte maneira. Soffreram os primeiros capitulos da presente edição ligeiros retoques, á vista de originaes deixados pelo autor e que infelizmente não estiveram ao alcance do revisor da sexta. O nome dos acreditados livreiros editores Srs. N. Falcone & Comp. é um cunho da elegancia da factura do livro. S. Paulo, Dezembro de 1905. ... _Innocencia_. Este livro terá longa vida, do mesmo modo que se póde, ainda hoje, viajar a Escossia com as novellas de Walter Scott por guias. FRANCISCO OCTAVIANO. INNOCENCIA CAPITULO I O SERTÃO E O SERTANEJO Todos vós bem sentis a acção secreta Da natureza em seu governo eterno; E de infimas camadas subterraneas Da vida o indicio á superficie emerge. GOETHE.--_Fausto_, 2.ª parte. Então com passo tranquillo mettia-me eu por algum recanto da floresta, algum lugar deserto, onde nada me indicasse a mão do homem, me denunciasse a servidão e o dominio; asylo em que pudesse crêr ter primeiro entrado, onde nenhum importuno viesse interpôr-se entre mim e a natureza. J. J. ROUSSEAU.--_O encanto da solidão._ Corta extensa e quasi despovoada zona da parte sul-oriental da vastissima provincia de Matto-Grosso a estrada que da villa de Santa Anna do Paranahyba vae ter ao sitio abandonado de Camapoan. Desde aquella povoação, assente proximo ao vertice do angulo em que confinam os territorios de S. Paulo, Minas-Geraes, Goyaz e Matto-Grosso até ao rio Sucuriú, affluente do magestoso Paraná, isto é, no desenvolvimento de muitas dezenas de leguas, anda-se commodamente, de habitação em habitação, mais ou menos chegadas umas ás outras; raream, porém, depois as casas, mais e mais, e caminha-se largas horas, dias inteiros sem se ver morada nem gente até ao _retiro_[1] de João Pereira, guarda avançada daquellas solidões, homem chão e hospitaleiro, que acolhe com carinho o viajante desses alongados páramos, offerece-lhe momentaneo agazalho e o provê da matolotagem precisa para alcançar os campos de Miranda e Pequiry, ou da Vaccaria e Nioac, no Baixo Paraguay. Alli começa o sertão chamado _bruto_[2]. Pousos succedem a pousos, e nenhum tecto habitado ou em ruinas, nenhuma palhoça ou tapera dá abrigo ao caminhante contra a frialdade das noites, contra o temporal que ameaça, ou a chuva que está cahindo. Por toda a parte, a calma da campina não arroteada; por toda a parte, a vegetação virgem, como quando ahi surgio pela vez primeira. A estrada que atravessa essas regiões incultas desenrola-se á maneira de alvejante faixa, aberta que é na areia, elemento dominante na composição de todo aquelle solo, fertilisado aliás por um sem numero de limpidos e borbulhantes regatos, ribeirões e rios, cujos contingentes são outros tantos tributarios do claro e fundo Paraná ou, na contravertente do correntoso Paraguay. Essa areia solta e um tanto grossa tem côr uniforme que reverbera com intensidade os raios do sol, quando nella batem de chapa. Em alguns pontos é tão fofa e movediça que os animaes das _tropas_ viajeiras arquejam de cansaço, ao vencerem aquelle terreno incerto, que lhes foge de sob os cascos e onde se enterram até meia canella. Frequentes são tambem os desvios, que da estrada partem de um e outro lado e proporcionam, na matta adjacente, trilha mais firme, por ser menos pisada. Se parece sempre igual o aspecto do caminho, em compensação mui variadas se mostram as paizagens em torno. Ora é a perspectiva dos _cerrados_[3], não desses cerrados de arbustos rachiticos, enfezados e retorcidos de S. Paulo e Minas-Geraes, mas de garbosas e elevadas arvores que, se bem não tomem todas o corpo de que são capazes á beira das aguas correntes ou regados pela lympha dos corregos, comtudo ensombram com folhuda rama o terreno que lhes fica em derredor e mostram na casca lisa a força da seiva que os alimenta; ora são campos a perder de vista, cobertos de macega alta e alourada, ou de viridente e mimosa gramma, toda salpicada de sylvestres flores; ora successões de luxuriantes capões[4], tão regulares e symetricos em sua disposição que surprehendem e embellezam os olhos; ora, emfim charnecas meio apaúladas, meio seccas, onde nasce o altivo bority e o gravatá entrança o seu tapume espinhoso. Nesses campos, tão diversos pelo matiz das cores, o capim crescido e resiccado pelo ardor do sol transforma-se em vicejante tapete de relva, quando lavra o incendio que algum tropeiro, por acaso ou mero desenfado, atêa com uma faulha do seu isqueiro. Minando á surda na touceira queda a vivida scentelha. Corra d'ahi a instantes qualquer aragem, por debil que seja, e levanta-se a lingua de fogo esguia e tremula, como que a contemplar medrosa e vacilante os espaços immensos que se alongam diante della. Soprem então as auras com mais força, e de mil pontos a um tempo rebentam sofregas labaredas que se enroscam umas nas outras, de subito se dividem, deslisam, lambem vastas superficies, despedem ao céu rolos de negrejante fumo e voam, roncando pelos matagaes de tabocas e taquaras, até esbarrarem de encontro a alguma margem de rio que não possam transpor, caso não as tanja para além o vento, ajudando com valente folego a larga obra de destruição. Acalmado aquelle impeto por falta de alimento, fica tudo debaixo de espessa camada de cinzas. O fogo, detido em pontos, aqui, alli, a consumir com mais lentidão algum estorvo, vai aos poucos morrendo até se extinguir de todo, deixando como signal da avassalladora passagem o alvacento lençol, que lhe foi seguindo os velozes passos. Atravez da atmosphera ennublada mal póde então coar a luz do sol. A incineração é completa, o calor intenso, e nos ares revoltos volitam palhinhas carboretadas, detritos, argueiros e granulos de carvão que redemoinham, sobem, descem e se emmaranham nos sorvedouros e adelgaçadas trombas, caprichosamente formadas pelas aragens, ao embaterem umas de encontro ás outras. Por toda a parte melancolia; de todos os lados tetricas perspectivas. É cahir, porém, dahi a dias copiosa chuva, e parece que uma varinha de fada andou por aquelles sombrios recantos a traçar ás pressas jardins encantados e nunca vistos. Entra tudo n'um trabalho intimo de espantosa actividade. Transborda a vida. Não há ponto em que não brote o capim, em que não desabrochem rebentões com o olhar sofrego de quem espreita azada occasião para buscar a liberdade, despedaçando as prisões de penosa clausura. Áquella instantanea resurreição nada, nada póde pôr peas. Basta uma noite, para que formosa alfombra verde, verde-claro, verde-gaio, assetinado, cubra todas as tristezas de há pouco. Aprimoram-se depois os esforços; rompem as flores do campo que desabotoam ás caricias, da brisa as delicadas corollas e lhe entregam as primicias dos seus candidos perfumes. Se falham essas chuvas vivificadoras, então por muitos e muitos mezes, ahi ficam aquellas campinas, devastadas pelo fogo, lugubremente illuminadas por avermelhados clarões sem uma sombra, um sorriso, uma esperança de vida, com todas as suas opulencias e verdejantes pimpolhos occultos, como que raladas de dor e mudo desespero por não poderem ostentar as riquezas e galas encerradas no ubertoso seio. Nessas afflictas paragens, não mais se ouve o piar da esquiva perdiz, tão frequente antes do incendio. Só de vez em quando echoa o arrastado guincho do algum gavião, que paira lá em cima ou bordeja ao chegar-se á terra afim de agarrar um ou outro reptil chamuscado do fogo que lavrou. Rompe tambem o silencio o grasnido do caracará, que aos pulos procura insectos e cobrinhas ou, junto ao solo, segue o vôo dos urubús, cujos negrejantes bandos, guiados pelo fino olfacto, buscam a carniça putrefacta. É o caracará commensal do urubú. De parceria se atira, quando urgido pela fome, á rez morta e, intromettido como é, a custo de alguma bicada do pouco amavel conviva, belisca do seu lado no immundo repasto. Se passa o caracará á vista do gavião, precipita-se este sobre elle com vôo firme, dá-lhe com a ponta da aza, atordoa-o, atormenta-o só pelo gosto de lhe mostrar a incontestada superioridade. Nada, com effeito, o mette em brios. Pelo contrario, mal levou dous ou tres encontrões do miúdo, mas audaz adversario, baixa prudente á terra e põe-se ahi desageitadamente aos saltos, apresentando o adunco bico ao antagonista, que com a extremidade das azas levanta pó e cinza, tão de perto as arrasta ao chão. Afinal, de cansado, deixa o gavião o folguedo, segurando de um bote a serpesinha, que, em custoso rasto, procurava algum buraco onde fosse, mais a salvo, pensar as fundas queimaduras. II Taes são os campos que as chuvas não vêm regar. Com que gosto demanda então o sertanejo os capões que lá de bem longe se avistam nas encostas das collinas e baixuras, ao redor de alguma nascente orlada de pindahybas e boritys?! Com que alegria não saúda os formosos coqueiraes, nuncios, da lympha que lhe hade estancar a sede e banhar o afogueado rosto?! Enfileiram-se ás vezes as palmeiras com singular regularidade na altura e conformação; mas não raro amontoam-se em compactos massiços, dos quaes se segregam algumas mais e mais, a acompanhar com as raizes qualquer tenue fio d’agua, que collea falto de forças e quasi a sumir-se na ávida areia. Desde longe dão na vista esses capões. É a principio um ponto negro, depois uma cupola de verdura, afinal, mais de perto, uma ilha de luxuriante rama, oásis para os membros lassos do viajante exhausto de fadiga, para os seus olhos encandeados e sua garganta abrasada. Então com sofreguidão natural acolhe-se elle ao sombreado retiro, onde prestes desarreia a cavalgadura, á qual dá liberdade para ir pastar, entregando-se sem demora ao somno reparador que lhe trará novo alento para proseguir na cansativa jornada. Ao homem do sertão afiguram-se taes momentos incomparaveis, acima de tudo quanto possa idear a imaginação no mais vasto circulo de ambições. Satisfeita a sede que lhe seccara as fauces, e comidas umas colheres de farinha de mandioca ou de milho, adoçada com rapadura, estira-se a fio comprido sobre os arreios desdobrados e contempla descuidoso o firmamento azul, as nuvens que se espacejam nos ares, a folhagem lustrosa e os troncos brancos das pindahybas, a copa dos ipês e as palmas dos boritys a ciciar a modo de harpas eólias, musicas sem conta com o perpassar da brisa. Como são bellas aquellas palmeiras! O estipite liso, pardacento, sem manchas mais que pontuadas estrias, sustenta denso feixe de peciolos longos e canulados, em que assentão flabellas abertas como um leque, cujas pontas se acurvam flexiveis e tremulantes. Na base e em torno da coma, pendem, amparados por largas spathas, densos cachos de cocos tão duros, que a casca luzidia revestida de escamas rhomboidaes e de um amarello alaranjado desafia por algum tempo o ferreo bico das araras. Tambem com que vigor trabalham as barulhentas aves antes de conseguir a appetecida e saborosa amendoa! Em grupos juntam-se ellas, umas vermelhas como chispas soltas de intensa labareda, outras versicolores, outras pelo contrario de todo azues, de maior viso e que, por parecerem negras em distancia, tem o nome de _araraúnas_.[5] Alli ficam alcandoradas, balouçando-se gravemente e atirando, de espaço a espaço, ás immensidades das dilatadas campinas notas estridentes, quando não seja um clamor sem fim, ao quererem muitas disputar o mesmo cacho. Quasi sempre, porem estão a namorar-se aos pares, pousadas uma bem encostadinha á outra. Vê tudo aquillo o sertanejo com olhar carregado de somno. Cahem-lhe pesadas as palpebras; bem se lembra de que por alli podem rastejar venenosas alimarias, mas é fatalista; confia no destino e, sem mais preoccupação, adormece com serenidade. Correm as horas: vem o sol descambando; refresca a brisa, e sopra, rijo o vento. Não ciciam mais os boritys; gemem, e convulsamente agitam as flabelladas palmas. É a tarde que chega. Desperta então o viajante; esfrega os olhos; distende preguiçosamente os braços; boceja; bebe uma pouca d'agua; fica uns instantes sentado, a olhar de um lado para o outro e corre afinal a buscar o animal, que de prompto ensilha e cavalga. Uma vez montado, lá vai elle a passo ou a trote, bem disposto de corpo e de espirito, por aquelles caminhos além, em demanda de qualquer pouso onde pernoite. Quanta melancolia baixa á terra com o cahir da tarde! Parece que a solidão alarga os seus limites para se tornar acabrunhadora. Ennegrece o solo; formam os matagaes sombrios massiços, e ao longe se desdobra tenue véu de um roxo uniforme e desmaiado, no qual, como linhas a meio apagadas, resaltam os troncos de uma ou outra palmeira mais alterosa. É a hora, em que se aperta de inexplicavel receio o coração. Qualquer ruido nos causa sobresalto; ora o grito afflicto da zabelê nas mattas, ora as plangentes notas do bacuráu a cruzar os ares. Frequente é tambem amiudarem-se os pios angustiados de alguma perdiz, chamando ao ninho o companheiro extraviado, antes que a escuridão de todo lhe impossibilite a volta. Quem viaja attento ás impressões intimas, estremece mau grado seu ao ouvir n'esse momento de saudades o tanger de um sino muito, muito ao longe ou o silvar distante de uma locomotiva impossivel. São insectos occultos na macega que trazem essa illusão, por tal modo viva e perfeita que a imaginação, embora desabusada e prevenida, ergue o vôo e lá vai por estes mundos fóra a doudejar e a crear mil fantasias. III Espalham-se, por fim, as sombras da noite. O sertanejo que de nada cuidou, que não ouviu as harmonias da tarde, nem reparou nos esplendores do céu, que não viu a tristeza a pairar sobre a terra, que de nada se arreceia, consubstanciado como está com a solidão, pára, relanceia os olhos ao derredor de si e, se no lugar presente alguma aguada, por má que seja, apeia-se, desensilha o cavallo e, reunindo logo uns gravetos bem seccos, tira fogo do isqueiro, mais por distracção do que por necessidade. Sente-se deveras feliz. Nada lhe perturba a paz do espirito ou o bem-estar do corpo. Nem sequer monologa, como qualquer homem acostumado a conversar. Raros são os seus pensamentos: ou rememora as leguas que andou, ou computa as que tem que vencer para chegar ao termino da viagem. No dia seguinte, quando aos clarões da aurora acorda toda aquella esplendida natureza, recomeça elle a caminhar, como na vespera, como sempre. Nada lhe parece mudado no firmamento: as nuvens de si para si são as mesmas. Dá-lhe o sol, quando muito, os pontos cardeaes, e a terra só lhe prende a attenção, quando algum signal mais particular póde servir-lhe de marco milliario na estrada que vai trilhando. --Bom! exclama em voz alta e alegre ao avistar algum madeiro agigantado ou uma disposição especial de terras, lá está a péuva grande... Cheguei ao Barranco Alto. Até ao pouso de Jacaré ha quatro leguas bem puxadas. E, olhando para o sol, conclue: --D'aqui a tres horas estou batendo fogo. Occasiões ha em que o sertanejo dá para assoviar. Cantar, é raro; ainda assim, á surdina; mais uma voz intima, um rumorejar comsigo, do que notas sahidas do robusto peito. Responder ao pio das perdizes ou ao chamado agoniado da esquiva jaó, é o seu divertimento em dias de bom humor. É-lhe indifferente o urro da onça. Só por demais repara nas muitas pegadas, que em todos os sentidos ficam marcadas na arêa da estrada. --Que bichão! murmura elle contemplando um rasto mais fortemente impresso no solo; com um bom _onceiro_[6] não se me dava de acuar este diabo e metter-lhe uma chumbada no focinho. O legitimo sertanejo, explorador dos desertos, não tem, em geral, familia. Em quanto moço, seu fim unico é devassar terras, pisar campos onde ninguem antes puzera pé, vadear rios desconhecidos, despontar cabeceiras[7] e furar mattas, que descobridor algum até então haja varado. Cresce-lhe o orgulho na razão da extensão e importancia das viagens emprehendidas; e seu maior gosto cifra-se em enumerar as correntes caudaes que transpoz, os ribeirões que baptisou, as serras que trasmontou e os pantanaes que afoutamente cortou, quando não levou dias e dias a rodeal-os com rara paciencia. Cada anno que finda traz-lhe mais um valioso conhecimento e accrescenta uma pedra ao monumento da sua innocente vaidade. --Ninguem póde commigo, exclama elle emphaticamente. Nos campos da Vaccaria, no sertão do Mimoso e nos _pantános_[8] do Pequiry, sou rei. E esta presumpção de realeza infunde-lhe certo modo de falar e de gesticular magestatico em sua singela manifestação. A certeza que tem de que nunca poderá perder-se na vastidão, como que o liberta da obsessão do desconhecido, o exalta e lhe dá foros de infallibilidade. Se estende o braço, aponta com segurança no espaço e declara peremptoriamente: --N'este rumo daqui a 20 leguas, fica o espigão mestre de uma serra braba, depois um rio grosso; dalli a cinco leguas outro matto sujo que vai findar n'um brejal. Se _vassuncê_ frechar direitinho assim umas duas horas, topa com o pouso do Tatú, no caminho que vai a Cuyabá. O que faz n'uma direcção, com a mesma, imperturbavel serenidade e firmeza indica em qualquer outra. A unica interrupção que aos outros consente, quando conta os innumeros descobrimentos, é a da admiração. Á minima suspeita de duvida ou pouco caso, incendem-se-lhe de colera as faces e no gesto denuncia indignação. --_Vassuncê_ não _credita_! protesta então com calor. Pois ensilhe o seu bicho e caminhe como eu lhe disser. Mas _assumpte_[9] bem, que no terceiro dia de viagem ficará decidido quem é _cavoqueiro_[10] e _embromador_[11]. Uma cousa é _mapiar_[12] á toa, outra andar com tento por estes mundos de Christo. Quando o sertanejo vai ficando velho, quando sente os membros cansados e entorpecidos, os olhos já ennevoados pela idade, os braços frouxos para manejar a machadinha que lhe dá o substancial palmito ou o saboroso mel de abelhas, procura então quem o queira para esposo, alguma viúva ou parenta chegada, forma casa e escola, e prepara os filhos e enteados para a vida aventureira e livre que tantos gozos lhe dera outr'ora. Esses discipulos, aguçada a curiosidade com as repetidas e animadas descripções das grandes scenas da natureza, n'um bello dia desertam da casa paterna, espalham-se por ahi além, e uns nos confins do Paraná, outros nas brenhas de S. Paulo, nas planuras de Goyaz ou nas bocainas de Matto-Grosso, por toda a parte emfim onde haja deserto vão pôr em activa pratica tudo quanto souberam tão bem ouvir, relembrando as façanhas do seu respeitado progenitor e mestre. [Nota 1: Chama-se em Matto-Grosso _retiro_ o local em que os criadores de gado reunem as rezes para as contar, marcar e dar-lhes sal.] [Nota 2: Sem moradores.] [Nota 3: Florestas de arbustos de 3 a 4 pés de altura mais ou menos, mui chegados uns aos outros.] [Nota 4: Excellente palavra brazileira derivada da lingua geral _caá-púan_ (matto isolado).] [Nota 5: Araras pretas.] [Nota 6: Cão caçador de onças.] [Nota 7: Despontar cabeceiras é rodear as nascentes do rios, procurando sempre terreno enxuto.] [Nota 8: No interior pronuncia-se a palavra grave e não esdruxula, mais conforme assim com a etymologia.] [Nota 9: Ver o assumpto, observar, attender.] [Nota 10: Cavoqueiro é qualificativo empregado para exprimir qualquer qualidade má.] [Nota 11: Enganador.] [Nota 12: Termo peculiar aos sertões de Matto-Grosso--quer dizer parolar, tagarellar.] CAPITULO II O VIAJANTE Proprio de espirito sorumbatico, é andar sempre calado: tagarellar é o encanto e a alma da vida. LA CHAUSSÉE. Commigo, respondeu Sancho, meu primeiro movimento é logo tal comichão de fallar que não posso deixar de desembuxar o que me vem á bocca. CERVANTES.--_D. Quixote._ O dia 15 de Julho de 1860 era dia claro, sereno e fresco, como costumam ser os chamados de inverno no interior do Brazil. Ia o sol alto em seu percurso, illuminando com seus raios, não muito ardentes para regiões intertropicaes, a estrada, cujo aspecto ha pouco tentámos descrever e que da villa de Sant'Anna do Paranahyba vai ter aos campos de Camapoan. Á essa hora, um viajante, montado n'uma boa besta tordilho-queimada, gorda e marchadeira seguia aquella estrada. A sua physionomia e maneiras de trajar denunciavam de prompto que não era homem de lida fadigosa e commum ou algum fazendeiro daquellas cercanias que voltasse para casa. Trazia na cabeça um chapéu do Chile de abas amplas e cingido de larga fita preta, sobre os hombros um ponche-pala de variegadas cores e calçava botas de couro da Russia bem feitas e em bom estado de conservação. Tinha quando muito vinte e cinco annos, presença agradavel, olhos negros e bem rasgados, barba e cabellos cortados quasi á escovinha e ar tão intelligente quanto decidido. Na mão empunhava uma comprida vara que havia pouco cortara, e com que ia distrahidamente fustigando o ar ou batendo nos ramos de arvores que se dobravam ao alcance do braço. Vinha só e, no momento em que damos começo a esta singela historia, achava-se no bonito trecho de caminho que medeia entre a casa de Albino Lata e a do Leal, a sete boas leguas da sezonatica e decadente villa de Sant'Anna do Paranahyba. Nesta porção de estrada, ensombrada pelas arvores de vistoso cerrado, o leito, ainda que já bastante arenoso, é firme e parece mais álea de bem tratado jardim, do que caminho de tropas e carreadores. Ainda augmenta os encantos daquelle lance a innumera quantidade de rolas caboclas a brincar na areia e de pombas de cascavel, cujo bater de azas produz um arruido tão caracteristico e singular. O nosso viajante, se caminhava distrahido e meio pensativo, não parecia, comtudo, de genio sombrio ou pouco divertido. Muito ao contrario, sacudia ás vezes o torpôr em que vinha e entrava a cantarolar, ou assoviar, esporeando a valente cavalgadura, que na marcha que tomava ia abanando alternadamente as orelhas com o movimento cadencial da cabeça. N'uma dessas reacções contra alguma preoccupação, disse em voz alta, puxando por um relogio de prata, seguro em corrente do mesmo metal: --Ás duas horas pretendo sestear no paiol do Leal. Falta pouco para o meio dia, e tenho tempo diante de mim a botar fóra... Moderou, pois, a andadura que levava o animal e mais activamente recomeçou a zurzir os galhos das arvores bocejando de tedio. Tambem pouco tempo caminhou só, por isto que em breve ao seu lado emparelhou outro viajante, escanchado n'um cavallinho feio e zambro, mas muito forte, o qual, coberto como estava de suor, mostrava ter vindo quasi a galope. Homem já de alguma idade, o recem-chegado era gordo, de compleição sanguinea, rosto expressivo e franco. Trajava á mineira e parecia como realmente era, morador daquella localidade. [Ilustração: Olá, patricio, exclamou conchegando a cavalgadura.] --Olá, patricio, exclamou elle conchegando a cavalgadura á da pessoa a quem interpellava, então se vai botando para Camapoan? Olhou o nosso cavalleiro com desconfiança e sobranceria para quem o interrogava tão sem ceremonia e meio-enviezado respondeu: --Talvez sim ... talvez não ... Mas a que vem a pergunta? --Ah! desculpe-me, replicou o outro rindo-se, nem siquer o saudei... Sou mesmo um estabanado... Deus esteja comvosco. Isto sempre me acontece... A minha lingua fica as vezes tão douda que se põe logo a bater-me nos dentes ... que é um Deus nos acuda e ... não ha que avisar: agua vae! Olhe, por vezes já me tem vindo damno, mas que quer? É sestro antigo... Não que eu seja malcriado, Deus de tal me defenda, _abrenuncio_; mas pega-me tal comichão de fallar que vou logo, sem tir-te, nem guar-te, dando á taramela... A volubilidade com que foram ditas estas palavras causou certo espanto ao mancebo e o levou a novamente encarar o inopinado companheiro, desta feita com mais demora e ar menos altivo. Notou então a physionomia alegre e bonachã do tagarella e, com ar de sympathia, correspondeu ao communicativo sorriso daquelle que, á força, queria travar conversação. --Pelo que vejo, disse elle, o Sr. gosta de prosear. --Ora se! retrucou o mineiro. Nestes sertões só sinto a falta de uma cousa: é de um christão com quem de vez em quando dê uns dedos de _parola_. Isto sim, por aqui é _vasqueiro_. Tudo anda tão calado!... uma verdadeira caipiragem!... Eu, não. Sou das Geraes[13] _geralista_ como por cá se diz; nasci no Parahybuna, conheci no meu tempo pessoas de muita educação, gente mesma de _truz_ e fui criado na Matta do Rio como homem e não como bicho do _monte_[14]. --Ah! o senhor é de Minas? --Geraes, se me faz favor. Baptizei-me em Vassouras, mas sou mineiro da gemma. Andei séca e méca antes de vir deitar poita neste _paiz_. Isto já faz muito tempo, pois tambem vou ficando velho. Ha mais de quarenta annos pelo menos que sahi da casa dos meus pais... E interrompendo o que dizia, perguntou: --O senhor também é de Minas? --Nhor-não, respondeu o outro. Sou caipira de S. Paulo: nasci na villa de Casa-Branca, mas fui criado em Ouro-Preto. --Ah! na cidade Imperial[15]?... --Lá mesmo. --Então é quasi de casa, replicou o mineiro rindo-se ruidosamente. Ora, quem diria! Por isto me batia a passarinha, quando vi o seu rasto fresco na areia. Ahi vai, disse eu por vezes com os meus botões um sujeitinho que não tem pressa de pousar. Tambem tocando o meu _canivete_, tratei de agarral-o para não fazer a viagem a olhar para o céu e a banzar. Acha que obrei mal? --Não, senhor, protestou o moço com affabilidade. Muito lhe agradeço a intenção. Assim alcançarei sem cansaço o Leal, onde pretendo dar hoje com os ossos. --Oh! exclamou o outro todo expansivo, a caminhada é a mesma. Pois, meu rico senhor, eu moro a meia legua do Leal, torcendo á esquerda, e se vosmecê não tem compromissos lá com o homem fár-me-ha muito favor agasalhando-se em tecto de quem é pobre, mas amigo de servir. Minha tapera[16] é pouco retirada do caminho, e quem vem montado como o senhor, não tem que andar contando bocadinhos de leguas. Convite tão espontaneo e amavel não podia deixar de ser bem aceito, sobretudo naquellas alturas, e trouxe logo entre os dous caminhantes a familiaridade que tão depressa se estabelece em viagem. --Com toda a satisfacção irei parar em sua casa, retrucou o joven. Nunca vi o Leal, pois agora é a primeira vez que cruzo este sertão, e ando de pouso em pouso, pedindo um cantinho de paiol ou de rancho para passar a noite com os meus camaradas. --Traz então tropa? --Tropa, não; apenas dous bagageiros que vem com as minhas cargas e uma besta á _dextra_. --Olá! o amigo viaja á fidalga, observou o mineiro com gesto folgazão. --Qual!... Bastantes privações tenho já cortido. --De certo não as sentirá em nossa casa todo o tempo que lá quizer ficar. Não encontrará _luxarias_[17] nem cousas da capital, unicamente o que se póde ter nestes _mundos_[18]: quatro paredes de páo a pique mal rebocadas, uma cama de vento, bom feijão a fartar, hervas á mineira, arroz de papa, farinha de milho torradinha, café com rapadura e talvez até um lombo fresco de porco. --Olá! exclamou o moço rindo-se com expansão, vou passar vida de capitão-mór. Não queria tanto, bastava-me... --O que sobretudo desejo é que tenha commigo o coração na boca. Se não gostar do passadio, vá logo _desembuxando_. Na minha rancharia pousa pouca gente, porque fica para dentro da estrada ... assim, talvez lhe falte alguma cousa; em todo o caso farei pelo melhor... Depois de breve pausa, continuou: --_Mas porem_ creio que já é occasião, agora que nos conhecemos como dous amigos do tempo do Rojão, saber com quem lidamos. Eu, quanto a mim, me chamo Martinho dos Santos Pereira e a minha historia conto-lh'a em duas palhetadas... Sua graça, ainda que mal pergunte? --Cyrino Ferreira de Campos, respondeu o outro viajante, um criado para o servir. --Obrigado, agradeceu Pereira inclinando-se cortezmente e levando a mão ao chapéu. Como lhe disse ha pouco, minha historia é historia de entrar por uma porta e sahir por outra. Minha gente não é de má raça, pelo contrario; meu pai, que Deus lhe dê a gloria, possuia alguma cousa de seu e deixou aos seus muitos filhos um nome limpo e respeitado. Cada qual de nós--eramos sete--tomou o seu rumo. Quanto a mim, casei muito mocinho e fui morar na Diamantina, onde abri casa de negocio. Depois de alguns annos, uns bons, outros _caipóras_, morreu minha dona e mudei-me, a principio, para Piumhy e mais tarde para Uberaba. A vida começou a desandar-me de todo, e fiz logo este calculo: estar tão longe, antes afundar-me no matto de uma boa feita. Vendi minha lojinha de ferragens e internei-me até cá com tres escravos. Ha doze annos que moro nestes _socavões_[19] e, palavra de honra, até ao presente não me tenho arrependido. Na minha situação ha fartura, e louvado seja! nunca passei necessidade... Não posso por isto queixar-me sem ingratidão. Deus Nosso Senhor Jesus Christo tem olhado para mim, e me julgo bem amparado, sobretudo quando me lembro do _despotismo_[20] de miserias, que vai por estas terras fóra... Cruzes! nem falar n'isto é bom... Diga-me porém uma cousa: vosmecê para onde se atira? --Homem, Sr. Pereira, não tenho destino certo. --Deveras? Então está caminhando á toa? --Eu ponho-lhe já tudo em pratos limpos. Ando por estes _fundões_[21] curando maleitas e feridas _brabas_. --Ah! exclamou Pereira com manifesto contentamento, vosmecê é doutor, não é? Physico, como chamavam os nossos do tempo de dantes. --É facto, confirmou Cyrino com alguma satisfacção. --Ora, pois, muito que bem, cahe-me a sopa no mel; sim, senhor, vem mesmo ao pintar ... a talhe de fouce. --Porque? --Daqui a pouco saberá... Mas, diga-me ainda... Onde é que vosmecê leu nos livros, aprendeu suas historias e bruxarias? Na côrte do Imperio? --Não, respondeu Cyrino, primeiro no collegio do Caraça; depois fui para Ouro Preto, onde tirei carta de pharmacia. E acrescentou com infatuação: --Desde então tenho batido todo o poente de Minas e feito curas que é um milagre. --Ah! a sabença é cousa boa... Eu tambem tinha geito para saber mais do que lêr e escrever, isto mesmo _malmente_; mas quem nasceu para carreiro, vira, mexe, larga e pega, sempre acaba junto ao carro. Com o que, entonces, vosmecê entende de curar?... --Entendo, affirmou Cyrino sem o menor constrangimento. --Pois cahiu-me muito ao geito na mão; sim, senhor. Estou com uma menina doente de maleitas, minha filha, e por essa causa tinha ido a Sant'Anna buscar quina do commercio; mas lá não havia da maldita e voltava bem agoniado. Ora... --Trago, interrompeu o outro, muito remedio nas minhas malas. Para sezões, tenho uma composição infallivel... --Já se sabe; entra composição de quina. Deveras é santa mézinha. A pequena tomou a do campo; mas essa pouco _talento_[22] tem, de maneira que a sezão não lhe deixou o corpo. --Ha quantos dias appareceu o tremor de frio? perguntou o intitulado doutor. --Faz hoje, salvo engano, dez dias. Até agora era uma rapariga _forçuda_, sadia e rosada como um jambo; nem sei até como lhe entrou a maleita no corpo. Ninguem póde fiar-se na tal villa de Sant'Anna; é uma peste de febres. Eu bem a não queria levar até lá; mas ella pediu tanto que consenti! demais como era para ver a madrinha, uma boa senhora, de muita _circumstancia_[23], a mulher do major Mello Taques... Não conhece? --Pois não. --E dá-se com o major? perguntou Pereira para abrir novo campo á sua garrulice. --Quando pousei na villa, estive com elle. --E não gostou? Aquillo sim é homem ás direitas. Tambem é páu para toda a obra na Senhora Sant'Anna é o _tutú_[24] de lá. Em querendo taramelar um pouco mais a meu gosto, busco o compadre. Isto arma logo uma conversa que me dá um fartão... E depois pessoa de muitas lettras... Escreve ao governo; é juiz de paz, major reformado, serve de juiz municipal, já fez a campanha dos Farrapos lá no Rio Grande do Sul para as bandas dos Castelhanos e merece muita estimação. Móra n'uma casa de _andar_[25] e tem loja muito sortida, por signal que bem baratinha para a distancia. E as historias que conta? É um nunca acabar. O homem parece que sabe o Imperio de cór e salteado! Nem o vigario! Olhe, Sr. Cyrino, vou dizer-lhe uma cousa, que talvez lhe pareça embromação: ás vezes dou um pulo até á villa só para bater lingua com o major, porque com esta gente daqui não se tira partido: _escurraçada_ e arisca que é um Deus nos acuda! Então, como lhe ia contando, galopeio até lá, e pego n'uma _mapiagem_[26] que me enche as medidas. Não ha... --Gabo-lhe a pachorra, atalhou Cyrino. Mas, diga-me, Sr. Pereira; farei por aqui algum negocio? --Homem, conforme. Gente doente é _matto_[27]: mas tambem _mofina_[28] como ella só. Meio arredado da minha casa, fica o Coelho que está morre não morre ha muitos annos, e é homem de boas patacas. Este, se vosmecê o curar, talvez caia com os cobres. Tudo o mais é uma _récula_ de gente _mais ou menos_. --Vosmecê traz bastante quina do commercio? perguntou em seguida. --Trago, respondeu Cyrino, mas é cara. --Que é cara, bem sei. Pois é quanto basta, porque no fundo aqui tudo são sezões. Começou então o bom do Sr. Pereira a desenrolar as diversas molestias que o haviam salteado no correr da vida, raras na verdade, mas todas perigosas; e com esse thema ás ordens achou meios e modos de falar até quasi perder o folego. Recolheu-se o outro ao silencio e ouviu talvez preoccupado, ou em todo caso, muito distrahidamente, o que lhe contava o seu novo amigo, sahindo, de vez em quando, da apathica attenção para instigar com a voz e o calcanhar a cavalgadura, quando esta parecia querer por si tomar descanso ou buscava comer os rebentões mais appetitosos do capim a grelar. Afinal notou Pereira o tal ou qual abatimento do companheiro. --Vosmecê a modo que está triste? disse elle. Deixou alguma cousa de seu lá por traz? --Homem, para ser franco, respondeu Cyrino dando um suspiro, deixei; e essa cousa é uma divida ... divida de jogo. --Isso é mau, retrucou o mineiro fechando um tanto a cara. Por causa desse vicio e das mulheres, é que as cruzes nascem á beira das estradas. Mas é _côco_[29] grosso? --Trezentos mil réis. --Já é _gimbo_[30] graúdo. E com quem jogou? --Com o Totó Siqueira, de Sant'Anna. Por isto pretendeu atrazar-me a viagem; mas prometti mandar-lhe tudo do Sucuriú por um camarada e passei-lhe um papel. No que estou pensando, é se acharei até lá meios de cumprir a palavra. --Se lhe pagarem como devem, com certeza. Em todo o caso aperte um pouco com os doentes. --Não imagina, replicou Cyrino com verdadeiro sentimento, quanto me tem amofinado essa maldita divida. Não pelo dinheiro, que delle faço pouco caso; mas por ter pegado em cartas, cousa que nunca tinha feito na minha vida; isto sim... --Pois meu rico senhor, proseguiu Pereira, sirva-lhe esta de lição e tome tento com a gente do sertão, não com esses que moram nas suas casas, socegados e amigos de servir, mas com viajantes, homens de tropas e carreiros. Isso sim, é uma sucia de jogadores que andam armados de baralhos e visporas e, por dá cá aquella palha, empurram uma facada na barriga de um christão ou descarregam uma garrucha na cabeça de um companheiro, como se fosse em melancia podre. Depois, o demonio do jogo, quando entra no corpo de um desgraçado, faz logo ninho e de lá pincha fora a vergonha. Da má vida com raparigas airadas, fadistas e mulheres á toa, ainda a gente endireita; mas com cartas e sortes, só na caldeira de Pedro Botelho é que se cuida em mudar de rumo. Quem lhe fala, teve um tio morador nas Traíras, para cá de Camapoan cinco leguas, que trabalhava todo o anno na terra para vir jogar até perder o ultimo _cobre_ nas rancharias do Sucuriú. Pereira, de posse de tão largo assumpto, contou mil historias, umas lugubres, outras jocosas, veridicas, inventadas na occasião ou reproduzidas. Haviam no entretanto os dous caminhado bastante. Inclinára-se no horizonte o sol, e a briza da tarde já vinha soprando do lado do poente, viva, perfumosa. --Nós, observou o mineiro, com a nossa conversa deixámos os nossos animaes vir cochilando. Também já está aqui a minha estradinha. Metta-se nella, Sr. Cyrino; em frente ia parar no Leal: minha fazendola começa neste ponto á beira do caminho e vai por ahi afóra até bem longe, um mundo de alqueires de terra, que nem tem conta. Ao dizer estas palavras, tomou elle a dianteira e dando a direita á estrada geral, enveredou por uma aberta larga e muito sombreada que levava com voltas e tortuosidades á margem rasa de copioso e limpido ribeirão, de alveo areento, todo elle. Que sitio risonho, encantador, esse, ensombrado por magestosa e elegante ingazeira, toda ponctuada das mimosas e balsamicas floresinhas! Os animaes, ao perceberem o bater da agua, apertaram o passo e, entrando na fresca corrente quasi até aos peitos, estiraram o pescoço e pozeram-se a beber ruidosamente, avançando aos poucos de encontro ao fio caudal, para buscarem o que houvesse mais puro em lympha. --Não deixe a sua besta se _empanzinar_ observou Pereira. Upa! continuou elle puxando pela redea do cavallo e batendo-lhe amigavelmente na pá do pescoço, upa, Canivete! Vamos matar a fome no milho! Transposto o ribeirão, alargava-se a vereda e, depois de cortar copada matta, abria-se n'uma verdadeira estrada, que os dous cavalleiros tomaram a meio galope. Trasmontava afinal o sol, quando, além de ralo mattagal, surgiu a ponta de um mastro de S. João, que o mineiro saudou com mostras de grande alegria, como signal percursor da querida vivenda. Antes, porém, de n'ella penetrarmos, digamos quem era aquelle mancebo que viajava ornado do pomposo titulo de doutor, e, o que mais é, revestido de autoridade para ir, a seu talante, applicando remedios e preconisando curas milagrosas. [Nota 13: De Minas Geraes.] [Nota 14: Matto.] [Nota 15: É o titulo honorifico que tinha a capital de Minas-Geraes.] [Nota 16: Casa velha e abandonada.] [Nota 17: Superfluidades de luxo.] [Nota 18: Lugares.] [Nota 19: Buracos, lugares retirados.] [Nota 20: Grande quantidade.] [Nota 21: Sitios distantes, ermos.] [Nota 22: Força, valentia. É quasi sempre tomado no sentido material.] [Nota 23: Importancia.] [Nota 24: _Tutú_, isto é, a pessoa de mais consideração e que tudo póde. Pereira fala do major Martinho de Mello Taques, o qual morava com effeito na villa de Sant'Anna do Paranahyba e gozava de merecida influencia.] [Nota 25: Sobrado.] [Nota 26: Conversação.] [Nota 27: Isto é: ha abundancia.] [Nota 28: Pouco liberal.--Tambem quer dizer: ou doente ou covarde.] [Nota 29: Dinheiro.] [Nota 30: Quantia.] CAPITULO III O DOUTOR Semeai promessas: a ninguem causam desfalque, e o mundo é rico de palavras. A esperança quando outros n'ella creem faz ganhar muito tempo. OVIDIO. Ao morreres, dota a algum collegio ou o teu gato. POPE. Sganarello--De toda parte vem gente procurar-me, e se as cousas continuarem assim, sou de parecer que de uma vez devo dedicar-me á medicina. Acho que de todos os officios é este o preferivel por que, ou se faça bem ou mal, sempre no fim ha dinheiro. MOLIÈRE.--_O medico á força._ Nascera Cyrino de Campos, como dissera a Pereira, na provincia de S. Paulo, na socegada e bonita villa de Casa-Branca, a qual demora umas 50 leguas do littoral. Filho de um vendedor de drogas, que se intitulava boticario e a esse officio accumulava o importante cargo de administrador do correio, crescera debaixo das vistas paternas até á idade de doze annos, completos os quaes fôra enviado, em tempos de festas e a titulos de recordação saudosa, a um velho tio e padrinho, morador na cidade de Ouro-Preto, em Minas-Geraes. Este parente, solteirão, de genio rabugento, misanthropo, e dado ás praticas da mais extrema carolice, recebeu o pequeno com máu modo e manifesto descontentamento, tanto mais quanto a presença de um estranho vinha interromper os habitos de completa solidão a que se acostumara desde longos annos. Era homem que trajava ainda á moda antiga usando de sapatos de fivela, calções de braguilha, e cabelleira empoada com o competente rabicho. A sua reputação de pessoa abastada era, em toda a cidade de Ouro Preto, tão bem firmada quanto a de refinado sovina, chegando a voz publica a affirmar que o seu dinheiro, e não pouco, estava todo enterrado em numerosos buracos no chão da alcova de dormir. --Meu amigalhote, disse o tal padrinho a Cyrino, poucos dias depois da chegada, fique sabendo que por qualquer cousinha lhe sacudo a poeira do corpo. Dê-se por avisado e ande direitinho que nem um fuso. O menino, transido de medo, passou a tarde a chorar n'um canto sombrio da casa, onde relembrou, até lhe vir o somno, a alegre vida de outr'ora, os folguedos que fazia com os camaradas na viçosa relva do Cruzeiro á entrada da villa Casa-Branca e sobretudo os carinhos da saudosa mamãe. Em seguida áquella admoestação preventiva fôra o tio á casa de uns padres que tinham influencia na direcção do Collegio do Caraça e com elles arranjara a admissão do afilhado n'aquelle estabelecimento de instrucção. Como finorio que era, conseguiu este resultado sem muita difficuldade, pagando-o, a juros compostos, com tentadoras promessas. --Por ora, resmoneou elle, nada poderei fazer pela educação do rapaz; mas ... emfim ... um dia ... estou já velho, e tratarei de mostrar que não me esqueci dos bons padres que tanto me ajudam hoje. Lançada, assim, a eventualidade de uma verba testamentaria, ficou decidida a entrada de Cyrino na casa collegial. O presentimento da falta de protecção natural torna as crianças doceis e resignadas. Tambem não tugiu nem mugiu o caipirasinha ao penetrar no internato em que devia passar tristonhamente os melhores annos da sua adolescencia. Optimo negocio fizera incontestavelmente o velho tio. Ia tão somente desembolsando boas palavras e, por estar agarrado á vida, chegou até a levar ao cemiterio dous dos padres que se haviam prendido ás esperanças de valiosa recordação. Afinal como tinha por seu turno que pagar o tributo universal, um bello dia morreu quando menos se esperava, deixando muito recommendado um seu testamento, que foi com effeito aberto com sofreguidão digna de melhor exito. Testamento havia, força é confessar; não já testamento, mas extenso arrazoado todo da letra do velho; barras de ouro, porém, ou maços de notas, nem sombra. Esfuracou-se a casa de alto a baixo levantaram-se os soalhos; escutaram-se todas as paredes; quebraram-se os moveis: nada appareceu, nada denunciou esconderijo de riquezas, nem cousa que com isso se avizinhasse. Descobriu-se então que aquelle carola fôra um pensador desabusado, antigo admirador de Xavier, o Tira-Dentes, que nunca tivera vintem e vivera como philosopho, grazinando lá comsigo mesmo, de tudo e de todos. Era o seu testamento uma gargalhada meio de gosto, meio de ironia, atirada de além tumulo e corroborada pelo legado sarcastico que em pomposo codicillo, fazia aos padres do Caraça da sua bibliotheca «afim, dizia elle, de ajudar a educação dos mancebos e auxiliar as boas intenções dos seus honrados e virtuosos directores.» Procuraram-se os taes livros, e topou-se com um bahú cheio de obras, em parte devoradas pelo cupim, que foram, incontinenti, entregues ás chammas de um grande auto de fé. Eram as Ruinas de Volney, o Homem da Natureza, as poesias eroticas de Bocage, o Diccionario philosophico de Voltaire, o Citador de Pigault-Lebrun, a Guerra dos Deuses de Parny, os romances do Marquez de Sade e outras producções de igual alcance e quilate, algumas até em francez, mas annotadas por leitor assiduo e mais ou menos convencido. A consequencia desse pesado gracejo posthumo, que destruia de raiz o conceito de uma vida inteira, foi a immediata exclusão de Cyrino do collegio do Caraça. Tinha então dezoito annos e, como era vivo conseguiu, apezar da natural pecha que lhe atirava o parentesco com o estrambotico e defunto protector, ir servir de caixeiro n'uma botica velha e _manhosa_ onde entre drogas e receituarios lhe foram voltando os habitos da casa paterna. Leve era o trabalho, e o aviamento de prescripções tão lento que os ingredientes pharmaceuticos ficavam mezes inteiros nos embaçados e esborcinados frascos á espera de que alguem se lembrasse de tiral-os daquelle bolorento esquecimento. Em localidade pequena, de simples boticario a medico não ha mais que um passo. Cyrino, pois, foi aos poucos e com o tempo creando tal ou qual pratica de receitar e, agarrando-se a um Chernoviz, já seboso de tanto uso, entrou a percorrer, com alguns medicamentos no bolso e na mala da garupa, as visinhanças da cidade á procura de quem se utilisasse dos seus serviços. Nessas curtas digressões principiou a receber o tratamento de doutor. Então para melhor o firmar, depois de se ter despedido da botica em que servia, matriculou-se na escola de pharmacia de Ouro-Preto com a intenção de tirar a carta de boticario, que o presidente de Minas Geraes tem o privilegio de conferir, dispensando documentos de qualquer faculdade reconhecida. Antes, porém, de conseguir a posse d'aquelle lisonjeiro documento, fez-se Cyrino, n'um dia de capricho, de partida decidida e começou então a viajar pelos sertões povoados a medicar, sangrar e retalhar, unindo a alguns conhecimentos de valor positivo outros que a experiencia lhe ia indicando ou que a voz do povo e a superstição lhe ministravam. Toda a sua sciencia assentava alicerces no tal Chernoviz. Tambem era o inesperavel _vade-mecum_; seu livro de ouro; Homero á cabeceira de Alexandre. Noite e dia o manuseava; noite e dia o consultava á sombra das arvores ou junto ao leito dos enfermos. Contem Chernoviz, dizem os entendidos, muitos erros, muita lacuna, muita cousa inutil e até disparatada; entretanto no interior do Brazil é obra que incontestavelmente presta bons serviços, e cujas indicações tem força de evangelho. Conhecia Cyrino o seu exemplar de cór e salteado; abria-o com segurança nos trechos que desejava consultar e graças a elle formara um fundo de instrucção real e até certo ponto exacta, a que unira o estudo natural das utilissimas e ainda pouco aproveitadas hervinhas do campo. Afim de augmentar os seus recursos em materia medica vegetal, foi a pouco e pouco dilatando as excursões fóra das cidades, para as quaes voltava, quando se via falto de medicamentos ou quando, digamol-o sem rebuço, queria gastar nos prazeres e folias o dinheiro que ajuntara com a clinica do sertão. Afinal, afeito a habitos de completa liberdade, resolvera emprehender viagem para Camapoan e sul de Matto-Grosso, não só com o intuito de estender o raio das operações, como levado do desejo de ver terras novas e longinquas. Curandeiro, simples curandeiro, ia por toda a parte grangeando o tratamento de doutor, que gradualmente lhe foi parecendo, a si proprio, titulo inherente á sua pessoa e a que tinha incontestavel direito. Bem formado era o coração daquelle moço, sua alma elevada e incapaz de pensamentos menos dignos; entretanto no intimo do seu caracter se haviam insensivelmente enraizado certos habitos de orgulho, repassado de tal ou qual charlatanismo, oriundo não só da flagrante insufficiencia scientifica, como da roda em que sempre vivera. Afastava-se em todo caso, ainda assim com os seus defeitos, do commum dos medicos ambulantes do sertão, typos que se encontram frequentemente naquellas paragens, eivados de todos os attributos da mais crassa ignorancia, mas rodeados de regalias completamente excepcionaes. Por toda parte entra, com effeito, o doutor; penetra no interior das familias, verdadeiros gyneceos; tem o melhor lugar á mesa dos hospedes, a mais macia cama, é emfim, um personagem cahido do céu e junto ao qual acodem logo, de muita leguas em torno, não já enfermos, mas fanatisados crentes, que durante largos annos se haviam medicado ou por conselhos de vizinhos ou por suas proprias inspirações e que na chegada desse Messias depositam todas as ardentes esperanças do almejado restabelecimento. CAPITULO IV A CASA DO MINEIRO Está a ceia na mesa. Torne o bom acolhimento desculpavel o mau passadio. WALTER SCOTT.--_Ivanhoe._ Quando assomaram os dous viajantes á entrada do terreiro que rodeava a vivenda de Pereira, correram-lhes ao encontro quatro ou cinco cães altos e magros, que aos pulos saudaram o dono da casa com uma cainçada de alegria. Puzeram-se algumas gallinhas a girar atarantadas, ao passo que varios gallos, ja empoleirados na cumieira da morada, bradavam novidade e uns porcos e bacorinhos aqui e acolá se erguiam de entre palhas de milho e, estremunhados, olhavam para os recem-chegados com olhos pequenos e cheios do somno. Do interior da habitação, não tardou a sahir uma preta idosa, mal vestida, trazendo atado á cabeça um panno branco de algodão, cujas pontas pendiam até ao meio das costas. --Olá, Maria Conga, perguntou Pereira, que ha de novo por cá? --A benção, meu senhor, pediu a escrava chegando-se com alguma lentidão. --Deus te faça santa, respondeu o mineiro. Como vai a menina? _Nocencia_? --Nhã está com _sezão_. --Isto sei eu, rapariga de Christo; mas como passou ella de trasanthontem para cá? --Todo o dia, vindo a hora, nhã bate o queixo, nhor-sim. --Está bem... É que o mal ainda não abrandou... Daqui a pouco, veremos. E a _janta_?... Está prompta? Venho varado de fome. Que diz, sr. Cyrino? indagou, voltando-se para o companheiro. --Não se me dava tambem de comer alguma cousa. Temos razão para... --Pois então, interrompeu Pereira, ponha pé no chão e pise forte, que o terreno é nosso. Minha casa, já lh'o disse, é pobre, mas bastante farta e a ninguem fica fechada. Deu logo o exemplo, e descavalgou do cavallinho zambro, o qual foi por si correndo em direcção a uma dependencia da casa com formas de tosca estrebaria. Apeou-se igualmente Cyrino, mas, ao penetrar n'uma especie de alpendre de palha que ensombrava a frente toda, mostrou repentina e viva contrariedade no gesto e na physionomia. --Ora, Sr. Pereira, exclamou elle batendo com o tacão da bota n'um sabugo de milho, só agora é que me lembro que as minhas cargas vão todas tomar caminho do Leal e aqui me deixam sem roupa, nem medicamentos. Que massada! Deviamos ter esperado na boca da sua picada. Respondeu-lhe o mineiro todo desfeito em expansivo riso: --Olé, pois o doutor é tão novato assim em viagens? Então pensa que lá não deixei aviso seguro á sua gente? Não se lembra de um ramo verde que puz bem no meio da estrada real? --É verdade, confirmou Cyrino. --E então? D'aqui a pouco a sua camaradagem está batendo o nosso rasto. Entremos, que a fome já vai apertando. Consistia a morada de Pereira n'um casarão vasto e baixo, coberto de sapé, com uma porta larga entre duas janellas muito estreitas e mal abertas. Na parede da frente que, talvez com o peso da coberta, bojava sensivelmente fóra da vertical, grandes rachas longitudinaes mostravam a urgencia de sérias reparações em toda aquella obra feita de terra amassada e grandes páos a pique. Ao oitão da direita existia encostado um grande paiol construido de troncos de palmeiras, por entre os quaes iam rolando as espigas de milho, com o continuo fossar dos porquinhos, que dalli não arredavam pé. Corrido na frente de toda a vivenda, via-se um alpendre de palha de bority, sustentado por grossas taquaras, ligeiro appendice acrescentado por occasião de alguma passada festa, em que o numero de convidados ultrapassara os limites de abrigo da hospitaleira habitação. Internamente era ella dividida em dous lanços: um, todo fechado, com excepção da porta por onde se entrava, e que constituia o commodo destinado aos hospedes: outro, á rectaguarda, pertencia, á familia, ficando portanto completamente vedado ás vistas dos estranhos e sem communicação interna com o compartimento da frente. Era de barro compacto e socado o chão desta sala, vendo-se n'elle signaes de que ás vezes alli se acendia fogo: pelo que estavam o sapé do forro e o ripamento revestidos de luzidia e tenue camada, de picuman que lhes dava brilho singular como se tudo fôra jacarandá envernizado. --Isto aqui, disse Pereira penetrando na sala e sentando-se n'uma tripeça de páo, não é meu, é de quem me procura. Poucos vêm cá de certo parar, mas emfim é sempre bom contar com elles... Minha gente mora na dependencia dos fundos. E apontou para a parede fronteira á porta de entrada, fazendo um gesto para mostrar que a casa se estendia além. --Sr. Pereira, disse Cyrino recostando-se a uma solida marqueza, não se incommode commigo de maneira alguma... Faça de conta que aqui não ha ninguem. --Pois então, retorquio o mineiro, deite-se um pouco, emquanto vou lá dentro ver as novidades. A hora é mais de comer, que de cochilar; mas espere deitadinho e a gosto, o que é sempre mais commodo do que ficar de pé ou sentado. Não desprezou o hospede o convite. Tirou o pala, puxou as botas e, cruzando-as, fez dos canos travesseiros, em que descansou a cabeça. Quem se colloca em posição horizontal, depois de vencidas umas estiradas leguas, adormece com certeza. Depressa veio, pois, o somno cerrar as palpebras do recem-chegado a entumecer-lhe o peito com socegada respiração. Dormiu talvez hora e meia, e mais houvera dormido, se não fosse acordado pelo tropel de animaes que paravam, e por grita de gente a pôr cargas em terra. Assomou Pereira á porta com ar jovial. --Então que lhe disse eu? --De facto; estou agora socegado. --E o Sr. tomou uma boa _data_[31] de somno. --_Quem sabe_[32] uma hora? --Boa duvida, se não mais. Fiquei todo esse tempo ao lado de _Nocencia_, que de frio batia o queixo, como se estivesse agora em Ouro-Preto, quando cahe geada na rua. --Então não vae melhor? --Qual!... Depois que o Sr. tiver comido, ha-de ir vel-a. Está, pobresinha, tão desfeita que parece doente de uns tres mezes atraz. --Felizmente, observou Cyrino com alguma enfatuação, aqui estou eu para pôl-a de pé em pouco tempo. --Deus o ouça, disse Pereira com verdadeira uncção. --Patricios! Ó gente! gritou elle em seguida para os dois camaradas chegados de pouco, vão mecês sentar naquelle rancho, alli. Perto ha boa agua, e lenha é o que não falta: basta estender o braço. Olhem dêm ração de fartar aos animaes. Aproveitem o milho, emquanto ha: é a _sustancia_ desses bichos. Aqui, vendo-o baratinho. Um _atilho_[33] por um _cobre_[34] e não são espigas chochas, nem de grão _soboró_[35]. Eh! lá! Maria Conga, vamos com isso!... _janta_ a mesa!... Foram o chamado e as indicações de Pereira cumpridas sem demora. Appareceu a velha escrava, que estendeu em larga e mal aplainada mesa uma toalha de algodão, grosseira mas muito alva, sobre a qual derramou duas boas cuias de farinha de milho: depois, emborcou um prato fundo de louça azul, e ao lado collocou uma colher e um garfo de metal. --Sente-se, doutor, disse Pereira para Cyrino, agora não _manduco_ com mecê, porque já petisquei lá dentro. Desculpe se não achar a comida do seu agrado. Vinha nesse momento entrando Maria Conga com dois pratos bem cheios e fumegantes, um de feijão cavallo, outro de arroz. --E as hervas? peguntou Pereira. Não ha? --Nhôr-sim. Eu trago já, respondeu a preta que com effeito voltou d'ahi a pouco. Tornou o mineiro a desculpar-se da insufficiencia e mau preparo da comida. --Não lhe dou hoje lombo de porco; mas o promettido não cae em esquecimento, isto lhe posso assegurar. --Estou muito contente com o que ha, protestou com sinceridade Cyrino. E, de facto, pelo modo porque começou a comer, repetindo animadas vezes dos pratos, deu evidentes mostras de que falava inteira verdade. --Maria, disse Pereira para a escrava que se fora collocar a alguma distancia da mesa com os braços cruzados, traz agora _mel_[36] e café com _doce_[37]. --Ah! exclamou Cyrino com patente satisfacção estirando os braços, fiquei que nem um ovo. O feijão estava de patente. Louvado seja Nosso Senhor Jesus Christo, que me deu este bom agasalho. --Amen! respondeu Pereira. --Agora, amigo meu, disse o moço depois de pequena pausa, estou ás suas ordens; podemos ver a sua doentinha e aproveitar a parada da febre _para mim_[38] atalhal-a de prompto. Em taes casos, não gosto de adiamentos. Cobriu-se o rosto do mineiro de ligeira sombra: franziram-se lhe os sobrolhos, e vaga inquietação lhe pairou na fronte. --Mais tarde, disse elle com precipitação. --Nada, meu senhor, retrucou Cyrino, quanto mais cedo, melhor. É o que lhe digo. --Mas, que pressa tem mecê? perguntou Pereira com certa desconfiança. --Eu? respondeu o outro sem perceber a intenção, nenhuma. É mesmo para bem da moça. Acenderam-se os olhos de Pereira de repentino brilho. --E como sabe que minha filha é moça? exclamou com vivacidade. --Pois não foi o senhor mesmo quem mo disse na _prosa_ do caminho? --Ah! ... é verdade. Ella ainda não é moça... Quatorze, quinze annos, quando muito... Quinze annos e meio... Uma creança, coitadinha!... --Emfim, replicou o outro, seja como fôr. Quando o Sr. quizer, venha procurar-me. Emquanto espero, remexerei nas minhas malas e tirarei alguns remedios para tel-os mais á mão. --Muito que bem, aprovou Pereira, bote os seus _trens_[39] naquelle canto e fique descansado: ninguem bulirá nelles... Quanto a minha filha ... eu ja venho ... dou um pulo lá dentro, e ... depois conversaremos. [Nota 31: Quantidade, porção.] [Nota 32: Talvez.] [Nota 33: Um atilho compôe-se de 4 espigas amarradas.] [Nota 34: Dois vintens.] [Nota 35: Soboró é o grão falhado.] [Nota 36: Melado.] [Nota 37: Rapadura de assucar.] [Nota 38: É este erro commum no interior de todo o Brazil e sobretudo na provincia de S. Paulo, onde pessoas até illustradas nelle incorrem com frequencia.] [Nota 39: Trem na provincia de Matto-Grosso é uma das palavras mais empregadas e com as mais singulares accepções. Neste caso significa objectos, cargas etc.] CAPITULO V AVISO PREVIO Onde ha mulheres, ahi se congregam todos os males a um tempo. MENANDRO. Nunca é bom que um homem sensato eduque seus filhos de modo a desenvolver-lhes de mais o espirito. EURIPIDES.--_Medéa._ Filhos, sois para os homens o encanto da alma. MENANDRO. Estava Cyrino fazendo o inventario da sua roupa e já começava a anoitecer, quando Pereira novamente a elle se chegou. --Doutor, disse o mineiro, pode agora mecê entrar para ver a pequena. Está com o pulso que nem um fio, mas não tem febre de qualidade nenhuma. --Assim é _bem melhor_[40], respondeu Cyrino. E, arranjando precipitadamente o que havia tirado da canastra, fechou-a e pôz-se de pé. Antes de sahir da sala, deteve Pereira o hospede com ar de quem precisava tocar em assumpto de gravidade e ao mesmo tempo de difficil explicação. Afinal começou meio hesitante: --Sr. Cyrino, eu cá sou homem muito bom de genio, muito amigo de todos, muito accommodado e que tenho o coração perto da boca, como vosmecê deve ter visto. --Por certo, concordou o outro. --Pois bem, mas ... tenho um grande defeito; sou muito desconfiado. Vae o doutor entrar no interior da minha casa e ... deve portar-se como... --Oh, Sr. Pereira! atalhou Cyrino com animação, mas sem grande estranheza, pois conhecia o zelo com que os homens do sertão guardam da vista dos profanos os seus aposentos domesticos, posso gabar-me de ter sido recebido no seio de muita familia honesta e sei proceder como devo. Expandiu-se um tanto o rosto do mineiro. --Vejo, disse elle com algum acanhamento, que o doutor não é nenhum _pé rapado_, mas nunca é bom facilitar... E já que não ha outro remedio, vou dizer-lhe todos os meus segredos... Não mettem vergonha a ninguem, com o favor de Deus; mas em negocios da minha casa não gosto de bater lingua... Minha filha _Nocencia_ fez 18 annos pelo Natal, e é rapariga que pela feição parece moça de cidade, muito ariscasinha de modos, mas bonita e boa deveras... Coitada, foi creada sem mãe, e aqui nestes _fundões_[41]. Tenho outro filho, este, um latagão, barbado e _grosso_[42] que está trabalhando agora em porcadas para as bandas do Rio. --Ora muito que bem, continuou Pereira caindo aos poucos na habitual garrulice, quando vi a menina tomar corpo, tratei logo de casal-a. --Ah! é casada! perguntou Cyrino. --Isso é, é e não é. A coisa está apalavrada. Por aqui costuma labutar no costeio do gado para S. Paulo um homem de mão cheia, que talvez o Sr. conheça ... o Manecão Dóca... --Não, respondeu Cyrino abanando a cabeça. --Pois _isso_ é um homem ás direitas, desempenado e _trabucador_[43] como elle só ... fura estes sertões todos e vem tangendo[44] pontas de gado que mettem pasmo. Tambem dizem que tem _bichado_[45] muito e ajuntado cobre grosso, o que é possivel, porque não é gastador nem dado a mulheres. Uma feita que estava aqui de pousada ... olhe, mesmo neste logar onde estava mecê inda _agorinha_, falei-lhe em casamento ... isto é, dei-lhe uns toques ... porque os paes devem tomar isso a si para bem de suas _familias_[46]; não acha? --Boa duvida, approvou Cyrino, dou-lhe toda a razão; era do seu dever. --Pois bem, o Manecão ficou _ansim_ meio em duvida; mas quando lhe mostrei a pequena, foi outra cantiga... Ah! tambem é uma menina!... E Pereira, esquecido das primeiras prevenções, deu um muchôcho expressivo, apoiando a palma da mão aberta de encontro aos grossos labios. --Agora, está ella um tanto desfeita; mas, quando tem saúde é coradinha que nem mangaba do arêal. Tem cabellos compridos e finos como sêda de paina, um nariz mimoso e uns olhos matadores... --Nem parece filha de quem é... A gabos imprudentes era levado Pereira pelo amor paterno. Foi o que repentinamente pensou lá comsigo, de modo que, reprimindo-se, disse com hesitação manifesta: --Esta obrigação de casar as mulheres é o diabo!... Se não tomam estado, ficam _jururús_ e _fanadinhas_...; se casam podem cair nas mãos de algum marido malvado... E depois, as historias!... Hi, meu Deus, mulheres numa casa, é coisa de metter medo... São redomas de vidro que tudo pode quebrar... Emfim, minha filha, emquanto solteira, honrou o nome de meus paes... O Manecão que se aguente, quando a tiver por sua... Com gente de sáia não ha que fiar... Cruz! botam familias inteiras a perder, emquanto o demo esfrega um olho. Esta opinião injuriosa sobre as mulheres é, em geral, corrente nos nossos sertões e traz como consequencia immediata e pratica, além da rigorosa clausura em que são mantidas, não só o casamento convencionado entre parentes muito chegados para filhos de menor edade, mas sobretudo os numerosos crimes commettidos, mal se suspeita possibilidade de qualquer intriga, amorosa entre pessoa da familia e algum estranho. Desenvolveu Pereira todas aquellas idéas e applaudiu a prudencia de tão preventivas medidas. --Eu repito, disse elle com calor, isto de mulheres, não ha que fiar. Bem faziam os nossos do tempo antigo. As raparigas andavam direitinhas que nem um fuso... Uma piscadella de olho mais duvidosa, era logo páu... Contaram-me que hoje lá nas cidades ... arrenego! ... não ha menina, por pobresinha que seja, que não saiba ler livros de letra de forma e garatujar no papel ... que deixe de ir a _fonçonatas_ com vestidos abertos na frente como _raparigas fadistas_ e que saracoteiam em dansas e falam alto e _mostram os dentes_ por dá cá aquella palha com qualquer _tafulão_ malcreado ... pois pelintras e beldroegas não faltam... Cruz!... Assim, tambem é demais; não acha? Cá no meu modo de pensar, entendo que não se maltratem as coitadinhas, mas tambem é preciso não dar azas ás formigas... Quando ellas ficam taludas, atamanca-se uma festança para casal-as com um rapaz decente ou algum primo, e acabou-se a historia... --Depois, acrescentou elle abrindo expressivamente com o pollegar a palpebra inferior dos olhos, cautela e faca afiada para algum meliante que se faça de[47] tolo e venha engraçar-se fóra de villa e termo... Minha filha... Pereira mudou completamente de tom: --Pobresinha... Por esta não ha-de vir o mal ao mundo ... é uma pombinha do céu ... Tão boa, tão carinhosa!... E feiticeira!! Não posso com ella ... só o pensar em que tenho de entregal-a nas mãos de um homem, bole commigo todo... É preciso, porém. Ha annos ... devia já ter cuidado nesse arranjo, mas ... não sei ... cada vez que pensava nisso ... caia-me a alma aos pés ... Tambem é menina que não foi creada como as mais... Ah! Sr. Cyrino, isto de filhos, são pedaços do coração que a gente arranca do corpo e bota a andar por esse mundo de Christo. Humedeceram-se ligeiramente os cilios do bom pae. --O meu mais velho para, Deus sabe onde.... Se eu morresse neste instante, ficava a pequena ao desamparo... Tambem, era preciso acabar com esta incerteza... Além disso, o Manecão prometteu-me deixal-a aqui em casa, e deste modo fica tudo arranjado ... isto é remediado, filha casada é traste que não pertence mais a pae. Houve uns instantes de silencio. --Agora, proseguiu Pereira com certo vexame, que eu tudo lhe disse, peço-lhe uma coisa: veja só a doente e não olhe para _Nocencia_ ... falei assim a mecê, porque era de minha obrigação... Homem nenhum, sem ser muito chegado a este seu creado, pisou nunca no quarto de minha filha... Eu lhe juro... Só em casos destes de extrema _percisão_... --Sr. Pereira, replicou Cyrino com calma, já lhe disse e torno-lhe a dizer que, como medico, estou ha muito tempo acostumado a lidar com familias e a respeital-as. É este meu dever, e até hoje, graças a Deus, a minha fama é boa... Quanto ás mulheres, não tenho as suas opiniões, nem as acho razoaveis nem de justiça. Entretanto, é inutil discutirmos, porque sei que isso são prevenções vindo de longe, e quem torto nasce, tarde ou nunca se endireita.... O Sr. falou-me com toda a franqueza, e tambem com franqueza, lhe quero responder. No meu parecer, as mulheres são tão boas como nós, senão melhores: não ha pois motivo para tanto desconfiar dellas e ter os homens em tão boa conta... Emfim, essas suas idéas podem quadrar-lhe á vontade, e é costume meu antigo a ninguem contrariar, para viver bem com todos e delles merecer o tratamento que julgo ter direito a receber. Cuide cada qual de si, olhe Deus para todos nós, e ninguem queira arvorar-se em palmatoria do mundo. Tal profissão de fé, expedida em tom dogmatico e superior, pareceu impressionar agradavelmente a Pereira, que fôra applaudindo com expressivo movimento de cabeça a sensatez dos conceitos e a fluencia da phrase. [Nota 40: Locução muito usual no interior.] [Nota 41: Sertões.] [Nota 42: Gordo.] [Nota 43: Trabalhador.] [Nota 44: Este elegante verbo é muito usado no interior.] [Nota 45: Feito bichas, ganho dinheiro.] [Nota 46: Filhas.] [Nota 47: _Fazer-se_ de brazileirismo corrente no interior do paiz.] CAPITULO VI INNOCENCIA Nesta donzella é que se acham juntas a minha vida e a minha morte. HENOCH.--_O livro da amizade._ Jamais vira cousa tão perfeita como o seu rosto pallido, os seus olhos franjados de sedosos cilios muito espessos e o seu ar meigo e doentio. GEORGE SAND.--_Os mestres gaiteiros._ Tudo, em Fenella, realçava a idéa de uma miniatura. Alem do mais, havia em sua physionomia e, sobretuto no olhar, extraordinaria promptidão, fogo e atilamento. WALTER SCOTT.--_Peveril do Pico._ Depois das explicações dadas ao seu hospede, sentiu-se o mineiro mais despreoccupado. --Então, disse elle, se quizer, vamos já ver a nossa doentinha. --Com muito gosto, concordou Cyrino. E, sahindo da sala, acompanhou Pereira, que o fez passar por duas cêrcas e rodear a casa toda, antes de tomar a porta do fundo, fronteira a um magnifico laranjal, naquella occasião todo pontuado das brancas e olorosas flores. --Neste lugar, disse o mineiro apontando para o pomar, todos os dias se juntam tamanhos bandos de _graúnas_[48], que é um barulho dos meus peccados. _Nocencia_ gosta muito disso e vem sempre coser debaixo do arvoredo. É uma menina exquesita... Parando no limiar da porta, continuou com expansão: --Nem o senhor imagina ... ás vezes, aquella criança tem lembranças e perguntas que me fazem _embatucar_ ... Aqui, havia um livro de horas da minha defunta avó. ... Pois não é que um bello dia ella me pediu que lhe ensinasse a ler?... Que idéa! ... Ainda ha pouco tempo me disse que quizera ter nascido princeza... Eu lhe retruquei: E sabe você o que é ser princeza? Sei me _secundou_[49] ella com toda a clareza, é uma moça muito boa, muito bonita, que tem uma coroa de diamantes na cabeça, muitos _lavrados_[50] no pescoço e que manda nos homens... Fiquei meio tonto. E se o senhor visse os modos que tem com os bichinhos?!... Parece que está falando com elles e que os entende... Uma _bicharia_[51], em chegando ao pé de _Nocencia_, fica mansa que nem ovelhinha parida de fresco... Se fosse agora a contar-lhe historias dessa rapariga, seria um não acabar nunca... Entremos, que é melhor... Quando Cyrino penetrou no quarto da filha do mineiro, era quasi noite, de maneira que, no primeiro olhar que atirou ao redor de si, só pôde lobrigar, alem de diversos trastes de formas antiquadas, uma dessas camas, muito em uso no interior; altas e largas, feitas de tiras de couro engradadas. Estava encostada a um canto, e nella havia uma pessoa deitada. Mandara Pereira accender uma vela de sebo. Vinda a luz, aproximaram-se ambos do leito da enferma que, achegando ao corpo e puxando para debaixo do queixo uma coberta de algodão de Minas, se encolheu toda, e se voltou para os que entravam. [Ilustração: Está aqui o doutor, disse-lhe Pereira.] --Está aqui o doutor, disse-lhe Pereira, que vem curar-te de vez. --Boas noites, dona, saudou Cyrino. Timida voz murmurou uma resposta, ao passo que o joven, no seu papel do medico, se sentava n'um escabello junto á cama e tomava o pulso á doente. Caía então a luz de chapa sobre ella, illuminando-lhe o rosto, parte do collo e da cabeça, coberta por um lenço vermelho atado por traz da nuca. Apezar de bastante descorada e um tanto magra, era Innocencia de belleza deslumbrante. Do seu rosto irradiava singela expressão de encantadora ingenuidade, realçada pela meiguice do olhar sereno que a custo, parecia coar por entre os cilios sedosos a franjar-lhe as palpebras, e compridos a ponto de projectarem sombras nas mimosas faces. Era o nariz fino, um bocadinho arqueado; a bocca pequena, e o queixo admiravelmente torneado. Ao erguer a cabeça para tirar o braço de sob o lençol, descera um nada a camisinha de crivo que vestia, deixando nú um collo de fascinadora alvura, em que resaltava um ou outro signal de nascença. Razões de sobra tinha, pois o pretenso facultativo para sentir a mão fria e um tanto incerta, e não poder atinar com o pulso de tão gentil cliente. --Então? perguntou o pae. --Febre nenhuma, respondeu Cyrino, cujos olhos fitavam com mal disfarçada surpresa as feições de Innocencia. --E que temos que fazer? --Dar-lhe hoje mesmo um suador de folhas de laranjeira da terra a ver se transpira bastante e, quando for meia noite, acordar-me para vir administrar uma boa dóse de sulfato. Levantára a doente os olhos e os cravara em Cyrino, para seguir com attenção as prescripções que lhe deviam restituir a saúde. --Não tem fome nenhuma, observou o pae; ha quasi tres dias que só vive de beberagens. É uma ardencia continua; isto até nem parecem maleitas. --Tanto melhor, replicou o moço; amanhã verá que a febre lhe sáe do corpo, e daqui a uma semana sua filha está de pé com certeza. Sou eu que lh'o afianço. --Fale o doutor pela boca de um anjo, disse Pereira com alegria. --Hão-de as côres voltar logo, continuou Cyrino. Ligeiramente enrubeceu Innocencia e descançou a cabeça no travesseiro. --Porque amarrou esse lenço? perguntou em seguida o moço. --Por nada, respondeu ella com acanhamento. --Sente dor de cabeça? --Nhôr-não. --Tire-o pois: convém não chamar o sangue; solte, pelo contrario, os cabellos. Pereira obedeceu e descobriu uma espessa cabelleira, negra como o amago da cabiúna e que em liberdade devia cair até abaixo da cintura. Estava enrolado em bastas tranças, que davam duas voltas inteiras ao redor do cocoruto. --É preciso, continuou Cyrino, ter de dia o quarto arejado e pôr a cama na linha do nascente ao poente. --Amanhã de manhãsinha hei-de viral-a disse o mineiro. --Bom, por hoje então, ou melhor, agora mesmo, o suador. Fechem tudo, e que a dona sue bem. Á meia noite, mais ou menos, virei aqui dar-lhe a mézinha. Socegue o seu espirito e reze duas Ave-Maria para que a quina faça logo effeito. --Nhôr-sim, balbuciou a enferma. --Não lhe dóe a luz nos olhos? perguntou Cyrino, achegando-lhe um momento a vela ao rosto. --Pouco ... um nadinha. --Isso é bom signal. Creio que não hade ser nada. E levantando-se, despediu-se: --Até logo, sinhá-moça. Depois do que, convidou Pereira a sahir. Este acenou para alguem que estava num canto do quarto e na sombra. --Ó Tico, disse elle, venha cá... Levantou-se, a este chamado, um anão muito entanguido, embora perfeitamente proporcionado em todos os seus membros. Tinha o rosto sulcado de rugas, como se já fôra entrado em annos; mas os olhinhos vivos e a negrejante guedelha mostravam edade pouco adeantada. Suas perninhas um tanto arqueadas terminavam em pés largos e chatos que, sem grave desarranjo na conformação, poderiam pertencer a qualquer palmipede. Trajava comprida blusa parda sobre calças que, por haverem pertencido a quem quer que fosse muito mais alto, formavam em baixo volumosa rodilha, apezar de estarem dobradas. Á cabeça, trazia um chapéu de palha de _carandá_[52] sem cópa, de maneira que a melena lhe apparecia toda arrepiada e erguida em torcidas e emmaranhadas grenhas. --Oh! exclamou Cyrino ao ver entrar no circulo de luz tão estranha figura, isto devéras é um _tic_[53] de gente. --Não _anarchise_[54] o meu Tonico, protestou sorrindo-se Pereira. Elle é pequeno ... mas bom. Não é meu nanico? O homunculo riu-se, ou melhor, fez uma careta mostrando dentinhos alvos e agudos, ao passo que deitava para Cyrino olhar inquisidor e altivo. --O Snr. vê, doutor, continuou Pereira esta creaturinha de Christo ouve perfeitamente tudo quanto se lhe diz e logo comprehende. Não póde falar ... isto é, sempre póde dizer uma palavra ou outra, mas muito a custo e quasi a estourar de raiva e de canseira. Quando se mette a querer explicar qualquer coisa, é um barulho dos seiscentos, uma gritaria dos meus peccados, onde apparece uma voz aqui, outra acolá, mais christãsinhas no meio da barafunda. --É que não lhe cortaram a lingua, observou Cyrino. --Não tinha nada que cortar, replicou Pereira. De nascença é o defeito e não póde ser remediado. Mas isto é um diabrete, que cruza este sertão de cabo a rabo, a todas horas do dia e da noite. Não é verdade, Tico? O anão abanou a cabeça, olhando com orgulho para Cyrino. --Mas é filho aqui da casa? perguntou este. --Nhôr-não; tem mãe à beira do rio Sucuriú daqui a 40 leguas, e envereda de lá para cá n'um instante, vindo a pousar pelas casas que todas o recebem com gosto, porque é bichinho que não faz mal a ninguem. Aqui fica duas, tres e mais semanas e depois dispara como um _matteiro_[55] para a casa da mãe. É uma especie de cachorro de _Nocencia_. Não é, Tico? Fez o mudo signal que sim e apontou com ar risonho para o lado da moça. Pereira, depois de todas aquellas explicações que o anão parecia ouvir com satisfacção, disse voltando-se para este, ou melhor abaixando-se em cima da sua cabeça: --Agora, meu filho, vae ao curral grande e apanha _para mim_[56] um _mãosada_[57] de folhas de laranjeira da terra ... daquelle pé grande que encosta na _tronqueira_. Mostrou o homunculo com expressivo gesto que entendera e saiu correndo. Ia Cyrino deixar o quarto, não sem ter olhado com demora para o lugar onde estava deitada a enferma, quando Pereira o chamou: --Ó doutor, _Nocencia_ quer beber uma pouca de agua... Fará mal? --Aqui não ha limões doces? indagou o moço. --É um nunca acabar ... e dos melhores. --Pois, então, faça sua filha chupar uns gomos. Pereira, depois de ter paternalmente arranjado e disposto os cobertores ao redor do corpo da menina, acompanhou Cyrino que, parado á porta de saida, estava mirando as primeiras estrellas da noite. --Vosmecê achou, doutor, perguntou o mineiro com voz um tanto tremula, algum perigo no que tem aquelle anjinho? --Não, absolutamente não, respondeu Cyrino. Verá o senhor que, daqui a tres dias, sua filha não tem mais nada. --Malditas febres!... Quando não derrubam um christão, o amofinam annos inteiros... Eu não quizera que minha filha ficasse esbranquiçada, nem feia... As moças quando não são bonitas, é que estão doentes... Ah! mas ia me esquecendo dos limões doces... Que cabeça!... Adeantou-se Pereira no terreiro e, pondo as mãos junto á bocca, chamou com voz forte: --Ó Tico! Prolongado grito respondeu-lhe a certa distancia. O mineiro pôz-se a assobiar com modulações á maneira dos indios. Houve uns momentos de silencio; depois veiu correndo o anão e, chegando-se para perto, mostrou por signaes que não ouvira bem o recado. --Uns limões doces, já!... _Nocencia_ está com sêde... Disparou o pequeno como uma setta, sumindo-se logo na densa escuridão que já se espessara entre as arvores do pomar. [Nota 48: Passaro de plumagem negra como indica a denominação indigena--guira una (passaro preto)--o seu canto é muito melodioso e os seus habitos eminentemente sociaes.] [Nota 49: Respondeu.] [Nota 50: Chama-se _lavrados_ na provincia de Matto-Grosso collares de contas de ouro e adornos de ouro e prata.] [Nota 51: Animal.] [Nota 52: Palmeira muito parecida com a carnaúba, si não for a mesma.] [Nota 53: Pedaço.] [Nota 54: Ridicularise.] [Nota 55: Veado do matto.] [Nota 56: Esse para mim é accrescimo obrigatorio em certas locuções do sertão.] [Nota 57: Mão grande, porção boa.] CAPITULO VII O NATURALISTA A minha philosophia toda resume-se em oppôr a paciencia ás mil e uma contrariedades de que a vida está inçada. HOFFMANN.--_O reflexo perdido._ Serena e quasi luminosa corria a noite. No puro campo do céu, scintillava com iriante brilho um semnumero de estrellas, projectando na larga fita da estrada do sertão, mysteriosa e dubia claridade. Pelo caminhar dos astros havia de ser quasi meia noite; e entretanto a essa hora morta, em que só vagueiam á busca de pasto os animaes bravios do deserto, vinham a passo lento, pelo caminho real, dois homens, um a pé, outro montado n'uma besta magra e já meio estafada. Mostrava o pedestre ser, como de feito era, um simples camarada, e vinha com grossa e comprida vara na mão tangendo deante de si lerdo e orelhudo burro, sobre cujo lombo se erguia elevada carga de canastras e malinhas, cobertas por um grande ligal. Quem estava montado e cavalgava todo encurvado sobre o sellim com as pernas muito estiradas e abertas, parecia entregue a profunda cogitação. Devia ser homem bastante alto e esguio e, como o observamos, apezar da hora adiantada da noite, com olhos de romancista, diremos desde já que tinha rosto redondo, juvenil, olhos gazeos, esbugalhados, nariz pequeno e arrebitado, barbas compridas, escorrido bigode e cabellos muito louros. O seu trajo era o commum em viagem: grandes botas, paletot de alpaca em extremo folgado, e chapéo do Chile desabado. Trazia entretanto, a tiracollo umas quatro ou cinco caixinhas de lunetas ou quaesquer outros instrumentos especiaes, e na mão segurava um páu fino e roliço, preso a uma saccóla de fina gaze côr de rosa. Homem de meia edade, de physionomia vulgar e balorda era o camarada e, pelos modos e impaciencia com que fustigava o animal de carga, indicava não estar afeito ao genero de vida que exercia. Em silencio e na ordem indicada, caminhava a tropinha: o burro carregado na frente, logo atraz o inhabil recoveiro; em seguida fechando a marcha, o viajante encarapitado na magra cavalgadura. Houve momento em que, depois de algumas pauladas de incitamento, pareceu querer o cargueiro protestar contra o tratamento que tão fóra de hora recebia e, fincando os pés na areia, resolutamente parou. Provocou a reluctancia, porém, uma chuva de verdadeiras cacetadas que echoaram longe e se confundiam com os brados e pragas do camarada. --Burro do diabo! berrava elle. Mil raios te partam, bicho damnado! Arrebenta de uma vez!... _Vá_ para os infernos! Entrega a carcassa aos urubús. Durante uns bons minutos, o cavalleiro, que fizera parar o seu animal, esperou pacientemente qualquer resultado: ou que a renitente azemola se désse afinal por convencida e avançasse ou então estourasse. --_Júque_, disse elle de repente com accento fortemente guttural e que denunciava a origem teutonica, se porretada chove assim no seu lombo, _vóce_ gosta? O homem a quem haviam dado o nome de Juca, voltou-se com arrebatamento: --Ora, _Mochú_, isto é um perverso sem vergonha, que deve morrer debaixo do páu. Esta vida não me serve!... --Mas, _Júque_, replicou o allemão com inalteravel calma, quem sabe se a cangalha não está ferindo a pobre creatura? --Qual! bradou o camarada, isto é manha só. Conheço este safado, este infamo, este... E, levantando o varapáu, descarregou tal paulada no trazeiro do animal que lhe fez soltar surdo gemido de dor. --_Júque_, observou o patrão em tom pausado, quem sabe se na frente ha páu cahido ou pedra, que não deixa elle ir para deante? --Pedra, _Mochú_, o páu na cabeça até rachal-a, é que precisa este ladrão... --Vê, _Júque_, insistiu o allemão. --Ora, _Mochú_... --Vê, sempre... Saiu resmungando o camarada de detrás do burrego e deu a volta. Na frente avistou logo o ramo quebrado que Pereira deixara cair no meio da estrada para desviar os acompanhadores de Cyrino. --Ué! Ué! exclamou com muita surpreza, aqui esteve alguem e pôz este signal para que não se passasse... --Eu não disse a _vóce_, replicou o cavalleiro com voz até certo ponto triumphante. Asno tem razão: para deante ha alguma cousa. --Mas na villa, contestou José, nos disseram que o caminho vae sempre direitinho sem _atrapalhação_ nenhuma... --Na villa disseram isso, confirmou o outro. --E então? --E então? repetiu o allemão. Houve uns segundos de silencio. Depois o cavalleiro accrescentou com a mesma imperturbavel serenidade, e como que achando explicação muitissimo natural: --Na villa muita gente não sabe caminho. É... --Mil milhões de diabos, interrompeu o camarada todo frenetico, levem o gosto de andar por esses mattos do inferno a horas tão perdidas! Eu bem disse a _Mochú_, ninguem viaja assim. Isto é uma calamidade... --_Júque_, atalhou por seu turno o patrão, o que é que adeanta estar a berrar como um damnado?... Olhe, antes, se por ahi _vóce_ não vê algum caminho do lado. Obedeceu o outro e sem difficuldade achou a entrada da picada que levava á morada de Pereira. --Está aqui, _Mochú_, está aqui! annunciou elle com alegria. É um trilho que corta a estrada e vae dar nalguma casa pertinho... Mudando repentinamente de tom, observou com voz tristonha; --Comtanto que até lá não haja alguma legua de beiço... --Ah! eu não lhe disse, respondeu o allemão. Agora toque burro devagarinho; elle anda que nem vento. Pareceu o animal comprehender o alcance moral da victoria que acabara de colher e prestes enveredou pela trilha com alento novo e até desusada celeridade. A razão é que tambem dahi a pouco sorvia elle, teimoso e marralheiro bicho como soem ser os da sua especie, a bella agua do ribeirão, em que se haviam refrescado as cavalgaduras de Cyrino e de Pereira. CAPITULO VIII OS HOSPEDES DA MEIA NOITE Sei, sim, sei que é noite! XAVIER DE MAISTRE.--_Viagem ao redor do meu quarto._ Não tardou muito que os dois nocturnos viajantes começassem a ouvir os latidos furiosos dos cães que no terreiro de Pereira denunciavam approximação de gente suspeita junto á casa entregue á sua vigilante guarda. --Por aqui perto fica algum rancho, _Mochú_, avisou o camarada; havemos emfim de descansar hoje... Mas, que gritaria faz a cachorrada!... São capazes de nos engulir antes que venha alguem saber se somos christãos ou não... Safa! Que canzoada!... Ó _Mochú_, o Sr. deve ir na frente ... rompendo a marcha... --_Vóce_, respondeu o allemão, bate nelles com cacete... --Nada, retrucou José com energia, isso não é do ajuste... Quem está montado, caminhe adiante... Ainda por cima agora essa! Depois de resmonear algum tempo, exclamou: --Ah! espero já me lembrei do uma coisa... O filho do velho é mitrado... E, dizendo esta palavra, de um só pulo montou na anca do cargueiro, que, ao sentir aquelle inesperado accrescimo de peso, parou por instantes e com surdo ronco procurou lavrar um protesto. --_Júque_, observou o allemão sem a menor alteração na voz, assim burro quebra cadeira. Depois morre ... o _vóce_ tem de levar as cargas delle ás costas... Quiz o camarada encetar nova discussão, mas a a esse tempo chegavam ao terreiro, onde o ataque furioso dos cães justificou a medida preventiva de José, o qual entrou, todo encolhido atraz das cargas, a gritar como um possesso: --Ó de casa! Eh! lá, gentes! Ó amigos! Augmentou a algazarra da cachorrada por tal modo, que os tropeiros de Cyrino, pousados no rancho proximo, acordaram e bradaram juntos: --Que diabo é isto? Temos matinada de lobishomens? --Abriu-se nesse momento a porta da casa e appareceu Cyrino na frente do Pereira, trazendo este uma vela que com a mão aberta amparava da briza nocturna. --Quem vem lá? clamaram os dois a um tempo. --Camarada o viajante, respondeu com voz forte e sympathica o allemão, achegando-se á luz e tratando de descer da cavalgadura. Quem é o dono desta casa? --Está aqui elle, respondeu Pereira levantando a vela acima da cabeça para dar mais claridade em torno de si. --Muito bem, replicou o recem-chegado. Desejo agasalho para mim e para o meu creado e peço muitas desculpas por chegar tão tarde. Aproximara-se tambem o José, cuidando logo, no meio de muchôchos e pragas, de pôr em terra a carga do burrinho, o qual amarrara pelo cabresto a uma vara fincada no chão. --Mas, observou Cyrino, que faz o Sr. por estas horas mortas a viajar?... --Deixe o homem entrar, atalhou Pereira, e acommodar-se com o que achar... Pois, meu senhor, _desapeie_. Bem vindo seja quem procura tecto que é meu. --Obrigado, obrigado, exclamou com effusão o estrangeiro. E, apresentando a larga mão, apertou com tal força as de Cyrino e Pereira que lhes fez estalar os dedos. Em seguida, penetrou na sala e tratou logo de arranjar os objectos que trazia a tiracollo, collocando-os cuidadosa e methodicamente em cima da mesa, no meio dos olhares de espanto trocados por quantos o estavam rodeando. Na verdade, digna de reparo era aquella figura á luz da bruxoleante vela de sebo; compridas pernas, corpo pequeno, braços muito longos e cabellos quasi brancos, de tão louros que eram. --Será algum bruxo? perguntou a meia voz Cyrino a Pereira. --Qual! respondeu o mineiro com sinceridade, um homem tão bonito, tão _bem limpo_[58]! Entrára José com uma canastra ao hombro e, descarregando-a no canto menos escuro do quarto, julgou dever, sem mais demora, declinar a qualidade e importancia da pessoa que lhe servia de amo. --O Sr. aqui é doutor, disse elle apontando para o allemão e dirigindo-se para Cyrino... --Doutor?! exclamou este com despeito. --Sim, mas doutor que não cura doenças. É _allamão_, lá da _estranja_, e vem desde a cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro caçando _anicetos_ e picando barboletas... --_Barboletas_? interrompeu com admiração Pereira. --_Acui cui_![59] Por todo o caminho vem apanhando bichinhos. Olhem ... aquelle sacco que elle traz... --O meu camarada, avisou com toda a tranquillidade e pausa o naturalista, é muito falador. Os senhores tenham paciencia... Ande, _Júque_, deixe de tagarellar!... --Não, protestou Pereira levado de curiosidade, é bom saber com quem se lida... Então o Sr. vem matando _anicetos_? Mas para que, Virgem Santissima!... --Para que? retrucou o camarada descansando as mãos na cintura. O patrão e eu já temos mandado mais de dez caixões todos cheinhos lá para as terras delle... --Depois o paiz fica sem borboletas, respondeu Cyrino num assomo de despeitado patriotismo. --Mas, como é que o Sr. se chama? perguntou Pereira, voltando-se para o allemão que estava virado para a parede a contemplar um desses grandes e sombrios lepidopteros, da especie dos esphinges. --_Júque_, disse elle sem lhe importar a interpellação e acenando para o camarada, depressa ... um alfinete, dos grandes ... dos maiores... --Temos historia, avisou José, fazendo expressivo signal a Cyrino, o Sr. vae ver... O naturalista, de posse de um comprido aculeo, fincou-o com segura e adestrada mão bem no meio do insecto, o qual começou a bater convulsamente as azas e girar em torno do centro a que estava preso. --A pita! A pita! exclamou o patrão. Vamos, _Júque_. --Satisfez José o pedido, depois de abrir uma malinha, onde já estavam enfileirados e espetados vinte ou trinta bonitos bichinhos. --É uma _saturnia_ ... e não commum, murmurou o allemão fisgando num pedaço de pita o novo especimen, sobre o qual derramou algumas gottas de chloroformio, de um vidrinho que sacou dum dos muitos bolsos da sobrecasaca. --O Sr. é viajante zoologista, não é? perguntou Cyrino, depois que viu terminada a operação. O interrogado levantou a cabeça com surpresa e respondeu todo risonho: --Sim, senhor; sim, senhor! Como é que o Sr. o soube? Viajante naturalista, sim, senhor! Eu vejo que o Sr. é muito instruido... Muito bem, muito bem! Muita instrucção! E, abrindo uma carteira de notas, escreveu logo umas linhas tortuosas. --Ah! este tambem é doutor, disse Pereira com certo orgulho por hospedar em sua casa sabichão de tal quilate. --Oh! doutor? doutor!? Muito bem, muito bem. Doutor que _curra_? --Sim, senhor, respondeu com gravidade o proprio Cyrino. --Ah! ... ah! muito bem. Pereira, porém voltara à carga. --Mas, como é que o Sr. se chama? --Meyer, respondeu o allemão, para o servir. --Maia?[60] perguntou o mineiro. --Não, senhor, Meyer; sou da Saxonia, da Allemanha. --Isto deve ser o mesmo que Maia na terra delle, observou Pereira, abaixando um pouco a voz. O camarada José, no entretanto, trouxera para dentro todas as malas e canastras e sem cerimonia alguma intrometteu-se na conversação. --Este _Mochú_, disse, vem de muito longe só por causa destas historias de _barboletas_, e com o negocio ganha _côco_ grosso... Quanto a mim... --_Júque_, atalhou Meyer com fleuma, vai bota os animaes no pasto. --Não, disse Pereira, solte-os no terreiro até raiar o dia; roerão o que acharem; ha por ahi muito resto de milho nos sabugos... --Pois é o que fiz, declarou o camarada; mas como lhes dizia, sou carioca do Rio de Janeiro, chamo-me José Pinho e venho de bem longe acompanhando este _allamão_, que é um homem muito de bem. --É verdade? indagou Pereira, olhando para Meyer. Este esbugalhou mais os olhos e confirmou tudo com um sim guttural que echoou em toda a sala. --Elle o que tem, continuou José é que é muito teimoso. Eu lhe digo sempre: _Mochú_, isto de viajar de noite é uma tolice e uma canseira á tôa... Qual! pensa lá no seu bestunto que assim é melhor. Tambem a gente anda por estas estradas fóra como se fosse alma do outro mundo a penar ... algum currupira ... ou boitatá... Cruzes! --Pois, Sr. _Maia_, disse Pereira, tome posse desta sala, e faça de conta que é sua... Se quizer uma rede... --Muito obrigado, muito obrigado! ... minha cama é canastra. Não se incommode... --Amanhã então conversaremos, concluiu Pereira esfregando as mãos de contente. Promettia-lhe na verdade a companhia boas occasiões de dar largas á volubilidade, sobretudo com o tal José Pinho, filho da Côrte do Rio de Janeiro e, pelo que parecia, tagarella de grande força. --Assim, pois, disse Pereira, durmam bem o restante da noite. E abriu a porta para se retirar. --Ui! exclamou elle olhando para o céu. Doutor, já passa muito da meia noite... Com a bréca, o Cruzeiro está virando de uma vez... Cyrino, que tornara a deitar-se com presteza calçou as botas e tomou uns papeisinhos que de antemão preparara e puzera a um canto da mesa. --Não faz mal, disse, já estou com tudo prompto e em tempo havemos de dar o remedio. Vá o Sr. deitar um pouco de café num pires e acorde sua filha, caso esteja dormindo, como é muito natural depois do suador. Saiu então Pereira, levando a vela e, acompanhado de Cyrino, deu volta á casa para buscar a entrada dos aposentos interiores. Ficaram pois o allemão e seu criado em completa escuridão; ambos, porém, já estirados a fio comprido, um em cima das canastras, tendo por travesseiro roliça maleta, outro sobre o ligal aberto e estendido no meio do aposento. --Ó _Mochú_, perguntou José, que mastigava qualquer coisa, está já ferrado? --Ferrado? replicou Meyer levantando a cabeça. Que é isto agora? --Pergunto se já pegou no somno? --Pois, _Júque_, se eu falo, como é que posso estar dormindo? --Então não quer petiscar? --Comer, não é? --Está visto. --Oh! se tivesse!... Pensava agora nisso... --Pois eu estou _manducando_ ... Quer um bocadinho? --Que é que _vóce_ me dá? --Rapadura com farinha de milho... Está deveras de patente!... Gostoso como tudo... --Então, _Júque_, passe-me um pouco. Levantou-se o offertante com toda a boa vontade e ás apalpadelas começou a procurar a cama do patrão, o que só conseguiu depois de ter esbarrado na mesa e numas cangalhas velhas atiradas a um canto da sala. Afinal agarrou num dos pés do naturalista, a quem entregou uma nesga de rapadura e uns restos de farinha embrulhados em papel, pitança, mais que sóbria, que foi devorada com satisfacção pelo bom do Saxonio. [Nota 58: Bem vestido.] [Nota 59: Affirmação usada pelo povo, correspondente a sim.] [Nota 60: O diphtongo ei, pronunciando-se em allemão ai, muito natural é a pergunta de Pereira e as confusões que amiudadas vezes faz com esse nome.] CAPITULO IX O MEDICAMENTO Não tendes que labutar com doente muito grave, e eis o serviço que de vós espero... HOFFMANN.--_A porta entaipada._ Quem me poderá dizer porque me parece tão duro o leito?... Porque passei esta noite, que se me figurou tão longa, sem gozar um momento de socego?... Surge a verdade: em meu seio, penetraram as agudas settas do amor. OVIDIO.--_Elegia II._ Quando Cyrino entrou no quarto de Innocencia, já estava ella acordada. Sentara-se o pae á cabeceira da cama, a cujos pés se acocorara Tico o anão, sobre uma grande pelle de onça. --Então, perguntou o medico tomando o pulso á mimosa doente, como se sente? --Melhor respondeu ella. --Suou bastante? --Ensopei tres camisas. --Muito bem... Agora a senhora está com a pelle fresquinha que mette gosto. Isto de sezões, não é nada, se a gente acode a tempo e o sangue não tem maus humores. Mas quando tomam conta do corpo, nem o demo com ellas pode. Que é do café? pediu elle em seguida a Pereira. --Já vem já... Homem vou eu mesmo buscal-o, lá á cosinha. A Maria Conga está ficando uma verdadeira lesma. Venha para aqui e espere-me um _nadinha_. Levantando-se então da cadeira, indicou-a a Cyrino, a quem fez sentar antes de sahir. Ficou este, pois, ao lado da menina e, como sobre o lindo rosto batesse de chapa a luz collocada numa prateleira da parede, pôz-se a contemplal-a com enleio e vagar, ao passo que da sua parte o anão lhe deitava olhares inquietos e algo sombrios. Pousara Innocencia a cabeça no travesseiro e, para occultar a perturbação de se ver tão de perto observada, fingia dormir. Pelo menos tinha as grandes palpebras cerradas e o rosto sereno; mas arfava-lhe apressado o peito e, de vez em quando, fugaz rubor lhe tingia as faces descoradas. Pereira tardava; e Cyrino com os olhos fixos, a physionomia meditativa e um pouco de pallidez, que denunciava a intima commoção, não se fartava de admirar a belleza da gentil doente. Uma vez, entreabriu os olhos e a medo atirou um olhar que se cruzou com o do mancebo, olhar rapido, instantaneo, mas que lhe repercutiu direito ao coração e lhe fez estremecer o corpo todo. Sem saber porque, batia-lhe o queixo, e um arrepio de frio lhe circulava nas veias. --Sente mais febre? perguntou Cyrino muito baixinho. --Não sei, foi a resposta, e resposta demorada. --Deixe-me ver o seu pulso. E tomando-lhe a mão, apertou-a com ardor entre as suas, retendo-a, apezar dos ligeiros esforços que para a retrahir, empregou ella por vezes. Nisto, entrou Pereira. Innocencia fechou com presteza os olhos e Cyrino voltou-se rapidamente, levando um dedo aos labios para recommendar silencio. --Está dormindo, avisou com voz sumida. --Ora, disse Pereira no mesmo tom, a tal Maria Conga deixou entornar a cafeteira, de _maneiras_ que precisei fazer outra porção. Demorei muito? --Não, respondeu Cyrino com toda a sinceridade. --Mas agora, observou Pereira, é mister acordar a pequerrucha. --Não ha outro remedio. Chegou-se o pae á cama e, com todo o carinho, chamou: _Nocencia_! _Nocencia_! E como não a visse despertar logo, sacudio-a com brandura até que ella abrisse uns olhos espantados. --Apre! Que somno! disse o bondoso velho. Num instante que fui lá dentro?!... Vamos, são horas de tomar a mézinha. Deitara Cyrino sulfato de quinina no café e diluia-o vagarosamente. --Olhe, dona, aconselhou elle, beba de um só trago e chupe, logo depois, uns gomos de limão doce. --Então é muito mau? choramigou a doente. --É amargo; mas num gole mecê toma isto. --Papae, recalcitrou a moça, não quero ... eu não quero. --Ora, filhinha do meu coração, não se _canhe_[61]; é preciso... Amanhã ha-de você sentir-se boa; não é doutor? --Com certeza, se tomar esta poção, assegurou Cyrino. --Depois, quando eu ir lá á villa, hei-de trazer para você uma cousa bonita ... uns _lavrados_[62]. Ouviu? --Nhôr-sim. --Ande, Tico, accrescentou o mineiro voltando-se para o anão, vae depressa buscar limão doce; na cosinha ha um meio _cascado_[63]. --Tome, dona, implorou por seu turno Cyrino, approximando o pires da boca da formosa medicanda. Levantou uns olhos supplices e, agarrando resolutamente o remedio, bebeu-o todo de um jacto. Depois deu um suspiro de enjôo e ficou com os labios entreabertos, á espera que o adocicado sumo do limão lhe tirasse o amargor do medicamento. --Então, exclamou Pereira, era maior o medo que a cousa em si! Você tome a dose numa _relancina_. --Amanhã de manhã, ou melhor hoje de madrugada, temos que engolir outra dose, declarou Cyrino. Depois, a dona, poderá levantar-se. --Ainda outra? protestou Innocencia com gesto de amúo. --Nhã, sim; é de toda a percisão, replicou o amoroso medico modificando pela suavidade da voz a dureza das prescripções. --De certo, corroborou tambem Pereira. --Depois deve mecê deixar de comer carne fresca, hervas, ovos ou farinha de milho por um mez inteiro, e de provar leite por muito tempo. Hade sustentar-se só de carne de sol bem secca, com arroz quasi sem sal e por cima tomará café com muito pouco _doce_[64]. --Fica ao meu cuidado, asseverou Pereira, olhar para o _rejume_[65]. --Agora, durma bem e não se assuste de lhe apparecer zoeira nos ouvidos e até de se sentir mouca Isto é da mézinha; pelo contrario é muito bom signal. --Estes doutores sabem tudo, murmurou Pereira dando ligeiro estalo com a lingua. Não se descuidou Cyrino, antes de se retirar, de novamente tomar o pulso e, á conta de procurar a arteria, assentou toda a mão no punho da donzella, envolvendo-lhe o braço e apertando-o docemente. Saiu-se mal de tudo isso: porque se tratava da cura de alguem, para si arranjava enfermidade e bem grave. Com effeito, de volta á sala dos hospedes, não poude mais conciliar o somno e, sem que houvesse conseguido fruir um só momento de descanço, viu raiar a aurora. Parecia-lhe que o peito ardia todo em chammas a subirem-lhe ás faces, abrazando-lhe o pensamento. Aquelle venusto rosto que contemplára a sós; aquelles formosos olhos, cujo brilho a furto percebera, aquelle collo alabastrino que a medo se descobrira, aquellas indecisas curvas de um corpo adoravel, todo aquelle conjuncto harmonioso e encantador que vira á luz de frouxa vela, fatalmente o lançavam nesse pelago semeado de tormentos que se chama paixão! Effeitos de tão temivel mal já ia o misero sentindo. Inquieto se revolvia (facto virgem!) no duro leito, ao passo que a respiração isochronica e ruidosa do companheiro de hospedagem, o allemão Meyer, respondia ao sonoro resonar do garrulo José Pinho. [Nota 61: Acanhar-se, amofinar-se.] [Nota 62: Contas de ouro.] [Nota 63: Em toda a provincia de Matto-Grosso e em geral no interior diz-se cascar por descascar. Dizem até cascar um boi por esfolal-o, tirar-lhe o couro.] [Nota 64: Assucar.] [Nota 65: Corruptela de regimen.] CAPITULO X A CARTA DE RECOMMENDAÇÃO Aquelle bom velho, cuja benevola hospitalidade não tinha limites, julgara do seu dever tratar do melhor modo possivel a Waverley, fosse elle o ultimo camponez saxonio... Mas o titulo de amigo de Fergus fel-o considerar como precioso deposito, merecedor de toda a sua solicitude e da mais attenta obsequiosidade. WALTER SCOTT.--_Waverley._ Quando Meyer abriu os olhos, já achou Cyrino de pé, arranjando uma canastrinha. --Oh! exclamou elle em tom de louvor, o Sr. madruga muito. --É verdade, replicou o outro, um tanto melancolico. --E _Júque_ ainda dorme!... Este _Júque_ parece mais um tatú do que um homem... Todo o dia o estou acordando... E juntando o feito ao dito, foi o pachorrento amo sacudir a criado. Depois de se espreguiçar á vontade, sentou-se este no couro em que dormira, e pôz-se a esfregar com todo o vagar os olhos papudos ainda cheios de somno. --Deus esteja com vossuncês, disse elle entre dois bocejos. Ora, _Mochú_, o Sr. acordou-me no melhor do somno. Estava sonhando que voltára para o Rio de Janeiro e ia acompanhando uma musica pelo largo do Rocio a fóra. Conhece o largo do Rocio? perguntou a Cyrino. --Não, respondeu-lhe este. --Chi! Que largo! Hen, _Mochú_? E novo bocejo cortou-lhe a descripção da louvada praça. --_Júque_, exclamou Meyer coçando a barba com ar alegre, o dia hoje está claro e bonito. Havemos de apanhar pelo menos umas doze borboletas novas. --E quanto me dá _Mochú_, se eu agarro vinte e cinco? --Vinte e cinco? repetiu o allemão com alguma duvida. --Sim, vinte e cinco ... e até mais, vinte e seis. Diga, quanto me dá? --Oh! eu dou a _vóce_ dois mil réis. --Está dito, fecho o negocio. Eu cá sou assim pão pão, queijo queijo; tão certo como chamar-me José Pinho, seu criado, carioca de nascimento e baptisado na freguezia da Lagoa, lá para as bandas do _Brocó_, e... --Agora, interrompeu Meyer; vá buscar agua para lavar a cara, e tire sabão e pente na canastra. --Olhe, Sr. doutor, continuou o camarada sentado sempre e voltando-se para o lado de Cyrino, esta minha vida é levada de seiscentos mil diabos. Nós saimos do Rio já ha mais de dois annos; não é, _Mochú_? --Vinte e tres mezes, rectificou Meyer. --Pois bem; desde esse tempo estamos a viajar como se fosse penitencia de confissão. E não é só isso, não, senhor. Todos os dias ando pelo menos nove leguas correndo aqui e acolá, dando voltas, caindo, atraz dos bichos voadores... --_Júque_! tentou atalhar Meyer, olhe... --Pois é o que lhe digo, proseguiu José Pinho. Tenho hoje uma raiva daquellas porcarias todas... Nem sei porque, Nosso Senhor Jesus Christo foi crear esta sucia de creaturas sem prestimo... Emfim. Elle é quem sabe... Quanto a mim, se pudesse, atacava fogo em todas as lagartas, porque da lagarta é que nascem esses _anicetos_, que estão enchendo mundos... Mas, veja, Sr. doutor, lá na terra deste homem,--(coitado, é bem bomzinho e me estima muito!)--valem esses bichos mais do que ouro em pó... Tambem, se o _Mochú_ não gostasse de mim, _havéra_ de ser muito ingrato... Outro como eu, não encontra mais, não senhor... Tenha a santa paciencia ... não, senhor, isto é o que lhe posso afiançar. No meio desse fluxo de palavras, Meyer fora em pessoa procurar na canastra o pente e o sabão. Mostrando os objectos ao fallador, ordenou com energia: --Cale a boca, _Júque_, cale a boca, tagarella! Vá buscar agua já; senão ... não levo _vóce_ ao matto hoje. Levantou-se de prompto José Pinho e meio a resmungar saiu, tomando uma das canastras. --Esse camarada, disse Meyer depois de algum silencio e para explicar o seu procedimento, é uma pessoa muito boa ... fiel e intelligente. Mas ... fala demais. É-me precioso, porque apanha borboletas com muito talento e geito. Entrando José Pinho e ouvindo o final do elogio, depoz com ar de grave importancia a bacia no chão. Deante della, e depois de tirar do nariz os oculos collocou-se logo Meyer, ou antes acocorou-se e em relação ao tronco, tão compridas eram as suas pernas que, inclinado por sobre a agua, lhe ficava a cabeça a altura dos joelhos. Levou a ablução uns largos minutos e foi com os cabellos grudados ao casco e escorrendo agua que elle se levantou, justamente quando entrava Pereira. Nesse momento, assumira o typo daquelle homem proporções do mais pasmoso grotesco; entretanto, tão vária é a apreciação de cada um, tão caprichoso é o julgamento individual, que o mineiro, acercando-se de Cyrino, disse baixinho: --Vosmecê já reparou, amigo, como este _estranja_ é figura bonita? _Tão arvo_! E que olhos que tem!... As mulheres hão-de perder a cachola por causa deste bicharrão... Então, Sr. Maia, continuou interpellando em voz alta o seu especimen de belleza masculina, que tal passou aqui a noite? --Oh! Sr. Pereira!... Desculpe, se o não vi... Estava sem oculos... Já lhe respondo ... espere um bocadinho. E ainda todo molhado, correu a tomar os oculos, que assentou em cima dos salientes luzios. --Agora, muito bem... Dormi, meu bom amigo, como quem não tem peccados... --Então, observou Cyrino, quasi mau grado seu, tenho-os eu; porque, da meia noite para cá, não pude mais pregar olho... --Isto é volta de algum namoro, replicou Pereira batendo-lhe com força no hombro e rindo-se. Cyrino descorou ligeiramente. --Sim, vosmecê é moço ... deixou lá por Minas algum _rabicho_, e de vez emquando o coração lhe comicha... Está na idade... --Pode muito bem ser, apoiou Meyer com gravidade. --Não é? insistiu Pereira, Ora, confesse ... não lhe fica mal... Isso é volta de enguiço... --Juro-lhes, balbuciou Cyrino. --Oh! se é, confirmou José Pinho que julgou dever metter o bedelho na conversa, eu no Rio de Janeiro... Negocio de saias, é de pôr um homem tonto. Não lhes conto nada, mas uma vez... Voltou-se o allemão para elle com calma, e, interrompendo-o: --_Júque_, va ver onde estão burrinhos e não bote sua colher, quando gente branca está falando com o seu patrão. E, como o camarada quizesse retorquir: --Ande, ande, verberou sempre sereno, discussão nunca serviu para nada. Deu José meia duzia de muchochos abafados e foi embora, praguejando entre dentes. Novamente suppoz Meyer dever desculpal-o. --Bom homem, disse, bom homem ... porem fala terrivelmente! --Mas agora me conte, perguntou Pereira com ar de quem queria certificar-se de cousa posta muito em duvida, deveras o senhor anda _palmeando_ estes sertões para fisgar _anicetos_? --Pois não, respondeu Meyer com algum enthusiasmo, na minha terra valem muito dinheiro para estudos, musêos e collecções. Estou viajando por conta de meu governo, e já mandei bastantes caixas todas cheias... É muito precioso! --Ora, vejam só, exclamou Pereira. Quem _havéra_ de dizer que até com isso se póde _bichar_! Cruz! Um homem destes, um doutor, andar correndo atraz de vagalumes e voadores do matto, como menino ás voltas com cigarras! Muito se aprende neste mundo! E quer o senhor saber uma coisa? Si eu não tivesse familia, era capaz de ir com vosmecê por esses fundões _afóra_, por que sempre gostei de lidar com pessoas de qualidade e instrucção... Eu sou assim... Quem me conhece, bem sabe... Homem de repentes... Vem-me cá uma idéa muito estrambotica ás vezes, mas embirro e acabou-se; porque, se ha alguem esturrado e teimoso, é este seu criado... Quando empaco, empaco de uma boa vez... Fosse no tempo de solteiro, e eu me botava com o senhor a catar toda essa bicharada dos sertões. Era capaz de ir dar com os ossos lá na sua terra... Não me olhe pasmado, não... Isso lá eu era... Nem que tivesse de passar canseiras como ninguem... O caso era metter-se-me a tenção nos cascos... Dito e feito; acabou-se... Fossem buscar o remedio onde quizessem ... mas duvido que o achassem. --Como vae a doente? perguntou distrahidamente Cyrino cortando aquella catadupa de palavras. --Ora estou muito contente. Já tomou nova dose, e parece quasi boa. Está com outra feição. O senhor fez um milagre... --Abaixo de Deus e da Virgem purissima, concordou Cyrino com toda a modestia. --O sr. não cura? perguntou Pereira a Meyer. --_Nô_ senhor. Sou doutor em philosophia pela universidade de Iena, onde... --Isso é nome de bicho? atalhou o mineiro. --_Nô_ senhor. É uma cidade. --Ninguem diria... Pois, Snr. Maia, continuou Pereira apontando para Cyrino, alli está um com quem molestias não brincam. --Ah! rouquejou o allemão abrindo ainda mais os olhos. Estimo muito conhecel-o como notabilidade... Nestes lugares aqui é muito raro... --Se é! exclamou Pereira. Felizmente passou por cá nem de proposito, para pôr de pé a menina ... uma filha minha... Cahiu-me a talho de fouce e... Não pôde Cyrino furtar-se a um movimento de vangloria. Com ar grave interrompeu: --Não falle nisso, Sr. Pereira; o caso era simples. Febre das enchentes ... não vale quasi nada. Vi logo o que era de urgencia: um simples suador, duas ou tres doses de sulfato de quinina ... e ficou tudo sanado... É simplicissimo... O estomago não estava sujo ... não havia necessidade de vomitorio... Ouvira Meyer estas indicações therapeuticas com os olhos muito fitos em quem as dava: depois, voltando-se para Pereira disse com um approbatorio aceno de cabeça: --_Pom_ medico! _pom_ medico! Desse momento em deante, votou Cyrino ao allemão a mais decidida symphatia; e Pereira, presenciando o congraçamento daquelles dois homens, de si para si illustres e incontestaveis sabichões, sentiu-se feliz por abrigal-os a um tempo em sua humilde vivenda. --Então, disse o mineiro voltando á questão das borboletas, com o que o seu governo paga-lhe bem, não Sr. _Maia_? --Sufficientemente ... demais, todas as autoridades deste bello paiz muito me ajudam. Tenho muitos officios ... cartas de recommendação... Olhe, quer ver? _Juque_, _Juque_! chamou Meyer sem reparar que o criado ha muito se fora do quarto, dê-me... É verdade, foi levar os burrinhos á agua... Não faz mal... Mostro-lhe já tudo... E, procurando entre as cargas uma malinha coberta de panno impermeavel, abriu-a e tirou um masso de cartas cuidadosamente numeradas com fitas de diversas côres. --Isto é para Miranda, em Matto Grosso. Isto para Coxim, Cuyabá ... para Poconé, Diamantino ... isto são cartas cujos donos não encontrei, e que hão de voltar para as pessoas que as escreveram. --E são muitas? perguntou Pereira. --Tres ou quatro. Vejamos ... uma é para o Sr. João Manuel Quaresma, no Pitanguy; esta, para o Sr. Martinho dos Santos _Perreira_, em Piumhy... --Que é? perguntou o mineiro levantando-se de um pulo e mostrando muita admiração. Leia outra vez ... leia por favor... Meyer obedeceu. --Mas este nome é o meu! exclamou Pereira. Esta carta então é para mim... --Hu, hu! gaguejou o allemão boquiaberto. É muito _currioso_ isto! --Sou eu, sou eu mesmo! continuou o mineiro abrindo os diques á volubilidade. Está claro, clarissimo!... Quando me escreveram, pensavam que eu ainda morava lá em Piumhy. Pois, se nunca contei a ninguem em que _buraqueira_ me vim metter... Abra a carta sem susto... Oh! Senhora Sant'Anna, que dia hoje! Quem diria? Uma carta! Uma carta nestas alturas! Póde ler, Sr. _Maia_... Estou doido por saber quem se deu ao trabalho de me escrever... Martinho dos Santos Pereira, de Piumhy ... sou eu! Que duvida: não ha dois. Veja só o nome ... pelo amor de Deus, o nome de quem me _direge_ a carta. Rompeu o allemão com alguma duvida e escrupulo o selo; correndo com os olhos a lauda escripta, procurou a assignatura e pausadamente leu «Francisco dos Santos Pereira». --Gentes! bradou o mineiro no auge da alegria, meu irmão ... o Chiquinho!... E eu que o fazia morto e enterrado!... Nosso Senhor o conserve por muitos annos!... O Chiquinho!... Já se viu coisa _ansim_?... Como se anda neste mundo, hem, Sr. Cyrino? Quem _havéra_ de dizer que este homem, que aqui chegou hontem por acaso e alta noite, havia de trazer na canastra uma carta de um irmão que não vejo ha mais de quarenta annos?!... Ora esta!... São voltas deste mundo... As pedras se encontram... Foi em 1819 ... não, em 20... Mas ... depressa leia a carta ... vamos ver o que me diz o Chiquinho... Da familia passava por ser o de mais juizo tambem era o mais velho de todos nós... O Roberto o caçula... Seja o senhor muito bemvindo nesta casa... Depois de tantos annos, trazer-me noticias da minha gente! Cortou Meyer aquelle movimento de effusão que promettia ir longe, começando a ler com todo o vagar ou, melhor, a soletrar a carta, cujos garranchos, que não letras, por vezes se viu obrigado a encostar aos olhos para poder decifrar. «Martinho, dizia a despretenciosa epistola, dirijo-te estas mal traçadas linhas só para saber da tua saude e dizer que o portador desta é um senhor de muita leitura e vae para os sertões _brutos_, viajando e estudando paizes e povos. Veio-me do Rio de Janeiro muito recommendado. Peço que o agasalhes, não como a um _transuente_ qualquer, mas como se fosse eu em pessoa, teu irmão mais velho e chefe da nossa familia...» --Pobre mano! exclamou Pereira meio choroso. «É homem, continuou Meyer, de bastante criação. Adeus Martinho. Eu estou estabelecido na Matta do Rio, numa fazendola. Tenho cinco filhos, tres machos e duas _familias_[66], estas casadas, e que me deram netos; já faz bastante tempo. Não estou muito quebrado de forças. Ha mais de oito annos que não tenho noticias tuas. Soube que o Roberto tinha morrido no _Paranan_...» --Roberto?!... Coitado do Roberto! atalhou Pereira com voz angustiosa. E repentinamente, representando-lhe a memoria os tempos da infancia, arrasaram-se-lhe os olhos de lagrimas. «Sem mais _aquella_, concluiu Meyer, adeus. Felicidade e saude. Teu irmão, Francisco dos Santos Pereira». --Deveras, disse o mineiro depois de breve silencio adeantando-se para o allemão e apresentando-lhe a dextra aberta, o Sr. me deu um fartão de alegria. Toque nesta mão e, quando ella se levantar para bulir num só cabello de sua cabeça ou de alguem da sua familia, qualquer que seja o aggravo que me possam fazer, seja ella logo cortada por Deus, que nos está ouvindo. --Obrigado, Sr. Pereira, respondeu com animação o outro, retribuindo o aperto de mão e corroborando-o com um concerto de garganta. --Sim, senhor, continuou o mineiro. Esta carta vale, para mim, mais que uma letra do Imperador que governa o Brazil. É o que lhe digo, Sr. _Maia_... --Meyer, corrigiu o allemão apoiando com força na ultima syllaba, Meyer. --Ah! é verdade. É preciso traduzir Meyer, Meyer. Agora já atinei com a cousa. Mais como ia lhe dizendo, esta casa é sua. Meu irmão, o meu irmão mais velho deu-me ordem que eu o recebesse como se fosse elle mesmo em pessoa, o Chico; ... acabou-se. O Sr. é como se fosse dos meus. Não ha que ver, é o que elle quer. Entendi logo; o mais é ser muito bronco e, com o favor de Deus, não me tenho nesta conta. O Sr. ponha e disponha de mim, da minha tulha, das minhas terras, meus escravos, gado ... tudo o que aqui achar. Parta e reparta... Quem está falando aqui, não é mais dono de coisa nenhuma; ... é o Sr.... Meu irmão me escreveu, é escusado pensar que não sei respeitar a vontade de meus superiores e parentes. É como se recebesse uma ordem do punho do Sr. D. Pedro II, filho de D. Pedro I, que pinchou os _emboabas_[67] para fora desta terra do Brazil e levantou o Imperio nos campos do Ypiranga, lá para os lados de S. Paulo de Piratininga, onde houve em seu tempo collegio de padres e fradaria _grossa_[68], e d'onde os _mamalucos_ sahiam para ir por esses mundos fóra bater indios _brabos_ e caçar onças, botando bandeiras até na costa do Paraguay e no salto do Paraná, tanto assim que deram nas reducções[69] e trouxeram de lá uma _immundicie_[70] de gente amarrada, por signal que muitos amolaram a canella em caminho, e só chegaram uns cento e tantos, tão magros que... Enfiava Pereira todas estas phrases com suprehendedora rapidez, ao passo que Meyer o contemplava extatico, á espera que a torrente de palavras lhe desse tempo e occasião de exprimir algum vocabulo de agradecimento. Só, porem, minutos depois, e a custo é que elle pronunciou um aspero e retumbante. --Obrigado! E accrescentou em seguida: --Mas o senhor falla que nem cachoeira. E não cansa? --Qual! replicou o mineiro com ufania. A gente da minha terra é de seu natural calada; eu, não; mesmo porque fui criado em povoados de muita civilidade... Tomando esse novo thema, começou novamente a discorrer, mostrando visivel contentamento por achar na estimavel pessoa do Sr. Guilherme Tembel Meyer um ouvinte de força, incapaz de pestanejar e cuja fixidez de olhos era prova evidente de que tomava interesse por todos os assumptos possiveis de conversação. [Nota 66: Filha.] [Nota 67: Portuguezes.] [Nota 68: Em qualidade.] [Nota 69: _Reducções_ era o nome que tinham as aldeias, formadas pelos padres Jesuitas no Paraguay. Pelo anno de 1630 subiam a 20 com 70,000 habitantes.] [Nota 70: Grande quantidade. Montoya, no seu livro--Conquista Espiritual--conta que 140 _castelhanos_ do Brazil com 1,500 tupys, todos muito bem armados com escopetas, e em boa ordem militar, entraram pela povoações e levaram 7,000 prisioneiros, numero evidentemente exagerado.] CAPITULO XI O ALMOÇO Comam e bebam; nada de cerimonias commigo. Minha casa é franca; eu tambem. Façam provisão de alegria e de mim disponham sem constrangimento. PLAUTO.--_Miles Gloriosus._ Levantou-se de repente Cyrino da marqueza em que se sentara. --Tenho vontade de amanhã seguir viagem... --Que, doutor? protestou Pereira, Partir já? isso nunca... Vosmecê ainda não curou de todo minha filha. Pago-lhe todos os prejuizos da sua estada aqui ... se fôr preciso. --Oh! Sr. Pereira, reclamou por seu turno o joven, isso quasi me offende... --Desculpe-me, e muito: mas, antes de duas semanas, não o deixo sahir daqui... --Porem... --Doentes não lhe hão de faltar. A minha rancharia vae ser visitada como se fosse casa de presepe, e o senhor não poderá dar _vasão_ aos que o vierem procurar. Olhe, hoje mesmo mandei avisar o Coelho, e daqui a pouco está elle cá, rente como pão quente. Atraz do primeiro, virá uma chusma dos meus peccados... Então quer deixar _Nocencia_ como ainda está?... --Verdade é, balbuciou Cyrino. --Pois então? Nem pensar nisso é bom. Deixe tudo por minha conta; vosmecê hade aqui arranjar os seus negocios. --Já que o senhor o diz... Eu tinha receio de vexal-o. Uma vez que até cá venham doentes... --Hão de vir, esteja socegado... --Ficarei, decidiu Cyrino, quanto tempo for do seu agrado. --Ora, muito que bem, exclamou Pereira esfregando as mãos com sincera satisfacção, estou como quero. Quanto ao Sr. _Maia_ ... Meyer, quero dizer, este ha-de crear raizes nesta casa... --Isso tambem não: tenho tempo marcado pelo meu governo... --Bem, bem; mas em todo o caso, fará uma boa temporada comnosco. É pena que o Manecão não chegue, porque apressavamos o casorio, e arranjavamos uma festança como nunca se viu nestes matarrões... Mas estou aqui a dar com a lingua nos dentes, sem pensar que os nossos estomagos ainda esperam sua _matula_[71]. O almoço não pode tardar; é um pulo só... Se consentem vou ver lá dentro. Ao dizer estas palavras saiu da sala voltando pouco depois acompanhado de Maria, a velha escrava que trazia a toalha da mesa e a competente cuia de farinha. --Á mesa! gritou Pereira. Almoço hoje com vosmecês. Sr. Meyer o senhor comerá d'ora em deante commigo e com a menina, lá no interior da casa; ouviu? E, voltou-se para Cyrino. --Bem sabe, explicou logo, é como se fosse o Chiquinho. Depois de prompta a mesa, sentaram-se os tres alegremente. --Olhe, Sr. Meyer, disse o mineiro servindo o allemão, isto é feijão-cavallo e do melhor. Misture-o com arroz e hervas; deite-lhe uns salpicos de farinha... Começou o naturalista a mastigar com a lentidão de um animal ruminante, interrompendo de vez em quando o moroso exercicio para exclamar: [Ilustração: Delicioso com effeito! Muito delicioso.] --Delicioso, com effeito! Muito delicioso. Comia Cyrino pouco e em silencio. --Na Allemanha, observou Meyer contemplando um grão de feijão, a maior fava não chega a este tamanho. Aqui a fava de lá teria pollegada e meia pelo menos. Um almoço, assim, havia de custar na Saxonia dois thalers, ou pelo cambio que deixei no Rio de Janeiro, dois mil e quinhentos réis... Interrompeu-o Pereira com gesto comico. --Dois mil e quinhentos? Ora, que terra essa! Como é que se chama? --Sac-sonia, respondeu o allemão com gravidade. --Saco-sonha! exclamou Pereira. Não conheço... Mas, então, lá muita gente ha-de andar a morrer de fome... --Pelos ultimos calculos, replicou Meyer com várias pausas durante as quaes introduzia enormes colheradas da mistura que lhe aconselhara o amphytrião, é sabido que em Londres morrem no inverno oito pessoas á mingua, em Berlim cinco, em Vienna quatro, em Pekim doze, em Ieddo sete, em... --Salta! atalhou Pereira exultando de prazer, então viva cá o nosso Brazil! Nelle ninguem se lembra até de ter fome. Quando nada se tenha que comer, vae-se ao matto, e fura-se mel de jatahy e mandory ou chupa-se miolo de macaúbeira. Isto é cá por estas bandas; porque nas cidades, basta estender a mão, logo chovem esmolas... Assim é que entendo uma terra ... o mais é desgraça e consumição... --De certo! corroborou o allemão, o Brazil é um paiz muito fertil e muito rico. Dá café para meio mundo beber e ainda o ha-de dar para todo o globo, quando tiver mais gente ... mais população... --Bem eu sempre digo, acudiu Pereira tocando no hombro de Cyrino e deitando-lhe uns olhos de triumpho. Lá fóra é que nos conhecem, nos fazem justiça. Não acha patricio? Homem, agora reparo ... vosmecê está tão calado! ... meio casmurro, que é isso? sempre aquelle negocio? De facto, Cyrino, depois que ouvira o convite a Meyer para conviver no interior da casa de Pereira, tornara-se sombrio, inquieto, meditabundo. O corpo ali estava, mas a sua imaginação vigiava zelosa o quartinho onde repousava aquella menina febricitante, tão bella na sua fraqueza e pallidez enferma. --Se são mulheres, ponderou Pereira, deixe-se disso: não ha maior asneira... É fazenda que não falta. No meio dos exercicios mandibulares, julgou Meyer que o seu hospedeiro considerava o sexo feminino do ponto de vista meramente estatistico e acreditou conveniente assentar melhor a idéa, um tanto vagamente aventada. --Na raça slava, disse dogmaticamente, a proporção é de duas mulheres para um homem; na germanica, ha approximadamente numero equivalente, na latina de dois homens para uma mulher. Na França, a proporção para o lado masculino é de... --Mas o senhor contou? interrompeu Pereira. Deixe-lhe dizer uma cousa: eu cá não engulo araras... --_Ni_ eu, affirmou Meyer com alguma surpreza e energia, nem sei como o senhor me vem falar nessas aves agora... Se as considera como caça. deve saber que os trepadores têm a carne dura, preta e... Riu-se Pereira do equivoco e, explicando-o continuou a discutir com o seu interlocutor, que não discrepava uma linha dos seus principios de methodo e escrupulosa polidez. --Póde o senhor falar um anno inteiro, disse o mineiro para concluir; mas quanto a mim, não entendo patavina das suas contas e _gigajogas_. Quem me tira da taboada, bota-me no matto... E agora, vamos agradecer a Deus Nosso Senhor Jesus Christo o ter-nos dado esta comida, ainda que insufficiente e mal temperada. E, unindo o exemplo á palavra, levantou-se e, de mãos postas ao peito, orou em voz baixa com uncção, no que foi imitado pelos dois hospedes. --Esteja comvosco o Senhor, disse ao terminar em voz alta, persignando-se. --Amen, responderam Cyrino e Meyer. --Agora, annunciou o mineiro sahindo da mesa vou dar um giro pela minha roça, onde estão na capina tres negros _cangueiros_[72] um dos quaes é o meu _fazendeiro_[73]: depois, hei-de visitar uns conhecidos meus, avisando os da sua chegada, doutor. Ah! acrescentou todo desfeito em amavel sorriso, falta-lhe mostrar minha filha, Sr. Meyer. --Sua filha! exclamou o allemão. Então tem filhos? --Sim, senhor. Não se lembra que o seu _vulto_[74] é o do mano Chiquinho? Pois então? Que maior prova lhe posso dar de confiança e amizade?... Não é verdade, Sr. Cyrino? --Sem duvida, balbuciou a custo o mancebo. --Minha filha chama-se _Nocencia_ e só hoje é que se levantou da cama... Esteve doentinha ... Assim mesmo, não sei se as maleitas a deixaram... O corpo é ás vezes _caroavel_[75] dessas malditas e... --Isso está ao meu cuidado, atalhou Cyrino com alguma pressa. Ainda ao meio dia hade tomar quina... --Vosmecê faça o que for melhor... Quer vir Snr. Meyer? --Pois não! pois não! respondeu amavelmente o allemão. --É a unica pessoa da familia que tenho aqui alem de um _marmanjão_ que está agora na carreira[76]? por essas estradas, agenciando a vida... Então, vamos! Venha tambem, continuou elle voltando-se para Cyrino, um cirurgião é quasi de casa. Sahiram, pois, os tres. Pereira na frente, seguiu o oitão da direita, e, abrindo uma tranqueira do cercado dos fundos entrou pela cozinha, onde a velha preta Conga estava lavando pratos e arrumando louça numa prateleira. [Nota 71: Matolotagem.] [Nota 72: Sem prestimo.] [Nota 73: Fazendeiro, no sertão de Matto-Grosso, é, não o proprietario das terras, mas o capataz, o feitor.] [Nota 74: Pessoa.] [Nota 75: Acostumado, affeito.] [Nota 76: Trabalho.] CAPITULO XII A APRESENTAÇÃO Quem, porém, mostrava mais surpresa e admiração, era Sancho Pança. Nunca, em dias de sua vida, vira perfeição egual. CERVANTES.--_D. Quixote_, _CXXIX._ Ao balsamo, fazem as moscas que nelle morrem, perder a suavidade do perfume. Uma parvoice, ainda que pequena e de pouca dura, dá motivo a não se ter em conta nem sabedoria nem gloria. ECCLESIASTES.--X. Depois de atravessarem um quarto bastante escuro, chegaram os visitantes á sala de jantar, vasto aposento ladrilhado, mas sem forro, a um canto do qual estava a filha do mineiro, mais deitada do que sentada numa especie de canapé de tacuara. Tinha os pés sobre uma bonita pelle de tamanduá-bandeira, onde se acocorara, conforme o habito, o anão a quem Pereira chamara Tico. Ao ver chegar tanta gente, abriu a formosa menina uns grandes olhos de espanto; quiz toda enleada erguer-se, mas não poude e, corando ligeiramente, teve como que um deliquio de fraqueza. Approximara-se logo Cyrino com vivacidade. --A dona, disse elle para Pereira, está tão fraca que mette dó. Chegou-se o pae juntamente com Meyer e, tomando as mãos da filha, perguntou-lhe com voz meiga e inquieta: --Sente-se peior, meu bemsinho? --Nhôr-não, respondeu ella. --Pois então!... É preciso não entregar o corpo á molleza... Abra os olhos... Olhe... está aqui este homem (e apontou para Meyer) que é _allamão_ e trouxe uma carta do tio de mecê, o Chico, lá da Matta do Rio. Quero mostrar que, para mim, vale tanto como se fosse esse proprio parente tão a nós chegado. Por isso é que venho apresental-o... Ella nada articulou. --Vamos, diga... Tenho muito gosto em _lhe_ conhecer ... diga. Com vagar e acanhamento, repetiu Innocencia estas palavras, ao passo que Meyer lhe estendia a mão direita, larga como uma barbatana de cetaceo, e franca como o seu coração. --Gosto, muito gosto tenho eu, disse elle com tres ou quatro sonoros arrancos de garganta. Só o que sinto é vel-a doente... Mas o doutor não nos deixará ficar mal; não é Sr. Cyrino?... E apoiou esta pergunta com um hen? que ecoou por toda a sala. --A senhora, respondeu o interpellado, precisaria tomar por alguns dias um pouco de bom vinho do Porto, em que se puzesse casca de quina do campo... Mas, onde achar agora vinho? Só na villa de Sant'Anna... --Vinho? perguntou Meyer. --Sim. --Vinho do Porto? --Melhor ainda. --Pois tudo se arranja, na minha canastra tenho uma garrafa do _mais superfino_ e com a maior satisfacção a offereço á filha do meu _pom_ amigo o Sr. Pereira. --Oh! Sr. Meyer, agradeceu este com effusão, não sabe quanto lhe fico... --Qual! não tem obrigação, não, senhor. Além do mais, sua filha é muito bonita, muito bonita, e parece boa deveras... Ha-de ter umas cores tão lindas, que eu daria tudo para vel-a com saude... Que moça!... Muito bella! Estas palavras que o innocente saxonio pronunciara _ex abundantia cordis_ produziram extraordinario abalo nas pessoas que as ouviram. Tornou-se Pereira pallido, franzindo os sobrolhos e olhando de esguelha para quem tão imprudentemente elogiava assim, cara a cara, a belleza de sua filha; Innocencia enrubeceu que nem uma romã; Cyrino sentiu um movimento impetuoso, misturado de extranheza e desespero, e, lá da sua pelle de tamanduá-bandeira, ergueu-se meio apavorado o anão. Nem reparou Meyer e com a habitual ingenuidade proseguiu: --Aqui, no sertão do Brazil, ha o mau costume de esconder as mulheres. Viajante não sabe de todo se são bonitas, se feias, e nada pode contar nos livros para o conhecimento dos que lêem. Mas, palavra de honra, Sr. Pereira, se todas se parecem com esta sua filha, é cousa muito e muito digna de ser vista e escripta! Eu... --O senhor não quer retirar-se? interrompeu Pereira com modo aspero. --Pois não! replicou o allemão. E como despedida accrescentou, dirigindo-se para Innocencia: --Chamo-me Guilherme Tembel Meyer, seu humilde criado, e estimo muito conhecel-a por ser a senhora filha de um amigo meu e prender a gente com o seu lindo rosto... Estendeu então a mão, fez um movimento de cabeça, e acompanhou ao mineiro que já ia sahindo branco de colera concentrada. --E que me diz o Sr. deste homem? perguntou a Cyrino a meia voz e puxando-o de parte. --Reparei muito nos seus modos, respondeu-lhe o outro no mesmo tom. --Nem sei como me contenha... Estou cego de raiva ... Que presente me mandou o Chico!... É uma peste, este diabo _melado_[77]... Vê uma rapariguinha e enche logo as bochechas para lhe dizer meia duzia de pachuchadas e graçolas... Não está má esta!... É um perdido. Nada... Isto não me cheira bem: vou ficar de olho nelle... --Faz muito bem, apoiou Cyrino. --Vejam só, continuou Pereira retendo o seu interlocutor para deixar Meyer distanciar-se, em boas me fui eu metter!... Se não fosse a tal carta do mano o cujo dansava ao som do cacete... Malcriadaço! Uma mulher que daqui a dois dias está para receber marido... Deus nos livre que o Manecão o ouvisse... Desancava-o logo, se não o cosesse a facadas... Vejam só, hen?... Sempre é gente de outras terras... Cruz! Tambem vi logo ... um latagão bonito ... todo faceiro ... _havéra_ por força de ser _rufião_[78]. Ouvia-o Cyrino em silencio. --E mulher, proseguiu o mineiro com raivosa volubilidade, é gente tão levada da breca, que se lambe toda de gosto com ditinhos e requebros desta sucia de _embromadores_. Com ellas, digo eu sempre, não ha que fiar... Má hora me trouxe este allamão ... Mil raios o rachem!... E logo o Chico... Tenho agora que ficar de alcateia ... metter-me em _tocaia_[79] e fazer fojos para que a _bracayá_[80] não me entre no gallinheiro. Ora que tal! --Tambem, breve se vae elle embora, lembrou Cyrino a modo de consolo. Que o demo o leve quanto antes, replicou Pereira. Já estou todo _enfernizado_[81] com o tal homem... Neste momento, como que de proposito, voltava-se Meyer para os dois: --Sr. Pereira, disse elle ficarei em sua casa talvez umas duas semanas. Os burrinhos vão engordar no seu pasto e eu hei-de fazer compridas viagens nesta sua fazenda, apanhando tudo o que nella encontrar... Ouviu? Reprimiu o interpellado um gesto de viva contrariedade e, levado pelo instincto e dever de hospitalidade, de prompto respondeu, embora seccamente: --Fique duas semanas, ou dois mezes ou dois annos. Já lh'o disse: a casa é sua, e palavra de mineiro não volta atraz. Quem está aqui, não é o senhor é meu irmão mais velho. Agarrando então com força na mão de Cyrino, accrescentou em voz surda e angustiada: --Olhe, doutor; veja só isto! Que lhe dizia eu?... Ah! meu Meyer, quer se engraçar commigo, não é? Mas cá fico ... e, uma vez avisado, nem dois, nem tres me botam poeira nos olhos... Não é com essa! _Nocencia_ nasceu filha de pobre, mas, graças a Maria Santissima, tem ainda pae com braço forte e muito sangue nas veias para defendel-a dos garimpeiros e cruzadores de estrada... Elle que não brinque com o Manecão; é homem de cabellinho na venta e se lhe bota a mão em cima, esfarela-lhe os ossos, como se fôra veadinho do campo enroscado por sucury... Ia comtudo Meyer, de todo ponto alheio ao temporal provocado por suas inconsideradas palavras; e, sem duvida, estimulado em suas reminiscencias pela vista da menina que acabava de admirar, cantarolava entre dentes uma velha valsa allemã, dansada talvez com alguma loura patricia em epocas remotas e de menos rigorismo scientifico. [Nota 77: Chamam-se melados os animaes cuja côr é quasi assa.] [Nota 78: Namorador.] [Nota 79: Fazer esperas.] [Nota 80: Gato do matto.] [Nota 81: Encolerisado, frenetico.] CAPITULO XIII DESCONFIANÇAS Muitas vezes, somos illudidos pela confiança: mas a desconfiança faz que sejamos por nós mesmos enganados. PRINCIPE DE LIGNE. Quando o nosso saxonio entrou na sala em que estavam as suas cargas, vinha tão contente do gasalhado recebido, da firmeza do tempo, das futuras caçadas de borboletas, que despertou a attenção do seu camarada José. Estava este encostado a uma canastra, a esgaravatar, de faca comprida, em punho a planta dos pés, verificando se alguma pedrinha da estrada não se havia encrostado na grossa e já insensivel sola. --Homem, disse elle com familiaridade, _Mochú_ está hoje muito alegre.... Viu passarinho verde? --_Passarrinho_ verde? perguntou Meyer. Que é isso? Não vi _passarrinho_ nenhum... Vi uma moça muito bonita... --Olé ... melhor ainda... Conte-me isso ... e quem é ella --É a filha cá do Sr. Pereira. --Parabens! parabens! exclamou José com toda a indiscrição. Moça bonita é fructa rara por estas mattarias e brenhas do inferno... Quanto a mim, ainda não botei o olho senão em velhas _corcorócas_ e serpentões... Outra coisa é no Rio... Não se lembra, _Mochú_, da procissão de S. Jorge?... Ahi é que sae á rua uma tafularia de deixar a gente tonta de uma vez, de queixo cahido. Umas tão alvas!... Outras cor de café com leite ... fazenda fina ... creoulas chibantes. --_Júque_, reprehendeu o allemão revestindo-se de ar severo, não tome confiança com gente que não é da sua classe... --Mas eu não disse nada de mau, _Mochú_, desculpou-se o criado recolhendo-se meio enfiado ao silencio e voltando ao exame dos pés. Quem estava em cima de um brazeiro, era Pereira. Decididamente, aquelle hospede o punha a perder, proclamando assim com a trombeta da fama que vira Innocencia e com ella conversara, que a achava do seu gosto ... uma rapariga já noiva! Quantas incongruencias, que perigos, ó Santos do Paraiso! Tornava-se caso de muita prudencia. Qualquer passo menos pensado acarretaria consequencias irremediaveis. Necessario é penetrar-se a força dos sentimentos que sobresaltavam o mineiro, para bem aquilatar os transes por que passava a achar, natural que seguisse uma linha de proceder toda de duvida e vacillações. Se, de um lado, creava involuntaria admiração por Meyer e, rodeando-o, em sua imaginação, do prestigio de uma belleza irresistivel, via augmentar o seu receio em abrigar tão perigoso seductor; do outro, sentia as mãos presas pelas obrigações imperiosas da hospitalidade, a qual, com a recommendação expressa de seu irmão mais velho, assumia caracter quasi sagrado. Juntem-se a isto os preconceitos sobre o recato domestico, a responsabilidade de vedar o sanctuario da familia aos olhos de todos, o amor extremoso á filha, em quem não depositava, comtudo, como mulher que era, confiança alguma, as supposições logo ideadas acerca da impressão que naturalmente aquelle estrangeiro produzira no coração da sua Innocencia, já quasi pertencendo ella a outrem, e as collisões que previu para manter inabalavel a sua palavra de honra, palavra dada em dois sentidos agora antagonicos--um mundo emfim de cogitações e de terrores. E tudo isto revolvendo-se na cabeça de Pereira, refletia-se com sombrios traços de inquietação em seu rosto habitualmente tão jovial. --Por que razão é, perguntou elle a José Pinho para desviar aquella conversa que tanto o magoava, que vosmecê chama _Mochú_ ao Sr. Meyer? Sorriu-se o carioca com ar de superioridade e respondeu desembaraçadamente: --Ah! É um modo de falar.... --Como assim?... --Ja lhe ponho tudo em pratos limpos... Vosmecê não lhe chama Sr.? --Chamo. --Pois, então?... Eu tambem lhe chamo assim ... mas falo em francez. _Mochú_ quer dizer senhor, nessa lingua. --Ah! replicou Pereira dando-se por convencido, então é isso? Pensei que fosse outra coisa... --_Júque_, avisou Meyer que estava a remexer nas canastras, prepare tudo; nós vamos ao matto agora mesmo.... --Venha commigo, propôz o mineiro com voz insinuante. Eu lhe apontarei lugares onde ha dessa bicharia miuda, coisa nunca vista. --Com muito gosto concordou o allemão. E voltando-se para o camarada: --Ande, _Júque_, ordenou elle, bote a pita para fóra, caixas de folha de Flandres, chloroformio, rede prompta... Depressa homem, depressa! José Pinho, instigado por estas palavras, entrou a voltear de um lado para o outro, como que atarantado com o excesso de serviço. --Minhas lentes, pediu o naturalista, o sacco para os bichos de casca grossa.... Depressa.... Vou ajudal-o. E, por seu turno, começou a tirar das canastras os objectos de que necessitava, enfiando a tiracollo dois ou tres talabartes finos que sustentavam umas caixinhas encouradas. Numa dellas, havia um copo de prata com a competente corrente; noutra, um faqueiro de peças dobradiças e de metal do principe. Tambem assentou ao flanco uma frasqueira defendida de choques externos por fino trançado de vime e que continha aguardente, comprada de fresco na villa de Sant'Anna do Paranahyba. Não contente com o peso de todos esses appendices á sua pessoa, cingiu largo talim com uma especie de patrona de folha de Flandres e que sustentava um grande facão inglez, um revolver e uma espada de caça. Depois de ter vagarosamente arranjado sobre si cada uma destas peças com grande espanto de Pereira e até de Cyrino, substituiu Meyer os oculos habituaes por outros, de vidros afumados, muito grandes e convexos, destinados a proteger-lhe amplamente os olhos dos ardores do sol. Muniu-se, além disso, de outro singular meio de preservação: uma rodella ampla de panno branco forrado de verde, que augmentava as abas do chapéu do Chile, descansando em parte sobre ellas. Com esse trajo ficou de certo a mais estapafurdia figura que algum christão encontrar poderia naquellas trezentas leguas em derredor; entretanto, Pereira offendido com aquelles cuidados de prevenção meramente scientifica, que lá no seu bestunto qualificava de faceirice feminil: --Veja só, disse elle para Cyrino, como este _maricas_ gosta de se enfeitar!... Você não me engana, não, Sr. _alla mão_ das duzias.... Mirava-se nesse momento o naturalista, para verificar se lhe faltava alguma coisa. --Estou prompto, exclamou afinal, e muito desejoso de entrar no matto. --Ponham-te a tinir os carrapatos, resmoneou Pereira. --Ah! disse Meyer, e as minhas luvas?... _Júque_ procure na canastra n.° 2, á esquerda, no segundo canto. Sacou o camarada umas grandes luvas de lã brancas, muito largas, já usadas e sujas, nas quaes o allemão enfiou de um jacto as mãos espalmadas. --Agora, sim? annunciou elle com satisfacção. E, dando um sonoro e prolongado hum! empunhou a rede de apanhar borboletas. Depois, levando um dedo á testa: --Ah! exclamou, e o vinho! Não me ia esquecendo?... O vinho para sua filha Sr. Pereira, sua linda filha. Encolheu o mineiro com furor os hombros e disse em aparte a Cyrino: --Fez-se de esquecido só para falar na menina.... Veja bem. Este _calunga_ não me bota areia nos olhos. E accrescentou alto, recebendo a garrafa que o camarada José Pinho tirara de uma das canastras: --Agradeço o seu presente, Sr. Meyer mas se ... lhe faz a menor falta ... a menina hade curar-se sem isto.... --Não, não, não, não, respondeu o saxonio com uma serie de negativas que pareciam não dever ter fim. --Neste mundo, rosnou Pereira mais para si do que para ser ouvido, ninguem mette prego sem estopa: mas com sertanejos ... não se brinca. Cyrino tomara a garrafa. --Isto, affirmou elle, acaba com certeza a cura. E, esquivando-se de pronunciar o nome e a qualidade da pessoa de quem estava tratando: --Ella, hade ter hoje algum appetite e poderá levantar-se um pouco, pois já tomou o seu caldinho. --Então, ao meio dia, recommendou Pereira muito baixinho a Cyrino, vosmecê mande chamar a nossa doente e dê-lhe a mézinha. Ouviu? Já avisei lá dentro... Cyrino abanou a cabeça, tomando ar mysterioso. --Eu por mim estarei de olho vivo no bichão... Parece-me _çuçuarana_ á espreita de veadinhas campeiras... Não terá este vinho algum feitiço? Contestou o outro com energia tal possibilidade. --Eu sei lá, insistiu Pereira. Estes namoradores são capazes de muita coisa.... Nunca ouviu contar historias de _pirlas_[82] e beberagens ... hen? diga-me, nunca? --Socegue, Sr. Pereira, acudiu Cyrino, hei-de examinar o liquido ... tenho certeza de que não haverá novidade. --Muito que bem... Então, ao meio dia em ponto ... chame a Maria Conga ou o Tico. _Nocencia_ hade arrastar-se até cá ... e o doutor lhe dará a dose... --Ella sahir já? objectou Cyrino com admiração. Não senhor; em tal não consinto... Irei dar-lhe o remedio... Não me custa nada... Pereira ficara meio perplexo. --Não sei... E com subita resolução: --Pois bem, virei da roça ate cá... Se eu não apparecer, então o senhor dê um pulo e faça-lhe tomar a poção... Quanto a este _allamão melado_, levo-o para longe e não o trago senão bem tarde e tão moido do passeio que só ha-de pensar em dormir. Com Pereira se dava um facto natural e comezinho nas singularidades do mundo moral. Á medida que as suspeitas sobre as intenções do innocente Meyer iam tomando vulto exagerado, nascia illimitada confiança naquelle outro homem que lhe era tambem desconhecido e que a principio lhe causara tanta prevenção quanto o segundo. É que as difficuldades e collisões da vida, quando se aggravam, tão fundo nos incutem a necessidade do apoio, das sympathias e dos conselhos de outrem, que qualquer alliado nos serve, embora de muito mais proveito fora bem pensada reserva e menos confiança em auxiliares de occasião. [Nota 82: Pilulas.] CAPITULO XIV REALIDADE Cordelia--Hade o tempo desvendar o que hoje esconde a discreta hypocrisia. SHAKESPEARE.--_O Rei Lear_, Acto I. Depois que Cyrino viu sumir-se Pereira com os dois companheiros além do laranjal da casa, seguindo em direcção á roça por uma vereda pedregosa e cheia de seixos rolados, nos quaes iam as patas dos animaes batendo; depois que teve certeza de que ficara só n'aquella vivenda, entrou em grande agitação. Ora, passeava pelo quarto rapida e inquietantemente; ora, media-o com passo lento em muitas direcções; ora emfim, sahia para o terreiro e alli, com a cabeça descoberta, ficava a olhar attentamente para diversos lados, abrigando com a mão aberta os olhos, dos vivissimos raios do sol. Promettia o dia ser muito calido. Por toda a parte chiavam as estridulas cigarras, e ao longe se ouvia o metallico cacarejar das seriemas nos campos. Ás vezes, encarava Cyrino o sol; depois tapava os olhos deslumbrados e, tomado de vertigem, voltava para a sala, onde recomeçava os seus passeios. Porque, porem não descansava o mancebo? Entrando familiarmente pela sala dentro, os bacorinhos se haviam abrigado dos ardores do dia e, deitados debaixo de uns giraus, resonavam, presa de gostoso somno. Tudo quando vivia appetecia a sombra e o repouso. Fóra, o sol reverberava violento em seus fulgores, e as sombras das arvores iam cada vez mais diminuindo. Até uma egua com o esguio e peludo poldrinho deixara o distante pasto e viera abrigar-se, à protecção da casa, junto á qual parara já meio a cochilar. Á enervadora acção do calor estival, juntavam sua influencia as monotonas modulações de umas chulas e modinhas, cantadas ao som da viola de tres cordas pelos camaradas de Cyrino, accommodados no rancho junto ao paiol de milho. A tudo entretanto resistia o joven, e com ascendente desassocego consultava o seu relogio de prata, tirando-o a cada instante do bolso. Passaram-se segundos, minutos e horas. Afinal soltou elle um suspiro de allivio: --Meio dia!... Cuidei que nunca havia de chegar!... Sahindo todo animado para o terreiro, chamou com voz forte: --Maria... Ó Maria Conga!... Ninguem lhe respondeu. Só do lado da cozinha ladraram uns cães. Depois de esperar algum tempo, rodeou Cyrino toda a casa, como fizera com Pereira e, encostando-se á cerca que impedia a approximação do lanço dos fundos, tornou a chamar: --Ó Maria?!... Maria!... Está dormindo, minha velha? Vendo que os gritos ficavam sem resposta, saltou então o cercado e foi caminhando para a porta da cozinha, de vagar porem, e como que a medo. --Ó Maria?!... Minha tia!... Olá! Ó de casa! chamava elle. Afinal appareceu não a velha escrava mas o anão Tico que pareceu, com imperioso movimento de cabeça, indagar a causa daquelle intempestivo alarma. --Que é da Maria Conga? perguntou Cyrino chegando-se a elle. Por meio de moderada gesticulação, mas muito expressivamente, deu Tico a entender que a preta fora ao corrego lavar roupa. --E não ha mais ninguem em casa? inquiriu o outro. Mostrou o anão, com singular expressão de orgulho e despeito, que alli estava elle e deitou um olhar de colera para o imprudente curioso. --Bem, replicou Cyrino sorrindo-se, vá você então dizer á sinhá dona, que já chegou a hora de tomar o remedio. Trago o vinho, e é preciso quanto antes preparar café. Desappareceu Tico, fazendo um aceno ao intitulado medico para que esperasse fóra. --Ora, exclamou este com aborrecimento e tom de chacota, aqui ao sol?... Não está má esta!... E que tal o mestre _nanica_?... Sem mais cerimonia entrou, pois, na casa, penetrando no quarto que ficava entre a cozinha, theatro da actividade de Maria Conga e a sala de jantar, onde se dera a apresentação de Meyer a Innocencia. Dahi a pouco, ouviu passos arrastados e aos seus olhos mostrou-se Innocencia embrulhada em uma grande manta de algodão de Minas de variegadas côres e com os longos e formosos cabellos cahidos e puxados todos para traz. Os grandes e avelludados olhos orlados de fundas olheiras, e o quebrantamento do semblante, muita fraqueza denunciavam ainda; entretanto, as setinosas faces como que se apressavam a tomar côres, a semelhança de rosas impacientes de desabrochar e expandir-se vivazes e alegres. Ao chegar à porta, não a transpoz; mas encostando-se á grossa trave que fazia de umbral, alli ficou parada, indecisa, com o olhar turbado e esquivo. Ao vel-a, deu Cyrino com timidez alguns passos ao seu encontro; depois, por seu turno estacou junto a uma cadeira de comprido espaldar, antigo e solido traste trazido por Pereira da sua casa de Piumhy. Após longa pausa, em que por vezes se cruzaram incertos os olhares, perguntou com esforço: --Então ... minha senhora ... como está?... Sente-se melhor? --Melhor, obrigada, respondeu Innocencia com voz aflautada e muito tremula. --Comeu já alguma coisa? --Nhôr-sim ... uma aza de frango, mas com ... bastante vontade. --Sente o corpo abatido? --A canseira está passando ... hontem muito mais... A pouco e pouco, fora Cyrino recuperando o sangue frio e se approximando da moça, que mais se apegou á umbreira, como que a procurar abrigo e protecção. De um lado da porta ficou ella; do outro Cyrino, ambos tão enleiados e cheios de sobresalto que davam razão ás olhadas de espanto com que os encarava Tico, empertigado bem defronte dos dois em suas encurvadas perninhas. --Pois chegou a hora de tomar o remedio... --Já seu doutor implorou Innocencia. --Nhã-sim. --Eu não tenho mais nada... --É para cortar de uma vez as sezões... Olhe, se ellas voltassem ... era um grande desgosto para mim... --Mas é tão mau, objectou ella. --Não é bom _deveras_ ... mas _bem melhor_ é voltar à saude... Com um bocadinho de coragem, a gente engole tudo sem muito custo... Já que lhe amarga tanto ... beberei tambem um pouco... --Oh! não! protestou Innocencia. --É para lhe mostrar ... que quero sentir ... o que mecê sente. Fez-se a menina da cor da pitanga, levantou uns olhos surpresos e voltou logo o rosto para fugir dos olhares ardentes de Cyrino. --A mézinha? pediu ella por fim toda commovida. --Ah! é verdade! exclamou Cyrino. Ande, Tico: vá buscar café á cozinha. Lave bem um pires ... percebeu? O anão fitou o moço com altivez e não se mexeu. --Você é surdo? --Não, respondeu Innocencia. Tico ás vezes, por manha é que se faz _ansim_ de mouco. Voltando-se então para o homunculo, insistiu com voz meiga e carinhosa: --Vai Tico; é para mim, ouviu? Transformou-se repentinamente a physionomia do anão. Pairou-lhe nos labios ineffavel sorriso, meneou a cabeça duas ou tres vezes com a força de uma affirmação mas, colerico, enrugou a testa e moveu olhos inquietos e duvidosos. Innocencia teve que repetir o recado. --Já lhe disse, Tico: vai buscar o café. A esta quasi ordem não ousou elle resistir mas sahiu devagarsinho, voltando-se várias vezes antes de entrar na cozinha, onde muito pouco se demorou. Neste entrementes tomara Cyrino o pulso de Innocencia e, sem pensar no que fazia, quebrando a debil resistencia da menina, cobrira-lhe de beijos o braço e a mãosinha que havia segurado. --Meu Deus! balbuciou ella, que é isto?... Olhe ahi vem o Tico. Recuou então o mancebo e, para melhor disfarçar a commoção adeantou-se para o anão que vinha trazendo na mão direita uma vasilha de folha de Flandres, e na outra um pires com colher. --Muito bem, disse elle, ponha tudo em cima da mesa. E preparando rapidamente o medicamento, apresentou-o a Innocencia, que sem hesitação o sorveu todo. --Deixe-me um pouco, exorou com ternura Cyrino, um pouco só ... Se é tão mau ... soffra eu tambem. --Não, respondeu ella com alguma energia, porque _havéra_ de mecê soffrer? E, ou por effeito do inexprimivel e desconhecido abalo que experimentara no estado de debilidade a que chegara, ou por ser aquella a hora em que costumava a febre salteal-a, o certo é que teve de encostar-se ou melhor, agarrar-se ao umbral para não cahir a fio comprido no chão. --Oh! exclamou com angustia Cyrino, a senhora vae desmaiar. Transpondo então o limiar da porta, tomou nos braços a pallida donzella, sem reluctancia encostou a desfallecida cabeça ao seu hombro e, com o hálito offegante, aos poucos lhe foi fazendo voltar ás faces o precioso sangue. --Estou melhor, balbuciou ella procurando afastar a cabeça de Cyrino. --Não faça de forte á toa, acudiu este. Vamos até aquella cadeira. E, com toda a lentidão e cuidado, foi levando a convalescente até sental-a, desembaraçando-a depois dos muitos cabellos que, todos revoltos, lhe haviam invadido o collo e se esparziam sobre o rosto. --Quanto cabello! exclamou Cyrino meio risonho. Com muita attenção seguira Tico as peripecias de toda aquella scena. Ao ver Innocencia perder quasi os sentidos, soltou um grito surdo de desespero; depois, foi seguindo-a até a cadeira e, ajoelhado deante della, contemplou-a com inquietação. Cyrino quiz aproveitar a occasião para um congraçamento. --Então está com cuidado, Sr. Tico?... Não é nada ... sua ama fica boa logo... Não é o que você quer? Ao ouvir esta interpellação, levantou-se o anão e correspondeu ao sympathico annuncio do moço com um olhar de desprezo e pouco caso, como que a dizer: --Não se metta commigo, que não quero graças com você, medico de arribação! --Agora, disse Cyrino voltando-se para Innocencia, vae mecê beber dois goles deste vinho... Verá logo, que _sustancia_ hade sentir dentro do corpo. Desarrolhou, então, com a ponta da comprida faca que tirou do cinto, a garrafa de vinho offerecida por Meyer, e num caneco de louça branca apresentou á moça um pouco do roborante liquido. Molhou a doentinha os labios e gratificou o obsequioso mancebo com um sorriso encantador. Decididamente lhe agradava aquelle medico: curava do seu corpo enfermo e entendia-lhe com a alma. Raros homens que não seu pae e Manecão, além de pretos velhos, tinha até então visto; mas a ella, tão ignorante das cousas e do mundo, parecia-lhe que ente algum nem de longe poderia ser comparado em elegancia e belleza a esse que lhe ficava agora em frente. Depois, que cadeia mysteriosa de sympathia a ia prendendo aquelle estranho, simples viajante que via hoje, para sem duvida, nunca mais tornar a vel-o? Quem sabe, se a meiguice e bondade que lhe dispensava Cyrino não eram a causa unica, desse sentimento novo, desconhecido, que de chofre nascia em seu peito, como depois da chuva brota a florsinha do campo? A muito obriga a gratidão. Rapidos correram esses pensamentos pela mente de Innocencia, ao passo que as suas pupillas se iam erguendo até se fixarem em Cyrino, limpidas, grandes, abertas, como que dando entrada para elle ler claro o que se lhe passava na alma. --Sinto-me tão bem disse ella com metal de voz muito suave, tão leve de corpo, que parece nunca mais hei-de ficar _mofina_. --Não, não, de certo! exclamou Cyrino, nunca mais. Alem disso, aqui estou e... Com a sua chegada, interrompeu Maria Conga, a velha negra, aquelle começo de dialogo. Vinha da fonte com volumosa trouxa de roupa que entrou a estender em compridos bambús, assentes horizontalmente sobre forquilhas fincadas no chão. Despedindo-se então Cyrino de Innocencia: --Agora, lhe disse elle risonho e pegando-lhe na mão, socegue um pouco: depois tome um caldo e ... queira-me bem. --Gentes! Porque lhe não _havéra_ de querer? perguntou ella com ingenuidade. Mecê nunca me fez mal... --Eu, retrucou Cyrino com fogo, fazer-lhe mal? Antes morrer... Sim ... dona ... da minha alma, eu... E, sem concluir, disse repentinamente: --Adeus! Depois, com passo lento, foi se retirando e passou deante da janella junto á qual ficara Innocencia sentada. --Olhe! recommendou elle recostando-se ao peitoril, cuidado com o sereno... --Nhor-sim... --Não beba leite... --Mecê já disse. --Coma só carne de sol... --Já sei... --Então, adeus ... adeus, menina bonita! E, a custo, despegou-se daquelle lugar, onde quizera ficar, até que de velhice lhe fraqueassem as pernas. CAPITULO XV HISTORIAS DE MEYER Grande felicidade é ter um filho prudente e instruido; mas, quanto a filhas, é para todo pae carga bem pesada. MENANDRO.--_Os Primos._ Com a tarde voltaram Meyer, José Pinho e Pereira e, pouco depois d'elles, tres avelhentados escravos; estes dos trabalhos agricolas, aquelles de grandes excursões entomologicas. Vinha o mineiro meio risonho e em altos gritos acordou Cyrino que deitando-se a dormir, sonhara todo o tempo com a graciosa doente. --Olá, amigo! olá, doutor! chamou Pereira com voz retumbante, isso é que é vida, hen? Emquanto nós trabalhamos, eu e o _Mochú_ do José, você está nessa cama de velludo!... --É verdade, concordou o moço, apenas os Srs. se foram, estendi as pernas e até agora enfiei um somno só... --E o remedio da menina? perguntou Pereira abaixando a voz. --Ora, Sr., e eu que me esqueci!... Não faz mal... se ella não teve febre... Ah! espere ... agora me lembro!... Eu lh'o dei ... estou ainda tonto de somno. Riu-se Pereira. --Estes doutores matam a gente, como se fosse cachorro sem dono.... Num momento lhes passa da cachola se deram ou não mézinhas e venenos a christãos... Vendo que Meyer sahira da sala, mudou repentinamente de tom, proseguindo em voz baixa e muito rapidamente: --Então, sabe que o tal _allamão_ levou todo o dia, só querendo puxar conversa sobre a menina? --Devéras? --É o que lhe digo... E ... eu com as mãos atadas por aquelle offerecimento de leval-o a comer lá dentro!... Nada, nem que desconfie e se arrenegue dos meus modos ... não me pisa em quarto de familia... Deus te livre!... Com effeito á hora da ceia, Meyer manifestou surpresa de comer na mesma sala; não, que tivesse motivo para desejar outro qualquer local; mas, methodico como era, gravara na mente a promessa de Pereira e, por delicadeza, suppunha dever lembrar-lhe. As desculpas que o mineiro apresentou foram arranjadas de momento e ajudadas victoriosamente por Cyrino, carregando este com a responsabilidade de haver recommendado á enferma muito socego, quasi completa solidão. De modo muito expansivo se manifestou tambem o reconhecimento de Pereira. --Estou conhecendo, disse elle em aparte e apertando a mão de Cyrino, que o doutor é homem serio e com quem se póde contar... Deixe estar ... o Manecão hade ser amigo seu... Isso hade sel-o... Pessoas de bem devem conhecer-se e estimar-se... Ora, veja o tal _cujo_ ... que temivel, hen?...--Não faz mal, hade ter o pago. Se Pereira se mostrava contrariado e inquieto, muito pelo contrario parecia o naturalista nadar em mar de rosas. --Sr. doutor, declarou elle a Cyrino á mesa da ceia, por muitos motivos, estou em extremo contente com a minha estada aqui... Hoje achei mais bichinhos curiosos do que em todas as zonas porque tenho andado. --Vosmecê nem imagina, interrompeu Pereira dirigindo-se para Cyrino, o que faz este senhor quando está dentro do matto. Ainda hade quebrar o pescoço n'algum barranco a que se atire, pois caminha com as ventas para o ar... Não sei como não tem ambos os olhos furados ... não repara em galhos nem em nada ... só o que quer é agarrar _anicetos_... Já o avisei umas poucas de vezes; agora, sua alma, sua palma... Judiciosas eram as advertencias do mineiro e bem cabidas; tanto assim que numa das tardes seguintes voltou Meyer todo arranhado e com um gilvaz tão grande, que immediatamente deu nas vistas de Cyrino. --Que foi isso, Sr. Meyer? perguntou elle com admiração. O Sr. andou por ahi fora aos trambolhões com alguma onça? --Oh! não é nada, respondeu fleugmaticamente o allemão. --E a sua roupa vem suja de barro ... toda rota... Desatou Pereira a rir. --Isto são historias deste homem... Bem lhe dizia eu que mais dias menos dias isso havia de acontecer. Meu amigo não sabe do dictado:... Fia-te na Virgem e não corras, verás o tombo que levas!... Tambem foi um dia em que me ri a mais não poder. Tomei um fartão... Imagine vosmecê que o tal Sr. Meyer, como ja lhe contei, anda pulando dentro da matta como se fosse veado mateiro... O José Pinho, que é mitrado, vae sempre pela estrada limpa... --Preguiçoso, atalhou Meyer a modo de observação. --Juizo tem elle, proseguiu o mineiro: mas, como ia dizendo cá, o Sr. com seus arrancos e saltos parece anta disparada. Em apparecendo bichinho voador, zás trás que darás, lá vae elle logo sem olhar para os paus, podendo pisar em cobras e espinhos, com aquella rede na mão, e tanto faz que engalfinha sempre algum animalejo... Hoje fui para a roça, e o homem furou o matto, emquanto José buscou uma sombrinha e entrou logo a roncar como um perdido... --Eu, não Sr., protestou José Pinho que queria ouvir a historia. --_Vóce_ sim, corroborou Meyer com severidade, preguiçoso!... Ande ... dê cá a pita. --Pois bem, continuou Pereira, dahi a duas horas voltou _Mochú_ neste estado pouco mais ou menos; mas trazia uma caixa cheia de bichos do matto... --Oh! perguntou Cyrino, e são bonitos? --Não ha mais nada, suspirou Meyer com tom dolente, o trabalho ficou perdido!... Eu tinha apanhado cinco especies novas... Uma queda... --Deixe-me contar o caso, atalhou Pereira. Oh! eu ri-me ... ri-me... E, para confirmar a asserção, pôz-se novamente a dar gargalhadas, que foram acompanhadas por José Pinho e até por Meyer, da parte deste com menos expansão comtudo. --Appareceu-me o _Mochú_ muito contente com a sua caixa, como se tivesse o rei na barriga. Era uma _immundicie_ de besouros, cascudos e cigarras, que o Sr. nem póde imaginar... Havia de tudo; depois, quando voltamos da roça, enxergou elle num pau podre um _aniceto_ vermelho e foi correndo a apanhal-o. Eu bradei-lhe:--Olhe, que ahi tem barranco: a arvore é podre e oca, e vosmecê rola pelo despenhadeiro, que nem a sua alma se salva.--Qual! O homem é teimoso, como um cargueiro empacador... Eu gritava-lhe:--Tome tento, _Mochú_!--Sem attender a nada, começou a caminhar em cima da _cipoada_ que cobria a boca de um _percipicio_, fundo como tudo neste mundo... Quando ia botar a mão no tal bicho encarnado, encostou-se ao pau e ... zás! ... afundou-se, dando um grito esganiçado que parecia de cotia. Mal teve tempo de agarrar-se aos cipós e lá ficou entre a vida e a morte, chamando _Júque_, _Júque_!... Eu quando vi isso, mandei a toda a pressa buscar á roça uma vara comprida e, se ella não chega logo, o Sr. Meyer e toda a sua bicharada rolavam de uma vez por aquelles fundões. --Não, rectificou o allemão, bicho rolou; caixa abriu e tudo lá se foi no fundão... --Pois bem, o _Mochú_ segurou-se com unhas e dentes ao páo e nós puxámos devagarinho, devagarinho, com um medo, um medo!... Maria Santissima!... Fazendo breve pausa: --O mais engraçado ainda não chegou, avisou o mineiro: Ah! vosmecê vae tomar uma boa _data_[83] de riso. Quando o _Mochú_ ganhou pé em terra, pôz-se a pular como um cabrito doido, por aqui, por acolá, pulo e mais pulo, e gritando como se o estivessem esfolando... Estava ... ah! meus Deus! ... estava cheio de formigas _novatas_![84] --Sim, exclamou Meyer com desespero, formiga de pau podre! ... _mein Gott_... Eu rasgo a roupa ... eu pulo ... eu gemo ... fico nú como quando minha mãe me botou no mundo!... Horrivel... Formiga do diabo!... Faz calombo em todo o meu corpo... Muita dor!... Com reiteradas e estrondosas gargalhadas acolheram Pereira, Cyrino e José Pinho essas energicas imprecações. --Poderá isso, observou o mineiro, cural-o da mania de não ouvir os outros que conhecem as coisas. E voltando-se para Cyrino: --Verdade é que o corpo delle... Que corpo. Sr. doutor, tão _arco_! ... ficou todo empolado que foi preciso esfregal-o com folhas de fumo. Depois, tomou um banho no ribeirão... --Tudo estava muito bom, observou Meyer, se caixa não abre e atira no buraco meu trabalho... --Ora, ficará para amanhã, consolou philosophicamente o camarada. Pereira, acalmado o frouxo de riso, approximara-se de Cyrino e lhe falava a meia voz: --Ah! doutor, tive uma vontade de deixar este _allamão_ sumir-se no socavão!... Se não fosse meu hospede, emfim, e recommendado de meu mano, palavra de honra pinchava-o de uma vez no inferno... Não sou nenhum _pinoia_[85]... --Mas porque? indagou Cyrino simulando admiração... --O Sr. ainda me pergunta?... Porque o homem não me faz senão falar em _Nocencia_... Outra vez me disse que ella era muito bonita e mil cousas ... perguntou se estava casada, se não; que era preciso casar as mulheres para bem dellas... Eu lá sei o que mais?... Isto é um bruto perdido ... um namorador!... --Qual, Sr. Pereira!... --É o que lhe digo!... Por acaso sou cobra de duas cabeças[86] que não veja?!... Ah! que peso uma filha! Ah! E então uma menina que já está apalavrada... Isto é uma anarchia[87]! Que diria meu genro, o Manecão?... --Não poderá dizer nada, retrucou o moço. E que diga, não faltará quem queira sua filha... --Louvado Deus, não de certo! Eu é que não quero que ella ande de mão em mão... Ou casa com o Dóca ou... --Ou ... o que? perguntou Cyrino com inquietação mas fingindo pouca curiosidade. --Ou mato a quem lhe vier transtornar a cabeça... Commigo ninguem hade tirar farofa!... E não hei de ter mil cuidados, quando vejo este _estranja_ estar com suas macaquices a dar no fraco das mulheres? Por ora, nada fez elle... Por ora ... só leva a falar na pobre menina, que a Sra. Sant'Anna guarde de todo o mal!... Podesse eu advinhar e macacos me mordam, se punha os olhos em cima de _Nocencia_. Nem que viesse com cartas e ordens do Sr D. Pedro II.... Chamei o José Pinho, proseguiu elle em voz baixa, e dei-lhe uns toques.--Então, disse-lhe eu, seu amo é o diabo com mulheres hen? Elle que é muito _ladino_[88] respondeu-me logo.--Nhôr não.--Assumptei a _embromação_[89],--Qual, você, carioca, tem levado areia nos olhos.--Eu? ... não é capaz... Então você não tem visto o que faz seu amo?--Tem sido um santo, retrucou o espertalhão. No Rio, sim--Na Côrte?--Nhôr-sim, na Côrte. Ia todas as noites a uma casa de bebidas, assim uma especie de venda de muito luxo e lá estava horas perdidas petiscando e conversando com senhoras damas, muito bonitas, bem _limpas_ ... algumas com o pescoço e os braços todos á mostra... --Contou-lhe isso? atalhou Cyrino com alguma duvida e sobresalto. --Contou, affirmou Pereira com furor. Vejam só que homem, hen? É um mequetrefe!... Esta noite e d'ora em deante, venho dormir nesta sala a ver se elle se mexe da cama. Ah! se eu pudesse! ... cahia-lhe de _cala-bocca_[90] em cima, que lhe deixava as costellas em lascas. Acabavam as imprudentes historias de José Pinho de por a ultima pedra ao edificio da desconfiança que tão depressa erigira a imaginação de Pereira em desconceito de Meyer. O que nellas havia de verdade, eram apenas algumas horas de lazer, consagradas, durante a estada no Rio de Janeiro, pelo naturalista ao consumo de grandes copazios de cerveja no café _Stadt Coblenz_, e nas quaes entretivera risonhos, bem que innocentes colloquios, com pessoas do sexo amavel, frequentadoras daquelle estabelecimento e de costumes não lá muito rigorosos. [Nota 83: Porção, quantidade.] [Nota 84: A dentada dessas formigas é em extremo dolorosa. Provêm o seu nome, de que novatos são os que se deixam morder por ellas.] [Nota 85: Homen fraco.] [Nota 86: É crença popular que umas cobrinhas que vivem dentro de terra fofa tem duas cabeças e não tem olhos.] [Nota 87: Desmoralisação.] [Nota 88: Qualificativo muito usado em todo o interior do Brasil.] [Nota 89: A mentira, o engano.] [Nota 90: Em Minas assim chamam um cacete curto e grosso.] CAPITULO XVI O EMPALAMADO Ao homem não faltam importunações; quanto à vossa capacidade, nem a conhecemos. MOLIÈRE.--_O medico á força._ Conforme o promettido, trouxe Pereira a rede para a sala dos hospedes e, encetando um modo de vigilancia muito especial, ainda que perfeitamente inutil em relação á pessoa suspeitada, associou os sonoros roncos do valente peito á ruidosa respiração de Meyer. Se, comtudo não tivessem seus olhos a venda da confiança ou, melhor, se o somno não os acommettesse sempre com tamanha imposição, de certo em breve houvera estranhado a cruel agitação em que vivia Cyrino e que este não podia mais encobrir. Na verdade, o modo porque o infeliz mancebo passava as noites era de fazer nascer suspeitas no espirito mais indifferente e desprevenido. Ou se revolvia na cama, dando mal abafados suspiros, ou então sahia para o terreiro, onde se punha a passear e a fumar cigarros de palha uns após outros, até que os gallos, alcandorados na cumieira da casa e nas arvores mais proximas, annunciassem as primeiras barras do dia. Desabrida paixão enchia o peito daquelle malsinado; dessas paixões repentinas, explosivas, irresistiveis, que se apoderam de uma alma, a enleiam por toda a parte, a prendem de mil modos, a suffocam como as serpentes de Neptuno a Laocoonte. Conhecedor, como era, dos habitos do sertão, do jugo absoluto dos preconceitos, do respeito fatal á palavra dada, antevia tantas difficuldades, tamanhos obstaculos deante de si, que, se de um lado desanimava, do outro mais sentia revoltado o nascente e já tão violento affecto. --Deus me ajudará, pensava comsigo mesmo: o que só quero é a amizade de Innocencia... Ha dias que não a vejo ... se não puder mais vel-a ... dou cabo da vida... Sublevava-se o seu coração, gyrava-lhe o sangue com vertiginosa rapidez nas veias e vinha toldar-lhe a vista, trazendo ondas de rubro calor ao descorado rosto. --Nossa Senhora da Abbadia, implorava elle puxando os cabellos com desespero, valei-me neste apuro em que me acho! Dae-me pelo menos esperanças de que aquella menina poderá um dia querer-me bem... Nada mais desejo... Possa o fogo que me consome abrazar tambem o seu peito... Costumava a fervorosa prece dirigida á Santa da especial devoção de toda a provincia de Goyaz acalmar um pouco o mancebo, que alquebrado de forças pegava no somno para, instantes depois, acordar sobresaltado e cada vez mais abatido. Tambem estava sempre de pé, quando Pereira costumava saltar da rede. --Oh! observou elle da primeira vez, isso é que se chama madrugar. --Pois é contra o meu costume, replicou Cyrino, todas estas noites tenho passado mal... --Na verdade vosmecê não está com boa cara... --Creio que me entraram no corpo as maleitas. --Essa é que é boa! Então o doutor foi _emprestar_[91] da doente a molestia?... Olhe, é preciso pôr-se forte, porque hoje mesmo ha-de lhe chegar uma boa _machina_ de doentes... --Melhor... --Já está tudo espalhado por ahi da sua chegada e a romaria não ha de tardar. --Cá a espero... --Naturalmente virá primeiro o Coelho... É boa occasião de pagar a sua divida... Não tenha receio de puxar mais no preço... --Daqui mesmo pretendo despachar um proprio para me ver livre dessa obrigação... --Isso mostra que o Sr. é pessoa de brio... Não é como certa gente que conheço... Ao dizer estas palavras, voltara-se Pereira para Meyer a contemplal-o attentamente. Estava na verdade o allemão digno de exame, posto ainda de parte outro qualquer motivo que não o de simples curiosidade. Dormia com as pernas e braços abertos e cahidos para fóra do estreito leito das canastras: tinha o queixo muito levantado pela posição incommoda da cabeça, deixando a boca meio aberta ver uma fieira de magnificos dentes. --Está roncando, hen? murmurou o mineiro. _Cavouqueiro_ ... a mim você não engana ... mas é o mesmo! Iam as prevenções de Pereira tomando proporções de idéa fixa, e Meyer, na simplicidade da ignorancia, como que de proposito ministrava elementos para que ellas mais e mais se fossem arraigando. Assim, ao almoço, lembrou-se de perguntar entre duas enormes colheradas de feijão: --Sua filha, Sr. Pereira? Como vae? _É_ melhor? --_É_ melhor o que, _Mochú_? exclamou o pae com modo esquivo. --A saude della _é_ melhor? --Está melhor; está, está, respondeu Pereira muito seccamente. Está boa ... vae fazer uma viagem... --Viagem; para onde?... Até á villa? --Homem, _Mochú_, observou o mineiro um tanto desabrido, vosmecê está que nem mulher velha, tudo quer saber... Meyer, nessa reprehensão que lhe causou vexame e alguma admiração, só enxergou censura justa à sua curiosidade, falta que confessou com toda a nobreza, bem que aggravando a situação. --É verdade, Sr. Pereira, concordou elle. A boa educação não manda o que eu fiz ... mereço porém desculpa, mereço... Sua filha é tão interessante ... que me lembro sempre della... Tenho commigo uns presentesinhos... --Guarde-os, rosnou Pereira abafando a reflexão num accesso de tosse. E para evitar o proseguimento de semelhante assumpto, deu por finda a refeição, levantando-se da mesa. --Ahi vem o Coelho, doutor, exclamou elle olhando para fóra. Chi! como esta amarello!... Ha tempos que o não via ... já parece alma do outro mundo... É do tal em quem falamos... Aperte-o, porque é _mofino_ como tudo... E, interpellando a quem chegava gritou: --Bons olhos o vejam!... Se não fosse, amigo Sr. Coelho, ter medico em casa, nunca _havéra_ de vel-o por cá; não é verdade? --Ora, respondeu o outro com um gemido, ando sempre tão doente. Nem faz gosto viver assim... Mas qu'é delle, o homem? --Está aqui... --Já me disseram que faz milagres. Deixou nome para lá das Parnahybas... Sabia? --Lá que tivesse deixado nome, não; mas que é _cirurgião_ de patente, tenho certeza, porque, num abrir e fechar de olhos, me pôz de pé uma pessoa cá de casa. --Se elle me curar ... não sei mesmo como lhe agradecer. --É pagar-lhe, concluiu Pereira tratando logo de advogar os interesses do hospede. --Sim, hei-de ... pagar-lhe, confirmou o outro com alguma hesitação. --Em todo o caso, desça do animal. Pouco depois, entrava na sala e comprimentava a Cyrino e a Meyer a pessoa a quem o mineiro chamara Coelho. Era homem já de edade, muito mais quebrantado por enfermidades que pelos annos; tinha a testa enrugada, as bochechas meio inchadas e balofas, os labios quasi brancos e os olhos empapuçados. --Qual dos senhores é o doutor? perguntou elle. --Sou eu, respondeu Cyrino revestindo-se de convicto ar de importancia, emquanto Meyer apontava para elle, cedendo direitos que talvez pudesse contestar. Interveio Pereira com amabilidade: --Sente-se, Sr. Coelho, sente-se. Não se ponha logo a falar de molestias... Isto não vae de afogadilho... Descance um pouco... Olhe, já almoçou? --O pouco que como, retrucou o outro, já está comido. --Pois bem, ponha-se primeiro a gosto: depois então, converse com o doutor... Diga-me: que ha de novo pela villa? --Que eu saiba, nada.... Tambem ha mais de anno, que de lá nenhuma noticia tenho... Já não se me dá do que vae pelo mundo... Quem não goza saúde, perde o gosto de tudo... É mesmo uma calamidade... Emquanto Coelho, em toada monotona, desfiava outras queixas no mesmo sentido, tirara Cyrino da canastra o seu Chernoviz e algumas hervas seccas que depoz em cima da mesa. --O senhor, declarou elle voltando-se para o doente, está empalamado. --É verdade, Sr. doutor. --Eu, que não sou physico, observou Pereira, diria logo isso... --Chi, compadre! atalhou Coelho com impaciencia e pedindo silencio. --O senhor, continuou Cyrino com entono, teve maleitas muitos annos _afios_[92] depois, começou a sentir fastio e o estomago embrulhado; inchou todo e em seguida definhou... Aos poucos, foi perdendo a sustancia e o _talento_[93]. --Tal qual! murmurou Coelho seguindo com cautelosa attenção a marcha do diagnostico. --Agora, o Sr. não póde comer que não sinta affrontação, não é? --Muita, Snr. doutor. --Este homem, disse Pereira para Meyer, leu bastante nos livros.... --Veio-lhe depois uma canseira, e, quando o Sr. anda, dão-lhe uns suores e tremuras por todo o corpo... O baço está engorgitado e o figado tambem... De noite fica o Sr. sem poder tomar respiração, mais sentado que deitado... Ás vezes tosse muito, uma tosse sem escarrar, como quem tem um pigarro secco... --Tal qual! repetiu o enfermo com uncção e quasi enthusiasmo. --Pois bem, terminou Cyrino, como já lhe disse, o Sr. está _empalamado_. --E não ha cura? perguntou Coelho meio duvidoso. --Ha, mas o remedio é forte. --Comtanto que faça bem... --Muita gente, replicou Cyrino, tenho já curado em estado peior que o Sr.; mas, repito, o remedio é violento... --Tomarei tudo, affirmou Coelho: ha annos que faço um horror de mézinhas e de nenhuma dellas tiro proveito. Vamos ver. Cyrino neste ponto mudou o tom de voz e olhando para Pereira: --O Sr. sabe, observou elle que o meu modo de vida é este... Com um movimento de cabeça applaudiu o mineiro aquella estrada em materia. O mesmo não pensou Coelho, que tartamudeou: --Ah!... Estou prompto... Sou pobre muito pobre... Piscou Pereira um olho com malicia. --Costumo, continuou Cyrino, receber o pagamento em duas _ametades_... Depois accrescentou, um tanto vexado: Si falo nisto agora com esta pressa, é porque tambem tenho precisão urgente de dinheiro... Não acha, Sr. Meyer? --Pois não, pois não, concordou o allemão: tem todo o direito. --Meu amigo, corroborou Pereira, o doutor não trabalha para o bispo; tem que ganhar honradamente a vida. --Então como lhe dizia, proseguiu o outro dirigindo-se para Coelho, o senhor pagar-me-ha no principio da applicação e no fim. Assim, não ha enganos... Serve-lhe? --Que remedio! suspirou Coelho. Eu lhe darei ... até trinta mil réis ... ou ... quarenta... --Qual! retorquiu Cyrino. O meu preço é um só. --E a quanto monta? --A cem mil réis[94]. --Cem _mim_ réis! exclamou Coelho aterrado. --Cincoenta no principio, cincoenta no fim. Gemeu o doente lá comsigo. --Ora o que é isto para você, compadre? interveio Pereira. Um atilho de milho para quem tem tulhas cheias a valer[95]!... --Nem tanto, nem tanto assim, objectou Coelho. --Deixe-se de historias, continuou Pereira. Se vosmecê não tivesse bons patacos, eu diria logo ao nosso amigo:--Olhe que este é dos nossos, não tem onde cair morto--e elle o _havéra_ de curar de graça ... não é? --De certo, de certo, declarou Cyrino com muita promptidão. --Mas com vosmecê o caso é _defronte_[96]. Doutra maneira, por que razão havia um cirurgião de andar por estes _socavões_? Tambem quer _bichar_ um pouco... É muito justo... --Cincoenta ... mil ... réis balbuciava Coelho; assim de pancada... --Se o medico o cura, disse Meyer intromettendo-se, é negocio da China. Nada dizia Cyrino por dignidade propria. Estava folheando o Chernoviz, cujas paginas mostravam continuo manusear, algumas até enriquecidas de notas e observações á margem. Assim no artigo _oppilação_ ou _hypoemia intertropical_ havia elle escripto ao lado: «É o que se chama no sertão _molestia de empalamado_.» E, no fim, abrira grande chave para encerrar esta ousada e peremptoria sentença: «Todos estes remedios de nada servem. Sei de um muito violento, mas seguro. Foi-me, ha annos, ensinado por Mathias Pedroso, curandeiro da villa do Prata, no sertão da Farinha Podre, velho de muita pratica e que conhecia todas as raizes e hervas do campo.» --Pois bem, disse Coelho depois de grande hesitação, está o negocio fechado. Mas, olhe que entrará no pagamento o preço das mézinhas, e as visitas hão de ser feitas em minha casa... --Não ha duvida, concordou Cyrino; irei á sua fazenda todos os dias... Não é longe daqui? --Nhôr-não ... duas leguas pequenas, pela estrada. --Bem. O senhor, em voltando á casa, metta-se logo na cama. Coelho fez signal que sim. --Amanhã, continuou o moço, deve tomar estes pós que lhe estou mostrando. Divida isto em duas porções; hade fazer-lhe muito effeito; depois descanse dois ou tres dias, se acaso se sentir muito fraco; em seguida... E parando de repente, encarou Coelho alguns instantes: --O Senhor quer mesmo curar-se? --Oh! se quero! --E tem confiança em mim! --Abaixo de Deus só mecê póde salvar-me. --Então, tomará ás cegas o que eu lhe receitar? --Até carvão em braza. --Olhe bem o que diz... Não gosto de começar a tratar para depois parar... --Não tenha esse medo commigo... Viver como vivo, antes morrer... --Então, continuou Cyrino com pausa, acabados os dias de socego, hade o senhor engulir uma boa _data_ de leite de jaracatiá. --_Jaracatiá_?! exclamaram com assombro o doente e Pereira. --_Jarracatiá_?! gaguejou por seu turno Meyer arregalando os olhos, que é _Jarracatiá_? --Mas isso vae queimar as tripas do homem, observou o mineiro. Cyrino replicou um tanto offendido: --Não sou nenhum creançola, Sr. Pereira. Sei bem o que estou dizendo. Este remedio é segredo meu, muito forte, muito damninho; mas não é nem uma, nem duas vezes, que com elle tenho curado _empalamados_. A coisa está no modo de dar o leite e na quantidade: por isso, é que não faço mysterio, avisando comtudo que com uma porçãosinha mais do que o preciso, o doente está na cova... --Salta! atalhou Pereira, tal mézinha não quero eu ... antes ficar _empalamado_... --Que é _jarracatiá_? tornou a perguntar Meyer. Coelho abaixou a cabeça e parecia estar reflectindo na resolução que havia de abraçar. Depois, com voz melancolica: --O dito, dito, declarou, aceito tudo o que vosmecê me der. Agora, quanto fizer está bem feito... Como é que devo tomar o jaracatiá? --Em tempo lhe direi, replicou Cyrino. Fazem-se tres cortes no pé da arvore e deixa-se correr o primeiro leite: eu mesmo hei de recolher o que for bom. Tenha toda a confiança em que o senhor ficará são... Bem sabe, ninguem em negocio de doença, mais do que outro qualquer, póde nunca dizer: isto hade ser assim ou _assado_... Todos estamos nas mãos de Deus. Só Elle póde saber se a molestia nos sahirá do corpo ou nos hade atirar á sepultura. Todo o bom christão conhece isso e deve conformar-se com a vontade divina... O que o medico faz é ajudar a natureza e dar a mão ao corpo quando elle póde ainda levantar-se... --Justo, justo! apoiou Meyer, então todo empenhado em picar um formoso coleoptero. --Assim tambem é que eu entendo disse o mineiro. --Mas, o que é _jarracatiá_, Sr. Pereira? insistiu o allemão. Voltou-se o interpellado com impaciencia: --É uma arvore, Sr. Meyer, arvore grande de folhas cortadas, que dá umas especies de mamõesinhos. Deitam leite muito grosso e queimão os beiços quando a gente não tem cuidado. É uma arvore ouviu? Uma arvore[97]! --Ah! exclamou o allemão concertando a garganta. Nesta occasião sacou Cyrino da canastra outros remedios e passou-os a Coelho, dando-lhe minuciosas informações sobre o modo por que havia de usar delles. --Tem muito enjoo, quando come? perguntou o curandeiro. --Muito Sr. doutor. --Assim é, mas deixe estar; depois do leite de jaracatiá, volta-lhe a appetencia. Nos primeiros tempos, o senhor só hade beber claras de ovos bem batidas. Depois, irá a pouco e pouco tomando mais alimento. --Deus o ouça... Levantou-se Pereira e, chegando-se á porta, annunciou: --Ahi vem gente... Estou ouvindo passos de animal montado... Sem duvida é algum pobre _engorovinhado_ de doença. Isto de molestias, não faltam no mundo. Tambem ha tanta maldade, que não poderá ser por menos. Depois de ligeira pausa, acrescentou em tom de surpresa e aborrecimento. --Hi! meu Deus!... Nossa Senhora nos soccorra... Sabem quem vem chegando?... É o Garcia; está com o _mal_[98]?! ha mais de dois annos e não quer crer na desgraça... Pobre coitado, sem duvida vem comprar o desengano... Tenho muita pena dessa gente ... mas, devéras, não a quero ver em minha casa... Vamos, Sr. doutor, despache o Garcia depressa. Com lazaros não se brinca. A Senhora Sant'Anna de tal nos livre! Nem olhar é bom. E, Pereira, voltando-se para dentro, pediu apressadamente: --Não deixe o homem _desapear_, doutor: ficava-me depois o desgosto de ter que lhe fazer alguma mácreação. Pelo amor de Deus, vá lá fóra... Veja o que elle quer ... e dê-lhe boas tardes da nossa parte... Olhe, está chamando... Saia, doutor saia! Ouvia-se, com effeito, uma voz perguntar se estava em casa o Sr. Pereira. Este vendo que Cyrino não se apressava á medida dos seus desejos, ou temendo que o recem-chegado lhe entrasse na sala, sem demora appareceu á soleira da porta e, com manifesta sequidão, respondeu ao humilde comprimento de chapéu e á meiga saudação que lhe era dirigida. [Nota 91: Emprestar de alguem, por tomar emprestado ou pedir emprestado, é locução muito corrente em todo o sertão de S. Paulo, Minas Geraes e Matto Grosso. É legitimo gallicismo, que corresponde exactamente ao verbo _emprunter_. Recordo-me da admiração com que ouvi uma pessoa da villa de Miranda, aliás de alguma leitura, dizer-me. Venho ter com o Sr. para lhe emprestar 20$000.--Mas não preciso, retorqui-lhe.--Não; quem precisa sou eu. Eu empresto do Sr.--Ah! o Sr. vem pedir-me 20$000, não é?--Pois foi o que eu lhe disse desde o principio.--Não querendo encetar uma discussão philologica, saquei do bolso o dinheiro pedido, o qual, para fazer justiça a quem _emprestava_, foi pontualmente pago no prazo promettido.] [Nota 92: Emprega-se, ás vezes, no sertão em lugar de a fio.] [Nota 93: Como já dissemos, talento é empregado como synonimo de força physica, robustez.] [Nota 94: É o preço por que um curandeiro queria curar um empalamado, por cuja fazendola passámos em Julho de 1867, nesse mesmo sertão de Sant'Anna.] [Nota 95: Corresponde ao dito popular no Rio Grande do Sul: Que é um boi para quem tem uma estancia?] [Nota 96: Differente.] [Nota 97: A receita do leite de jaracatiá para a cura de hypoemia intertropical é veridico e causou-nos grande admiração, quando a ouvimos aconselhada por um medico do sertão. Pareceu-nos tão absurda e violenta, que dissuadimos a pessoa que devia, conforme a sua resolução, pol-a em pratica dahi a dias. Entretanto, um profissional abalisado a quem contamos o caso, declarou-nos que fôra de proveitosa applicação naquella molestia.] [Nota 98: Mal de S. Lazaro; lepra.] CAPITULO XVII O MORPHETICO O leproso.--Interesse?! Ah! nunca inspirei senão compaixão.... O militar.--Quão feliz fora eu, se pudesse dar-vos algum consolo!.... XAVIER DE MAISTRE.--_O leproso de Aosta._ Não devo ter sociedade senão commigo mesmo; nenhum amigo, senão Deus. Generoso estrangeiro, adeus, sê feliz. Adeus para sempre!.... _IDEM._ A pessoa que chegára, bem que tivesse descavalgado, não se adeantou ao encontro do dono da casa. Pelo contrario como que recuou, conservando-se depois immovel, encostado a um burrinho, cujas redeas segurava. De seu lugar perguntou-lhe Pereira com expressão não muito prazenteira: --Então, como vae, Sr. Garcia? --Como hei de ir, respondeu o interpellado. Mal ... ou, melhor, como sempre. --Pois esteja na certeza de que muito sinto. --Está ahi o cirurgião? indagou Garcia. --Não tarda a vir vel-o ahi fóra... Olhe, é um instantesinho. Palavras tão crueis não pareceram fazer mossa no desgraçado. --Esperal-o-hei com toda a paciencia, replicou melancolico. --Já sei que volta hoje para casa, affirmou Pereira. --Volto. Se a noite me pegar em caminho, ficarei no pouso das Perdizes. --É verdade: lá ha uma tapera. Mas o Sr. não tem medo de almas do outro mundo? Dizem que o tal rancho velho é mal assombrado. --Eu?! exclamou o infeliz. Só tenho medo de mim mesmo. Quizesse um defunto vir gracejar um pouco commigo, e de agradecido lhe beijava os dedos roidos dos bichos. Olhe, Sr. Pereira, continuou com voz um tanto alta e agoniada, não levo a mal o senhor não me convidar para entrar em sua casa; não, no seu caso, havia de fazer o mesmo. --Oh! Sr. Garcia! quiz protestar Pereira. --Nada;... digo-lhe isto do coração... Na minha familia, sempre tivemos nojo de lazaros... Sou o primeiro... O Sr. nem imagina... Vivi muitos annos meio desconfiado... A ninguem contei o caso... De repente, arrebentou o _mal_ fóra. Já não era mais possivel enganar nem a um cégo... Ah! meu Deus, quanto tenho soffrido!... --Permitta Elle, interrompeu Pereira em tom compassivo, que este doutor tenha algum remedio... Bem vê ... ás vezes... --Curar a morphéa?! replicou Garcia com sorriso pungente de sarcasmo. Não ha esse _pintado_ ... que em tal pense... --Então para que quer ver o medico? --Só para uma coisa... Saber pelos livros que elle tem lido e pelo conhecimento das molestias, se isto pega... É só o que quero... Porque então fujo de minha casa... Desappareço desta terra ... e vou-me arrastando até tombar nalgum canto por ahi... Dizem uns que pega ... outros que não ... que é só do sangue... Eu não sei. E, abanando tristemente a cabeça, apoiou-se ao tosco sellim. Depois, ergueu os olhos para os céus, e exclamou: --Cumpra-se tudo quanto Deus Nosso Senhor Jesus-Christo houver determinado!... Se o medico me desenganar, não quero que a minha gente fique toda ... marcada... Irei para S. Paulo... Pereira cortou este doloroso dialogo: --Está bem, patricio Garcia, disse, vou já mandar-lhe o homem ... espere um pouco... E, entrando, reiterou o pedido a Cyrino, que se demorara a receitar a Coelho umas beberagens de _velame_ e _pés de perdiz_, plantas muito abundantes naquellas paragens, de grandes virtudes diureticas e que deveriam ser empregadas um mez depois da applicação do leite de jaracatiá. --Ande, doutor, instou Pereira, vá lá fóra ver o coitado do outro e despache-me depressa. Estou todo _enfernizado_ por vel-o no meu terreiro. Cyrino sahiu então e, caminhando com lentidão, parou a alguns passos do malaventurado Garcia, cujo rosto repentinamente se contrahiu emquanto tirava o chapéo com submissão e receio. Vinha então a tarde descendo, e a luz do crepusculo irradiava por toda a parte, tão melancolica e suave que, sem saber por que, a alma de Cyrino de repente se confrangeu. Com assombro o encarava o lazaro. Deante delle se erguera quem lhe ia apontar o caminho da eterna proscripção. Dos seus labios ia cahir a sentença ultima, irremediavel, fatal! Quanta angustia no olhar daquelle homem! Que pensamentos sinistros! Quanta dor! Tambem ficara alli attonito, boquiaberto, á espera que a palavra de Cyrino lhe quebrasse o horroroso enleio. --Então, disse este depois de breve pausa, que me quer o senhor? --Doutor, balbuciou Garcia ... primeiro que tudo quero ... pagar-lhe; ... trouxe algum ... dinheiro ... mas, talvez ... seja ... pouco. Interrompeu-o Cyrino: --Não recebo dinheiro para tratar ... da sua molestia. --Quer isto dizer, replicou com acabrunhamento Garcia, que ella não tem cura... Eu bem sabia, mas ... é tão duro ouvir sempre isso!... Olhe, o meu mal é de pouco ... está em principio. Quem sabe ... se o Sr. não conhecerá alguma herva?... --Infelizmente, respondeu Cyrino, nem eu, nem ninguem conhece essa planta... --Emfim! E Garcia, fechando os olhos como que para concentrar as forças, continuou: --Ah! doutor, eu sou um pobre homem ... velho já cansado... Porque não me veio a morte em lugar desta podridão que me está comendo as carnes?... Muito tempo a senti dentro de mim... Disfarcei, disfarcei, até ao dia em que minha neta ... a filha do meu coração ... a Jacyntha ... ella mesma, mostrou certo receio de me abraçar... Ah! senhor, quanto se soffre nesta vida! E Garcia parou offegante, empallidecendo muito. --Dê-me agua, exclamou elle, agua ... pelo amor de Deus!... Pudesse agora ... ser o meu dia. A minha garganta ... está que nem fogo!... E agarrou-se aos arreios para não cahir no chão. Cyrino correu a buscar agua. --Onde hade ser? perguntou Pereira. --Onde queira, respondeu o outro com pressa, veja que aquelle christão está soffrendo... --Ah! leve a caneca de louça... Depois a quebraremos... Com sofreguidão tomou o lazaro o vaso, bebeu de um trago e pareceu melhorar. --Foi um vágado, disse reassumindo aos poucos a calma. Mas, como lhe contava, certeza tinha eu do mal. Agora, só quero saber uma coisa e vou-me de partida. Este mal ... pega, doutor? --Pega, affirmou Cyrino com tristeza. --E que me resta fazer? --Pedir á Senhora Sant'Anna paciencia e a Nosso Senhor Jesus-Christo... Garcia abanava a cabeça acabrunhado. ... que o proteja na sua vida de desgraças. --Meu Deus, balbuciou o morphetico a meia voz, dae-me forças ... coragem para que eu faça o que devo fazer. E, com subita resolução: --Cumpra-se a vontade do Altissimo! exclamou emfim. Doutor, obrigado! O pobre lazaro hade pedir ao Todo Poderoso que neste mundo e no outro lhe pague as suas palavras de homem de letras... Adeus! Eu me vou para as terras de S. Paulo ... talvez me junte á gente da minha especie. Adeus... E, a custo montando a cavallo, voltou-se para as pessoas que tinham de longe vindo assistir á consulta. --Adeus, disse elle acenando com o chapéu, gente e patricios. Senhor Pereira, Sr. Coelho, mais senhores, adeus! Eu me _bóto_ de uma feita para _lá_ das _Parnahybas_[99]... Este sertão não me vê mais nunca!... Acolheu o silencio essas palavras de eterna despedida. Garcia então, esporeando com o calcanhar o ventre da cavalgadura, a passo tomou rumo da estrada geral e sumiu-se numa das voltas do caminho, quando ja vinha a noite estendendo o seu lugubre manto. [Nota 99: Isto é, para lá do rio Paranahyba: _Para cá ou para lá das Parnahybas_ é phrase muito usada no sertão em que corre aquelle grande rio.] CAPITULO XVIII IDYLLIO Mas, que luz é essa que alli apparece, naquella janella? A janella é o oriente, e Julieta o sol. Sobe, bello astro, sobe e mata de inveja a pallida lua. SHAKESPEARE.--_Romeu e Julieta_, Acto II. Entretanto, desde algum tempo, sentia-se Virginia agitada de mal desconhecido... Em sua fronte, não pousava mais a serenidade, nem o sorriso lhe pairava nos labios... Pensa ella na noite, na solidão, e fogo devorador a abraza toda. B. DE SAINT-PIERRE.--_Paulo e Virginia._ Decorreram sem novidade dias e dias uns após outros; Cyrino diagnosticando e curando ou melhor, receitando; Meyer augmentando cada vez mais a sua bella collecção entomologica, sempre feitorisado por Pereira, que cautelosamente tratava de mantel-o no suspeitoso circulo da sua apertada vigilancia. Confidente de todos os infundados e mal empregados receios era Cyrino. O _allamão_, dizia o mineiro, não me deixa pôr pé em ramo verde, mas também trago-o vigiado que é um gosto... Se desconfiasse, teria medo até da sua sombra... Estou em brazas... Não sei porque não chega o Manecão Dóca... Quero arriar a carga no chão... Agora, mais do que nunca, devo casar _Nocencia_... Estas mulheres botam sal na moleira de um homem. Salta! E ainda isto tudo não é nada. --Então espera muito breve o Manecão? perguntou o outro com anciedade. --Não pode tardar ... por estes dois ou tres dias quando muito... Vem de Uberaba e sem duvida por lá arranjou todos os papeis... Dei a certidão do meu casamento ... a do baptismo da pequena ... e adeantei dinheiro para as despezas ... bem que elle refugasse meio vexado. --Então está tudo decidido? perguntou Cyrino com vivacidade. --Boa duvida!... Já lhe tenho dito mais de uma vez. Hoje é coisa de pedra e cal... Se até trato o Manecão de filho... A honra desta casa é tambem honra delle. --Mas sua filha? --Que tem? --Gosta delle? --Ora se!... Um homemzarrão ... desempenado. E, quando não gostasse é vontade minha, e está acabado. Para felicidade della e, como boa filha que é, não tem que piar... Estou, porem, certissimo de que o noivo lhe faz bater o coração ... tomara ver o _cujo_ chegado! Já nesse tempo, como dissemos, Innocencia de todo se restabelecera, ainda que Cyrino tivesse feito quanto possivel render a enfermidade. Mas, quando o rubor da saúde voltou á assetinada cutis da sertaneja e o vigor ao esbelto corpo, não houve pretexto a que se apegar, e as entrevistas curtas e graves de medico foram cortadas, até mesmo para não desviar a attenção de Pereira da pessoa de Meyer. Com o coração, pois, partido de dor, declarou que os seus cuidados e presença se tornavam completamente desnecessario. Seguiram-se então semanas inteiras, sem que pudesse pôr os anciosos olhos na formosa namorada, e por tal modo se exacerbou a sua paixão que, para encobril-a e disfarçar a excitação nervosa, a falta de appetite e pallidez extrema, teve que recorrer a desculpas de molestia; cahiu realmente doente. A incerteza em que se via, sem, pelo menos, saber se o seu affecto era ou não correspondido, dava-lhe accessos de violenta angustia, que a deshoras tocava ás raias da exasperação. Uma noite, em que havia luar embaciado por ligeira bruma, tomou a sua afflicção tal violencia que elle decidiu fugir daquelle local de soffrimentos e incertezas, logo na manhã seguinte. Assente uma vez nesta resolução, ergueu-se do leito em que jazia prostrado pelo mais cruel desalento e, com algum custo, sahiu para o terreiro, abrindo cautelosamente a porta da casa, afim de não acordar os companheiros de quarto. Uma vez fóra, sentou-se num tronco de madeiro o alli ao ar fresco e acariciador da madrugada, entrou com mais tranquillidade a pensar no caso. Seria uma hora depois de meia noite. Estavam os espaços como que illuminados por essa luz serena e fixa que irradia de um globo despolido; luz fosca, branda, sem intermittencias no brilho, sem scintillações, e diffundida igualmente por toda a atmosphera. Haviam já os gallos cantado uma vez, e, ao longe, muito ao longe, de vez em quando, se ouvia o clamor das anhumas pócas. Levantou-se de repente Cyrino. Depois de alguma vacillação, deu uma volta por toda a habitação, pulando os cercados, e tomou o rumo do frondoso laranjal, a cuja espessa sombra se abrigou por algum tempo. Achegou-se, em seguida, á cerca dos fundos da casa o parou no meio do pateo, olhando com assombro para uma janella aberta. Um vulto alli estava!... Era o della; Innocencia... Não havia duvidar. A principio, nenhum movimento fez; mas, depois, lentamente se foi retirando e aos poucos fechou o postigo. Cyrino deu um só pulo e de leve, muito de leve, bateu apressadas pancadas na taboa da janella. [Ilustração: Innocencia!... Innocencia!... chamou com voz sumida.] --Innocencia!... Innocencia!... chamou com voz sumida, mas ardente e cheia de supplica. Ninguem lhe respondeu. --Innocencia, implorou o moço, olhe ... abra ... tenha pena de mim... Eu morro por sua causa... Depois de breve tempo, que para Cyrino pareceu um seculo, descerrou-se a medo a janella, e appareceu a moça toda assustada, sem saber por que razão alli estava nem explicar tudo aquillo. Parecia-lhe um sonho. Quiz, entretanto, dar qualquer desculpa á situação e, fingindo-se admirada, perguntou muito baixinho e a balbuciar: --Que vem ... mecê ... fazer aqui? ... já ... estou boa. Da parte de fóra, agarrou-lhe Cyrino nas mãos. --Oh! disse elle com fogo, doente estou eu agora... Sou eu que vou morrer ... porque você me enfeitiçou, e não acho remedio para o meu mal. --Eu ... não, protestou Innocencia. --Sim ... você que é uma mulher como nunca vi... Seus olhos me queimaram... Sinto fogo dentro de mim... Já não vivo ... o que só quero é vel-a ... é amal-a ... não conheço mais o que seja somno e, nesta semana, fiquei mais velho do que em muitos annos havia de ficar... E tudo, porque, Innocencia? --Eu não sei, não, respondeu a pobresinha com ingenuidade. --Porque eu amo ... amo-a, e soffro como um louco ... como um perdido... --Ué, exclamou ella, pois amor é soffrimento? --Amor é soffrimento, quando a gente não sabe se a paixão é acceita, quando se não vê quem se adora: amor é céu, quando se está como eu agora estou. --E quando a gente está longe, perguntou ella, que se sente?... --Sente-se uma dôr, cá dentro, que parece que se vae morrer... Tudo causa desgosto: só se pensa na pessoa a quem se quer, a todas as horas do dia e da noite no somno, na reza, quando se ora a Nossa-Senhora, sempre ella, ella, ella! ... o bem amado ... e... --Oh! interrompeu a sertaneja com singeleza, então eu amo.... --Você? indagou Cyrino sofregamente. --Se é como ... mecê diz... --É ... é ... eu lhe juro!... --Então ... eu amo, confirmou Innocencia. --E a quem?... Diga: a quem? Houve uma pausa, e a custo retrucou ella, ladeando a questão: --A quem me ama. --Ah! exclamou o joven, então é a mim ... é a mim, com certeza, porque ninguem neste mundo, ninguem, ouviu? é capaz de amal-a como eu... Nem seu pae ... nem sua mãe, se viva fosse... Deixe falar seu coração... Se quer ver-me fóra deste mundo ... diga que não sou eu, diga!... --E como ia mecê morrer? atalhou ella com receio. --Não falta pau para me enforcar, nem agua para me afogar. --Deus nos livre! não fale nisso... Mas, porque é que mecê gosta tanto de mim? Mecê não é meu parente, nem primo, longe que seja, nem conhecido sequer... Eu _lhe_ vi apenas pouco tempo ... e tanto se agradou de mim? --E com você ... não succede o mesmo? perguntou Cyrino. --Commigo? --Sim, com você... Porque é que está acordada a estas horas? Porque é que não pode dormir? ... que a cama lhe parece um brazeiro, como a mim tambem parece?... Porque pensa em alguem a todo o instante? Entretanto, esse alguem não é primo seu, longe que seja, nem conhecido sequer?... --É verdade, confessou Innocencia com doce candura. Depois quiz emendar a mão: --Mas, quem lhe disse que vivo pensando em mecê? --Innocencia, implorou o moço, não queira negar; vejo que sou amado... --Sempre amar! observou ella, mais para si do que para quem a ouvia. No anno que já passou e por occasião da Sra Sant'Anna[100], aqui vieram umas parentas minhas e caçoaram commigo, porque eu não as entendia: tanto assim que uma dellas, a Nhã Tuca, me disse: «Deveras, mecê ainda não gostou de nenhum moço? E eu respondi: Não _assumpto_[101] o que mecê estão a _prosear_.» Aquillo era certo, e tão verdade como estar nosso Deus no paraiso... Hoje... --E hoje? --Hoje? repetiu a moça. Quem sabe se não era bem melhor não ter nunca gostado de ninguem? --Isso não está na gente... É ordem lá de cima... --Emfim, se for destino, que se cumpra. Conservava-se Innocencia ainda um pouco arredada da janella, de modo que Cyrino, para lhe falar baixinho, tinha o corpo inclinado do lado de dentro. Segurava as mãos da namorada e puxava com doce violencia, quando mostrava querer afastar-se. Era o ardente colloquio dos dois cortado de frequentes pausas, durante as quaes se embebiam reciprocos os olhares carregados de paixão. --Deixa-me ver bem o teu rosto, dizia Cyrino a Innocencia. Para mim, e muito mais bello que a lua e tem mais brilho que o sol. E, apezar de alguma resistencia, fraca embora, mas conscienciosa, que lhe foi opposta, conseguiu que a formosa rapariga se recostasse ao peitoril da janella. --Amar, observou ella, deve ser coisa bem feia. --Porque? --Porque estou aqui e sinto tanto fogo no rosto!... Cá dentro me diz um palpite que é peccado mortal que faço .. --Você tão pura! contestou Cyrino. --Se alguem viesse agora e nos visse, eu morria de vergonha. Sr. Cyrino deixe-me ... vá-se embora! ... o Sr. me atirou algum quebranto ... aquella sua mézinha tinha alguma herva para mim tomar ... e me virar o juizo... --Não, atalhou o mancebo com força, eu lhe juro! Pela alma de minha mãe ... o remedio não tinha nada! --Então porque fiquei ... _ansim_, que me não conheço mais?... Se papae apparecesse ... não tinha o direito de me matar?... Foi-se-lhe a voz tornando cada vez mais baixa e sumiu-se num golfão de lagrimas. Atirou-se Cyrino de joelhos diante della. --Innocencia, exclamou, pela salvação de minha alma lhe dou juramento: nada de mau fiz para prender o seu coração... Se você me ama, é porque Deus assim mandou... Sou um rapaz de bons costumes... Até hoje nunca tinha amado mulher alguma ... mas não sei como deixar de amar uma moça como você... Perdoe-me; se você soffre ... eu tambem padeço muito... Perdoe-me... Alçara o mancebo um pouco a voz. De repente Innocencia estremeceu. --Não ouviu ruido? perguntou ella com terror. --Não, respondeu Cyrino. --Alguem acordou lá dentro... --Pois ... então vá ver ... o que é ... e se não for nada, volte... Aqui a espero, escondido á sombra da parede... Minutos depois, reappareceu a moça. --Não vi nada, disse. --Então foi abusão. --É melhor que o Sr. se vá embora. --Não, Innocencia, tenha pena de mim... Eu não poderei vel-a tão cedo e ... preciso conversar ... mesmo para arranjo da nossa vida... O Manecão não tarda... --Ah! exclamou ella com sobresalto, então mecê sabe... --Sei; e desgraçadamente, breve está elle batendo aqui... --Eu bem dizia que o Sr. me _havéra_ de perder... Antes de o ter visto ... casar com aquelle homem, me agradava até... Era uma novidade ... porque elle lhe disse que me levava para a villa... Mas agora esta idéa me mette horror! Porque é que mecê mexeu commigo? Sou uma pobre menina, que não tem mãe desde creancinha... Não ha tanta moça nas cidades ... nos povoados?... Porque veio tirar o somno ... a vontade de viver a quem era ... tão alegre ... que até hoje não pensou em maldade ... e nunca fez damno a ninguem? --E eu? replicou com energia Cyrino, pensa então que sou feliz?... Olhe bem uma coisa Innocencia. Digo-lhe isto deante de Deus: ou hei de casar com você ... ou dou cabo da vida... Quem arranjou tudo assim ... foi o meu caiporismo... Se eu tivesse passado aqui antes daquelle homem, que odeio, que quizera matar ... nada impediria que eu fosse hoje o ente mais feliz do mundo!... Mais feliz aqui neste sertão, do que o Imperador nos seus paços lá na côrte do Rio de Janeiro! Eu já lhe disse ... culpa não tive... --Não ha nada que me possa salvar, atalhou a moça. --Nada?... Talvez... Soou nesse momento e repentinamente do lado do laranjal um assobio prolongado, agudissimo, e uma pedra, arremessada por mão mysteriosa e com muita força, sibilou nos ares e veiu bater na parede com surda pancada, passando rente á cabeça de Cyrino. Deu Innocencia abafado grito de terror e fechou rapidamente a janella, ao passo que o mancebo, esgueirando-se com celeridade pela sombra, resoluto correu para o ponto donde presumia ter partido a pedra. Não viu ninguem. Por toda a parte, o ruido mysterioso e peculiar a uma noite calma de verão. Percorreu em todos os sentidos o pomar, e só ouviu a bulha dos seus passos. Afinal, de cansado, deixou o sitio e cautelosamente se dirigiu para o terreiro da frente. Quando lá chegou, parou attonito. O mesmo assobio, prolongado e finissimo, desta feita talvez mais estridente, feriu-lhe os ouvidos. [Nota 100: Sc. da festa.] [Nota 101: Não percebo.] CAPITULO XIX CALCULOS E ESPERANÇAS Apezar, porém, de joven, apezar da violencia do amor que a prendia a Julião, sabia ella conter os movimentos do seu coração e desconfiar de si mesma. WALTER SCOTT.--_Peveril do Pico._ Lisa--Comtanto que tenhas bastante resolução... Lucinda--Que queres que eu faça contra a autoridade de um pae? Se elle for inexoravel aos meus pedidos?... MOLIÈRE.--_O amor medico._ Durante os dias de estada nas terras de Pereira, as quaes não tinham limites nem visinhos dalli a muitas leguas, augmentou Meyer a sua interessante collecção com extraordinaria variedade de bichinhos e sobretudo borboletas. Tal era a alegria de que se possuira por esse fausto motivo, que a cada momento a manifestava num tom de franqueza capaz de por si só convencer o mais descrente dos homens em questão de sinceridade. --Sr. Pereira, dizia o naturalista, afianço-lhe que em parte alguma do Brazil estive ainda tão bem como em sua casa. --Eu te entendo, maroto, rosnava o mineiro. --Devéras!... Só o que sinto é que sua filha não nos apparecesse mais... Sinto muito, na verdade... Sorriu-se Pereira com riso amarello e replicou, apertando os punhos de raiva: --_Mochú_ sabe ... isto são costumes cá da terra. As mulheres não são feitas para... --Para que? perguntou Meyer com pausa. --Para _prosearem_ com qualquer um... --Que é _prosearem_? --É conversar, dar de lingua, explicou Cyrino. --Obrigado, doutor, retorquiu Meyer, agradecendo mais aquella indicação philologica que foi immediatamente enriquecer o seu caderno de notas. _Prosear_ é conversar. Muito bem!... Pois é pena, Sr. Pereira, porque sua filha é uma bonita senhora! --Nesta arapuca não caio eu, seu tratante... Hei-de _toda a vida_ andar com o olho em ti, murmurava o mineiro. --É pena, confirmava Meyer duas e tres vezes ... é pena... Por certo não era esta a linguagem mais propria para desvanecer as prevenções e receios de Pereira; ao envez, mais e mais recrescia a sua vigilancia sobre Meyer, o que proporcionava ao verdadeiro culpado a liberdade de que carecia para tornar a ver o mal-guardado thesouro. Não foi todavia sem custo a nova conferencia. Ficara a pobre menina tão impressionada com o final da primeira entrevista, que por alguns dias mal sahia do quarto. Escrever-lhe Cyrino, era de todo inutil, por isso que ella nunca aprendera a ler: e, depois, qual o meio de lhe fazer chegar ás mãos qualquer papel ou recado? Sobravam, portanto, razões para que o joven se ralasse de impaciencia e quasi desesperasse da sorte. Passava as noites em claro, mettido no laranjal e procurando uma solução a tanta difficuldade; atordoavam-no ainda aquelles dois assobios que não podia explicar e sobretudo aquella pedrada tão bem dirigida, que por pouco talvez o houvesse estendido por terra. N'uma dessas noites de anciedade, viu afinal reabrir-se a janella de Innocencia. A pobre coitada, abrazada tambem de amor, queria respirar o ar da noite e beber na viração do sertão uma pouca de tranquilidade para sua alma não afeita ao tumultuar dos sentimentos que a agitavam e, quem sabe? verificar se por ahi não andava rondando aquelle que no seio lhe inoculara tamanho desassocego, impetos tão desconhecidos e violentos, superiores a todas as suas tentativas de resistencia. Cyrino, rapido como uma seta, rapido como aquella pedra arrojada tão vigorosamente, achou-se ao pé da janella e cobriu de beijos as mãos da sua amada. --O grito? balbuciou ella. Dois gritos ... e a pedrada... Que foi? --Ah! não foi nada, respondeu apressadamente Cyrino; fui ver no laranjal ... era um macauán[102] O que pareceu pedrada era um noitibó[103] que frechou para mim e veio dar com a cabeça na parede. --Devéras? perguntou ella incredula. --Devéras. A principio tomei tambem um grande susto. Depois, verifiquei que não passava de miragem. De noite, a gente em tudo vê maravilhas... Para mim, a unica que vi era você, minha vida, meu anjo do céu... Com este madrigal encetou Cyrino uma conversação como a da primeira noite, como a que balbuciam duas candidas almas na eterna e sempre nova declaração de amor, desde que Adão e Eva a trocaram, á sombra das maravilhosas arvores do Eden. Mostrou se o moço receioso da rivalidade de Meyer. Riu-se ella e gracejou, com espirito e bondade, da figura do estrangeiro. Com toda a confiança, chegou a idear planos de risonho futuro: --Agora, que sei o que é amar, direi a meu pae que já não quero o Manecão... --E se elle insistir? --Hei de chorar ... chorar muito... --Lagrimas, muitas vezes, de nada servem. --Mas tenho cá commigo outro recurso... --Qual é? perguntou Cyrino. --Morrer!... --Não! Ha outros ... hei de dizer-lhe... Tomou Innocencia ar grave e meio offendido. --Escute, Cyrino, observou ella, nestes dias tenho aprendido muita coisa. Andava neste mundo e delle não conhecia maldade alguma... A paixão que tenho por mecê foi como uma luz que faiscou cá dentro de mim. Agora começo a enxergar melhor... Ninguem me disse nada; mas parece que a minha alma acordou para me avisar do que é bom e do que é mau... Sei que devo de ter medo de mecê, porque pode botar-me a perder... Não formo juizo como; mas a minha honra e a de toda a minha familia estão nas suas mãos... --Innocencia, quiz interromper Cyrino. --Deixe-me falar, deixe contar-lhe o que me enche o peito... Depois ficarei socegada... Sou filha dos sertões; nunca morei em povoados nunca li em livros, nem tive quem me ensinasse coisa alguma... Se eu o maguar, desculpe será sem querer...Lembra-me que, ha já um _tempão_, pararam aqui umas mulheres com uns homens e eu perguntei a papae porque é que elle não as mandava entrar cá para dentro, como é de costume com familias... O pae me respondeu:--Não, _Nocencia_, são mulheres perdidas, de vida alegre. Fiquei muito _assombrada_.--Mas, então, melhor; se são alegres hão-de divertir-me.--Aquillo é gente airada, sem vergonha, _secundou_ elle.--Tive tanto dó dellas que mecê não imagina. Depois fui espiar ... cahiam tontas no chão ... _pitavam_ e cantavam muito alto com modos tão feios; que me fizeram corar por ellas! E são os homens que fazem ficar _ansim_ as coitadas!... Antes morrer... Parece-me que Nossa-Senhora ha-de ter pena dos que amam ... mas desampara com certeza os que erram... Se não houver outro remedio, temos que nos lembrar que as almas, quando se acaba tudo neste mundo, vão pelos céus cheios de estrellas, passeando como num jardim... Se eu me finasse e mecê tambem, punha-se a minha alma a correr pelos ares, procurando a de mecê, procurando procurando, e então nós dois, juntinhos iamos viajando ora para aqui, ora para alli, ás vezes pelo carreiro de S. Thiago, ás vezes baixando a este ermo a ver onde é que botaram os nossos corpos... Não era tão bom? Envolvida em sua pureza como num manto de bronze, entregava-se Innocencia com exaltamento e sem reserva á força da paixão. E essa natureza pudica e delicada a tal ponto dominava a Cyrino, que invencivel acanhamento o prendia ante a debil donzella, alheia a todos os mysterios da existencia. Por isso, ao inflammado mancebo não acudia a idéa de saltar por aquella janella e menos a de praticar qualquer acção desrespeitosa. Consumia o tempo em beijos nas mãos da namorada, em tagarelices de amor, protestos, juras, e illusões de futuro. --Amanhã, dizia Cyrino, hei de com cuidado assumptar a seu pae ... falando no seu casamento ... depois ... hei de virar a conversa para mim... --Papae, observou a menina, é muito bom, muito mesmo. Mas tenho um medo delle! Tem um genio, meu Deus!... --Quanto a mim ... heide falar bem claro e explicito... O que quero, é que você me seja constante... Mas do sentimento de temor, que sobresaltava Innocencia, tambem participava Cyrino. Por isso, chegado o dia, não ousava tocar na melindrosa questão, bem que as continuas queixas de Pereira contra Meyer lhe dessem ensejo mais ou menos favoravel para desembaraçadamente encetal-a. Com gosto adiava o momento decisivo e esperava perplexo qualquer incidente, que melhor servisse a seus planos. Entretanto, apezar de se accumularem os dias sem que trouxessem modificação naquelle estado de coisas, doce esperança pairava no fundo do seu coração, consentindo-lhe planos de venturoso porvir e feliz desenlace ás duvidas e soffrimentos em que vivia. [Nota 102: Especie de gavião.] [Nota 103: Passaro da noite.] CAPITULO XX NOVAS HISTORIAS DE MEYER Disse-lhe Sancho: Cada qual abra bem o olho e fique alerta, porque o diabo entrou na dansa e se lhe derem ensejo, ver-se-hão maravilhas. Virae-vos em mel, e as moscas vos comerão. CERVANTES.--_D. Quixote._ Cap. XLIX. Uma occasião, de volta do trabalho diario, attingiu a habitual irritação de Pereira contra Meyer grande intensidade. Entrara cabisbaixo, sorumbatico e fez gesto a Cyrino de que precisava falar-lhe a sós. Dalli a pouco, saindo ambos, caminharam silenciosos pela estrada até a um regato que ficava a meio quarto de legua da casa. --Que terá este homem hoje? dizia Cyrino comsigo mesmo. Talvez vá chegando o momento de tratar do assumpto. Voltou-se de repente Pereira e, com voz alterada, prorompeu em exclamações: --Sabe, Doutor, que não posso mais aturar esse _allamão_?... Aquillo é um _mandingueiro_, uma _çuçuarana_, vinda do inferno para me botar a perder!... Meu irmão ... meu irmão, que presente me fez você!... --Mas, que houve? perguntou Cyrino. --Olhe ... se não fosse aquella carta, e a palavra que dei ao maldito ... mil raios o partam, surucucú do diabo! potro melado!... já um bom balazio lhe teria varado os miolos... --Que novidades ha então, Sr. Pereira? tornou a inquirir Cyrino. --Vim mesmo até aqui para tirar este peso do coração... --Mas... --Sabe o senhor que aquelle _Mochú_ é peor que um tigre preto?... Parece homem á toa, um _punga_, incapaz de matar uma pulga, não é?... Pois aquillo é uma alma damnada ... um _seductor_... --Sempre as suas desconfianças! observou Cyrino. --Desconfianças, não: agora, certeza. Pois o que quer dizer o homem todo o dia ... estar a lembrar-se da menina é... Procurar trazel-a á conversa?--Como está sua filha? pergunta-me elle sempre.--Está boa, de uma vez para todas. E elle, _toda a vida_ a insistir... Isto me põe o sangue a ferver, mas vou-lhe respondendo com bom modo... Hoje, saiu-se o _cujo_ de seus cuidados e disse-me como quem _toma leite com farinha de milho_[104]:--Sua filha vae casar?--Vae, respondi-lhe todo trombudo.--Com quem? Tive vontade de lhe dizer: Não é da tua conta, _seu_ bisbilhoteiro, _seu_ biltre, e atacar-lhe uma cabeçada, mas, como é meu hospede, _secundei-lhe_ enfarruscado: Com um homem do sertão que hade amolar a faca na pelle da barriga do mariola que vier mexer com a mulher delle. O _allamão_ não se deu por achado e, com todo o semvergonhismo, me retrucou: Pois o senhor faz mal. A sua filha é muito mimosa e deveria casar com alguem da cidade.--Então, perdi a paciencia: Mochú, lhe disse, cada um manda em sua casa como entende; eu na minha, não quero ser _anarchizado_; elle, quando me viu fulo de raiva, pediu-me mil desculpas, contou-me muitas historias, isto, aquillo, aquillo outro, et cœtera e tal, que era para bem de minha filha e não sei mais o que, numa lingua que pouco entendi... --Não fez bem, atalhou Cyrino. --Boa duvida! Aquillo é uma alma damnada ... boa para as caldeiras de Pedro Botelho, um judeu ... emfim, um caçador de _anicetos_: está dito tudo!... Mas ainda não lhe contei o mais... Parece que hoje estava mesmo com o diabo no corpo... Metteu-se no matto perto da minha roça, onde eu trabalhava com os meus _captivos_, e lá fazia um barulhão a quebrar galhos e romper o cipoal como se fosse anta; de repente ouvi uma gritaria muito grande; era o tal Meyer com o camarada José Pinho a berrar como dois _minhocões_[105]. Corri a ver o que era e os achei muito contentes a olhar para uma barboleta grande, já fincada num páu de pita. O _allamão_ poz-se a pular como um cabrito. É novo, me disse elle, é novo!--Novo o que, _Mochú_? Este bicho, ninguem o descobriu antes de mim! É coisa minha... Entendeu? E vou botar-lhe o nome de sua filha!... Quando ouvi aquillo, fiquei tão passado, que não pude engulir o cuspo da bocca... Vejam só ... o nome de _Nocencia_ numa bicharada!... Até parece mangação... Agora, quero saber do doutor o que devo fazer... Venho pelo menos desabafar... Não posso metter uma bala naquelle patife como bem merecia ... mas tambem é demais tel-o em casa ... é demais! Peço-lhe um conselho... Felizmente, sempre o trago arredado de casa, e a menina de nada desconfia; do contrario, como mulher que é, _havéra_ de me dar que fazer... Tambem não sei, porque é que o Manecão não chega ... só elle é quem havia de me livrar destes apuros... Uma vez que o tal _allamão_ visse a rapariga com o noivo, deixava-a socegada... Não acha? Olhe, palavra de honra, isto _ansim_ não é viver! Fui feito para dizer o que penso, tratar bem a todos ... mas estes modos que tenho agora, só Deus sabe quanto me custam... Até o meu serviço vae soffrendo, porque muitas vezes largo a roça e ponho-me a correr atraz dos bichinhos, só para não deixar de olho o tal marreco, em lugar de feitorar o trabalho dos negros... O meu fazendeiro é um diabo ruim e já velho... Ah! meu irmão, que carga você me pôz em cima das costas! Eu então, que não nasci para esconder o que sinto cá dentro!... E Pereira, de tão attribulado que trazia o espirito deixou-se cahir num comoro de terra. Cyrino, defronte delle, ficara de pé e pensativo. Afinal, depois de breve duvida, decidiu tentar fortuna e encetar a grave questão que lhe importava a felicidade. --Sr. Pereira, disse bastante commovido, acho que o allemão faz mal em andar batendo lingua em pessoa da sua familia, e dou razão ás suas inquietações... --Ah! vosmecê é homem de confiança. --Mas, continou o moço a custo e parando em cada palavra, penso que num ponto tem elle alguma razão... É quando ... lhe deu ... conselho ... que o senhor não casasse sua filha ... assim ... sem perguntar a ella ... se ... emfim não sei ... mas talvez o Manecão lhe não agrade... Ergueu-se Pereira de um pulo e, approximando a face, repentinamente incendida de colera, junto ao rosto de Cyrino: --O que? exclamou com voz de trovão, eu ... consultar minha filha?... Pedir-lhe licença ... para casal-a?... O senhor está doido?... Ou está mangando commigo?... Ai ... que tambem... E vago lampejo de desconfiança lhe illuminou a chammejante pupilla. Comprehendeu logo Cyrino a perigosa situação e, sem demora, tratou de desfazer a má impressão que produzira. --Ah! disse com fingido riso, é verdade... Isto são costumes da cidade ... aqui, no sertão, ha outros modos de pensar... Desculpe-me, Sr. Pereira, este Meyer é que está a confundir-me todas as idéas. Pois eu julgo ... já que pede a minha opinião, que o senhor deve continuar a ter olho no estrangeiro ... e eu heide ajudal-o, quanto estiver nas minhas forças. --Tambem agora, disse o mineiro depois de ligeira pausa, não hade ser por muito tempo... Ha mais de um mez que elle aqui pára e já me ... contou que breve seguia viagem para Camapuan... Desenganou-se afinal... O tal _meco_ não chegará até lá ... mas é o mesmo. Um destes dias, leva por ahi algum tiro para lhe botar juizo na cachola, ou alguma facada que lhe ponha as tripas á mostra... Nem sempre ha de ter cartas de irmão para sahir-se bem da _rascada_... O diabo o leve para longe!... Voltemos, Sr. Cyrino... Já demais temos deixado o bicharoco sósinho. E encaminhou-se para a vivenda, acompanhado de Cyrino. Ia este desalentado; na realidade, bem rentes lhe ficavam cortadas as esperanças que haviam animado na tentativa de opposição ao projectado casamento da amada com o terrivel e fatal Manecão. Ainda a meio do caminho, voltou-se Pereira e disse-lhe peremptoriamente: --Deveras, Sr. Cyrino, aquellas suas palavras me buliram com o sangue todo... Ainda o sinto galopar nas veias... Que ideias esturdias!... Que lembrança! Ah ... a tal vida das cidades ... cruzes! [Nota 104: Como quem faz cousa muito simples.] [Nota 105: Animaes phantasticos do sertão que, segundo a crendice, dão gritos muito fortes. Acreditam alguns que sejam monstruosos sucurys.] CAPITULO XXI PAPILIO INNOCENTIA Considerae a arte da composição das azas da borboleta: a regularidade das escamas, cobrindo-as, como se fossem pennas; a variedade das cambiantes côres; a tromba enrolada, com que suga o alimento no seio das flores: as antennas, orgãos delicados do tacto, que lhe corôam a cabeça cercada de uma rede admiravel de mais de mil e duzentos olhos... BERNARDIN DE SAINT-PIERRE.--_Harmonias da natureza._ Meyer, que estava sentado na soleira da porta com as compridas pernas encolhidas, ergueu-se precipitadamente ao avistar Cyrino e correu ao seu encontro. Trazia o coração no rosto, um coração cheio de alegria e triumpho. --Oh, Sr. doutor, exclamou, todo risonho, venha, venha ver uma preciosidade ... uma descoberta ... especie nova ... não ha em parte alguma... Ouviu? Coisa assim vale um thesouro... E fui eu que o descobri!... Nem sequer _Júque_ me ajudou ... pois estava deitado e dormindo... Não é verdade, Sr. Pereira? --Veja, murmurava o mineiro, que barulhada faz elle com o tal _aniceto_... Ao menos, se fosse um animal grande! --É uma especie ... nova ... completamente nova! Mas já tem nome... Baptizei-a logo... Vou lhe mostrar... Espere um instante... E, entrando na sala, voltou sem demora com uma caixinha quadrada de folha de Flandres, que trazia com toda a reverencia e cujo tampo abriu cuidadosamente. Da propria garganta sahiu um grito de admiração, que Cyrino acompanhou, embora com menos enthusiasmo. Pregada em larga taboa de pita, via-se formosa e grande borboleta, com as azas meio abertas, como que disposta a tomar vôo. Eram essas azas de maravilhoso colorido; as superiores, do branco mais puro e luzidio; as de baixo, de um azul metallico de brilho vivissimo. Dir-se-ia a combinação aprimorada dos dois mais bellos lepidopteros das mattas virgens do Rio de Janeiro, Laertes e Adonis, estes, azues como ceruleo cantinho do ceu, aquelles alvinitentes como petalas de magnolia recem-desabrochada. Era sem contestação lindissimo especimen, verdadeiro capricho da esplendida natureza daquelles páramos. Tambem Meyer não tinha mão em si de contente. --Este insecto, preleccionou elle como se o ouvissem dous profissionaes na materia, pertence á phalange das Heliconias. Denominei-a logo _Papilio Innocentia_, em honra á filha do Sr. Pereira, de quem tenho recebido tão bom tratamento. Tributo todo o respeito ao grande sabio Linneu--e Meyer levou a mão ao chapéu--mas a sua classificação já está um pouco velha. A classe é, pois, _Diurna_; a phalange, _Heliconia_, o genero, _Papilio_ e a especie, _Innocentia_, especie minha e cuja gloria ninguem mais me póde tirar... Daqui vou, hoje mesmo, officiar ao secretario perpetuo da Sociedade Entomologica de Magdeburgo, participando-lhe facto tão importante para mim e para a sabia Germania. Dizia Meyer tudo isto com legitima ufania e lentidão dogmatica. Depois, com mais volubilidade e apezar de tropeçar amiudadas vezes em palavras, o que, para commodidade dos leitores, temos quasi sempre deixado de indicar, continuou: --Reparem, meus senhores, neste lepidoptero com os olhos cuidadosos da sciencia. Tem quatro pés caminhantes; as antennas de terminação comprida, e oval, cavada em forma de colher; os palpares maiores do que a cabeça e escamosos; tromba toda branca e labio quasi nullo. Não perdi nem sequer um pouco do seu pó, porque o pó, um só grão de pó, vale tanto como uma penna de passaro, e a comparação é perfeita, visto como cada uma destas escamas, á semelhança das pennas, é atravessada por uma trachéa, por onde circula o ar. Oh! que achado! proseguiu elle. Que triumpho para mim! A Sociedade Entomologica de Magdeburgo hade ficar muito orgulhosa... Sem duvida alguma, farão uma sessão solemne, extraordinaria... Mein Gott!... Estou que não posso de alegria... Tambem daqui, a tres ou quatro dias, vou-me embora desta casa ... ainda que cheio de saudades... --Devéras? atalhou Pereira, vai partir? --Sim, senhor. O meu itinerario é para Camapoan; depois, vou a Miranda e talvez Nioac... Heide subir até ao Coxim e ahi, ou embarco para Cuyabá no rio Taquary, ou sigo por terra pelo Pequiry. --E o senhor volta para sua patria? --Boa duvida!... Daqui a anno e meio, pretendo apresentar a minha collecção toda arranjada á Sociedade Entomologica... --Homem, observou Pereira com intenção que seu hospede não podia nem de leve perceber, eu quizera já estar nesse dia. Daqui a anno e meio, que voltas terá dado o mundo?... --Terá percorrido, respondeu Meyer gravemente, dezoito signos do Zodiaco. --Pois bem, eu queria ver isso... Já me tarda esse dia... --Quando elle chegar, continuou o allemão com sinceridade e um tanto commovido, heide lembrar-me com gratidão do tratamento que recebi ... nos sertões do Imperio ... e heide dizer ... bem alto ... que os brazileiros ... são felizes porque são morigerados e tem muito boa indole ... hospitaleiros como ninguem. --Accrescente, interrompeu Pereira com algum azedume, que zelam com todo o cuidado a honra de suas familias. Obedeceu docilmente Meyer e repetiu palavra por palavra: --E zelam com todo o cuidado a honra de suas familias. --Muito bem, replicou o mineiro, diga isso, e o Sr. terá dito uma verdade. CAPITULO XXII MEYER PARTE Adeus, pois amigos; bella companhia! Aos lares distantes cada qual de nós, por caminhos diversos, deve um dia chegar. CATULLO.--_Epigramma_ XLVI. Não haviam descontinuado as visitas feitas a Cyrino por enfermos de muitas leguas em torno. Tão frequentes e teimosos eram os casos de sezões ou maleitas, que a porção de sulfato de quinina que trouxera em suas canastras estava toda esgotada, pelo que se vira levado a substituir esse medicamento sem tanta confiança, porem, por plantas verdes do campo ou hervas seccas, fornecidas por uns bolivianos que encontrara em Minas, vindos de Santa Cruz de la Sierra em peregrinação pelo interior do Brazil e a tratarem de doentes, sem Chernoviz em punho, nem aquelles resquicios de conhecimentos therapeuticos que ostentava o nosso doutor. Entre os enfermos que o vinham diariamente procurar, alguns accusavam molestias cujas qualificações eram complicadas e estramboticas: assim declaravam-se salteados de _engasgue, espinhela cahida, mal de encalhe, tosse de cachorro, feridas brabas, almorreimas erysipelas_, ou até _assombração e mau-olhado_. Quem se queixava de _engasgues_ era o capataz de uma fazenda chamada do Váu, distante umas boas cincoenta leguas. --Sr. doutor, disse o enfermo, a minha vida é um continuo lidar de soffrimentos. Estou com este mal vae fazer cinco annos no S. João, por signal que me veio com uma grande dor na bocca do _estómbago_. Vezes ha que não posso engulir nada, sem beber muitos _gólos_ de agua, de maneira que me encharco todo e fico que mal me mexo de um lugar para outro. --E a dor, perguntou Cyrino, ainda a sente? --_Toda a vida_, respondeu o capataz... O que me _afflege_ mais é que ha comidas então que não me passam na guéla... É um fastio dos meus peccados... Boto uns pedacinhos no _bucho_ e parece-me que dentro tenho um bolo que me está a subir e descer pela garganta... Receitou o medico umas doses de herva de marinheiro como emetico, e fez mais algumas prescripções que o enfermo ouviu com toda a religiosidade. No estado de perturbação moral em que se achava o joven facultativo, natural é que fosse uma coisa por outra; mais importante, porem, era a fé que suas indicações incutiam, a fé, essa alavanca poderosa da medicina, esse contingente precioso que o espirito ministra aos ingentes esforços da natureza na sua constante lucta contra os principios morbidos. O doente de _espinhela cahida_ accusava um peso muito forte e perenne no peito e a impossibilidade de levantar as mãos juntas á mesma altura. Prescreveu-lhe Cyrino amargo do campo, genciana e quina, e ordenou-lhe certas cautelas firmadas na voz geral, mas com algum fundo de razão; verbi-gratia: engulir sempre a saliva e sobretudo deixar de fumar depois de comer. O infeliz moço, ao passo que tratava de curar os outros, mais que ninguem precisava de quem nelle cuidasse, pelo menos da alma. Via não só Meyer fazendo os seus preparativos de partida, e em vespera de deixal-o a sós com Pereira, podendo este descobrir afinal o engano em que havia laborado, como tambem a clinica quasi esgotada, aconselhando-lhe a conveniencia de transportar-se para outro ponto e continuar a interrompida jornada. Tudo isto, e o amor a augmentar, a tirar-lhe todo o socego, a consumil-o a fogo lento... Meyer, na realidade, desde o achado da sua magnifica borboleta, não pensava senão em partir. --Oh! dizia elle, eu quizera estar já em Magdeburgo... Quantas leguas, _Mein Gott_!... _Papilio Innocentia_ ... a minha gloria! Que diz, Snr. Cyrino?... --É verdade ... mais quem sabe se o senhor não deveria ficar mais tempo aqui?... Talvez achasse outra borboleta nova... --Não, é impossivel... Era felicidade de mais... Além disso, o dinheiro não me havia de chegar. --Oh! posso emprestar-lhe... --Muito obrigado ... mas é de todo impossivel a minha estada aqui... Veja o senhor: tenho ainda que ir a Camapoan, a Miranda, a Cuyabá, para então voltar... E só me restão poucos mezes... A Sociedade Entomologica de Magdeburgo conta commigo na primavera do anno que vem.... Mettida uma vez essa idéa na cabeça, Meyer não deixou mais de falar na sua viagem um só instante e, para que a execução correspondesse ao promettido, mandou na tarde seguinte, José Pinho, o camarada, alçar cargas ás costas do burro, depois de as ter, elle proprio, arranjado e revistado com toda a cautela. Julgou o carioca nesse momento dever lavrar um protesto: --_Mochú_, disse elle, vae recomeçar com o seu modo de andar por essas estradas á noite... Afinal havemos todos de cahir nalguma _buraqueira_, eu, o senhor, o burro de carga, e os bichos; e não chegaremos, nem eu ao Rio de Janeiro, nem elles e o senhor á sua terra. Emfim, já estou cansado de o avisar. No momento da partida, apresentava o naturalista aquelle mesmo aspecto da celebre noite da chegada: eram aquellas mesmas frasqueiras a tiracollo, aquelle mesmo ar tranquillo e bonachão com que viera, fóra de horas, pedir pousada á casa de Pereira. Este, ao ver o hospede a cavallo e prestes a deixar para sempre a sua morada, sentiu-se possuido de alegria, mesclada, sem saber porque, com surpreza repentina e intima, de tal ou qual commoção. No fundo, achou de si para si desconfianças mal empregadas, e deixou-se levar pela sympathia que em todos incutia o caracter naturalmente inoffensivo e meigo do saxonio. --Chegou, declarou Meyer, a hora da minha despedida. E, sacudindo com força a mão e o braço do mineiro: --Sr. Pereira, meu amigo, adeus! ... nunca mais nos havemos de ver ... mas hei de lembrar-me do senhor toda a vida... Quando eu estiver na minha patria, daqui a milhares e milhares de leguas ... pelo pensamento recordarei os dias felizes ... que aqui passei. --Oh! Sr. Meyer, balbuciou Pereira. --Sim, felizes, continuou Meyer com muita lentidão, felizes porque correram ... sem eu perceber que O tempo estava caminhando... De todo o Brazil fica em mim a lembrança ... mas desta sua casa ... essa lembrança é mais viva e mais forte. Acompanhara o allemão o seu pensamento com accentuado gesto, acenando com o punho fechado para mostrar a lealdade daquellas impressões. Voltando-se para Cyrino, acrescentou: --Sr. doutor, as suas receitas estão todas marcadas no meu caderno... O senhor póde enganar-se ás vezes ... mas as suas intenções são sempre boas ... e isso basta para desculpal-o... Eu... Interrompendo o que ia dizendo, ficou instantes a olhar para Cyrino e Pereira, que estavam igualmente silenciosos, e uma lagrima comprida deslizou-se-lhe pela face, sem que a physionomia mostrasse a menor alteração. --Adeus! concluiu elle de repente. --Boa viagem, Sr. Meyer, boa viagem, disse Pereira ajudando-o a montar a cavallo. --Adeus! adeus ... repetiu elle. E interpellando o camarada: --_Júque_, vá na frente!... Toque pouco no burrinho... Nosso pouso é daqui a meia legua... Deu Meyer então de redeas e caminhou a passo, logo após de José Pinho, este munido de cabeçudo cacete evidentemente hostil ás costas do cargueiro entregue aos seus cuidados. [Ilustração: Lá vae o homem, exclamou Pereira.] --Lá vae o homem, exclamou Pereira ao ver a tropinha pelas costas. É um allivio... Elle, coitado, não era mau ... mas não tinha modos... Safa, heide me lembrar para sempre do tal Sr. Meyer! Foi uma campanha... Ué... Olhe, Sr. Cyrino... não está elle de volta?... Teria esquecido alguma bugiganga? Com effeito reapparecia a trote o allemão em carne e osso, como quem vinha procurar ou dizer coisa de importancia. --Então que tem? perguntou Pereira adeantando-se e alçando a voz. Deixou algum trem? Daqui a pouco é _escurão_[106]. Meyer, no emtanto, ia chegando e de certa distancia entrou a explicar a razão da volta: --Não deixei cousa alguma, Sr. Pereira. Tão somente faltei a um dever... --Qual é? indagou o mineiro. --Não me despedi de sua filha... --Ah! replicou Pereira com vivacidade ... não era preciso ... tanto mais que ella ... esta dormindo ... meio adoentada... Ha pouco tinha muito peso na cabeça... Eu lhe heide dizer... Não se incommode... --Pois então, observou Meyer com muita gravidade, diga-lhe que tem em mim um criado, em toda a parte onde esteja... O seu nome ficou para sempre na sciencia e a estima em que a tenho é grande... É uma moça muito bella ... digna de ser vista na Europa... --Pois não, pois não, interrompeu Pereira, vá sem susto. --Sim, eu me vou, adeus! --Vá indo ... olhe que o sol _dobra_ de repente aquelle matto e a noite cae logo... --Sim, sim, adeus, disse elle despedindo-se de uma vez. E na estrada arêenta, á luz do astro que descambava, foi-se tornando comprida a mais e mais a sombra do bom Meyer, á medida que elle marchava atraz do seu camarada, do cargueiro e da collecção entomologica. [Nota 106: Escurão é o finalisar do crepusculo.] CAPITULO XXIII A ULTIMA ENTREVISTA Está a mascara da noite sobre meu rosto: a não ser ella, verias as minhas faces tintas do rubor virginal. SHAKESPEARE.--_Romeu e Julieta_, Acto II. Mais cresce a luz, mais augmentam as trevas das nossas desgraças. IDEM, _Acto IV_. Grave modificação trouxe a retirada de Meyer no systema de viver daquella vivenda, onde se agitava um dos problemas mais comezinhos da natureza moral, mas que alli apresentava cores algum tanto carregadas, senão já sombrias. Fora Pereira dormir no interior da casa, passando alli a maior parte do tempo. Assim os encontros dos dois apaixonados tornaram-se de todo impossiveis e, não tendo mais a attenção do mineiro o alvo que sempre collimara durante a estada do allemão, começava como era de prever, a voltar-se para Cyrino, a quem confessou ter tratado Meyer com injusta prevenção. --Hoje, dizia o mineiro dóe-me a consciencia do modo porque desconfiei daquelle homem... Quem sabe se tudo que eu parafusei não foi abusão cá da cachola?... Sr. Cyrino, quando a gente entra a dar volta ao miolo ... é que vê que todos tem queda para malucos... Sim senhor!... Hoje estou convencido que o tal _allamão_ era bom e sincero... Olhou para a menina ... achou-a bonitinha ... e disse aquelle _despotismo_[107] de asneiras sem ver a mal... Em pessoa que não guarda o que pensa, é que os outros se podem fiar... Ás vezes o perigo vem donde nunca se esperou... Emfim não me arrependo muito de ter feito o que fiz... Recebi ... e tomei tento... Amiudando-se estes e outros dizeres eguaes, deram que reflectir a Cyrino. De uma hora para outra comprehendeu que as vistas inquisitoriaes poderiam tornar a sua posição insustentavel. Por emquanto, tratou de encontrar-se com Innocencia. Grandes eram as difficuldades; o meio unico, tentar novamente as entrevistas nocturnas; pelo que do laranjal não arredava pé, noites e noites inteiras, ficando alli com os olhos presos á janella da querida do coração. Certa madrugada, viu afinal a sombra de Innocencia. Achou-se num apice o mancebo junto della e agarrou-lhe com violencia nas mãos. --Emfim, exclamou elle, eu a vejo. --Meu pae, murmurou a moça com voz tão fraca que mal se ouvia, póde acordar... --Não importa, replicou Cyrino desabrido, descubra-se tudo ... não posso mais viver assim... --Chi! observou ella, cuidado!.. Se elle nos acha aqui, mata-nos logo... Olhe, vá-me esperar junto ao _corguinho_[108] para lá do laranjal ... daqui a nada vou ter com mecê... A porta está só encostada... O moço fez signal que obedecia e sumiu-se incontinente na escuridão do pomar. Aquella hora dava a lua de minguante alguma claridade á terra; entretanto, como que se presentia outra luz a preparar-se no céu para irradiar com subito esplendor e infundir animação e alegria á natureza adormecida. Nos galhos das laranjeiras, ouvia-se o pipilar de passaros prestes a despertar, um gorgeio intimo e aveludado de ave que cochila; e ao longe um sabiá mais madrugador desfiava melodias que o silencio harmoniosamente repercutia. Riscava-se o oriente de dubias linhas vermelhas, prenuncio mal percebivel da manhã; nos espaços pestanejavam as estrellas com brilho bastante amortecido, ao passo que fina e amarellada névoa empallecia o tenue segmento illuminado do argenteo astro. Não era mais noite; mas ainda não era sequer a aurora. Tão commovido se sentia Cyrino, que teve de sentar-se, emquanto esperava por Innocencia. Esta não tardou: vinha vestida de uma saia de algodão grosseiro e, á cabeça, trazia uma grande manta da mesma fazenda cujas dobras as suas mãos prendiam junto ao corpo. Estava descalça, e a firmeza com que pisava o chão coberto de seixinhos e gravetos, mostrava que o habito lhe havia endurecido a planta dos pés, sem lhes alterar, comtudo, a primitiva elegancia e pequenez. Parecia muito assustada, e, mau grado seu, dos olhos lhe rolavam lagrimas a fio. O mancebo, apenas a avistou, correu-lhe ao encontro. --Innocencia, exclamou elle notando um gesto de duvida, nada receie de mim... Heide respeita-la, como se fora uma santa... Não confia então em mim?... --Sim! disse ella apressadamente. Por isso é que vim até cá... Entretanto, estou com a cara ardendo ... de vergonha... E levando uma das mãos de Cyrino ás suas faces: --Veja, Cyrino, como tenho o rosto em braza... Porque é que mecê veio bulir commigo?... Eu era uma moça socegada ... agora, se mecê não gostasse mais de mim ... eu morria... --Deveras? --Eu lhe juro... É mais facil apagarem-se de repente estas estrellas todas, do que eu deixar de amal-a... --E Manecão? perguntou ella com terror. --Oh! esse homem, sempre esse nome maldito!... --Hade ser meu marido... --Isso nunca, Innocencia... É impossivel!... E se fugissemos?... Olhe amanhã a estas mesmas horas ou mais cedo, trago para aqui dois bons animaes... Você monta num, eu noutro ... batemos para Sant'Anna e, a galope sempre, havemos de chegar a Uberaba ... onde acharemos um padre que nos case... Vamos, ouviu? --E mecê havia de me estimar _toda a vida_? --Sempre... Diga, sim ... diga pelo amor de Deus, e estamos salvos ... diga!... --E meu pae, Cyrino? Que _havéra_ de ser?... Atirava-me a maldição ... eu ficava perdida ... uma mulher de má vida ... sem a benção de seu pae... Não ... mecê está me tentando... Não quero fugir... Antes a desgraça para toda a existencia ... mas fique eu sendo o que meu nome diz que sou... Já muito pecco, fazendo o que faço... Mecê é moço da cidade: não lhe custa enganar uma creatura como eu... Até... --Pois bem, interrompeu Cyrino, você não quer?... não falemos mais nisso... Não heide querer, senão aquillo que achar bom... E se eu, por fim, me decidir a falar a seu pae? --Deus nos livre! retorquiu ella aterrada. Pensei a principio que pudera ser, mas depois vi que era peior... Mecê não conhece o que é palavra de mineiro ... ferro quebra, ella não... Manecão hade ser genro delle... --Quem sabe, Innocencia? Heide falar tanto ... pedir com tanta humildade... --Ché, que esperança! ... de nada serviria... --Então, que fazer? bradou o moço. A que Santa agarrar-nos? Porque é que o céu nos quer tanto mal? E occultando a cabeça entre as mãos, desatou a chorar ruidosamente. Innocencia, por seu lado encostou a fronte ao hombro do amante, e ambos, unidos, choraram como duas creanças que eram. Foi ella quem primeiro rompeu o silencio. --Ah! meu Deus, se o padrinho quizesse!... --Seu padrinho? perguntou Cyrino. Quem é? ... quem é elle? --Um homem que mora para lá das Parnahybas, já nos terrenos Geraes. --Onde?... É longe?... Meio longe, meio perto... Mecê não conhece o _Pauda_[109]? --Conheço... A 16 leguas do rio Paranahyba... --Pois é ahi que padrinho _pára_[110]... A esquerda da fazenda do Pauda, n'umas terras de sesmaria... --E como se chama elle? --Antonio Cesario... Papae lhe deve favores de dinheiro e faz tudo quanto elle manda... Se dissesse uma palavra, Manecão havéra de ficar atrapalhado... --Oh! exclamou Cyrino com confiança, estamos salvos então!... Amanhã mesmo, monto a cavallo e toco para lá... Daqui á villa são sete leguas... Até lá, umas dezesete... É um passeio... Chego ... conto-lhe tudo ... ponho-me de rastos aos seus pés ... e... --Mas, interrompeu Innocencia, não lhe falle em mim, ouviu? Não lhe diga que tratou commigo ... que commigo _mapiou_... Estava tudo perdido... Invente umas historias ... faça-se de rico ... nem de leve deixe _assumptar_ que foi por meu _juizo_ que mecê bateu a porta delle... Hi! com gente desconfiada, é preciso saber _negacear_... --Oh! meu Deus, disse Cyrino no auge da alegria, estamos salvos!... Não ha duvida... Vejo agora como hade tudo acontecer... Depois de um dia ou dois de parada na casa, _desembucho_ o negocio. O velho escreve uma carta a seu pae e, pelo menos, se não se arredar logo o Manecão ... ganha-se tempo... Eu já quizera estar montado na minha besta tordilha queimada, a bater a estrada por ahi _afóra_... Dois dias para ir, dois para voltar, dois ou tres de pousada... Com pouco mais de uma semana, estou de volta, trazendo ou a felicidade ou a _caipora_ de uma vez. Não! Tenho fé em Nossa Senhora da Abbadia... Ella nos ajudará ... e juntos havemos ainda de cumprir a promessa que já fiz... --Que _permessa_ foi? perguntou Innocencia com curiosidade. --Irmos nós daqui até a villa a pé, botar duas velas bentas no altar de Nossa Senhora. --Sim confirmou a moça com fogo eu juro... Fosse até ao fim do mundo!... --Oh! minha santa do Paraizo, exclamou o moço apertando-a de encontro ao peito, quanto você me ama!! E assim abraçados, quedaram elles inconscientes, emquanto a aurora vinha clareando o firmamento e desferindo para a terra raios indecisos como que a sondarem a profundidade das trevas; em quanto os passaros chilreavam á surdina, preparando as gargantas para o matutino concerto; emquanto o orvalho subia da terra ao céu molhando o dorso das folhas das grandes arvores e suspendendo, ás das rasteiras plantinhas, gottas que scintillavam já como diamantes. Ao longe, á beira de algum rio, as aracuans levantavam a sonora grita, e o macauan atirava aos ares os pios prolongados da aspera garganta. --É dia, observou Innocencia desprendendo-se dos braços de Cyrino. --Já?! exclamou este amuado. --Meu Deus, e eu que tenho de ir até a casa ... vou-me embora... --Então, partirei hoje mesmo, disse o moço. --Sim... --E na semana que vem, estou de volta... --Pois bem... Leve com mecê esta certeza: a minha vida ou a minha morte depende do padrinho... --A minha tambem, replicou o mancebo beijando com fervor as mãos de Innocencia... Deixe-me ... deixe-me, implorou ella. Adeus, estou com um medo!... Felizmente ninguem me viu... Nesse momento e, como que para responder á asseveração, de dentro do pomar partiu aquelle fino assobio que tanto assombrara os amantes na primeira das suas entrevistas. Innocencia quasi cahiu por terra. --Meu Deus! balbuciou ella, que agouro!... Quem sabe se não é gente? Ao assobio seguiu-se uma especie de gargalhada, que gelou o sangue nas veias dos dois miseros. Agarrou-se a menina a Cyrino. É alma do outro mundo, murmurou ella persignando-se. Não perdera o mancebo o sangue frio. Invocando a São Miguel, fez o signal da cruz na direcção dos quatro pontos cardeais; depois suspendeu a moça em seus braços e, transpondo a toda a pressa o pomar, foi depol-a junto á porta que estava entreaberta, naturalmente pelo vento. Quase desmaiara Innocencia; entretanto, reunindo as forças pode entrar, e cautelosa correu o ferrolho interior. Mais sossegado a esse respeito, voltou Cyrino ao laranjal e, como da primeira vez, pôz-se a percorrel-o em todos os sentidos, indagando, á nascente claridade do dia, se era ente humano ou fantasma quem delle parecia fazer joguete. No momento em que passava por junto de uma laranjeira mais copada, viu de repente certa massa informe cair-lhe quasi na cabeça e no meio de folhas e ramos quebrados vir ao chão com surdo grito de angustia. --Cruz! T'esconjuro! bradou o moço. E, como uma visão, passou-lhe por perto uma creaturinha, desaparecendo logo entre os troncos das arvores. Alli esteve Cyrino com os cabellos eriçados, os olhos fixos, os braços hirtos de terror, os labios seccos a tartamudear um exorcismo, e as pernas a tremer. Uma voz, a certa distancia, arrancou-o desse espasmo. Era Pereira; com a mão encostada á bocca, interpelava a um dos seus escravos. --Faz fogo, José!... Se for alma do outro mundo ou lobisomem, a bala não pega... Se for gente, melhor. E um tiro troou. Sibilou uma bala aos ouvidos de Cyrino, indo cravar-se numa arvore proxima. Por outra, não esperou elle. Com o favor da escuridão que ainda reinava, deslisou rapido e foi buscar a frente da casa, quando já iam acordando os camaradas. Mal chegara á sala, appareceu-lhe Pereira á porta. --Que foi isso? perguntou Cyrino compondo a physionomia. --Lá sei, respondeu o mineiro. Uma matinada de gritos no laranjal, que parecia um inferno... A pequena ficou toda que parecia querer morrer de medo. Desconfio que a alma do collector[111] andou hoje me rondando a casa... Não seja presagio de mal... A Senhora Sant'Anna nos proteja... --Pois eu cá dormi como um chumbo, disse Cyrino; acordei com um tiro... --Não hade poder enfiar outra somneca; daqui a um nadinha, está o sol batendo no terreiro. Com effeito, depressa caminhara o alvorecer, e debaixo daquellas vivas impressões acordaram aquelles que haviam conciliado o somno, na morada de Pereira. [Nota 107: Grande quantidade.] [Nota 108: Corregosinho.] [Nota 109: Talvez seja o nome deste fazendeiro Padua. Entretanto é geralmente conhecido por Pauda.] [Nota 110: Mora.] [Nota 111: Esse collector, de que fala Pereira e cuja alma anda, no dizer dos sertanejos, vagando pelas solidões de Sant' Anna, era um empregado publico, que foi processado e preso depois de provada a concussão praticada n exercicio das suas funcções. Falleceu na prisão, e como o Estado lhe sequestrou todos os bens, cahiram em abandono a excellente casa e fazenda que formara a umas trinta leguas da villa.] CAPITULO XXIV A VILLA DE SANT'ANNA Debaixo do céu ha uma cousa que nunca se viu: é uma cidade pequena sem falatorios, mentiras e bisbilhotices. LAVERGNE. Nesse mesmo dia, montou Cyrino a cavallo e despediu-se de Pereira por uma semana ou pouco mais dando por motivo de tão inesperada viagem, não só a necessidade de visitar alguns doentes mais afastados, senão tambem procurar, quer na villa, quer mesmo nos campos da provincia de Minas Geraes, uns remedios e simplices que lhe iam faltando. --Daqui a um terno de dias estarei de volta, disse ao partir. Desde a casa de Pereira até ao Albino Lata é tão ensombrada e agradavel a estrada, que essas tres leguas lhe foram muito faceis de vencer. Alli, porem, começam campos dobrados e soalheiros que, num estirão de quatro leguas, até á villa de Sant'Anna tornam penosa a viagem, sobretudo quando são percorridas sob os ardentes raios do sol do meio-dia. Exaltam-se e irritam-se os incommodos de espirito, no momento em que o physico começa a soffrer. Quando Cyrino passou por aquellas campinas desabrigadas, abrazado de calor, desaminou completamente do exito da empreza a que se atirara. Tanta esperança o alvoraçara quando ia seguindo a vereda encoberta e amena, quanto desalento sentia agora; e, descoroçoado, deixava que deixava que o animal o fosse levando a passo vagaroso e como que identificado com a disposição de animo do cavalleiro. --Que vou eu fazer? pensava quase alto... Como encetar aquella conversa? Tamanha era a duvida que o salteava que chegou quase a blasfemar contra a amada do seu coração. --Maldita a hora em que vi aquella mulher... Seguia eu sossegado o meu rumo ... botaram-me a perder os seus olhos!... Depois, exclamou contrito: --Perdão, Innocencia! perdão, meu anjo! Estou a amaldiçoar a hora da minha felicidade... Eu, que sou homem, posso fugir ... deixar-te ... mas tu, amarrada à casa... Infeliz, fui o culpado!... E, engolfado em dolorosa cogitação, alcançou a Vila de Sant'Anna do Paranahyba. De longe é summamente pitoresco o primeiro aspecto da povoação. Ponto terminal do sertão de Matto Grosso, assenta no abaulado dorso de um outeirozinho. O que lhe dá, porem, encanto particular para quem a vê de fora, é o extenso laranjal, coroado anualmente de milhares de aureos pomos, em cuja folhagem verde-escura se encravam as casas e ressalta a cruz da modesta igreja matriz. Transpondo limpido regato e vencida pedregosa ladeira com casinholas de sapé á direita e á esquerda, chega-se á rua principal, que tem por mais grandioso edificio espaçosa casa de sobrado, de construção antiquada. Ornamenta-a uma varanda de ferro e um telhado que se adianta para a rua, como a querer abrigal-a em sua totalidade dos ardores do sol. É ahi que mora o Major Martinho de Melo Taques, baixote, rechonchudo, corado. Na sua loja de fazendas, ao rez do chão, reune-se a melhor gente da localidade, para ouvil-o dissertar sobre politica, ou narrar a guerra dos farrapos no Rio Grande do Sul e a vida que se leva na côrte do Rio de Janeiro, onde estivera pelos annos de 1838 a 1839. De vez em quando, naquella silenciosa rua em que tão bem se estampa o typo melancolico de uma povoação acanhada e em decadencia, apparece uma ou outra tropa carregada, que levanta nuvens de pó vermelho e atrahe ás janellas rostos macilentos de mulheres, ou á porta creanças pallidas das febres do Rio Paranahyba e barrigudas de comerem terra. Tambem aos domingos, à hora da missa, por alli cruzam mulheres velhas, embrulhadas em mantilhas, acompanhando outras mais mocinhas, que trajam capote comprido até aos pés e usam daquelles pentes andaluzes, de moda em tempos que já vão longe. Atravessou Cyrino a vila, e passando por defronte do Sr. Taques saudou-o com a mão, e sem parar. Estava o major, como de costume, sentado ao balcão, de chinelos, sem meias, e rodeado das pessoas gradas do lugar, a contar não só as proprias proezas, que muitas tinha aquelle estimavel cidadão, senão tambem as façanhas dos antigos sertanejos, historias que sabia na ponta da lingua. --Lá vae o doutor, disse um dos presentes á palestra da loja. --Oh Sr. Cyrino! interpelou o major correndo para a porta. Então que é isso? Por aqui? --É verdade, respondeu Cyrino, e vou de passagem; tambem por pouco tempo; talvez nesses oito ou dez dias esteja de volta. Tudo quanto enchia a salinha havia sahido para a rua, de modo que o moço ficou logo cercado. Recostavam-se uns quasi á anca do animal; afagavam-lhe outros a pá do pescoço ou brincavam com o freio. Achava-se a curiosidade aguçada: era preciso dar-lhe pasto. Comprehendeu o major o alcance da situação. --Cada qual tem os seus negocios particulares, disse logo para começar; mas, se não ha segredo que quer dizer esta sua volta? --Já devia estar bem longe de _acá_, observou um sujeito. Ha quasi dois meses que _parou_ aqui na _cidade_ e... --Espere, interrompeu o vigario, não ha tal dois mezes. O doutor passou por esta rua ha um mez e vinte dois dias, ás oito horas da manhã. --Pois bem, continuou o major, tinha tempo de sobra para estar já por bandas de Miranda... --Isso, se fosse escoteiro, replicou Cyrino, reparem que levava cargas ... e, demais, viajava curando... --É verdade! confirmou o collector (homem esguio, que trazia um chapéu muito alto e afunilado), não pensam nisso. O que querem é falar ... falar... --Creio que o senhor não atira a mim, observou o vigario com ar rusguento. --Quem em tal cuida, senhor padre? protestou logo o outro. Estou dizendo em geral... Em geral. Eu não... --Mas, doutor, atalhou o major, onde esteve o senhor de molho este _tempão_ todo? ... nalguma fazenda? Prometia ir longe o interrogatorio. --Eu já estava quase perto do Sucuriú, disse Cyrino meio perturbado, no... --Não é tão perto assim, objectou o vigario. Uma vez... --Ouçamos, senhor padre, atalhou o collector denunciando rixa velha com o clerigo. O moço não disse que seja perto daqui... Repetiu o major as palavras de Cyrino, acentuando-as de certo modo: --Então o doutor já estava quasi perto do Sucuriú, não é? --De facto. Alli encontrei uma pessoa que me devia, há mezes um dinheiro... --Um dinheiro? perguntou o vigario. Uma pessoa?... Que pessoa? Quem será? --Homem, quem poderá ser? indagaram a um tempo vozes sofregas. Prosseguiu o major implacavel: --Deixem o doutor explicar-se... Vocês fazem logo uma algazarra!... Foi quasi a balbuciar que Cyrino procurou continuar: --Sim ... certo tropeiro ... mandou ordem para _mim_ cobrar ... de um parente uma _bolada_... Tambem eu tinha que ... pagar outra pessoa ... que... --Espere, espere, interrompeu o major, então o senhor veio receber dinheiro ou desembolsar? Não é uma e a mesma coisa... --Por certo, apoiaram os circunstantes. Cyrino fez repentina parada nas suas explicações. --Tambem, disse com alguma volubilidade, muito breve estarei voltando cá. Tenho de ir para lá do rio... --Vai até as Melancias? Indagou o collector ageitando o nome de um pouso para ver se acertava. --Mais adiante, respondeu o moço. E vendo a impossibilidade de escapar de tão terrivel inquirição, mudou de tactica. --Na volta, disse ele dirigindo ao major, hei de lhe comprar algumas fazendas... Na volta, disse ele dirigindo ao major, hei de lhe comprar algumas fazendas... --Já adivinhei, exclamou o vigario cortando a palavra a Cyrino, o doutor vae casar. --Ora, chasquearam alguns, para que tanto segredo?... Ninguem lhe vae roubar a noiva!... --Sobretudo quando as coisas têm de me vir parar ás mãos, ponderou o padre. Por instante, deram o acanhamento e o silencio de Cyrino azo a muitas observações. --Parabens! dizia um. --Quem é essa feliz sertaneja? perguntaram outros. --Juro-lhes, meus senhores, protestou o moço, não ha nada... Prosseguiu o padre: --Pois, se quer um conselho, apresse isso; de uma cajadada matarei dois coelhos... É o senhor e o Manecão. --Na verdade, concordaram os presentes. --Mas, onde se metteu elle? perguntou um delles. --Ha pouco estava aqui... --Quem? o Manecão? --Sim... --Alli vem elle! anunciou alguem No fim da rua, apparecia, com efeito, um homem montado em fogoso cavallo que sofreava com firmeza e mão adestrada. Era a personificação do capataz de tropa. Cabellos compridos e emmaranhados, ar selvatico e sobranceiro, tez queimada e vigorosa musculatura constituiam um tipo que atraia de prompto a attenção. Mettidos os pés numa especie de polainas de couro cru de veado, grandes chinelas de ferro, lenço vermelho atado ao pescoço, garruchas nos coldres da sella e chicote de cabo de osso em punho, tudo indicava o tropeiro no exercicio da sua lida. --Nosso Senhor ... comvosco, disse ao chegar erguendo ligeiramente a aba do chapéu com a ponta do dedo indicador. --Bons dias, Sr. Manecão, respondeu por todos o major, ou melhor, boas tardes. Já sei que desta feita vae de batida.. --Boa duvida, grasinou o vigario, vai ver a pequerrucha. Sorriu-se o capataz com melancolia: --Não é por isso Sr. vigario. Não me deixo _anarchizar_[112] por mulheres; mas, emfim a gente deve um dia deitar a poita... A vida é uma viagem... Haviam Cyrino e Manecão ficado no meio dos curiosos. Fitaram-se: um, indifferente e altivo no modo de encarar; outro, descorado meio tremulo. --Este _cujo_ é o _cirurgião_? Perguntou à meia voz Manecão adernando no sellim para o lado do collector. A Cula[113] da venda me disse que tinha chegado... Tem-me cara de _enjoado_[114]. --Chi! retrucou o outro, mas _tem cabeça_[115]. Por ahi fez um _despotismo_ de curas. Cyrino, notando que tratavam delle, comprimentou com um sorriso de amabilidade. --Boa tarde, patricio. --Ora viva, correspondeu o tropeiro em tom aspero. E, olhando para o sol, acrescentou: --Vejam lá o que é um homem estar como mulher ... a bater lingua... A tarde vem descendo, e muito tenho hoje que palmear... Minha gente, adeus... Sr. major, até mais ver... Sr. vigario, breve estou por cá... Esporeou o animal o circulo abriu-se, e Manecão partiu em boa marcha. Aproveitando, por seu turno, aquella sahida rapida, que rompera a cadeia dos que o rodeavam, apertou Cyrino a mão do major e tomou rumo do Rio Paranahyba, em cuja margem contava passar a noite. Mal desapparecera, e choveram commentarios que nem saraiva. --Notou o senhor, disse o vigario para o major, como esta mudado? ... todo _jururú_... --Nem tanto, contrariou o collector, nem tanto... O Sr. Taques, major e juiz de paz, tomou ar de profunda meditação. --Hão-de os senhores ver, disse por fim levantando um dedo para o ar, que ahi ha dente de coelho... Durante aquella noite e muitos dias subsequentes, repetiu a villa todas estas celebres palavras. --Foi o major quem o disse, asseveravam convictos, alli há dente de coelho. [Nota 112: Dominar, desmoralisar.] [Nota 113: Modificação familiar de Clotilde.] [Nota 114: Enjoado é qualitativo muito usado na provincia de Goyaz. Tem muitas accepções, desde engraçado, tolo, até impostor, vaidoso.] [Nota 115: Tem muitos conhecimentos.] CAPITULO XXV A VIAGEM Ás vezes sinto necessidade de morrer, como pessoas acordadas sentem necessidade de dormir. MME DU DEFFAND. Encantador paiz! Teu aspecto, teus solitarios bosques, ar puro e balsamico, tem o poder de dissipar toda a sorte de tristezas, menos a da perda da esperança. CARLOTA SMITH. Cyrino em pouco mais de uma hora, transpôz a distancia da povoação ao rio. Tambem, na legua e quarto que até lá medeia, só ha de ruim o trecho em que fica a floresta que borda as margens da magestosa corrente. Nessa matta, trazem os troncos das arvores vestigio das grandes enchentes; o terreno é lodacento e ennatado; centro de putrefacção vegetal donde irradiam os miasmas que, por occasião da retirada das aguas, se formam em dias de calor abrazador e suffocante. Abundam alli coqueiros de stipite curto e folhuda corôa chamados _aucurys_, a que rodeiam numerosas lagoinhas de agua empoçada e coberta de limo. Em nada é, pois, aprazivel o aspecto, e a lembrança de que alli imperam as temidas sezões faz que todo o viajante apresse a travessia de tão tristonhas paragens. Ouve-se a curta distancia o ruido do rio que corre largo, claro e com rapidez. Como duas verdes orlas reflectem-se no espelhado da superficie as elevadas margens, a cujo sopé moitas de _sarandys_, curvadas pelo esforço das aguas e num balancear continuo, produzem doce marulho. Causa-nos involuntario scismar a contemplação de grande massa liquida a rolar, a rolar mansamente, tangida por força occulta. Bem como a ondulação incessante e monotona do oceano agita a alma, assim tambem aquelle perpassar perenne, quasi silencioso, de uma corrente caudal, insensivelmente nos leva a meditar. E quando o homem medita, torna-se triste. Franca e espontanea é a alegria, como todo o facto repentino da natureza. A tristeza é uma vaga aspiração metaphysica, uma elação inquieta e quasi dolorosa acima da contingencia material. Ninguem se prepara para ficar alegre. A melancolia, pelo contrario, aos poucos é que chega, como effeito de phenomenos psychologicos a encadear-se uns nos outros. De que modo nasceu aquella enorme móle de aguas? Donde veiu? Para onde vae? Que mysterios encerra em seu seio? Largo tempo ficou Cyrino a olhar para o rio. Em sua mente tumultuavam negros pensamentos. Já se havia diffundido o crepusculo, e bandos folgazões de _quero-queros_ saudavam os ultimos raios de sol e despertavam os écos em descommunal gritaria. De vez em quando, passava algum pato selvagem, batendo pesadamente as azas; sobre as aguas, adejavam garças estirando e encolhendo o niveo collo e pombas, aos centos, cruzavam de margem a margem a buscar inquietas o pouso de querencia. Foi a luz gradativamente morrendo no céu, seguida de perto pelas sombras; e o rio tomou aspecto uniforme; como se fora immensa lamina de prata não brunida. --Emfim, conheci o Manecão! pensava Cyrino. E para esse é que reservam a minha gentil Innocencia?!... Bonito homem para qualquer ... para mim, para ella, horrendo monstro!... E como é forte!... Digamol-o, sem por isso amesquinhar o nosso heróe, a idéa de força no rival acabrunhava-o. --Se eu pudesse ... esmagava-o!... E que ar sombrio e desconfiado!... Meu Deus, dae-me coragem ... dae-me esperanças... Nossa Senhora da Abbadia!... Nosso Senhor da Canna Verde ... valei-me!... E o mancebo, deante daquella natureza acabrunhadora a quem tanto importava a paixão que lhe atenazava o peito, como o insecto a chilrar debaixo da folha de humilde herva, cahiu de joelhos, orando com fervor ou, melhor, desfiando automaticamente as preces que sua mãe lhe havia, em pequeno, ensinado. E o rio lá se ia sereno; e uma onça ao longe urrava, ou algum passaro da noite soltava gritos de susto, esvoaçando ás tontas. * * * * * * * Transpondo, na manhã seguinte, o rio Paranahyba, pisou Cyrino territorio de Minas-Geraes. Depois de legua e meia em matta semelhante á da margem direita, abrem-se campos dobrados, um tanto crestados do sol, de aspecto pouco variado, mas abundantissimos em perdizes e codornas. Tão preoccupado levava o moço o espirito que, nem sequer uma só vez, imitou o pio daquellas aves; distracção, a que aliás não se furta quem por lá viaja, tão instantes são os motivos de instigação. Foi com impaciencia mais e mais crescente que percorreu as dezeseis leguas intermedias á fazenda do Padua. Ia com o coração cheio de aprehensões e os olhos se lhe arazavam de lagrimas, de cada vez que contemplava o melancolico bority. Então pelo pensamento voava á casa de Innocencia. Tambem, alli junto ao corrego em cuja borda se déra a ultima entrevista, se erguia uma daquellas palmeiras, rainha dos sertões. Que estaria fazendo a querida dos seus sonhos? Que lhe aconteceria? E Manecão?! Já teria lá chegado? Ao pensar nisto, augmentava-se-lhe a agitação e com vigor esporeava a cavalgadura. Transformava-se para elle o caminho em dolorosa via, que numa vertiginosa carreira quizera vencer, mas que era preciso ir tragando pouso a pouso, ponto por ponto. A magestosa impassibilidade da natureza exasperava-o. Quando o homem soffre devéras, desejara nos raptos do allucinado orgulho, ver tudo derrocado pela furia dos temporaes, em harmonia com a tempestade que lhe vae no intimo. --Meu Deus! murmurava Cyrino, tudo quanto me rodeia está tão alegre e é tão bello! Com tanta leveza voam os passaros: as flores são tão mimosas; os ribeirões tão claros ... tudo convida ao descanço ... só eu a padecer! Antes a morte... Quem me dera arrancar do coração este peso! esta certeza de uma desgraça immensa! Que é afinal o amor!... Daqui a annos talvez nem me lembre mais da pobre Innocencia... Estarei me atormentando á tôa... Oh não! Essa menina é a minha vida! é o meu sangue ... o meu pharol para os céus... Quem m'a rouba, mata-me de uma vez. Venha a morte ... fique ella para chorar por mim ... um dia contará como um homem soube amar!... Levantara Cyrino a voz. De repente, deu um grande grito, como que o suffocava: --Innocencia!... Innocencia! E as sonoridades da solidão, doceis a qualquer ruido, repetiram aquelle adorado nome, como repetiam o uivo selvatico da çuçuarana, a nota plangente do sabiá ou a martellada metallica da araponga... Como tudo, afinal, tem termo, alcançou Cyrino, no quarto dia, a casa de Antonio Cesario. Acolheu-o este com toda a amabilidade e franqueza. CAPITULO XXVI RECEPÇÃO CORDIAL Assignalemos este dia entre os mais felizes; não se poupem amphoras; e, como Sabios, descanso não demos aos nossos pés. HORACIO.--_Ode XXVI._ Em breve chegara Manecão á casa do futuro sogro. Não é grande a distancia de Sant'Anna até lá, e entretanto o animal brioso e descansado que montava o tropeiro viera sempre estimulado do ferreo acicate. Batia de impaciencia o coração do capataz, e a lembrança da formosa noiva que o esperava, enchia-o de desconhecido alvoroço. Tambem, por vezes, fugia-lhe do rosto o toque habitual de severidade, e tenue sorriso afastando a custo os densos bigodes, lhe pairava nos labios. Acolheu-o Pereira com verdadeira explosão de alegria. --Viva! viva! exclamou de longe acenando com os braços, seja bemvindo neste rancho... Ora, até que afinal!... Faltam _rojões_ para festejar a sua chegada... Que demora!... Pensei que não topava mais com o caminho da casa... _Nocencia_ vae pular de contente... Emquanto o mineiro enfiava estas palavras quasi em gritos, apeou-se o sertanista que, de chapéu na mão, veiu pedir-lhe a benção. --Deus o faça um santo, disse Pereira abençoando-o com fervor. Você não queria chegar... --Como vae a dona? perguntou Manecão. --Agora, muito bem. Teve sezões; mas já está de toda boa... --E lembrou-se de mim? --Olhe, que _enjoado_!... Pois se elle enfeitiça a gente... Eu mesmo só pensava em você... Quando estará por cá aquelle marreco? dizia eu commigo mesmo ... e botava uns olhos compridos por essa estrada a fora ... quando mais, mulher! Isto é um não acabar nunca de saudades. Mas, observou elle, estamos a bater lingua e não o faço entrar... _Agorinha_ mesmo, _Nocencia_ foi para o corrego... Desensilhe o _pingo_ e deixe-o por ahi... Fez Manecão o que disse Pereira. Tirou os arreios, não de subito, mas com cautela e lentidão para que o animal, encalmado como estava, não ficasse _airado_: deixou sobre o lombo a manta e, apanhando um sabugo de milho, esfregou de vagar a anca e o pescoço. Depois de dar termo áquelles cuidados, penetrou na casa fazendo soar ruidosamente as esporas, que pelas dimensões desproporcionadas o obrigavam a caminhar firmado nos dedos do pé e com a planta levantada. O mineiro não cabia em si de contente. --Então, está tudo arranjado? perguntou alegremente. --Tudo. Os papeis já foram tirados... Tive que ir até Uberaba, e foi o que me atrazou... Quando mecê queira ... botamo-nos de partida para a Senhora Sant'Anna... Amanhã cá chegam os cavallos que comprei... Está falado o Lata ... o vigario avisado; só ... falta o dia... --Nestes casos, quanto mais depressa melhor... Não acha? --Certo que sim... --Então, se quizer, daqui a dois domingos... --Como queira... Eu, cá por mim... Bem sabe, isto de _casorios_, o que custa é ... tomar resolução ... depois ... deve-se _pegar_ na carreira... A rapariga está prompta?... --Não sei ... hade estar... Vejo-a sempre cosendo... Quero ficar bem certo do dia, porque mando chamar a gente do Roberto... Afinal, é preciso matar a porcada e mandar buscar _restillo_[116]. Quando se casa uma filha e ... filha unica, as algibeiras devem ficar _velleiras_[117]... Já estão todos combinados ... é só dar o signal... Tudo se arma logo... Aqui, em frente da casa, faz-se um grande rancho... A latada para a _janta_ hade ser no oitão direito... Já encommendei de Sant'Anna alguns rojões, e o mestre Trabuco prometteu-me uns que deitam lagrimas... Depois, tiros de bacamarte e _ronqueiras_ hão de troar... --Eu, interrompeu Manecão, mandei com a sua licença vir da _cidade_ duas duzias de garrafas de vinho da casa do major... --Olaré! Você metteu-se em gastos!... Duas duzias de garrafas de vinho? --Nhôr-sim... --Pois essas, meu caro, hão de ser reguladinhas da _silva_... Para o vigario ... para o major ... o collector ... o professor ... emfim, gente de alguma representação, porque com ella conto, sem falar na _arraia miuda_. Isso ha de haver um _despotismo_. Quero que, dez dias antes da _fonçonata_ venha a comadre do Ricardo com o seu povaréu para prepararem sequilhos, tarecos, bróas, biscoitos de polvilho e _brevidades_[118]. Haverá regalo de _chicolate_[119] todas as manhãs... Você verá que desta festa falarão... E o _sapateado_ á noite? Os descantes?... Talvez se possa arranjar um _cururú_ valente... --Mas, perguntou Manecão, qu'é de sua filha? Riu-se Pereira. --Maganão! não pensa noutra coisa, hen? Tambem fui _ansim_ ... cada qual tem o seu tempo... Isto é regra de Nosso-Senhor Jesus-Christo. E, sahindo para o terreiro, gritou com força, fazendo das mãos buzina: --_Nocencia_!... _Nocencia_!... Não teve resposta. --Coitadinha da pequena, disse elle, ha de saltar que nem veadinha, quando voltar do rio. E accrescentou: --Já que ella não vem ... entremos. Você é de casa: tome por cá e chegue até o meu quarto... Rede e pelles macias não faltam. Ao dizer estas palavras, Pereira bateu amigavelmente no hombro de Manecão e fel-o seguir para o lanço do fundo da casa. [Nota 116: _Restillo_ é a aguardente distillada. No interior empregam-se estas palavras como synonymas.] [Nota 117: _Velleiras_, isto é, faceis no abrir.] [Nota 118: Especie de pão de milho em que entram claras de ovo.] [Nota 119: _Chicolate_ é café com leite e ovos batidos.] CAPITULO XXXVII SCENAS INTIMAS Santa Maria, advogada nossa, ouvi nossos rogos. Virgem pura, ante Vós se prostra uma infeliz donzella. WALTER SCOTT.--_Os dois desposados._ Descrever o abalo que soffreu Innocencia ao dar, cara a cara, com Manecão fora impossivel. Debuxaram-se-lhe tão vivos na physionomia o espanto e o terror, que o reparo, não só da parte do noivo, como do proprio pae habitualmente tão despreoccupado, foi repentino. --Que tem você? perguntou Pereira apressadamente. --Homem, a modos, observou Manecão com tristeza, que metto medo á senhora dona... Batiam de commoção os queixos da pobresinha; nervoso estremecimento balanceava-lhe o corpo todo. A ella se achegou o mineiro e pegou-lhe no braço. --Mas você não tem febre?... Que é isto, rapariga de Deus? Depois, meio risonho e voltando-se para Manecão: --Já sei o que é... Ficou toda fóra de si ... vendo o que não contava ver... Vamos, _Nocencia_, deixe-se de tolices. --Eu quero, murmurou ella, voltar para o meu quarto. E encostando-se a parede, com passo vacillante se encaminhou para dentro. Ficara sombrio o capataz. De sobrecenho carregado, recostara-se á mesa e fôra, com a vista, seguindo aquella a quem já chamava esposa. Sentou-se defronte delle Pereira com ar de admiração. --E que tal? exclamou por fim... Ninguem pode contar com mulheres, _iche_! Nada retorquiu o outro. --Sua filha, indagou elle de repente com voz muito arrastada e parando a cada palavra, viu alguem? Descorou o mineiro e quasi a balbuciar. --Não ... isto é viu ... mas todos os dias ... ella vê gente... Porque me perguntas isso? --Por nada... --Não:... explique-se... Você faz assim uma pergunta que me deixa um pouco ... _anarchizado_. Este negocio é muito, muito serio. Dei-lhe palavra de honra que minha filha _havéra_ de ser sua mulher ... a _cidade_ já sabe e ... commigo não quero historias... É o que lhe digo. --Está bom, replicou elle, nada de precipitações. _Toda a vida_ fui _ansim_... Já volto: vou ver onde _pára_ o meu cavallo. E sahiu, deixando Pereira entregue a encontradas supposições Decorreram dias sem que os dois tocassem mais no assumpto que lhes moia o coração. Ambos, calmos na apparencia, viviam vida commum, visitavam as plantações, comiam juntos, caçavam, e só se separavam a hora de dormir, quando o mineiro ia para dentro e Manecão para a sala dos hospedes. Innocencia não apparecia. Mal sahia do quarto, pretextando recahida de sezões: entretanto, não era o seu corpo o doente, não; a sua alma, sim, essa soffria morte e paixão; e amargas lagrimas, sobretudo a noite, lhe inundavam o rosto. --Meu Deus, exclamava ella, que será de mim? Nossa-Senhora da Guia me soccorra. Que pode uma infeliz rapariga dos sertões contra tanta desgraça? Eu vivia tão socegada n'este retiro, amparada por meu pae ... que agora tanto medo me mette... Deus do ceu, piedade, piedade. E de joelhos, deante de tosco oratorio allumiado por esguias velas de cera, orava com fervor, balbuciando as preces que costumava recitar antes de se deitar. Uma noite, disse ella: --Quizera uma reza que me enchesse mais o coração ... que mais me alliviasse o peso da agonia de hoje... E, como levada de inspiração, prostrou-se murmurando: --_Minha Nossa Senhora_ mãe da Virgem que nunca peccou, ide deante de Deus. Pedi-lhe que tenha pena de mim ... que não me deixe assim nesta dor cá de dentro tão cruel. Estendei a vossa mão sobre mim. Se é crime amar a Cyrino, mandai-me a morte. Que culpa tenho eu do que me succede? Rezei tanto, para não gostar deste homem! Tudo ... tudo ... foi inutil! Porque então este supplicio do todos os momentos? Nem sequer tem allivio no somno? Sempre elle ... elle! Ás vezes, sentia Innocencia em si impetos de resistencia: era a natureza do pae que acordava, natureza forte, teimosa. --Hei de ir, dizia então com olhos a chamejar, á igreja, mas de rastos! No rosto do padre; gritarei: Não, não!... Matem-me... mas eu não quero... Quando a lembrança de Cyrino se lhe apresentava mais viva, estorcia-se de desespero. A paixão punha-lhe o peito em fogo... --Que é isto, Santo Deus? Aquelle homem me teria botado um mau olhado? Cyrino, Cyrino volta, vem tomar-me ... leva-me! ... eu morro! Sou tua, só tua ... de mais ninguem. E cahia prostrada no leito, sacudida por arrepios nervosos. Um dia, entrou inesperadamente Pereira e achou-a toda lacrymosa. Vinha sereno, mas com ar decidido. --Que tem você, menina, perguntou elle, meio terno, de alguns dias para cá? Innocencia encolheu-se toda como uma pombinha que se sente agarrar. Puxou-a brandamente o pae e fel-a sentar no seu collo. --Vamos, que é isto, _Nocencia_? Porque se _socou_ assim no quarto?... Manecão lá fóra a toda a hora está perguntando por você ... isto não é bonito... É, ou não, o seu noivo? Redobraram as lagrymas. --Mulher não deve atirar-se á cara dos homens ... mas também é bom não se _canhar_ assim ... É de _enjoada_... Um marido quasi, como elle já é... De repente o pranto de Innocencia cessou. Desvencilhou-se dos braços do pae e, de pé deante delle, encarou-o com resolução: --Papae sabe porque tudo isto? --Sim... --É porque eu ... não devo... --Não devo o que? --Casar. Arregalou Pereira os olhos e de espanto abriu a boca. --Que? perguntou elle elevando muito a voz. Comprehendeu a pobresinha que a lucta ia travar-se. Era chegado o momento. Revestiu-se de toda a coragem. --Sim, meu pae, este casamento não deve fazer-se... --Você está doida? observou Pereira com fingida tranquilidade. Prosseguiu então Innocencia com muita rapidez, as faces incendiadas de rubor: --Conto-lhe tudo papae... Não me queira mal... Foi um sonho... O outro dia, antes de Manecão chegar, estava sesteando e tive um sonho... Neste sonho, ouviu, papae? minha mãe vinha descendo do céu... Coitada! estava tão branca que mettia pena... Vinha _bem limpa_, com um vestido todo azul ... leve, leve! --Sua mãe? balbuciou Pereira tomado de ligeiro assombro. --Nhôr sim, ella mesma... --Mas você não a conheceu! Morreu, quando você era pequetita... --Não faz nada, continuou Innocencia, logo vi que era minha mãe... Olhava para mim tão amorosa!... Perguntou-me: _Cadê_ seu pae? Respondi com medo. Está na roça; quer mecê, que elle venha?--Não, me disse ella, não é _perciso_; diga-lhe a elle que eu vim até cá, para não deixar Manecão casar com você, porque hade de ser infeliz ... muito!... muito!... --E depois? perguntou Pereira levantando a cabeça com ar sombrio, gyrando os olhos. --Depois ... disse mais... Se esse homem casar com você, uma grande desgraça hade entrar ... nesta casa que foi minha e onde não haverá mais socego. Bote seu pae bem sentido nisso. E sem mais palavra, sumiu-se como uma luz que se apaga. Cravou Pereira olhar inquiridor na filha. Uma suspeita lhe atravessou o espirito. --Que signal tinha sua mãe no rosto? Innocencia empallideceu. Levando ambas as mãos á cabeça e prorompendo em ruidoso pranto, exclamou: --Não sei ... eu estou mentindo ... Isto tudo é mentira! É mentira! Não vi minha mãe!... Perdão, minha mãe, perdão! E, cahindo de bruços sobre a cama, ficou immovel com os cabellos esparsos pelas espaduas. Contemplou-a Pereira largo tempo sem saber que pensar, que dizer. Subito se inclinou sobre o corpo da filha e ao ouvido lhe segredou com muita energia: --_Nocencia_, daqui a bocadinho Manecão chega da roça... Você hade ir para a sala ... se não fizer boa cara, eu a mato. E erguendo a voz: --Ouviu? Eu a mato!... Quero antes vel-a morta, estendida, do que ... a casa de um mineiro deshonrada... Ás pressas sahiu do quarto, deixando Innocencia na mesma posição. --Pois bem murmurou ella, já que é preciso ... morra eu! CAPITULO XXVIII EM CASA DE CESARIO Ah! a perspectiva que pode mais docemente sorrir ao meu coração é a do aniquilamento. KLOPSTOCK.--_A Messiada._ Cyrino logo que se estabeleceu em casa do seu novo hospedeiro, tratou de lhe captar as sympathias. Medicou um escravo que estava de cama, fez valer o conhecimento e amizade que tinha com Pereira, conversou muito a respeito delle e incidentemente deu noticias de Innocencia. Atalhou-o Antonio Cesario neste ponto. --Mecê a viu? perguntou elle. --Pois não, respondeu o moço, por signal que a curei de sezões. --Ah! É uma guapa rapariga... --Parece-me... --Isso é ... falo assim, porque afinal ... daqui a poucos dias está casada ... não sabe? --Ouvi contar. --Pois é verdade. O noivo passou por cá e levou a minha licença. É homem de mão cheia. A pequena deve estar contente. Ah! nem todas no sertão são felizes assim. Tem-se por aqui o mau vezo de arranjar casamentos ás cégas, e ás vezes, se _encambulha_ um mocetão com uma fanadinha ou então uma sujeita de encher o olho com algum rapaz todo engorovinhado... Cruz! E, uma vez dada a palavra, acabou-se... Achou Cyrino a occasião propria e redarguiu com vivacidade: --Então o senhor não é desse parecer? --Conforme, respondeu logo Cesario com reserva. Aos paes é que convem _inziminar_ essas coisas. --Boa duvida... Mas ... se ... sua afilhada ... não gostasse de Manecão? --Não gostasse? --Sim. --E que nos importa isso? Uma menina como ella não sabe o que lhe fica bem ou mal... Ninguem a vae consultar. Mulheres, o que querem é casar. Não ouviu já o patricio dizer que ellas não casam com carrapato, porque não sabem qual é o macho? E Cesario sorriu. Depois, fechando de repente a cara, perguntou: --Porque é que estamos a dar de lingua nesse particular? Não sou amigo disso. Quer-me parecer que mecê é um tanto namorador... --Eu? protestou Cyrino com vivacidade. --Boa duvida. Eu cá nem falar nellas quero. Mulher é para viver muito quietinha perto do tear, tratar dos filhos e creal-os no temor de Deus; não é nem para _parolar-se_ com ella, nem a respeito della. Sempre as mesmas theorias de Pereira: a mesma grosseria repassada de desprezo ao sexo fraco, a mesma susceptibilidade para desconfiar de qualquer pessoa ou de qualquer palavra que lhes parecesse menos bem soante aos prevenidos ouvidos. --Minha afilhada, continuou Cesario, deve levantar as mãos para o céu. Achou um marido que a hade fazer feliz e tornal-a mãe de uma boa duzia de filhos. Estremeceu Cyrino, mas nada disse. Por toda a parte esbarrava de encontro a preconceitos que nada podia vencer. Nessa mesma tarde quiz montar a cavallo e voltar para Sant'Anna; entretanto, o pensamento da resistencia com que Innocencia encetara a terrivel lucta com seu pae, actuou em seu espirito e o reteve. Decidiu-se a atacar o touro pelas aspas. Restar-lhe-ia ao menos o consolo do desabafo, e num jogo perdido arriscava ainda ousado lance. --Sr. Cesario, disse elle na manhã seguinte, preciso muito falar-lhe em particular. --A mim? --Sim, senhor. --Pois, estou aqui ás suas ordens. --Quizera que sahissemos. O que lhe vou dizer ... ninguem pode ... ninguem deve ouvir. --Oh! O senhor me assusta... Então tem segredos que me contar? --Tenho... --Pois vá lá... _Mapiaremos_ fóra... Ao meio-dia esteja na minha roça ... sabe onde é? --Sei... --Espere-me num pau de peroba secco que esta derrubado. --Lá estarei. Muito antes da hora aprazada, achava-se Cyrino no lugar indicado. Devorava-o a impaciencia. Resolvido a desvendar sem rebuço os seus amores a esse homem a quem mal conhecia, que por elle não tinha senão razões de passageira sympathia, e de quem, comtudo, estava dependente sua felicidade, considerava decisivos os momentos. Quem em taes circumstancias se acha, enxerga em tudo quanto o rodeia symptomas de bom ou mau agouro, e nesse instante a Cyrino pouco parecia sorrir a natureza. Não chovia; mas o tempo estava carregado e sombrio. Tinha o ceu cor acinzentada e do lado do poente linhas negras e continuas denunciavam trovoada talvez para a tarde. Era o local, além disso, tristonho. Enfileiravam-se numa grande área, pés de milho já pendoados, dentre os quaes surgiam possantes madeiros de tronco rugoso e galhada completamente despida de ramagem; uns, da base á extrema ponta, lugubremente ennegrecidos pelo fogo lançado antes da sementeira; outros perdidas todas as folhas em consequencia da incisão profunda e circular com que o machado impedira a ascensão da seiva. Esses quedavam vivos, mas de uma vida latente e esmorecida, denunciada por entanguidos brotos no mais alto do tope. Quando o dia é claro, aquelles gigantes da floresta, que pela robustez do cerne haviam desafiado as chammas e os esforços do homem, servem de poleiro a innumeros bandos de papagaios, periquitos araçaris, ou de graúnas que formam concertos capazes de ensurdecer os écos. Naquella occasião; porém, tudo era silencio. Só de vez em quando se ouviam pancadas surdas e intermittentes dos pica-paus de crista vermelha, agarrados aos troncos das arvores e a explorar-lhes os pontos carunchosos, subindo em zig-zags. Á hora ajustada, apresentou-se Antonio Cesario. Por cautela vinha armado de uma espingarda de caça, que bem serviria para derrubar alguma onça, ou animal damninho. Seu rosto, habitualmente sereno, indicava certa inquietação, repassada de curiosidade. --Aqui me tem, doutor, disse elle descançando a arma sobre o páu derrubado e sentando-se ao lado de Cyrino. Estou prompto para ouvil-o quanto tempo queira... Muito pensara Cyrino nesse momento a que devia chegar e, entretanto, não pudera achar o modo por que encetasse as suas declarações. Parafusara de continuo mil pretextos sem nada assentar. Foi, pois, a balbuciar que respondeu: --O Sr ... hade me desculpar ... o incommodo que ... lhe dou... --Incommodo nenhum. --E deve estar ... espantado do que lhe pedi ... vir falar commigo ... em lugar ermo ... commigo que sou como qualquer hospede, como tantos que a sua casa tão franca todos os dias recebe... --Com effeito, confirmou Cesario. --Pois bem, daqui a nada tudo lhe ficará claro e explicado... Se emquanto eu falar ... o offender, perdoe-me, ouviu? --Sr. Cesario, continuou Cyrino após breve pausa, se o Sr. visse um homem arrastado numa _corredeira_[120] e pudesse atirar-lhe uma corda e salval-o ... o faria? --Boa duvida! replicou o outro com força. Ainda que corra perigo de vida, não deixarei homem nenhum, branco ou preto, livre ou escravo, rico ou pobre, conhecido ou não, sem o soccorro de meu braço. --Pois bem, exclamou Cyrino arrebatadamente, sou eu esse homem que vae morrer, que está perdido e a quem o Sr. pode salvar... E respondendo á tacita suspeita de quem o ouvia: --Não acredite que esteja doido ... não. Estou tão são de juizo como o Sr. e falo-lhe a verdade. Uma palavra esclarece-lhe tudo ... eu morro de paixão por uma mulher e essa mulher é ... sua afilhada!... Innocencia! De um pulo levantou-se Cesario. Seus labios tremiam, os olhos de subito injectados de sangue. A mão procurou a arma que lhe ficava ao lado. --Que é isso? balbuciou encarando fixamente Cyrino. Adivinhara-lhe este todos os pensamentos. Erguera-se tambem, cara a cara com Cesario: --Mate-me, bradou elle, mate-me... É um favor que me faz... Dê cabo desta vida desgraçada. Já arrependido do gesto que fizera e um tanto corrido da sua precipitação, replicou o outro todo sombrio: --Não tenho razões para matal-o... O Sr. nunca me fez mal... --Não, proseguiu Cyrino meio desvairado, peço-lhe por favor... Se o Sr. tem caridade, e é bom, se gosta de seus filhos, se tem pae e mãe no céu ... por tudo isso eu lhe peço de joelhos! mate-me ... mate-me! E deixou-se cahir aos pés de Cesario, occultando a cabeça entre as mãos. Contemplou-o largos instantes o mineiro com surpreza. Inclinando-se para o moço, bateu-lhe no hombro e quasi com brandura lhe disse: --Que historia é essa, doutor?... Isso é loucura! Conte-me o que ha... Quero saber se a sua bola está gyrando ou não. Sou homem do sertão, mineiro de lei ... mas sei tratar com gente... A estas palavras, recobrou Cyrino algum alento e pôz-se de pé. Sentando-se então ao lado de Cesario, narrou-lhe tudo, o desespero que o minava, a certeza que tinha do amor de Innocencia e a implacavel sentença proferida por Pereira. Ouvia-o Cesario attentamente. Só de vez em quando deixava escapar esta exclamação: --Ah! mulheres!... mulheres! É a nossa perdição. Depois que Cyrino acabou de falar, encarou-o detidamente e, com ar severo, perguntou: --Fale-me a verdade, doutor, o senhor nunca trocou palavra com Innocencia? Nunca esteve só com ella? --Estive, respondeu o outro meio receioso. As faces de Cesario subiu uma onda de sangue. --Então, roquejou elle, a desgraça... --Deus meu, atalhou Cyrino com fogo, caia a alma de minha mãe no inferno, se Innocencia não é pura ... se... Conteve-o Cesario com um gesto. --Basta, moço: quem jura assim, não mente... Tambem no meu tempo tive uma paixão infeliz ... e sei o que é soffrer... --Oh! Sr. Cesario, salve-me!... --Que posso eu fazer? Não sabe o senhor que ella hoje não pertence nem mesmo ao pae, ao seu proprio pae? Pertence á palavra de honra, e palavra de mineiro não volta atraz... Não sabia o senhor disso, quando deixou que o amor lhe entrasse pelos olhos?... Mulheres não pensam ... mulheres o que querem é ver os homens _derretidos_ por ellas ... sacrificam tudo ... e por um requebro _pincham_ na rua a honra de suas casas... --Não, protestou Cyrino, ella não é assim... --Então é melhor que as outras? objectou Cesario com desdem. --Sim, sim, é melhor do que tudo deste mundo. Acima della, só Nossa-Senhora!... Ligeiramente sorriu o mineiro. --Qual! observou elle, bem disse o _outro_: a paixão é um transtorno. Fica um homem que nem uma miseria! É... --Então? interrompeu Cyrino. --Então o que?... Já lhe não disse quanto basta? Minha afilhada pertença tanto a Manecão, como uma garrucha ou um _guampo lavrado_[121] que Pereira lhe tivesse dado... Não ha meios e modos de voltar atraz... Não desanimou o mancebo. Falou por muito tempo com verdadeira eloquencia, appellando principalmente para a protecção que todo o christão tem obrigação de dispensar ao ente que leva á pia baptismal, a seu segundo filho, ao pagãosinho por quem o padrinho se torna responsavel perante Deus. Feriu o sentimento religioso do mineiro e commoveu-o. --Não me falle assim, contrariou este, o senhor quer ver se me puxa para o seu lado... E quem me assegura que, _Nocencia_ gosta tanto da sua pessoa?... Quem? O coração está-lh'o dizendo baixinho, respondeu com calma Cyrino. O senhor, que é homem de honra, acredita que eu esteja mentindo? Que tudo isso é falso? ... diga, acredita? Cesario tartamudeou: --Sim... _Assumpto_ verdades, mas... --Ah! exclamou Cyrino, o Sr. sente a consciencia bater-lhe que sua afilhada está desamparada, que vae ser sacrificada ... e agora tapa os ouvidos e diz: Não quero ouvir, não quero cumprir a minha palavra! Porque a deu então o Sr ... essa palavra de honra de que tanto fala?... Nossa Senhora que a proteja ... que a tire deste mundo... Isso ha de pesar-lhe no peito ... e, quando um dia tiver noticia que Innocencia morreu de desgostos, ha de dizer lá comsigo que ajudou a cavar-lhe a sepultura. Estava Cesario abalado: com verdadeira anciedade retorquiu: Que historias me conta o Sr.? Eu mettido no meu canto ... vivendo tão socegado ... não bulindo com ninguem, e agora _anarchisado_ por estes mexericos!... Quem o mandou vir cá? --Quem seria, retrucou Cyrino, senão Innocencia? Por ventura eu o conhecia? ... algum dia o vi?... Não; foi aquelle anjo que me disse: busca meu padrinho, é o ultimo recurso. Se elle não nos amparar, então ... estamos perdidos de uma vez. Estas palavras convenceram de todo Cesario. Ficou em silencio, recolhido, a meditar; Cyrino o observava offegante. --Pois bem, disse por fim o mineiro em tom grave e pausado, hei-de pensar no que o Sr. me conta... --Oh! Sr. Cesario!... --Levarei dois dias a remoer sobre o caso... O que disse uma vez, não digo duas... No fim desse tempo, monto a cavallo e appareço por casa de Pereira... --Sim, sim, balbuciou o moço. --Amanhã mesmo, de madrugada, o Sr. sae daqui e vae esperar-me na Senhora Sant'Anna. --Irei ... salve-me... Cesario parou um pouco. --Agora, quero que o Sr. me faça um juramento ... pelas cinzas de sua mãe. --Estou prompto. --Pela salvação da sua alma... --Pela salvação de minha alma, repetiu Cyrino. --Pela vida eterna... Cyrino acenou com a cabeça. --Jure! O mancebo cruzou os dedos indices e beijou-os com uncção abaixando os olhos e empallidecendo. --O Sr., disse Cesario, jurou antes de saber o que era... Deu-me boa idéa do seu caracter... Farei tudo por ajudal-o, mas exijo-lhe uma condição... Se quizer aceital-a, fica valendo o juramento; senão ... o dito por não dito... --Que será, meu Deus? murmurou Cyrino. --É ficar o Sr. esperando em Sant'Anna. Se eu apparecer por estes oito dias, iremos juntos á casa do compadre. Se não, é que decidi o contrario. Neste caso, virá o Sr. até cá e aqui esperará as suas cargas que mandarei buscar. Será signal de que, nunca mais ha de procurar botar as vistas em Innocencia ... nem sequer fallar nella. Acceita? --Aceito, respondeu o moço com exaltação; mas fique certo de uma coisa: se o Sr., no tempo marcado, não estiver na villa, reze por alma de Cyrino, porque elle terá deixado este mundo de afflicções. Cesario meneou tristemente a cabeça e retirou-se, sem dizer mais palavra. [Nota 120: Trecho de rio encachoeirado.] [Nota 121: Guampo é uma vasilha feita de chifre para tirar agua. Chama-se lavrado quando tem desenhos de lavor.] CAPITULO XXIX RESISTENCIA DE CORÇA Acasto--Não póde ella falar? Oswaldo--Se ralar é tão somente fazer ouvir sons por meio da lingua e dos labios, é aquella creatura muda; mas se tão maravilhosa faculdade consiste tambem em tornar comprehensiveis os menores pensamentos por accionados e expressivos gestos, póde dizer-se que ella a possue, pois seus olhos brilhantes como estrellas do céu tem uma linguagem intelligivel, bem que falha de sons e de palavras. SHAKESPEARE. Deixámos Innocencia tão abatida de corpo, quanto resoluta de espirito. Presentia os choques que tinha de supportar, e robustecia a alma na meditação continua e firme da sua infelicidade. Estava de joelhos deante da imagem de Nossa Senhora, quando a voz de seu pae a fez levantar. --_Nocencia_! chamava elle. Rapidamente passou a pobresinha a mão pelo rosto para apagar os vestigios de copioso pranto, e com passo quasi seguro penetrou na sala. Estavam Pereira e Manecão sentados junto á mesa. O anãosinho Tico aquecia-se aos pallidos raios de um sol meio encoberto e, sentado á soleira da porta, brincava com umas palhinhas. --Estou aqui, papae, disse Innocencia em voz alta e um pouco tremula. Encarou-a Manecão com ar entre sombrio e apaixonado. Julgou dever dizer alguma coisa. --Até que afinal a dona sahiu do ninho... É que hoje o dia está de sol, não é? A moça nada lhe respondeu; fitou-o com tanta insistencia que fel-o abaixar os olhos. --Ella esteve doente, desculpou Pereira. E voltando se para a filha: --Sente-se aqui bem perto de nós... O Manecão quer conversar com você em negocios particulares... --Bem percebe ella, observou o desazado noivo intentando abrir o motivo para risos. Innocencia replicou em tom incisivo: --Não percebo. --Está se ... fazendo de ... engraçada, balbuciou Manecão. Pois já ... se esqueceu ... do que tratei com seu pae?... Parece que comeu muito queijo. Com a mesma entoação, e cortando-lhe a palavra retorquiu ella: --Não me lembro. Houve uns minutos de silencio. Accumulava-se a colera no peito de Pereira: seus olhares irados ião rapidos de Manecão á imprudente filha. --Pois, se você não se lembra, disse elle de repente, eu cá não sou tão esquecido. --Ora, recomeçou Manecão levantando-se e vindo recostar-se á beira da mesa para ficar mais chegado á moça, faz-se de _enjoada_ a tôa ... o nosso casamento... --Seu casamento? perguntou Innocencia fingindo espanto. --Sim... --Mas com quem? --Ué, exclamou Manecão, com quem ha de ser... Com mecê... Pereira fôra-se tornando livido de raiva. O anão acompanhava toda essa scena com muita attenção. Scintillavam seus olhinhos como diamantes pretos; seu corpo rachitico estremecia do impaciencia e susto. Á resposta de Manecão, levantou-se rapida Innocencia e, como que acastellando-se por detraz da sua cadeira, exclamou: --Eu?... Casar com o senhor?! Antes uma boa morte!... Não quero ... não quero... Nunca... Nunca... Manecão bambaleou. Pereira quiz pôr-se de pé, mas por instantes não pôde. --Está doida, balbuciou, está doida. E, segurando-se á mesa, ergueu-se terrivel. --Então, você não quer? perguntou com os queixos a bater de raiva. --Não, disse a moça com desespero, quero antes... Não pôde terminar. O pae agarrara-a pela mão, obrigando-a a curvar-se toda. Depois, com violento empurrão, arrojou-a longe de encontro á parede. Caiu a infeliz com abafado gemido e ficou estendida por terra, amparando o peito com as mãos. Mortal pallidez cobria-lhe as faces, e de ligeira brecha que se abrira na testa deslisavam gottas de sangue. Ia Pereira a precipitar-se sobre ella como para esmagal-a debaixo dos pés, mas parou de repente e, levando as mãos ao rosto, occultou as lagrimas que dos olhos lhe saltavam a flux. Manecão não fizera o menor gesto. Extatico assistira a toda essa dolorosa scena. A physionomia estava impassivel, mas, por dentro, seu coração era um vulcão. Lugubre silencio reinou por algum tempo naquella sala. O anão chegara-se a Innocencia, tomando-lhe uma das mãos: depois, a fizera sentar e, no meio de carinhos, mostrara-lhe por signaes a necessidade de retirar-se. A custo pôde ella seguir aquelle conselho. Quasi de rastos e ajudada por Tico é que saiu da presença do pae e de seu perseguidor. Nenhum movimento fizeram os dois para retel-a. Calados como estavam, deixaram-se ficar de pé, um ao lado do outro, ambos acabrunhados pela grandeza daquella desgraça. Com frenesi cofiava Manecão o basto bigode. Pereira tinha a cabeça pendida sobre o peito. Afinal, exclamou: --É preciso que eu _desembuche_ o que tenho cá dentro, senão estouro... Quem for homem que seja ... Manecão, _Nocencia_ para nós está perdida ... para nós, porque um homem lhe deitou um mau olhado... --E que homem é esse? perguntou em tom surdo e ameaçador o outro. --Agora vejo como tudo foi... Eu mesmo metti o diabo em casa... Estive alerta ... mas o mal já caminhava. --Mas, quem é elle? tornou a perguntar com impaciencia Manecão. --Um maldito! um infame, um estrangeiro que aqui esteve... Roubou-me o socego que Deus me deu... Contou então ás pressas Pereira todas as tentativas do allemão Meyer, tentativas que haviam sido descobertas, mas que infelizmente, pelo menos assim suppunha, já haviam produzido os seus damnosos fructos. --Ah! disse por fim abaixando a voz, pensou aquelle cachorro, que tudo era namorar mulheres e depois dar com os pés em polvorosa, não é?... Amanhã mesmo eu lhe saio no rasto. --Para que? interrompeu Manecão. --Respondam os urubús... --Para matal-o? --Sim... Houve breve pausa. --Não será, o senhor, disse o capataz, que lhe hade dar cabo da pelle. --Porque? --É negocio que me pertence. O senhor é pae ... eu porém sou ... noivo. Mangaram com os dois ... mas o _allamão_ fica no chão. --Pois seja, concordou Pereira, parta amanhã mesmo ou hoje ... agora, se possivel fôr. Cão damnado deve logo ser morto, para que a baba não dê raiva... Vá depressa e venha contar-me que aquelle homem já não existe... Como velho, como pae ... abençôo a mão que o hade matar. Caia o sangue que correr ... sobre os meus cabellos brancos... Havia toda esta conversa sido attentamente ouvida por alguem; o anão Tico. Viera a pouco e pouco approximando-se da mesa com os olhos a fulgir. De repente, collocou-se resolutamente entre Manecão e Pereira. --Que quer você aqui? perguntou o mineiro com aspereza. Começou então o homunculo a explicar por gestos vagarosos, mas muito expressivos, que de tudo estava sciente, participando de todos os projectos e do mesmo sentimento de indignação e desespero que enchia os dois offendidos. Depois, apressando mais a gesticulação e por sons meio articulados, fez ver que Pereira laborava em engano, tão somente quanto á pessoa. Com muita propriedade de imitação e perfeita mimica, ora levantando o braço para caracterisar as physionomias, tão exactamente representou Meyer e Cyrino, que o mineiro logo os reconheceu. --Bem sei, bem sei Tico, murmurou elle. Você fala do doutor e daquelle... Ahi o anão fez um gesto de negação e, apontando para o quarto de Innocencia, indicou que nada tinha ella com o allemão. Ficaram pasmos os dois. --Então, balbuciou Pereira, quem será?... Cy ... rino, meu Deus?! --Sim... Sim! gritou o anão com violento esforço abaixando muitas vezes a cabeça. --Qual! protestou Pereira, o doutor?... Com muita habilidade e segurança Tico desenvolveu as provas que tinha. Gesticulou como um possesso; correu para fóra de casa; denunciou as entrevistas; reproduziu ao vivo todas as passadas de Cyrino: mostrou o lugar do laranjal donde vira tudo, o galho quebrado em razão da sua queda; repetiu o grito que dera; lembrou a scena da madrugada, findando com aquelles tiros; exprimiu-se por signaes tão adequados e taes movimentos de cabeça e physionomia, que toda a duvida desappareceu do espirito de Pereira. Então tudo se lhe descortinou claro e deslumbrante, e sua colera subiu a um grau de violencia inexprimivel. Esteve a cahir fulminado. --Infame murmurou roxo de ira, tu me pagas! Infame... Infame! Depois voltando-se para Manecão: --Dê-me esse ... eu o quero... Abanou o capataz a cabeça. --Não, respondeu surdamente. Esse me pertence... Caçoou com o senhor ... e fez de mim chacota. --Então, disse apressadamente Pereira, parta hoje ... parta já... E quando voltar, diga só: estamos desaggravados... Innocencia será sua... Parando um pouco concluiu tomado de enleio: --Se quizer aceital-a. --Havemos de conversar... Teve o mineiro uma explosão de desespero. --Meu Deus, exclamou com dor, em que mundo vivemos nós? Um homem entra na minha casa, come do que eu como, dorme debaixo do meu tecto, bebe da agua que, carrego da fonte, esse homem chega aqui e, de uma morada de paz e de honra, faz um lugar de desordem e vergonha! Não, mil raios me partam!... Não quero mais saber que esse miseravel respire o ar que respiro. Não! mil vezes, não! E desde já enxoto a canalhada que trouxe, gente do inferno como elle!... Heide cuspir-lhes na cara... _Pinchal-os_ fóra como cães que são!.. Ladrões!... Eu... Interrompeu-o Manecão com calma: --Não faça nada... É preciso que ninguem saiba do que se está passando aqui... Ninguem!... percebe? --E então? --Faça de conta[122] que recebeu uma _letra_[123] de Sant'Anna. O _cujo_ foi quem a mandou, para que os camaradas o vão esperar no Leal... Ouviu? Pereira fez signal de tudo comprehender. --Depois, acrescentou Manecão com voz sinistra, mãos a obra. --Você diz bem, retorquiu Pereira, tenha pena de mim... Estou com esta cabeça como um cortiço de guaxupés... É um zumbido!... Mostre que já é dono desta casa e faça como entender... Entrego-me de pés e mãos atadas a você... Tudo lhe pertence... Emquanto a honra do mineiro não for desaffrontada ... não levanto o rosto... Meu Deus, meu Deus, que vergonha!... --Coragem, coragem, aconselhou o outro. --Se este _socavão_ não chegar para esconder minhas miserias ... mudo-me para as bandas do Apa... Parece que vou morrer ... sinto fogo dentro da cabeça... E vencido pela emoção encostou a testa á mesa, deixando cahir os braços. Bateu-lhe Manecão no hombro. --Que é isso, meu pae? animo! De que serve ser homem?... Olhe, cara a cara a sua desgraça ... que tambem é minha. Não o consola a certeza de que aquelle homem brevemente... --Sim, replicou Pereira levantando a cabeça e reparando que o anão se retirara, mas que faremos deste _tico_ de gente, que sabe tudo? --Não o deixe sair mais de casa. --Qual!... É que nem _mussú_. Quando a gente mal pensa, surge no Sucuriú e até no Corredor. --Pois bem... Ficará elle sabendo que ... um só piscar de olho ... pode sahir-lhe caro ... muito caro. --Então, implorou Pereira, vá quanto antes limpar o meu paiol daquella gente ... vá... Se eu pudesse ainda dormir ... esquecia um pouco, mas... Com estas palavras retirou-se a custo o mineiro. Incontinenti foi Manecão despachar os camaradas de Cyrino, os quaes, pouco depois sahiam com destino á casa do Leal. Em seguida, montando o tropeiro a cavallo, partiu em carreira desapoderada para a villa do Sant'Anna do Paranahyba, onde chegou alta noite. [Nota 122: Fingir.] [Nota 123: Carta.] CAPITULO XXX DESENLACE Estão contados os grãos de areia que compõem a minha vida. É aqui que devo tombar. É aqui que ella hade acabar. SHAKESPEARE.--_Henrique V_, Acto I. Eis que vi um cavallo amarello, e quem o montava, era a morte. S. JOÃO.--_Apocalypse._ Durante tres dias, foi Cyrino rigorosamente espreitado pelo noivo de Innocencia. Com a cautela propria dos seus habitos esquivos, soube Manecão acompanhar-lhe todos os passos sem ser presentido. Assim notou que o rival montava a cavallo e ia até certo ponto da estrada como que esperar por alguem que não chegava. Na ida, mostrava impaciencia e inquietação; na volta vinha melancolico e curvado sobre si mesmo, absorto em fundo meditar. Ia o infeliz mancebo ao encontro de Cesario; mas este não apparecia. Estava quasi expirado o prazo combinado, e prestes a soar a hora do completo desengano. Oh! se elle pudera!... Agarraria com forças de Josué esse sol que lhe marcava os dias e o deixaria immovel, até que o seu salvador se resolvesse a estender-lhe a mão. E já ia findando a semana!... Completo o circulo de horas, se Cesario não apparecesse, começava a imperar o juramento que dera, irrevogavel, implacavel! --Matar-me-hei, dizia Cyrino; ficarão sabendo que não menti ás minhas palavras. Nessa firme resolução sahiu da villa; passou o rio Paranahyba e, como costumava, caminhou pela estrada de S. Francisco de Salles, talvez tres leguas. Contava pousar por aquelles sitios, de modo que alongava o seu passeio. Claro era o dia; lindo. Por toda a parte cantavam mil passaros. Gritavam as gralhas nos cerrados; piavam as perdizes no relvoso chão. Cyrino ia muito agitado. Nada ouvia; os seus olhos, fitos sempre na frente, buscavam na estrada, anciosos o vulto de um cavalleiro. Soou-lhe de repente aos ouvidos o tropel de um animal. Alguem vinha a galope. Seu coração pulsou que parecia ter entrado tambem a galopar. Mas o som partia de detraz. Sem duvida, algum viajante vindo da villa. Continuou Cyrino na vagarosa marcha. O estrupido vinha indicando carreira folgada e que breve comsigo estaria emparelhando, quem extravagantemente em hora tão impropria corria á desfilada. O mancebo de nada cuidava, tanto que mal reparou que alguem a trote largo passara por perto de si, quasi a roçar animal contra animal. Dalli a pouco, novo galope se fez ouvir. Parecia que o mesmo cavalleiro havia dado de redeas, cortando o rumo que levava. Dessa vez, porem, Cyrino accordou do lethargo, esporeou vigorosamente a sua cavalgadura e ... esbarrou com Manecão. Instinctivamente empallideceu. O outro estava tambem muito descorado. Estacaram elles os animaes e fitaram-se alguns minutos, de um lado com desconfiança e pasmo, de outro com mal concentrado furor. --Patricio, interpellou por fim o capataz em tom provocador, que faz mecê por aqui? --Eu? perguntou Cyrino. --Nhôr sim, mecê mesmo. --É boa ... viajo. --Ah! viaja! replicou Manecão. Então é andejo? --Andejo, não, contestou Cyrino com força. Não sou nenhum bruto. E por prevenção levantou a capa do coldre em que havia uma pistola, fazendo menção de a sacar. --Não será andejo, continuou o capataz, mas então o que é? --Sou o que sou, não é da sua conta. Contrahiu-se o rosto de Manecão. De um tranco chegou o cavallo bem junto a Cyrino e disse-lhe em voz surda: --É um ladrão ... é um cachorro! A esse insulto, puxou Cyrino a pistola. --Mato-o já, bradou com violencia se continua a _destratar-me_... Sorriu-se o capataz com desprezo. --Gentes, observou cuspindo para um lado, vejam só que valentão... E sabe manejar garrucha!... --Acabemos com isso, gritou Cyrino. --Acabemos, retorquiu Manecão com fingida calma. --Mas quem é o Sr.? perguntou Cyrino. --Eu? --Sim!... sim!... --Então não me conhece? --Não, balbuciou Cyrino. --Conhece _Nocencia_? uivou Manecão com voz terrivel. E de sopetão tirando uma garrucha da cintura, desfechou-a á queima-roupa em Cyrino. Varou a bala o corpo do infeliz e o fez baquear por terra. Dois gritos estrugiram. Um de agonia, outro de triumpho. Ficara Cyrino estendido de bruços. Reunindo as forças, que se lhe escapavam com o sangue, voltou-se de costas e prorompeu em vociferações contra o inimigo, que o contemplava sardonico. --Matador! ... vil! ... sim! ... conheço Innocencia... Ela é minha... Infame!... Mataste-me... mas mataste tambem a ela!... Que te fiz eu?... Deus te hade amaldiçoar ... sim, meu Deus, meus Santos ... maldição sobre este assassino... Foge, foge ... minha sombra hade seguir-te sempre... --Melhor, interrompeu Manecão do alto do cavallo, isso mesmo é o que eu quero. --Ah! queres? continuou Cyrino com voz rouquejante, não é?... Pois bem!... De noite e de dia ... minha alma há de estar contigo ... sempre, sempre!... Calou-se por um pouco e, revolvendo-se no chão, passou a mão pela testa. Lentejava-lhe dos póros o suor frio e visguento da morte. Foi seu rosto abandonando a expressão de rancor; a respiração tornou-se-lhe mais difficil. --Não murmurou com pausa e gravidade, não quero morrer ... assim. Devo sair desta vida ... como christão... Hei de saber perdoar... E reunindo as forças, acrescentou com uncção e energia: Manecão ... eu te perdôo ... por Christo ... que morreu ... na cruz, para nos salvar ... eu te perdôo... Nosso Senhor tenha pena de ti... Eu te perdôo, ouviste? Á medida que o moribundo pronunciava estas palavras, esbugalhara Manecão os olhos de horror com o corpo todo a tremer. --Não quero o teu perdão, bradou elle a custo. --Não importa, respondeu-lhe Cyrino com voz suave. Ele é ... dado do fundo d'alma... Cáia sobre tua cabeça... Quero, quero morrer como christão... Que me importa agora o mundo, a vingança ... tudo?... só Innocencia!... Coitada de Innocencia... Quem sabe ... se ... ela ... não morrerá? Manecão, dá-me agua. Agua pelo amor de Deus!... Desce do cavallo, homem... É um defunto que te pede... Desce!... E com os braços erguidos acenava para Manecão. --Agua, bradou o mancebo forcejando por levantar-se, dá-me agua ... eu te dou a salvação... Sentia o capataz escorrer-lhe o suor dentre os cabellos. Queria fugir e não podia. Parecia que os seus olhos tinham de acompanhar passo a passo a agonia da sua victima. Aquella scena se lhe afigurava um pesadello, e completo torpor lhe tolhia os membros. Tirou-o desse enleio o bater das patas de um animal que vinha pela estrada a trote. Ouvira tambem Cyrino o estrupido e arregalara com anciedade os olhos. Desabrochou-lhe nos labios um sorriso de acre tristeza. Alguem vinha chegando. Esporeou Manecão com vigor o cavallo e, levantando uma nuvem de poeira, desappareceu num abrir e fechar de olhos. Nisto assomava um cavalleiro numa das voltas do caminho. Era Antonio Cesario. Vendo um homem estirado por terra apressou o passo. --O doutor?! exclamou apeando-se rapidamente e todo horrorisado. --Eu mesmo, respondeu Cyrino com voz fraca. --Mas, quem lhe fez este damno, santo Deus? E correndo para o moço, ajoelhou-se junto delle e levantou-lhe o corpo. --Quem foi o assassino? --Ninguem, rouquejou o misero, foi ... destino... Morro contente... Dê-me agua ... e fale-me de Innocencia... --Agua? exclamou Cesario com desespero, aqui no meio do cerrado?... O corrego fica a tres leguas pelo menos... --Ah! replicou Cyrino meio desvairado, se não ha ... com que estancar a sêde do corpo ... estanque a ... da alma... Innocencia ... onde está? quero vel-a... Diga-lhe que morri ... por causa della... --Mas, quem o matou? bradou o mineiro. --Não vale a pena dizel-o respondeu o mancebo entre gemidos. Cuide agora ... só de mim... Olhe ... nunca fui mau ... não tenho peccados ... grandes... Acha que Deus me ... hade perdoar? --Acho, respondeu Cesario com força... --Que fiz eu ... na minha vida? Talvez ... enganasse os outros ... dizendo que era ... medico... Mas ... tambem curei alguns... De nada mais me recordo... Ah! sim ... uma divida de honra... Na minha carteira ... ha uns seis centos mil reis; pague ... trezentos ao Totó Siqueira, da villa; dê ... cincoenta mil reis ... a cada camarada ... meu ... o mais ... distribua ... todo ... pelos pobres, sobretudo ... morpheticos ... depois das ... missas ... que por mim ... mandar ... rezar ... ouviu? ... ouviu? Fez o mineiro signal que sim. Vinha a morte desdobrando as suas sombras no rosto de Cyrino. Ia-se-lhe empanando o brilho dos olhos; ficara a lingua tropega, afilara-se-lhe o nariz, e sinistro pallor mais realçava a negra cor dos seus cabellos e barbas. Sentara-se Cesario no chão para segurar com mais geito o corpo do moribundo. Duas lagrimas vinham-lhe sulcando as masculas faces. Ligeiro estremecimento agitava o corpo de Cyrino. --Agora, acrescentou com voz muito sumida, chegou ... o meu dia... Mas ... eu lhe peço ... nada diga ... á sua afilhada... Não consinta ... que case com ... Manecão. --Então, interrompeu Cesario, foi elle quem?... --Não, não, contestou Cyrino, mas ... ella havia de ser ... infeliz... Ouviu? Promette-me? --Prometto, respondeu Cesario com firmeza. Juro até... --Pois bem, suspirou o agonisante, agora ... agradeço a morte... Quero apegar-me ... ás Santas do Paraiso ... e chamo por... E com esforço, no ultimo alento, murmurou mais e mais baixo: --Innocencia! * * * * * * * Na tarde deste dia, o viajante que passasse por aquelle sitio poderia ver uma cova coberta de fresco, sobre a qual se erguia uma cruz tosca feita de dois grossos páus amarrados com cipós. [Ilustração: Eram mostras da caridade do mineiro Antonio Cesario.] Eram mostras da caridade do mineiro Antonio Cesario. EPILOGO REAPPARECE MEYER Possue-te de justo orgulho e coroem os louros de Apollo tua cabeça. HORACIO. No dia 18 de Agosto de 1863, presenciava a cidade de Magdeburgo pomposo espectaculo, ha muito annunciado no mundo scientifico da sabia Germania. Era uma sessão extraordinaria e solemme da Sociedade Geral Entomologica, a qual chamava a postos não só todos os seus membros effectivos, honorarios, correspondentes, como muitos convidados de oceasião, afim de acolher e levar ao capitolio da gloria um dos seus mais distinctos filhos, um dos mais infatigaveis investigadores dos segredos da natureza, intrepido viajante, ausente da patria desde annos e de volta da America Meridional, em cujas regiões centraes por tal fórma se embrenhara, que impossivel havia sido seguir-lhe o roteiro, até nos mappas e cartas especiaes do grande colleccionador Simão Schropp. Revestira-se de mil galas a sciencia. Todos os socios de casaca preta, gravata e luvas brancas, alguns com discursos nos bolsos, enchiam a sala das sessões muito antes da hora marcada: a orchestra executava a sonata n.° 26 de Luiz van Beethoven, e senhoras ostentavam _toilettes_ ricas e de aprimorado gosto. De repente atroou um grito: --Vivat Meyer!! Hurrah! Vivat! Hoch! Hoch!... E, ao passo que todos os pescoços se estiravam para ver quem entrava sacudiam-se no ar com enthusiasmo lenços e chapéus. Acalmada a ruidosa manifestação, levantou-se o presidente da Sociedade Entomologica, um presidente magro como um espeto e ornamentado de ruiva cabelleira que lhe dava aspecto de um projecto de incendio. --Sim! exclamou elle depois de ter bebido uns goles d'agua assucarada e de haver preparado a garganta; eis emfim, aqui, no meio de nós, o grande, o vencedor, o incomparavel Guilherme Tembel Meyer!... E neste gosto falou duas horas seguidas. * * * * * * * No dia seguinte, traziam as gazetas de Magdeburgo extensa relação da festa, transcreviam o discurso do presidente e, como appendice ás notas biographicas relativas a Meyer, enumeravam os prodigios entomologicos que havia recolhido em suas dilatadas peregrinações. «O que ha mais digno de admiração, dizia o _Tempo_ (Die Zeit), em toda a immensa e preciosissima collecção trazida pelo Dr. Meyer das suas viagens, é sem contestação uma borboleta, genero completamente novo e de esplendor acima de qualquer concepção. É a _Papilio Innocentia_... (Seguia-se uma descripção de minuciosidade perfeitamente germanica). «O nome, acrescentava a folha, dado pelo eminente naturalista áquelle soberbo especimen, foi graciosa homenagem á belleza de uma donzella (Mädchen) dos desertos da provincia de Matto-Grosso (Brazil), creatura, segundo conta o Dr. Meyer, de fascinadora formosura. Vê-se, pois, que tambem os sabios possuem coração tangivel e podem, por vezes, usar da sciencia como meio de demonstrar impressões sentimentaes de que muitos não os julgão susceptiveis. * * * Innocencia, coitadinha... Exactamente nesse dia fazia dous annos que o seu gentil corpo fora entregue á terra, no immenso sertão de Sant'Anna do Paranahyba, para ahi dormir o somno da eternidade. FIM *** End of this LibraryBlog Digital Book "Innocencia" *** Copyright 2023 LibraryBlog. All rights reserved.