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Title: A brazileira de Prazins: scenas do Minho.
Author: Castelo Branco, Camilo
Language: Portuguese
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*** Start of this LibraryBlog Digital Book "A brazileira de Prazins: scenas do Minho." ***

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PRAZINS: ***


                        COLECÇÃO LUSITÂNIA



                       CAMILLO CASTELLO BRANCO



                        A BRAZILEIRA DE PRAZINS



[Illustração: Camillo Castello Branco]



                       CAMILLO CASTELLO BRANCO



                        A BRAZILEIRA DE PRAZINS

                           SCENAS DO MINHO



                 Edição conforme a 1ª, revista pelo Auctor



                    LIVRARIA LÉLO, LIMITADA--EDITORA

                     144, Rua das Carmelitas--PORTO

        AILLAUD & LÉLOS, Limitada--R. N. do Carmo, 80 a 84--LISBOA



INDICE
INTRODUCÇÃO
CAPITULO I
CAPITULO II
CAPITULO III
CAPITULO IV
CAPITULO V
CAPITULO VI
CAPITULO VII
CAPITULO VIII
CAPITULO IX
CAPITULO X
CAPITULO XI
CAPITULO XII
CAPITULO XIII
CAPITULO XIV
CAPITULO XV
CAPITULO XVI
CAPITULO XVII
CAPITULO XVIII
CAPITULO XIX
CAPITULO XX
CONCLUSÃO
P.S.



INTRODUCÇÃO


Entre as diversas molestias significativas da minha velhice, o amor aos
livros antigos--a mais dispendiosa--leva-me o dinheiro que me sobra da
botica, onde os outros achaques me obrigam a fazer grandes orgias de
pilulas e tizanas. E, quando cuido que me curo com as drogas e me
illustro com os archaismos, arruino o estomago e enferrujo o cerebro em
uma caturrice academica.

Constou-me aqui ha dias que a snr.ª Joaquina de Villalva tinha um gigo
de livros velhos entre duas pipas na adéga, e que as pipas, em vez de
malhaes de pão, assentavam sobre missaes. O meu informador denomina
_missaes_ todos os livros grandes; aos pequenos chama _cartilhas_.
Mandei perguntar á snr.ª Joaquina se dava licença que eu visse os
livros. Não só m'os deixou vêr, mas até m'os deu todos--que
escolhesse, que levasse. Examinei-os com alvoroço de bibliomano. Elles,
gordurosos, humidos, empoeirados, pareciam-me seductores como ao leitor
delicadamente sensual se lhe figura a face da mulher querida, oleosa de
cold-cream, pulverisada de bismutho.

Havia sermonarios latinos, um _Marco Marullo_, tres rhetoricas, muitas
theologias moraes, um _Euclides_, commentarios de versões litteraes de
Tito Livio e Virgilio. Deixei tudo na benemerita podridão, tirante uma
versão castelhana do mantuano por Diego Lopez e um muito raro
_Entendimento literal e constrviçam portugueza de todas as obras de
Horacio, por industria de Francisco da Costa_, impresso em 1639.

Disse-me a dadivosa viuva de Villalva que os livros estavam na adéga,
havia mais de trinta annos, desde que seu cunhado, que estudava para
padre, morrêra ethico; que o seu homem--Deus lhe falle n'alma--mandára
calear o quarto onde o estudante acabára, e atirou para as lojas tudo o
que era do defunto--trastes, roupa e livralhada. Contou-me isto
seccamente do extincto cunhado, ao mesmo tempo que roçava com a mão
fagueira o ventre gravido de uma gata malteza que lhe resbunava no
regaço, passando-lhe pela cara a cauda em attritos d'uma flacidez de
arminho. E eu que dedico aos bichos um affecto nostalgico, uma
sensibilidade retroactiva, um atavismo que me retrocede aos meus
saudosos tempos de gorilha, olhava para a gata que me piscava um olho
com uma meiguice antiga--a das meninas da minha mocidade que piscavam.
Onde isto vai!

A snr.ª Joaquina, para me obrigar a um eterno reconhecimento,
offereceu-me uma das crias da sua gata que andava para cada hora e se
chamava _Velhaca_--ajuntou com a satisfação de quem completa um
esclarecimento interessante. Agradeci o por vindouro filho da _Velhaca_,
fiz uma caricia no dorso crespo da mãe, que m'a recebeu familiarmente,
e sahi com os livros velhos empacotados em duas bulas de 1816 e 1817 que
a snr.ª Joaquina, com um riso sceptico, indisciplinado, me disse serem
do tempo dos Affonsinhos.--Porque o seu sogro, accrescentou, era um asno
ás direitas que comprava a bula para poder comer carne em dia de jejum;
e, sem que eu a provocasse a vomitar heresias, disse que os padres
vendiam a bula e compravam a carne; e, ajuntando á heresia um anexim de
limpeza muito duvidosa, disse o que quer que fosse a respeito dos
peccados que entram pela bocca.

Depois informaram-me que esta viuva, bastante estragada no moral e ainda
mais no physico, andára de amores illicitos com um escrivão do juiz de
paz, o Barroso, um dos 7:500 do Mindello, que lêra o _Bom senso_ do
cura João Meslier, e a saturára de má philosophia, e tambem a
esbulhára de parte dos seus bens de raiz e do melhor da sua riqueza--a
Fé, o bordão com que as velhas e os velhos caminham resignados e
contentes para os mysterios da eternidade.


Logo que cheguei a casa, entrei a folhear as paginas dos dous livros,
preparado para o dissabor de encontral-os mutilados, defeituosos, com
folhas de menos, comidas pelas ratazanas collaboradoras roazes do
gallicismo na ruina da boa linguagem quinhentista. Folheei o
_Entendimento literal e constrviçam_ até paginas 154, e aqui achei um
quarto de papel almaço amarellecido, com umas linhas de lettra
esbranquiçada, mas legivel e regularmente escripta. O contheudo do
papel, onde se conheciam vincos de dobras, era o seguinte:


_José, teu irmão, quando eu hoje sahia da Igreja, onde fui pedir a
Nossa Senhora a tua vida ou minha morte, disse-me que eu não tardaria a
pedir a Deus pela tua alma. Eu já não posso chorar mais nem rezar.
Agora o que peço a Deus é que me leve tambem. Se não morrer,
endoudeço. Perdoa-me, José, e pede a Deus que me leve depressa para ao
pé de ti._

                             Martha.


Não é preciso ser a gente extraordinariamente romantica para
interessar-se, averiguar, querer noticias das duas pessoas que tem
n'estas linhas uma historia qualquer, mais ou menos vulgar. Occorreu-me
logo que o estudante, a quem o livro pertencera, tinha morrido na flôr
dos annos. Além d'isso, na margem superior do frontespicio do volume,
está escripto o nome do possuidor--_José Dias de Villalva_, e a carta
é dirigida a um _José_. Conclui ser o cunhado da viuva quem recebêra
a carta.

Voltei a casa da snr.ª Joaquina, muito açodado, como um
anthropologista que procura um dente pre-historico, e perguntei-lhe se o
seu cunhado se chamava José Dias; e se tinha alguma conversada, quando
morreu.--Que sim, que o cunhado era José Dias e que morrêra pela Maria
da Fonte.

--Pois elle amou a Maria da Fonte?--perguntei com ardente curiosidade
historica, para esclarecer a minha patria com um episodio romanesco das
suas guerras civis. Ella sorriu e respondeu:

--Agora! Quer dizer que o meu cunhado morreu quando por ahi andavam os
da Maria da Fonte a tocar os sinos e a queimar a papellada dos
escrivães, sabe vm.^cê?--Acho que foi então ou por perto. E
ajuntou:--Elle gostava ahi muito d'uma moça, isso é verdade. Era a
Martha...

--Martha?--disse eu com a satisfação de vêr confirmada a assignatura
do bilhete.

Vm.^cê conhece-a?

--Não conheço.

--É a brazileira de Prazins, a mulher do Feliciano da Retorta, que tem
quinze quintas entre grandes e pequenas.

--Bem sei; mas nunca vi essa mulher.

--Não que ella nunca sae do quarto; está assim a modos de atolambada
ha muito tempo. Credo! ha muitos annos que a não vejo. Dá-lhe a gota,
salvo seja, e estrebucha como se tivesse coisa má no interior. É uma
pena. Não sabe o que tem de seu. O Feliciano é o homem meus rico
d'estes arredores, e vivem como os cabaneiros, de caldo e pão de milho.
Elle quando vai ao Porto receber um alqueire de soberanos que lhe vem do
Brazil todos os annos, vai a pé, e mette ao bolso umas côdeas de
borôa e quatro maçãs para não ir á estalagem.

Interrompi com interesse de artista:

--Disse-me que ella endoudecera. Foi logo depois da morte do seu
cunhado?

--Isso já me não escordo. Quando eu vim casar para aqui já meu
cunhado tinha morrido. O que me lembra é dizer-me o meu defunto, que
Deus tem, que o rapaz ganhou doença do peito p'rámôr d'ella. Esses
casos ha muita gente que lh'os conte. Ha por ahi muito homem do seu
tempo. Pergunte isso ao snr. reitor de Caldellas que andou com elle nos
estudos e sabe todas essas trapalhadas.--E n'um tom de noticia
festival:--Olhe que o gatinho nasceu esta noite; lá lh'o mando assim
que estiver creado. Quer que lhe corte as orelhas e o rabito?

--Faça-me o favor de lhe não cortar nada.

Eu tinha lido, dias antes, a judiciosa critica de uma dama ingleza á
nossa costumeira de desorelhar e derrabar gatos. Ella, lady Jackson,
escreve que lhe fazem compaixão os pobres bichanos que, sem cauda nem
orelhas, estão como que envergonhados de si mesmos. Excellente senhora!


Pedi que me apresentassem ao reitor de Caldellas na feira de Santo
Thyrso. Achei-lhe um semblante convidativo, animador a entabolar-se com
elle uma indagação de curiosidades sentimentaes.

Fazia respeitavel a sua batina sem nodoas o padre Osorio. Parece que
tambem as não tem na vida. Passa por ser um velho triste, que não teve
mocidade, nem as ambições que supprem os dôces affectos do coração
mutilados pelo calculo ou congelados pelo temperamento. Ha trinta e dous
annos que pastoreia uma das mais pobres freguezias do arcebispado.
Prégou alguns annos com applauso dos entendidos e inutilidade dos
peccadores. A rhetorica é a arte de fallar bem; mas os vicios são a
arte de viver bem e alegremente. Assim se pensa, embora não se diga.

Como prégava gratuitamente, o vigario de Caldellas era chamado por
todos os mordomos e confrarias festeiras. Quando se esgotavam os
panegyricos dos santos mais ou menos hypotheticos, pediam-lhe que
prégasse da cura milagrosa d'umas maleitas ou d'um leicenço--casos que
a pobre Natureza e o periodico chamado _Esculapio_ só de per si não
poderiam explicar.

O vigario subia ao pulpito e improvisava coisas de grande engenho em
linguagem muito singela. Affirmava que Deus era tão bom, tão
previdente, que dera á condição enfermiça do homem forças vitaes,
sobrecellentes que resistiam á destruição; e que a Natureza, grande
milagre do seu Creador, só de per si era bastante para a si mesma se
restaurar. Ora, um abbade rico, bacharel em theologia, que lhe ouvira
estas idéas assaz naturalistas, perguntou-lhe, á puridade, se elle
negava os milagres. O reitor respondeu que a respeito das sezões e dos
leicenços acreditava mais na lanceta e no sulfato de quinino. Depois,
accrescentou:--Deus fez o supremo milagre da sciencia para centuplicar
as forças á natureza enfraquecida.--O theologo enrugou
scientificamente a fronte cheia de suspeitas e replicou:--O snr. reitor
foi ferido da peste do seculo. Está iscado de Voltaire e de Alexandre
Herculano. Deixou-se contaminar. Mundifique-se. Estude mais e melhor.--O
reitor de Caldellas afastou-se triste, e nunca mais frequentou o
pulpito.

Estas informações e o aspecto lhano, harmonico do padre, animaram-me a
dizer-lhe que solicitara o seu conhecimento para lhe pedir alguns
esclarecimentos a respeito de uma carta encontrada em um livro que
pertencera ao seu condiscipulo José Dias de Villalva. Recorda-se?
perguntei.

--Se me recordo do meu pobre José Dias! Pois não recordo? Parece-me
que ainda sinto n'este braço o peso enorme da sua face morta, e já lá
vão trinta e cinco annos. É preciso ter na alma dolorosas
reminiscencias para se recordar um amigo morto ha tantissimo tempo, não
lhe parece? Como sabe v. que existiu esse obscuro filho de um lavrador?

Mostrei-lhe a carta. O padre olhou para a assignatura, gesticulou
affirmativamente, e, após uma breve pausa de recolhimento com as suas
recordações, disse:

--Fui eu que puz esta carta entre as paginas de um livro do Dias. O meu
pobre condiscipulo, quando este papel lhe foi mandado á cama, já não
o podia lêr. Tinha cahido no torpor, na indifferença que, a meu vêr,
é a compaixão da Providencia pelos que morrem amando e não querendo
morrer. Já não via a vida nem a morte. Li esta carta; e, como elle
nada me perguntou, eu nada lhe disse... Agora me recordo perfeitamente.
Era um commento de Horacio que eu lia nos seus intervallos de modorra,
afim de dar ao meu animo uma folga que me fortalecesse para resistir ao
golpe final. Já sei pois o que você deseja. Quer saber se esta Martha
está no caso de merecer a consagração romantica que Bernardin de
Saint-Pierre usurpou ás dôres verdadeiras, para coroar d'uma eterna
aureola a sua phantastica Virginia.

--Não vou tão longe, respondi com a modestia genial dos escriptores
que immortalisam. A brazileira de Prazins não póde contar com o seu
immortalisador em mim, nem me parece bastante fecundo o assumpto. Sei
que temos um namoro de uma menina com um estudante, o estudante morre e
a menina casa com um sujeito que tem quinze quintas. Se não ha mais do
que isto...

O cura interrompeu:--Vejo que sabe quem é Martha; mas não a conhece
bem. Virginia e Francesca e Julieta não são mais dignas de piedade nem
de romance. Parece-me que o amor que enlouquece e permitte que se abram
intercadencias de luz no espirito para que a saudade rebrilhe na
escuridão da demencia, é incomparavelmente mais funesto que o amor
fulminante. O que é vulgar é morrer logo ou esquecer quinze dias
depois. Quando eu tinha uma irmã que lia novellas, á custa de lh'as
ouvir analysar com um enthusiasmo digno de melhor emprego, achei-me
envolvido na litteratura de Sue, de Soulié e de Balzac, a ponto de
fazer presente do meu santo Affonso Maria de Ligorio e da minha
Theologia moral de Pizelli a um padre bom e atinado que me prophetisou
que minha irmã havia de morrer doudas a scismar nas patacuadas das
novellas. Ella não morreu douda; mas pensava em romancear a historia de
Martha, porque dizia ella que, tendo lido trezentos volumes de novellas,
não encontrára caso imitante.--E, dando-me o bilhete de Martha: Este
quarto de papel é o exordio de uma agonia original.


Como a exposição do reitor sahiu muito enfeitada de joias
sentimentaes--detestavel especie archeologica que ninguem tolera,--farei
quanto em mim couber por, uma a uma, ir mondando e refugando as flores
de modo que as scenas dramaticas se exponham aridas, bravias como sêrro
de montanha por onde lavrou incendio, sem deixar bonina, sequer folhinha
de giesta em que a aurora imperle uma lagrima. A Aurora a chorar! de que
tempo isto é! Como a gente, sem querer, mostra n'uma idéa a sua
certidão de idade e uma reliquia testemunhal da idade de pedra! Oh! os
bigodes tingem-se; mas as phrases--madeixas do espirito--são
refractarias ao rejuvenescimento dos vernizes.



I


Martha era filha de um lavrador mediano que tinha em Pernambuco um
irmão rico de quem dizia o diabo. Chamava-lhe ladrão porque, no
espaço de vinte annos, lhe mandara tres moedas, com os seguintes
encargos: á mãe 6$000 réis fortes, ás almas do Purgatorio, de
Negrellos, 3$000 réis tambem fortes, que lh'os promettera quando
embarcou, e o resto para elle--«5$400 réis, dizia, é que o maroto,
podre de rico, me mandou em vinte annos!»

A rapariga conversou diversos mancebos, uns da lavoura, outros da arte,
e, afinal, quando o pai lhe negociava o casamento com um pedreiro,
mestre de obras, muito endinheirado e já maduro, appareceu o José
Dias, filho d'um lavrador rico de Villalva, a namoriscal-a. Este rapaz
estudava latim para clerigo; mas, como era fraco, de poucas carnes e
amarello, o cirurgião disse ao pai que o moço não lhe fazia bem
puxar pelas memorias. Os padres do Minho, n'aquelle tempo, não puxavam
quasi nada pelas memorias; ordenavam-se tão alheios ás faculdades da
alma que, sem memoria nem entendimento, e ás vezes sem vontade, eram
soffriveis sacerdotes, davam poucas syllabadas no Missal e liam os
psalmos do Breviario com uma grande incerteza do que queria dizer o
penitente David. Pois, assim mesmo, sendo tão facil a ordenação--uma
coisa que se fazia com uma perna ás costas, diziam certos vigarios--sem
precisão absoluta de puxar pelas memorias, o Joaquim Dias quiz tirar o
filho do _latim_ que lhe ensinava um egresso da Ordem Terceira, o Fr.
Roque. Este padre-mestre tinha uma irmã paralytica; sabia lêr, e
prendas de costura, marcava, fizera um pavão de missanga, não
desconhecia o crochet e ensinava raparigas para se distrahir.

No quinteiro do padre-mestre Roque foi que o José de Villalva se affez
a reparar na Martha de Prazins, uma rapariga muito alva, magrinha, de
cabello atado, muito limpa, com a sua saia de chita amarella com dois
folhos, jaqueta de fazenda azul com o forro dos punhos escarlates, muito
séria com proposito de mulher e ares muito sonsos--diziam as outras,
que lhe chamavam a _songuinha_. Os outros estudantes, rapazolas
vermelhaços, refeitos, grandes parvajolas, com grandes nacos de borôa
nas algibeiras das vesteas de saragoça de varas, e os velhos Virgilios
ensebados em saquitos de estopa suja, diziam graçolas a
Martha--chamavam-lhe boa pequena, franga e peixão. O José Dias,
arredado do grupo dos trocistas alvares, via-a passar silenciosa,
indifferente aos gracejos, olhos no chão, e um grande resguardo na
barra da saia quando subia a escada. Os rapazes, aquelles embriões de
abbades, como a escada de pedra era ingreme e aberta do lado do
quinteiro, punham-se a espreitar as pernas das alumnas da paralytica,
pela maior parte raparigas entre doze e dezeseis annos, muito
musculosas, com pés grandes e os tecidos repuxados e cheios pelo
exercicio dos carrêtos nas safras da lavoira.

Martha ia nos quatorze quando o pai a quiz tirar da mestra. Chegára-lhe
aos ouvidos que os estudantes, má canalha, lhe impeticavam com a filha.
Queixou-se a Fr. Roque.

O egresso, resfolegando honradas coleras e pulverisações de
esturrinho, mandou enfileirar os gargajolas na quadra da aula, e chamou
a Martha.

--Qual foi d'estes tratantes o que implicou comtigo, cachopa?--perguntou
o padre-mestre olhando-a por cima dos oculos, orbiculares, com as hastes
oxidadas d'um cobre antigo. E, apontando para o primeiro da fileira que
era o José de Villalva:

--Foi este?

--Esse nunca me disse nada--respondeu com a voz tremula, toda vermelha,
a rapariga.

--Foi este?

Martha não ergueu os olhos nem respondeu.

--Então, môça? qual foi dos nove? Dize lá. Tu que te queixaste é
que algum embarrou por ti.

--Eu não me queixei...--murmurou a interrogada.

Verdadeiramente ella não se queixára. Foi o Zeferino, o filho do
alferes da Lamella, o mestre pedreiro que andando a construir um
canastro na eira do padre-mestre, observára que os estudantes rentavam
á cachopa, e ageitavam-se em attitudes abrejeiradas, como de quem
espreita, quando ella subia a escada.

O denunciante ao pai de Martha foi elle, o pedreiro abastado, não
porque o espicaçassem n'essa denuncia o zelo dos bons costumes, e um
justo odio ás concupiscentes espionagens dos rapazes, mas por que
gostava, devéras, da môça. Elle passava já dos trinta e dois e era a
primeira vez que sentia no coração as alvoradas do amor, Fr. Roque,
averiguado o caso, advertiu o pedreiro que não fosse má lingua, que
não andasse a difamar os seus discipulos, que se preparavam para o
sacerdocio--uma coisa séria. O episodio acabaria assim menos mal, se
dois dos estudantes, que se preparavam para o sacerdocio, mais fortes no
fueiro que nas conjugações, desistissem de o moer a pauladas, uma
noute, n'um pinhal. O mestre d'obras iniciou-se pelo martyrio obscuro
n'um amor que principiava bastante mal. Elle nunca soube ao certo quem
lhe batêra, e attribuiu a sova a émulos na arte, covardes e
mysteriosos, por causa da construcção de uma egreja que elle
desdenhára, citando as regras do Vignola. Vinha a ser o desastre uma
tenda por motivos de architectura--um martyrio de artista. Invejas. Por
causa da Arte padecêra o seu collega Affonso Domingues, o architecto da
Batalha, e João de Castilho, o do convento de Thomar, e já tinha
padecido seu mestre, o Manoel Chasco, a quem inimigos quebraram a
cabeça na feira dos 21, por que elle, desfazendo na obra d'um collega,
dissera que o botaréo d'um cunhal estava torto.

Passado tempo, Martha sahiu prompta da mestra. Lia a cartilha do
Salamondi e o _Grito das almas_, decifrava menos mal umas sentenças
velhas que havia na casa de Prazins, monumentos das ruinas de antigas
demandas, e escrevia regularmente. A primeira carta que escreveu por
pauta foi para o tio de Pernambuco, o tio Feliciano. Pedia-lhe a sua
benção e duas moedas de ouro para umas arrecadas. Era o pai que lhe
ditava a carta, cheia de lastimas mendigas, mentirosas, historietas
velhacas de penhoras, as grandes decimas, a ferrugem das oliveiras, o
bicho da batata, o gorgulho que pegára no milho, muitas alicantinas.

--Que era a vêr se o ladrão mandava alguma coisa, dizia elle, pondo
cuspo na obreia vermelha para fechar a carta.

A segunda carta, que ella escreveu já sem pauta, foi a José Dias, ao
estudante, que já não estudava por causa das memorias nocivas á sua
saude fraca, um pelém.

N'este tempo já o Zeferino da Lamella se tinha declarado com o Simeão
de Prazins, de um modo quasi original.

--Você quanto deve, ó tio Simeão?--perguntou.

--Quanto devo? Você quer pagar-me as dividas?

--Pôde ser. Você deve á Irmandade de N. Senhora de Negrellos um conto
e cem mil réis; você deve de tornas a seu irmão quatrocentos. Ha-de
andar lá para um conto e quinhentos, p'ra riba que não p'ra baixo.

--É isso; você sabe a minha vida melhor que eu a sua--um conto e
quinhentos e pico.

--Quanto é o pico?

--Obra de dez moedas, mais pinto menos pinto. Miudezas na loja ao
mercador e um réstito da vacca amarella que comprei ao Tarracha na
feira dos 13.

--Você quer fazer um cambalacho?--tornou o pedreiro recuando o chapéu
para a nuca e pondo-lhe as mãos espalmadas com força nos hombros.

--Se pintar... Já sei o que você quer... Não me serve. Você quer
comprar-me o lameiro da azenha--não vendo.

--Eu ainda lhe não disse o que queria, tio Simeão. Olhe bem para mim.
Você está a fallar c'um home. Pago-lhe as dividas, você não fica a
dever nada, e eu caso com a sua Martha. Póde dar os bens ao outro filho
que eu não lhe quero uma de X.

--Você falla serio, ó sôr Zeferino?

--Se fallo serio?! Então você não sabe com quem é trata.

--Ora bem--entendamo'-nos--é a rapariga que você quer, a rapariga
estreme, sem dote nem escriptura?

--Eu não tenho senão uma palavra. Já lhe disse que sim.

--A rapariga é sua.


Negociára a filha com o Zeferino como tinha negociado com o Tarracha a
vacca amarella na feira dos 13. Eis um caso exquisito de aldeia que pela
torpeza parece acontecido n'uma cidade culta. Conversou-se este dialogo
debaixo de um castanheiro frondoso, com um pavilhão de folhagem
gorgeado de passaros, com uns tons de luz esverdeada, na dôce placidez
crepuscular de uma tarde de agosto, entre dous homens de tamancos,
arremangados, com os peitos cabelludos a negrejar d'entre os peitilhos
da camisa surrada de suor e poeira, brutos no gesto e na phrase.
Analogas passagens, com estylo pouco melhor, tem sido dramatisadas nas
salas, entre homens da melhor polpa e casca social--uns que mandaram
ensinar ás filhas os verbos francezes e são assignantes do _Journal
des Dames_ que marca ás meninas a balisa até onde póde chegar o
arrojo da lingua franceza e os seus mais avançados destinos. Da outra
parte, homens ricos, de figado engorgitado, fatigados, sedentos de
senhoras finas que ponham no luxo das suas salas os tons vivos da carne
constellada de diamantes. É o epilogo de vinte annos de lavra dura, o
_substratum_ da compra de negras a milhares:--comprar uma branca, das
que o amor pobre e o talento esteril não podem negociar. O contracto
feito em Prazins--eis a differença--por parte do pedreiro era um
heroismo: dava o seu dinheiro por aquella mulher; daria mais depressa o
seu sangue. Era uma paixão das que não pegam com os dentes anavalhados
em corações civilisados, quasi desfeitos. Ora, os pedreiros que vem
d'além-mar, e se vestiram no Pool ou no Keil, não amam nem compram
assim. Fazem o dote economico, comezinho á esposa. Compram uma machina
de propagação, condicionalmente. Se, extincto o comprador, a machina,
não deteriorada, tiver pretendente, o substituto que a compre. O
defunto prefere que a sua viuva, adelgaçada e espiritualisada por
jejuns, lhe converse com a alma.



II


Por esses dias chegou carta de Pernambuco, incluindo ordem, primeira
via, 48$000 réis, dez moedas de ouro. Feliciano mandava 12$000 réis
para as arrecadas da sobrinha, e o resto ao irmão. Dizia-lhe que estava
a liquidar para vir, emfim, descançar de vez,--que já tinha para os
feijões. Recommendava-lhe que fosse deitando o olho a uma ou duas
quintas que se vendessem até trinta ou quarenta mil cruzados; que se
ainda houvesse conventos á venda, os fosse apalavrando até elle
chegar.

--Quarenta mil cruzados, com um raio de diabos!--exclamou o Simeão, e
foi mostrar a carta ao padre-mestre Roque, ao Trêpa de Santo Thyrso e
ao ex-capitão mór de Landim; e, como encontrasse na feira o dono do
mosteiro dos benedictinos, o Pinto Soares, um deputado gordo--a
rhetorica viva do silencio mais facundo que a lingua, d'uma grande
pacificação somnolenta--perguntou-lhe se queria vender as quintas dos
frades, que tinha comprador. O Pinto Soares, como um homem que acorda
com espirito e um pouco de atheismo, respondeu-lhe que não vendia para
não transmittir ao comprador a excommunhão que arranjára comprando
bens das ordens religiosas. Mas o Simeão, em materia e raios do
Vaticano, tinha na sua estupidez a invenção de Franklin. Continuava a
perguntar a toda a gente se sabiam de conventos á venda, ou quintas ahi
para quarenta mil cruzados.

O Zeferino das Lamellas, o pedreiro que se julgava noivo por ter o
negocio fechado em um conto, quinhentos e pico, procurou o lavrador para
se cuidar dos banhos. O velhaco, depois de o ouvir com ares de
abstracção palerma, disse-lhe a mastigar as palavras:

--Home, o caso mudou muito de figura. Então você pelos modos ainda
não sabe que vem ahi o meu irmão de Pernambuco comprar quintas e
conventos?

E começou a desenrolar o nastro gorduroso de uma carteira de coiro em
que tinha recibos da decima, um aviso da junta de parochia para pagar a
congrua, uma conta de azeviche contra maus olhados, uma oração
manuscripta contra as maleitas, um officio antigo que o nomeava regedor,
de que fôra demittido pelos Cabraes, uma velha resalva de recrutamento,
uns versos que elle recitara no natal, em um Auto do nascimento do
Menino, onde elle fazia de rei mago, e finalmente o livrinho de Santa
Barbara, muito cebaceo, com um lustro azulado de graxa e a carta do
Feliciano tão suja que parecia ter estado em infusão de pingue.

--Você ainda não ouviu fallar d'esta carta!?--perguntou com
sobranceria impertinente, dando saliva aos dedos para a desdobrar.--Não
se falla n'outra causa. Toda a gente sabe que vem ahi do Brazil o meu
Feliciano para comprar quintas.

--Já me constou--disse o pedreiro,--mas você roe a corda á conta
d'isso, acho eu...--E como o lavrador hesitasse:--O negocio da
rapariga está feito ou não está feito? Os homens conhecem-se pela
palavra e os bois pelos cornos. Ponha p'ra'hi o que tem no interior.

O Simeão mascava, torcia-se, mettia com dois dedos a carta estafada na
carteira e resmungava:

--Você, emfim, isto é um modo de fallar, como o outro que diz; você
bem entende que ... sim...

--O que eu entendo physicamente fallando é que você não me dá a
rapariga.

--Deixe vêr, deixe vêr o que diz o meu irmão--tartamudeava.

--Sabe você que mais?--volveu iracundo o architecto dando com o ôlho
do machado n'um canhoto.--Você é de má casta. Não tem palavra nem
vergonha n'essa cara estanhada. Você é da geração dos Travessas da
Serra Negra, e basta... Não lhe digo mais nada...--Allusão pungente a
um tio do Simeão, o Bernabé, capitão das maltas de salteadores que
infestaram em 1835 aquella serra.

--Veja lá como falla...--interrompeu o lavrador ferido na sua
linhagem.--Você não me deite a perder...

E o outro, n'um impeto de consciencia robusta:

--Você é um safado. É o que lh'eu digo. Não guarda palavra em
contracto que faça. Eu já devia conhecêl-o. Faz para as matanças
seis annos que você justou comigo uma porca por quatro moedas e foi
depois vendel-a ao Antonio do Eido por mais um quartinho. Lembra-se, seu
alma de cantaro?--E n'uma irritação crescente:--Se você não fosse um
velho, dava-lhe com este machado na caveira.--É muito esbandalhado nos
gestos, com sarcasmo:--Guarde a filha que eu hei de achar mulher muito
melhor que ella pelo preço, ouviu você? que leve o diabo a burra e
mais quem a tange, como o outro que diz. Livrei-me de boa espiga. De
você não póde sahir cousa boa; e mais da mãe que ella teve, que já
lá está a dar contas...

E o lavrador com extremada prudencia e na pacatez de um grande espirito
de ordem e paz:

--Você não tem que desfazer na minha filha, ouviu?

--Ouvi, que não sou mouco. Ainda hontem a topei na bouça do Reguengo
de palestra com o estudante de Villalva. Espere-lhe a volta. A
songuinha, que não olha direita p'ra um home, que anda alli esmadrigada
de cabeça ao lado, lá estava de mão na ilharga a dar treta ao
estudante, aquelle páo de encher tripas, que ha-de ser mesmo um padre
d'aquella casta! Olhe se elle lh'a quer para casar... Pois não
quizeste?--e arregaçava a palpebra do olho esquerdo mostrando o
interior inflammado com uns pontos amarellos, purulentos, indicativos de
insufficiente lavagem, um tregeito de garotice.--E continuava:--Quem lhe
déra dois pontapés, n'elle a mais n'ella!--e muito rubro de colera
dava pancadaria nas pedras, nas raizes nodosas dos castanheiros, e
mettia grande terror no animo do Simeão quando faiscava lume nos
calhaos com a percussão do machado.

Esta situação promettia acabar pela fuga prudente do pai de Martha, se
o estudante de Villalva não assomasse ao fundo do castanhal com uma
matilha de coelheiras que ladravam a um porco muito erriçado, que as
esperava com o focinho de esguelha, bufando e grunhindo. O caçador
chamava os cães, assobiava, fazia uma bulha convencional para que a
Martha o ouvisse.

Elle não tinha visto o pedreiro; os cães é que o viram e deixaram o
porco destemido para atacarem o homem, com uma velha birra que lhe
tinham. O Zeferino, n'outra occasião, segundo o seu costume,
desprezaria a arremettida da matilha; mas, n'aquella conjunctura de odio
ao caçador, esperou a canzoada com o machado em riste, empunhava o cabo
com as mãos cabelludas, e fazia, com o corpo inclinado, avanços
provocadores. José Dias chamava os cães obedientes; mas o Zeferino,
muito azedo, engelhando na cara uns tregeitos de basofia, dizia
sarcastico:

--Deixe-os vir, deixe-os vir, que o primeiro que chega faço-lhe saltar
os miolos á cara de você.

Que se accommodasse, conciliava pacificamente o estudante--que os cães
não tinham outra falla. E o pedreiro insistente, muito arrogante:--que
venham para cá, e mais o dono, o caçador de borra! e dizia palavradas
canalhas, muito damnado por que vira apparecer a Martha na varanda, a
fazer meia com a cesta do novello no braço.

--Ó snr. Zeferino, falle bem, ponha côbro na lingua--advertiu o José
Dias com uma serenidade de máo agouro--quando eu lhe ladrar então se
fará com o machado para mim. Os cães ladraram-lhe, eu chamei-os, que
mais quer você, homem? Siga o seu caminho.

--O meu caminho? o meu caminho é este--disse batendo com o machado na
terra.--Quer você mandar-me embora d'aqui? Ora não seja tolo.

A presença da môça enfurecia-o; contra o seu costume, sentia-se
valente. O amor, como um vinho indigesto, dava-lhe a coragem interina
dos bebedos, e berrava:

--Se é homem, venha para cá! Você manda-me sahir d'aqui, seu pedaço
d'asno?

E o estudante, já amarello:

--Eu não o mando sahir d'ahi, nem lhe consinto que me chame asno. Olhe
que eu largo a espingarda, tiro-lhe das unhas o machado e dou-lhe com
elle.

--Ó alma do diabo!--exclamou o pedreiro crescendo para o caçador.

N'isto, um dos cães, atravessado de cão de gado e cadella coelheira,
que aprendêra a morder nas occasiões rezoaveis, atirou-se-lhe ao
assento das calças de estopa e puxou até lhe descobrir a epiderme da
nadega esquerda.

O pedreiro floreava debalde o machado; os golpes cortavam o ar, e nem de
leve apanhavam o cão, que dava pulos de esconso, atacando-o pela nadega
direita. A restante matilha fraternisára com o outro e juntavam os
focinhos num complexo de dentuças minacissimas com os olhos sanguineos
cravados nos movimentos do machado. José Dias, no entanto, espancava a
cainçada, e Martha não sabia se havia de descer para ajudar o pai a
accommodar a bulha, ou se havia de cahir na varanda a rir-se. Ella
sentia-se envergonhada do espectaculo que exhibia a calça esfarrapada;
mas não havia pudor que resistisse áquillo. O pedreiro sabia que o
cão lhe chegara um pouco á calça; mas, no calor da lucta, não
sentira esfriar-se-lhe a pelle descoberta, nem se lembrou que andava sem
ceroulas. Depois, como sentisse uma frescura extraordinaria na cutis,
exposta ao contacto da atmosphera, levou a mão conscienciosamente ao
sitio, e achou em si aquelle specimen obsoleto do Adão primitivamente
innocente. No entanto, Martha, não podendo já comsigo, entalada de
riso, fugira da varanda e atirára-se de bruços sobre a cama, a
rebolar-se, a espernear como se tivesse uma colica. O estudante
retirou-se assobiando á matilha ainda refilada ás nadegas do homem. O
Simeão coçava-se com as dez unhas e dizia velhacamente commovido:

--Mêtta-se ahi na córte da egua que eu vou-lhe buscar umas calças,
seu Zeferino, ou dá-se-lhe ahi quatro pontos p'ra remediar. Dê cá as
calças, e não se afflija...

O pedreiro respondeu-lhe porcamente e de modo tão trivial, que o outro
lhe replicou:

--Vá você!

E metteu-se em casa como quem receava contra-replica menos suja e mais
dura.



III


O Zeferino era afilhado do morgado de Barrimáo, um major de cavallaria,
convencionado em Evora-monte, miguelista intransigente, mas cordato.
Vivia no seu escalavrado solar com um irmão egresso benedictino. Fr.
Gervasio, muito cevado e inerte, continuava em casa a sua missão
monastica. Era um contemplativo. Não lia senão no livro da Natureza.
Se não dormia, estrumava o seu vegetalismo com muitos adubos crassos de
toicinho e capoeira, com um grande farfalhar de mastigação, porque
dispunha de dentadura insufficiente. Tinha outro signal ruidoso de
vida--era um pigarro de catarrhal chronica, arrancado dos gorgomilos com
tamanho estrupido que parecia ao longe o grito rouco de um estrangulado,
no 5.° acto de um drama de costumes. A velha creada da cozinha, muito
flatulenta, nunca pudéra affazer-se ás explosões d'aquella garganta
escabrosa de mucos empedrados. Quando o grasnido asperrimo de pavão lhe
feria os ouvidos, reboando nos concavos tectos dos salões, a mulher
estremecia e raras vezes deixava de resmungar:--Que mêdo! credo! diabos
leve a esgana do home, Deus me perdôe!

De dois em dois mezes appareciam em Barrimáo dous egressos de
Cabeceiras de Basto, companheiros de noviciado de fr. Gervasio.
Juntavam-se os tres amigos em uma intimidade de palestras saudosas. Com
intercadencias mudas de poetica tristeza, commemoravam os seus
conventuaes fallecidos, rezavam juntos pelos seus breviarios
benedictinos; depois, a passo cadencioso, claustral, iam para a mesa com
o recolhimento prescripto pela Regra do patriarcha. Ahi, pegava de puxar
por elles a natureza objectiva, e dava-lhe horas de salutar esquecimento
do passado irreparavel. Gorgolejavam copiosamente os vinhos
engarrafados, traiçoeiros, da companhia, em que fr. Gervasio derretia a
prestação; porque, de resto, a mesa do mano morgado era farta e a sua
bolsa generosa para as moderadas necessidades do egresso.

O major Zeferino Bezerra de Castro não tinha grande casa; mas, como era
solteiro e quinquagenario, fazia de conta que os bens lhe haviam de
sobejar á vida, vendendo os allodiaes e empenhando, se necessario
fosse, o morgadio, que era insignificante. Concorria com vinte moedas
para as miseraveis 1000 libras que o snr. D. Miguel recebia annualmente
de donativos de monarchas e dos seus partidarios portuguezes.[1]
Festejava dispendiosamente os natalicios do rei, convidando a jantar os
realistas notaveis da comarca; e, contando os annos da proscripção, ia
calculando a patente que lhe competia quando o soberano legitimo se
restaurasse. Correspondia-se com alguns camaradas, esquecidos e
atrophiados nas aldeias, o general Povoas, o Bernardino, o Magessi, o
Montalegre, o José Marcellino. Mas as cartas quem lh'as redigia era o
mano frade, recheando-as de trechos de politica de pulpito--resultado
das suas digestões morosas, contemplativas--que serviram de ornamento
nas columnas do _Portugal velho_, periodico miguelista da época.

N'aquelle anno, por meado de 1845, espalhára-se no ambiente dos
realistas, como um aroma de jardins floridos, o boato de que vinha o
snr. D. Miguel. O seu enorme partido sentia-se palpitar no anceio
d'aquelles vagos anhelos que estremeciam as nações pagans ao
visinhar-se o prophetisado apparecimento do Messias. Affirmam-no os
Santos Padres, e os padres do Minho asseveravam o mesmo a respeito do
principe proscripto. Fr. Gervasio recebia do alto da provincia cartas
mysteriosas d'uns padres que parochiavam na Povoa de Lanhoso e Vieira.
Era alli o foco latente do apostolado. N'aquelles estabulos de
ignorancia supersticiosa é que devia apparecer, pelos modos, o presepio
do novo redemptor. Citavam-se prophecias apocalypticas de frades que
estavam inteiros sob as lages das claustras. Convergiam áquelle ponto
missionarios de aspectos seraphicos, olhando para as estrellas como os
magos e os pastores da Palestina. O frade mostrava as cartas ao irmão e
dizia-lhe: «Elle ha coisa...»

--Mas muito grande!--corroborava o major com cabeçadas affirmativas
muito exageradas.

--A Russia move-se, é o que é--affirmou fr. Gervasio, correlacionando
a iniciativa de Lanhoso com a propaganda autocratica da Russia.

Em um d'estes dialogos, em que havia desabafos, exuberancias de jubilo,
interveio o Zeferino das Lamellas, o pedreiro afilhado do major. Vinha
contar o caso do Simeão de Prazins e a péga que teve com os cães do
Dias de Villalva. Mostrava a calça remendada--que por pouco lhe não
entravam no coiro os cães--dizia, e protestava vingar-se. O egresso
pacificava-o; que deixasse lá a rapariga e mais o estudante; que se
fosse preparando para desembainhar a espada de seu pai em defeza do
throno e do altar. E o major:

--Estamos chegados a ellas, Zeferino.

E o pedreiro, esfregando as mãos coreaceas, que ringiam como duas lixas
friccionadas:

--A elles, snr. padrinho! A espada vai-se amolar... Vou pedil-a ao
velho!

O pai de Zeferino, o Gaspar das Lamellas, tinha sido alferes do 17 de
linha; e, em 1834, como o perseguissem os liberaes do concelho por
pancadaria e testemunhos falsos nas devassas de 28, andou foragido
alguns mezes. Sequestraram-lhe os bens; e o filho que já era muito
barbado e não tinha modo de vida, fez-se pedreiro. Depois, applacadas
as furias dos vencedores e restabelecida a justiça, restituiram ao
Zeferino as terras devastadas. O ex-alferes sahiu do seu esconderijo, e
recolheu-se a casa com a espada muito cheia de verdete, dizendo que
havia de laval-a no sangue dos malhados. Em 1838, dia de natal,
embebedou-se despropositadamente e sahiu para a rua a dar vivas ao snr.
D. Miguel. Outros piteireiros, do mesmo credo, e affectos ás velhas
instituições, responderam aos vivas com um enthusiasmo homicida. O
Gaspar foi buscar a espada, cingiu a banda sobre a niza de saragoça,
poz a barretina com os amarellos muito oxidados, e, á frente d'um grupo
de jornaleiros e garotos, caminhou para a cabeça do concelho afim de
offerecer batalha campal ás auctoridades. Além da espada do caudilho,
havia na jolda tres espingardas reiunas; o restante eram foices de
gancho encavadas em grossas varas. Um porqueiro colossal floreava uma
lamina brunida da faca de matar os cevados. A guerrilha, já engrossada
por outros bebedos encontrados nas tavernas do transito, chegou â porta
do morgado de Barrimáo, e a clamorosos brados elegeram-o general. Já
se ouvia tocar a rebate em diversas torres, á discrição dos garotos
destacados. O morgado mandou-lhes dar vinho, e que debandassem, que
recolhessem a suas casas, porque iam levar grande tareia inutilmente. O
egresso veio a uma janella que abria sobre o atrio, e tentou
dissuadil-os do desvario que mais parecia um excesso de vinho que de
patriotismo--dizia. Não fez nada. Cada vez mais picado, o alferes,
faminto de vingança, bradava que estivera quinze mezes escondido, que
lhe tinham estragado a sua casa, e que ia pedir contas aos Trêpas e aos
Andrades de Santo Thyrso, uns malhados, cujas cabeças havia de deixar
espetadas em pinheiros.

Na villa ouvia-se o toque a rebate. Dizia-se que era incendio. Alguns
vadios atravessaram a ponte muito açodados em direcção ás freguezias
d'onde soavam as primeiras badaladas. O regedor de Villalva, o pai do
José Dias, descia esbaforido do monte do Barreiro a dar parte á
auctoridade. Assim que se espalhou a nova em Santo Thyrso, já se ouvia
alarido de vozes. A garotagem dava vivas, e guinchava uns apupos
prolongados que punham eccos nas margens tortuosas do rio Ave. Os
liberaes de Santo Thyrso rodearam o administrador, armados, com os seus
criados. Os negociantes com medo de saque tambem sahiram de clavinas. As
familias nas janellas faziam clamores, n'uma grande desolação.
N'aquella villa lembrava ainda a mortandade do tempo do cerco do Porto,
e havia velhos que presencearam outra semelhante no tempo dos francezes.
O regedor de Villalva dissera que o commandante da guerrilha era o
morgado de Barrimáo. Esta noticia fez augmentar o pavor, porque, se o
morgado, serio, prudente e bravo, acceitára o commando dos populares é
porque a cousa era séria. Os homens de negocio depuzeram as armas,
enfardelaram os valores e fugiram, caminho do Porto. Os proprietarios,
os empregados publicos, os officiaes de justiça, alguns que haviam
militado e emigrado, desceram á ponte armados em numero de oitenta.
Outros seguiram vereda differente para passar o rio. A guerrilha cuja
vozeada se aproximava, no trajecto de uma legua, pegou a sua febre a
mais de trezentos homens. Era um domingo de festa solemne, consagrado á
descida do Filho de Deus, para applacar os barbaros odios do genero
humano:--uma grande alegria que passaria despercebida, se o vinho não
preparasse as almas a comprehendel-a e sentil-a. Depois, muito
communicativa, como se vê. Gaspar das Lamellas emborracha-se ao jantar
e faz brindes ao Menino Jesus e ao snr. D. Miguel I. Pica-lhe na caneca,
pungem-o saudades do rei, e sahe para o terreiro a dar-lhe _vivas_.
Outros vinhos em ebulição respondem-lhe n'um grito de sinceridade
compacta. Trava da espada, que se tingira no sangue de tres batalhas á
volta do Porto; entra com elle a convicção em delirio acrisolada pela
allucinação da embriaguez. E o arrojo temerario dos grandes guerreiros
o que ó senão uma embriaguez de gloria, quando não é uma embriaguez
de genebra? Nas guerras civis portuguezas houve ahi um bravo soldado de
fortuna que, no vigor dos annos, ganhára as charlateiras de general e
uma corôa de conde. Os seus camaradas, mais retardados na carreira por
causa da abstinencia, diziam que elle nunca sahira victorioso de
campanha onde não entrasse bebedo. Este general, ao declinar da vida,
casado e abstemio, não deu uma pagina gloriosa á sua historia,
presidiu sem iniciativa, militar nem politica á Junta Suprema do Porto,
e fechou o cyclo das suas façanhas a parlamentar em Vieira com o padre
Casimiro, o _General Defensor das cinco chagas_.

Também no cerebro vinolento do alferes das Lamellas rutilavam os
relampagos da gloria quando, a brandir o gladio ferruginoso, descia, na
vanguarda da guerrilha, o outeiro sobre jacente á Ponte de Santo
Thyrso. Á entrada da ponte de páo havia taverna, com as prateleiras
alinhadas de garrafas da Companhia, com rotulos.

A multidão parou, avistando gente armada que descia a calçada d'além,
ao nivel da quinta do mosteiro de S. Bento. O taverneiro, muito
caloteado d'essa vez, disse ao commandante, ao Gaspar, que não cahisse
em se metter á ponte.

--Vocês vão cahir ahi n'essa ponte como tordos, o os que não cahirem
tem de largar os sócos a fugir--avisava, porque sabia que os de lá
eram _têzos_, e vinham todos armados.

O cabecilha tinha o seu vinho quasi digerido; a bravura começava a
ceder ás reflexões sensatas do taverneiro; mas o seu estado maior, uns
facinoras da quadrilha que tres annos antes infestara as encruzilhadas
da Terra Negra e Travagem, não transigiam, e forçavam-o a beber copos
de aguardente.--Que o primeiro que mostrasse os calcanhares ia malhar da
ponto abaixo!--protestavam os velhos salteadores do Minho, batendo com
as cronhas no balcão.

Entretanto, o administrador do concelho com dous empregados inermes
atravessava a ponte. A guerrilha, estupefacta da audacia, esperava-o
n'uma attitude pacifica, estupida, um retrahimento de covardia,
olhando-se uns para os outros e todos para o alferes. Elle, empurrado
pelos valentes, collocou-se á frente, na bocca da ponte, com a espada
nua. O administrador chegou muito de passo e perguntou se estava alli o
snr. morgado de Barrimáo, que desejava fallar-lhe.

--Que não estava; eu sou o chefe--disse o Gaspar.

--Logo me pareceu que um homem sério, como o morgado, não estaria á
frente d'este bom povo enganado--ponderou a auctoridade.--E vocemecê
quem é?--perguntou ao chefe.

--Que era o alferes das Lamellas, bem conhecido em toda a parte; que
perguntasse aos malhados de Santo Thyrso, a esses ladrões que o
perseguiram e lhe roubaram os seus bens.

O administrador, um bacharel, de cabelleira á Saint-Simon, era
discursivo e não perdia lanço de eloquencia em casos d'um romanesco
medonho. A torrente do rio rugia quebrada pelo triangulo dos pegões.
Uma rica e funebre paysagem, cortada de um lado pelos cataventos que
ringiam nas cristas das torres do mosteiro, e do outro pela matta
verde-negra, erriçada de pinheiros gementes. Um pittoresco cheio de
suggestões, d'uma palpitação cyclopica. Depois o enorme auditorio,
trezentas cabeças, fluctuando com as boccas muito escancaradas n'uma
bestialidade feramente spasmodica de lobos espantados por um archote
acceso. O meio era demosthenico, inspirativo. Borbotou-lhe a gôlfos um
palavriado discreto, aconselhando a turba a retirar-se _aos seus
apriscos_, á honrada labutação _dos seus mesteres_, e a não
perturbarem com _demagogias a pacificação dos animos e a sacratissima
inviolabilidade das instituições_. Quando o funccionario fechou a
parlenda, um dos mais bebedos, quer por chalaça, quer por insufficiente
comprehensão dos principios politicos da auctoridade, atirou o chapéu
ao ar e exclamou: «Viva o snr. D. Miguel I, rei de Portugal!»

A auctoridade ia replicar; mas a gritaria abafou-o. Elle voltou as
costas á canalha, e foi-se com bons exemplos de oradores antigos. Os
liberaes, logo que o viram retroceder, entraram na ponte de madeira com
um sonoro estrondo de marcha cadenciada.

Capitaneava-os um escrivão de direito, dos 7500, cavalleiro da Torre e
Espada, o Lobato, que pedira baixa de tenente no fim da campanha.

Outro bravo, o ex-sargento Lopes, que era guarda-chefe dos tabacos,
tinha pedido vinte homens, e atravessára com elles o Ave, na revolta do
rio, sem ser visto, na bateira do José Pinto Soares. Elle não podia
levar a bem que aquelles patêgos se retirassem sem uma sova pela
retaguarda e outra pela frente. Contava com a debandada pela ladeira das
mattas, e promettia, lá do alto, escorraçal-os de modo que elles se
espetassem entre dois fogos. Os seus vinte homens eram soldados com
baixa, guardas do tabaco, e socios aposentados das quadrilhas de
1834--um mixto de politicos, de ladrões e martyres das enxovias.

Os quatro facinoras da horda do alferes, quando viram a marcha firme e
solemne dos de Santo Thyrso,--é agora, rapazes!--exclamaram,
desfechando as espingardas. Os populares que as tinham, descarregaram as
suas, e avançaram, ponte dentro, n'uma arremettida impetuosamente
esbandalhada, de rodilhão. Uma das balas prostrára um arrieiro da
primeira fila dos liberaes; havia mais alguns feridos que se amparavam
gementes ás guardas da ponte. O bravo do Mindello viu cahir morto o seu
homem, e, contendo a furia das fileiras n'uma disciplina rigorosa, deu a
voz da descarga á primeira, e mandou abrir passagem á immediata, que
sustentava o fogo em quanto a outra carregava as armas.

Os pelouros cortavam fundo pelas carnes da populaça. Viam-se homens que
fugiam a coxearem, atiravam-se ás ribanceiras, escabujando em arrancos
de morte. Os que não tinham espingardas e ainda os que as tinham sem
cartuchame, pegavam dos tamancos e galgavam socalcos, buscando o refugio
dos pinhaes e carvalheiras.

O alferes sentiu um choque duro de coisa que lhe contundia as costas e
lhe apertava o pescoço. Era o Retrinca de S. Thiago d'Antas, o mais
feroz da sua malta, que se amparava n'elle, quando cahia varado por um
pelouro. Este espectaculo trivial não aterrava o soldado de Ponte
Ferreira, das Antas e da Asseiceira; mas dava-lhe as antigas pernas que
o serviram n'essas gloriosas batalhas. Tinha cincoenta annos, e fugia
ganhando a dianteira aos garotos do seu bando destroçado. Porém,
quando elle escalava a ladeira barrenta que se precipita ao sopé do
monte, desciam em saltos de bezerros mordidos por vespereiros os seus
homens, n'um turbilhão, acossados pelo tiroteio da companhia do
ex-sargento Lopes--uns barbaçudos que pareciam gigantes no tôpo da
collina, e davam uns berros clangorosos imitantes a mugidos de bois. O
dia de juizo!

O Gaspar arripiou carreira e desfilou por uma varzea alagada que ia
esbeiçar com o rio. Como a banda do alferes vermelhava ao longe, e a
espada a prumo no punho lhe dava uma caracterisação geitosa e
provocante para alvejar as espingardas, as balas sibilavam-lhe por
perto, chofrando nos pantanos. Alguns homens perseguiam-o chapinando no
lameiral, porque o chefe dos tabacos, o Lopes, dizia-lhes: «Ó
rapazes, vêde se mataides aquelle diabo que é o cabecilha!» Os mais
velleitos levavam-o esfalfado, cambaleando, atortemelado, quando o viram
desapparecer de subito entre uma espessa moita de platanos. D'ahi a
instantes, abeirando-se á ourela do rio, viram a barretina e a niza de
saragoça sobre uns comoros hervecidos; e, a distancia de dez varas,
aquelle bebedo immortal atravessava o rio a nado, n'uma tarde de
dezembro, com a espada nos dentes, e a banda a tiracollo.

--Ó alma do diabo!--dizia o Patarro de Monte Cordova, cevando a arma
com zagalotes para lhe atirar.--Vou matar aquelle pato bravo!

E o mais novo dos quatro, um imberbe que tinha pai:

--Não lhe atire, ó tio Patarro! É um velho, coitado! Não lhe vê os
cabellos brancos? Aquelle homem não se deve matar. Elle vai morrer
afogado antes de chegar á outra banda. Verá. Que raio de amizade elle
tem á espada! Aquillo é que é!

A meio do rio, onde a veia d'agua resvalava mais impetuosa, deixou-se
derivar sem esforço de natação. Mal bracejava. Depois, o Ave
espraiava-se em murmurios de lago dormente, muito barrento, e deixava-se
apégar. O alferes, com agua pela cinta, desatascou-se dos lamaçaes
d'além; e, horas depois, repassando o Ave na Ponte da Lagoncinha, e,
vencidas duas leguas de chafurdeiros e barrocas, entrava na sua casa das
Lamellas, bebia um grande trago de genebra, e, floreando a espada,
bradava: «Viva o snr. D. Miguel I!»

Depois, sobreveio-lhe um rheumatismo articular, e ficou tolhido.

Sete annos passados, quando todas as aldeias do Minho conclamavam D.
Miguel, elle ainda vivia, mas entrevado n'um carrinho, e chorava, em
impotentes arquejos do corpo paralytico, porque não podia amolar a
lamina da espada nos ossos dos malhados.

Tinha-a diante dos olhos pendurada n'uma escapula com o boldrié e a
banda. Ás vezes, depois de beber, punha-se a olhar para ella com os
olhos envidraçados de lagrimas, e pedia que a mettessem na sua
sepultura, que o enterrassem com ella. E enterraram. Espera-se que o
esqueleto d'este legitimista, com as phalanges esburgadas e recurvas no
punho azevrado da espada, resuscite, ao ulular da trombeta, na
resurreição geral das Legitimidades. Ponto é que a Russia se
môva--como dizia o frade de Barrimáo.


[Nota de rodapé 1: Um historiador moderno disse que D. Miguel em 1855
recebia setenta contos annuaes de donativos. Provavelmente deu causa a
esta liberalidade de cifras um lapso do snr. Joaquim Martins de Carvalho
que a pag. 254-255 dos seus _Apontamentos para a Historia
contemporanea_, transcreveu de uma carta de Lourenço Viegas o seguinte
periodo:... "Os rendimentos de el-rei compõem-se das 600 libras que vem
de Lisboa da _commissão alimenticia_, 1.000 francos mensaes que com
toda a exactidão lhe manda o conde de Chambord. 5.000 francos que
annualmente lhe manda o _duque de Modena_ e 6.000 francos do _imperador
Fernando d'Austria_, tambem annuaes, mas sem época fixa, junto a alguns
extraordinarios da provincia do Minho, fazem subir a renda annual a
400.000 francos, e esta chega apenas para a despeza e economia
domestica." _Chegando apenas para a despeza domestica_ de D. Miguel,
72:000$000, quanto lhe seria necessario para as despezas de fóra? Um
dos zeros do snr. Martins de Carvalho deve passar para a direita do 4, e
reduzir a annuidade do principe a 7.200$000 réis ou 40.000 francos.]



IV


Do alto Minho continuavam as noticias alegremente agitadoras. O
Christovão Bezerra, ex-capitão mór de Santa Martha de Bouro, escreveu
ao seu parente de Barrimáo. Dizia-lhe que constava que o snr. D. Miguel
estava no seu reino, e--o que mais era--muito perto d'alli. Que não se
podia explicar mais pelo claro sem ter a certeza de que seu primo
entendia a cifra de communicação entre os membros da ordem de S.
Miguel da Ala, instituida pelo snr. D. Affonso Henriques e renovada
ultimamente pelo monarcha legitimo--explicava. O major Bezerra era
commendador da ordem e conhecia a cifra:--que escrevesse francamente. E,
desconfiando do correio, mandou a Santa Martha de Bouro o afilhado, o
filho do alferes Gaspar, com uma carta muito importante. O pedreiro, a
impar de soberba por tal mensagem, posto que não participasse do
segrede do padrinho que era discreto, disse ao pai:

--Ou eu me engano, ou o snr. D. Miguel está por ahi, não tarda...

O alferes sentiu uma descarga electrica na columna vertebral e
convulsionou-se extraordinariamente. Fazia lembrar phenomenos que se
contam de movimento galvanico nos paralyticos, colhidos de improviso
pelo terror ou pela exultação; mas o Gaspar, como só tinha o esophago
desempedido, bebeu, com a escorrencia absorvente d'um olho-marinho,
muita aguardente, e desatou a berrar o _Rei-chegou_.

O filho, com a discrição propria d'um agente secreto da restauração
realista, zangou-se com o berreiro civico do pai e perguntou-lhe se
estava bebedo. O velho enthusiasta, ferido no seu coração de vassalo e
de progenitor, teve um honrado intervallo lucido, quando lhe replicou:

--Se eu não estivesse aqui tolhido, respondia-te, malandro!

Deitou o albardão á egua e partiu para terras de Bouro o Zeferino.
Quando passava defronte da casa do Simeão, em Prazins, olhou de
esguelha, por debaixo da aba do chapéu, para o lavrador que estava
apondo os bois ao carro, e regougou um arrastado pigarro de goelas
encatarrhoadas; e, dando de espora á andadeira, deixou cahir o pão
ferrado ao longo da perna. «Qualquer dia, estou-te em cima!» dizia de
si comsigo, ladeando a bêsta em corcovos chibantes. O Simeão, quando o
perdeu de vista, murmurou:--Valha-te o diabo, banaboia!

O ex-capitão mór de Santa Martha respondeu ás perguntas do primo de
Barrimáo; e, como o portador se recommendou na qualidade de afilhado do
fidalgo e filho d'um alferes que commandára o ataque de 1838 sobre
Santo Thyrso, o Christovão Bezerra tratou-o muito bem e pediu-lhe
noticias d'esse ataque a Santo Thyrso que elle não conhecia. O pedreiro
contou a façanha do pai, a nadar, com a espada nos dentes; e o fidalgo
quando soube que elle estava entrevado, disse pungidamente: Mal
empregado!--que um general romano fizera o mesmo e que o levasse ás
caldas de Vizella á bomba quente.

Como estava conversando com o filho de tamanho realista, fez-lhe
confidencias:--que D. Miguel estava perto d'alli; mas não recebia
ninguem porque os malhados já o espreitavam em Portugal. Que a
acclamação havia de começar em terras de Bouro, e estender-se até
Lisboa; e que estivesse certo que el-rei nosso senhor lhe daria a
patente do pai ou talvez mais. O pedreiro esfregava os joelhos com as
mãos e bamboava-se hilariante na cadeira como um idiota. Tirou da
algibeira da vestia uma saquita de missanga, onde tinha tres peças e
sete pintos. Pôz o dinheiro com estrondo deante do Bezerra,--que o
mandasse a el-rei para as suas despezas; que eu, accrescentou, ha quatro
annos que lhe dou uma moeda d'oiro por anno; elle ha-de saber pelo rol
quem é o Zeferino das Lamellas, por que o padre Luiz de Sousa Couto, do
Porto, disse-me que el-rei conhece de nome todos os que lhe mandam
dinheiro, O fidalgo recusou:--que não estava auctorisado a receber
donativos, nem os julgava por em quanto necessarios, por que em poder do
Dr. Candido, de Anêlhe, estavam cincoenta contos, dados pela senhora
infanta D. Isabel Maria, para pôr a procissão na rua.

A carta de que Zeferino foi o ditoso portador era mais explicita.
Contava que D. Miguel estava escondido na residencia do abbade de S.
Gens de Calvos, no conselho da Povoa de Lanhoso, o reverendo Marcos
Antonio de Faria Rebello.[2] Que pouquissimas pessoas o tinham visto,
porque sua magestade só se mostraria aos seus amigos fieis quando
entrassem pela Galliza os generaes estrangeiros que se esperavam, uns do
antigo exercito carlista, outros de Inglaterra.

Esta noticia dos generaes estranhos beliscou a vaidade nacional do major
Zeferino Bezerra. Parecia-lho impossivel que o principe proscripto não
confiasse na pericia e lealdade do Santa Martha, do Victorino, do Povoas
e Bernardino. Era uma ingratidão, dizia elle ao mano frade, que
accrescentou:--e uma bestialidade. El-rei deve saber o que lhe valeram o
Bourmont e o Pussieux e o Mac-Donnell, no fim da campanha. Sabes
tu?--rematou o morgado--aqui anda marosca. O que tratam é de se
abotoarem com os cincoenta contos da infanta D. Isabel Maria, e o primo
Christovão é um asno chapado.

--Escreve-se ao Povoas e ao Bernardino--aconselhou o egresso--que digam
alguma coisa.

Os militares realistas responderam que sem duvida estava a levedar
alguma tentativa de restauração; que o Ribeiro Saraiva trabalhava
devéras; que o snr. D. Miguel era esperado em Londres; mas que não
estava ao reino, nem cá viria senão para se assentar de vez no seu
throno usurpado.

--Deixa-te de asneiras, Zeferino--dizia o fidalgo ao afilhado com as
cartas na mão--el-rei ha-de vir; mas não veio. Meu primo foi codilhado
pelo abbade de Calvos, e eu vou-lhe escrever que não seja palerma, nem
caia com uma de X para o alevantamento que é uma comedella.

O pedreiro, não obstante, apostava dobrado contra singelo que D. Miguel
estava em Calvos, e puxava pela saquita de missanga com gestos de
troquilha de burros em feira:

--Aposto! Aqui está dinheiro! O fidalgo de Quadros, o snr. tenente
coronel Cerveira Lobo tambem diz que el-rei já por cá anda.

--O Cerveira Lobo! olha que borrachão!--disse o frade.

--Quem cá está é o rei dos bebedor no corpo d'elle--accrescentou o
morgado.

--Mas diz que o snr. D. Miguel I gostava muito d'elle--objectou o
pedreiro.--Ouvi-lh'o eu.

--Não duvido...--explicou o frade--que o snr. D. Miguel gostava de
grandes patifes...

O primo Christovão redarguiu, magoado na sua esperteza, que era tão
certo estar el-rei em Calvos como era certo ter-lhe beijado a regia mão
em casa do abbade, na noite sempre memoravel de 16 de abril de 1845. Que
só o tinha visto de relance em Braga em 32, mas que o conhecêra pelo
retrato; que até manquejava um pouco, tal e qual, como se sabe, depois
que sua magestade quebrou a perna em 28. Que el-rei nomeara o abbade de
Calvos seu capellão-mór, que déra a mitra de Coimbra ao abbade de
Priscos, e fizera chantre o padre Manoel das Agras, e a elle lhe fizera
a mercê de duas commandas e o titulo de barão de Bouro, afora outras
graças a diversos clerigos e leigos.

--Que te parece isto?--perguntou o morgado ao frade.

--Parece-me a notoria estupidez do primo Bezerra e mais dos padres; mas,
se o homem que lá está é o D. Miguel, então o estupido é elle, e
que me perdôe sua magestade fidelissima...

Escreveu-se novamente ao Povoas, ao Tavares de Fagilde e ao Pontes, um
collaborador da _Nação_. Responderam-lhe que não havia tal D. Miguel
em Calvos; mas que deixasse correr o marfim, por que era necessario uma
agitação preparatoria, um simulacro, uma apalpadella...

--Quer dizer--reflexionou o frade--que o tal impostor é um Baptista, o
precursor do verdadeiro Messias. Pois deixemos correr o marfim, e mais o
simulacro ... que palpem,--e, pondo as duas mãos engalfinhadas sobre o
umbigo proeminente, fazia girar um dedo pollegar á volta do outro. Que o
que fosse soaria, e não cahisse o mano Zeferino na estulticia de se
comprometter sem que os generaes portuguezes sahissem á rua.

Na correnteza d'estas coisas, o Zeferino das Lamellas não trabalhava de
pedreiro; abandonou as obras de alvenaria aos officiaes, e andava n'uma
dobadoira de casa do padrinho para casa do tenente-coronel realista, o
Vasco Cerveira Leite, morgado de Quadros, um homem nascido
illustremente, que, desde Evora Monte, não cortára as barbas nem
sahira das minas da casa-solar em Vermuim.

Como a sua paixão era inconsolavel com o destino, deu-se á
distracção do alcool; e, porque tinha a consciencia da sua miseria de
bebedo, fechava-se no seu quarto, onde ás vezes cahia amodorrado sobre
o vomito. Imbecilisára-se. Cerveira tinha soffrido um ataque cerebral
quando o brigadeiro José Urbano de Carvalho infamemente se passara com
alguns esquadrões de cavallaria para o centro da divisão do duque da
Terceira, na Chamusca. Elle vira o seu coronel Antonio Cardoso de
Albuquerque dar vivas á carta constitucional e a D. Maria II. Achou-se
arrastado, illaqueado e prisioneiro, quando procurava abrir com a espada
uma sepultura honrosa. Ali se extinguira coberto do opprobrio, n'aquella
hora, o bravo e leal regimento de Chaves que nunca dera um desertor para
as fileiras do inimigo. O tenente-coronel, desde esse dia, foi um
desgraçado incomprehendido que se embriagava para esquecer o
reviramento subito da sua carreira. Depois, a corrente travada das
miserias. Tinha filhos que se emborrachavam como elle, e filhas que se
namoravam dos engenheiros das estradas, e andavam pelas romarias de
roupinhas escarlates, com botinas de ponteira de verniz e chapéus
desabados de sêda preta com borlas e plumas. Sua mãe tinha sido
açafata da apostolica D. Carlota Joaquina, fizera-se mulher no
Ramalhão, e gabava-se de ter sido amada do conde de Villa Flôr. Quando
entrou no vasto e velho casarão de Quadros, teve hysterismos
formidaveis e acordava os eccos das montanhas com gritos que punham
terrores sobrenaturaes na visinhança. O Cerveira Leite poderia viver
abundantemente na côrte, por que os seus rendimentos e foros eram muito
importantes: é o que D. Honorata lhe pedia com lagrimas; mas elle,
colerico:--que não podia encarar os malhados, e não sahiria mais de
casa sem as suas divisas de tenente coronel de dragões. E,
apontando-lhe para os cinco filhos:

--Sê boa mãe, trata d'essas creanças que andam ahi porcas que fazem
nojo!--Tinha estas equidades em jejum.

E ella:

--Mais nojo me fazem as borracheiras de você!

E o fidalgo então disciplinava-a militarmente. Quando lhe não dava
alguns pontapés, desfechava-lhe um tiroteio de palavradas de tarimba, e
perguntava-lhe se tinha saudades dos bordeis do Ramalhão, aquelles
pagodes reaes. D'esta procacidade esqualida, derivou a um mutismo
estupido. Não lhe respondia. Fechava-se no seu quarto, contiguo á
garrafeira.

D. Honorata Guião teria vinte e oito annos, quando sahiu de Lisboa para
o Minho em 34. Era formosa das finas graças aristocraticas. Uma
elegancia nervosa, inquieta, mordiscada de desejos como uma flôr branca
muito picada das abelhas. Acceitára o major Cerveira, porque era rico e
estadeava na côrte as suas librés. Tinha trinta annos, e dizia-se que
aos quarenta seria general, porque D. Miguel gostava muito d'elle.
Rosnava-se que o Cerveira tinha sido um dos assassinos do marquez de
Loulé.

Este rapaz de côrte e da intimidade do rei e das infantas, disputado
pelas damas da rainha, era aquelle ebrio encanecido que, debruçado na
janella do seu quarto, fortemente fincado no peitoril de ferro da
sacada, revessava ao caminho publico golfos aziumados de vinhaça, e
dizia garotices de lacaio ás raparigas que passavam medrosas e o
saudavam;--Guarde Deus v. s.ª, snr. fidalgo!--Tenha v. s.ª muito boas
tardes, snr. morgado!--E elle, almofaçando as barbas conspurcadas de
vomito:--Ó brejeira, deixa lá vêr o patriotismo; que tal é a anca?
Não respondes, catraia? Olha como aquella rebola os quadris, o grande
coldre!--As cachopas não respondiam; safavam-se com um grande medo,
porque eram suas caseiras; mas commentavam:--Que levasse o diabo o
piteireiro do fidalgo!--que a fidalga fizera bem era se pisgar com o
doutor dos Pombaes.--Quer não--contrariava uma lavradeira idosa--foi
má mulher que deixou assim os filhos, cinco creanças! uma desgraça!
Nem as cadellas faziam isso. Os mais velhos já se emborracham, e as
meninas estão quasi mulheres e ainda não foram ao confêsso nem sabem
a doutrina. Que uma d'ellas, a Therezinha, já se enfeitava para o
estudante das Quintans que andava por lá feito caçador, e que o
morgadinho, o snr. Heitor, namorava a filha do José Alho, e até se
dizia que lhe fallára em casamento. Vêde vós que desgraça, ó
môças! Um menino tão rico e tão fidalgo, vi-o aqui ha tempos na
taberna de Villaverde que se não lambia, a pagar vinho ao Alho e mais
á croia da filha, e a comerem todos iscas de bacalháo com as mãos! Ao
que eu vi chegar um senhor dos fidalgos de Quadros! Quando eu era
rapariguita, aquelles senhores nunca sahiam sem os seus mochillas
fardados e tinham liteiras com as armas reaes pintadas. Faziam mesmo um
respeito! O snr. Rodrigo, pai d'este morgado velho, era d'isto dos
governos lá de Lisboa, e quando vinha vêr as suas quintas, ó
senhores, cahia ahi o poder do mundo de Braga e Guimarães a visital-o!
E as fidalgas? isso então a gente, quando as via, corria logo a
beijar-lhe a mão, e ellas no dia de Paschoa mandavam as cachopas
lenços para a cabeça e regueifas de pão podre. Aquella casa estava
sempre cheia de frades das ordens ricas...

--Isso, isso ... eu logo vi que essas fidalgas haviam de estar cheias de
frades de ordens ricas--dizia o José Dias de Villalva.--Muito cheias de
frades aquellas fidalgas, hein?

--Ahi vens tu com as tuas alicantinas--retrucava, pronostica e solemne,
a tia Rosa de Carude.--É o que tu estudas, meu valdevinos. Agora é
melhor que então, pois não foste? As fidalgas d'hoje em dia
presentemente fogem c'os doutores e deixam os filhos... Isto agora é
que é bom ás direitas, pois não é? No tempo antigo, valha-me Deus,
as fidalgas eram umas desavergonhadas que conheciam frades e creavam os
seus filhos.

--Os filhos dos frades?--perguntava o Dias.

--Cala-te ahi, bôca damnada! Olha que padre havia de sahir de ti! Ainda
bem que a Martha de Prazins te fez mudar de rumo.


A fuga da Honorata Guião com o Silveira dos Pombaes não amotinara a
opinião publica escandalisada. A excepção da austera Rosa de Carude,
toda a gente deu razão á fidalga. O Cerveira tinha amigas da ralé,
que mettia em casa--uma diversão á embriaguez, quando não exercia as
duas distracções em uma promiscuidade desaforada. D. Honorata
visitava-se unicamente com a D. Andreza da Silveira, da casa dos
Pombaes, irmã d'um bacharel delegado em Amarante. Chorava muito com
ella e pedia-lhe que perguntasse ao mano doutor se poderia separar-se
por justiça, antes de se atirar a uma cisterna. D. Andreza pediu ao
irmão que viesse ouvir as tristes allegações da sua desgraçada
amiga.

Estava Honorata nos trinta e tres annos, quando Silveira a encontrou nos
Pombaes. O delegado era um romantico. Emigrára em 28, sendo estudante,
quando alguns membros da sociedade dos _Divodignos_ padeceram o
supplicio da forca pelo homicidio dos lentes. Completára a formatura em
38 e fôra despachado. Muito lido em Schiller e Arlincourt. Fazia solaus
em que havia abencerragens e infantas christãs apaixonadas que tocavam
arrabis, banhadas de lua nos revelins dos castellos roqueiros. Tambem
fazia prosa na _Gazeta litteraria_ do Porto,--scenas dramaticas em que
se jurava pela gorja e havia homens de prol que arrastavam mantos
negros, cravavam laminas de Toledo ás portas de Dom Fuas, e, cruzando
os braços, rugiam cavernosamente: «Ah! Dom ribaldo, Dom ribaldo!» E
depois, os arrepios d'uma casquinada secca, d'um estridente grasnido de
gaivotas que se espicaçam por sobre o mar banzeiro.

A Honorata, esposa deplorativa, dama da rainha, esbeltamente magra,
d'uma elegancia de raça afinada nos salões da Bemposta, pallidez
eburnea, esmaecida, _airs évaporés_, um sorriso nobre de ironia
rebelde á desgraça, com a dupla poesia do martyrio e da belleza,
ultrapassou a encarnação viva dos ideaes do bacharel. Ella tinha pejo
de lhe contar os seus infortunios, a vida crapulosa do marido, a
libertinagem de portas a dentro com as jornaleiras, e o abandono da
educação dos filhos. Andreza é que contava tudo ao mano Adolpho na
presença da martyr. Que o Cerveira se embriagava todas as tardes e
tinha amasias da ultima gentalha que punham e dispunham em casa. Que os
meninos eram creados brutamente; que o mais velho, o Heitor, nem lêr
sabia; porque o pai tambem fazia mal o seu nome. Que tiveram um padre de
dentro para os ensinar, mas que o padre, em vez de lhes dar lição,
trabalhava de carpinteiro em remendar os sobrados, e quando era a hora
do estudo largava a enxó e vinha em mangas de camisa, sem gravata e de
socos para a sala. Que os meninos não lhe tinham respeito nenhum, por
isso o Heitor, quando elle o ameaçou com a palmatoria, respondeu que
lhe dava uma navalhada. O pai achou-lhe graça, e o padre foi-se embora.
Depois, entrou um velho que dava escóla em Guimarães, e os quizera
ensinar com muita paciencia; mas o Heitor e mais o Egas taes arrelias
lhe faziam que o pobre homem fugiu. Que D. Honorata soffria aquelle
flagello desde a queda da realeza, como se fosse a culpada da Victoria
de D. Pedro. Era da familia dos Guiões, muito intimos do snr. D. Miguel
e do conde de Basto; mas todos os seus parentes foram perseguidos,
roubados, de modo que ella, ainda que quizesse fugir ao marido, não
tinha em Lisboa familia que a pudesse sustentar;--que, se não fosse
isso, já teria acabado o seu suplicio, e que muitas vezes pensára em
se matar, mas...

--Os filhinhos...--atalhou Adolpho sentimentalmente.

--Não, snr.--acudiu a dama de Carlota Joaquina--não são os filhos. O
coração de mãe só se enche do amor aos filhos quando se evapora o
amor aos pais. Eu nunca amei este homem. Imposeram-me o casamento,
aproveitaram-se do despeito que eu sentia pelas ingratidões d'um conde
que eu amava, e casaram-me á pressa. O caracter d'este homem não
peorou com a desgraça da politica; elle é o que sempre foi, com a
differença de que na côrte embriagava-se com os fidalgos, no Alfeite e
em Queluz, e por lá dormia. As mulheres que corrompia ou o corrompiam
não eram minhas creadas nem minhas conhecidas; e, se o eram, eu apenas
tinha a convicção de que elle era um devasso. Tenho cinco filhos d
este homem; mas basta que eu lhe diga, snr. doutor Adolpho, que são
d'elle, são os productos amaldiçoados de uma obrigação estupida--a
aviltadora obrigação de ser mãe quando se é esposa.

Tinha dito. O bacharel nunca ouvira coisa assim, nem se lembrava de ler
achado nos romances uma razão tão philosophica e concludente da
Justiça com que a mãe pôde aborrecer os filhos.

--Sentia vontade de me ajoelhar diante d'ella!--dizia Adolpho á
irmã.--Que formosura e que talento, Andreza! Ó mana, eu viajei cinco
annos, vi as mulheres mais encantadoras da Europa, estive no Pardo, no
Bois de Boulogne, no Hyde-Park, e nunca vi mulher que tanto me
penetrasse os intimos seios d'alma! Nunca, por estranha fatalidade,
nunca! Como é que eu sinto aos vinte e oito annos as palpitações d'um
coração que nasce? Que faisca de amor é esta que me lavra um incendio
devastador das alegrias d'alma que ainda hontem me douravam a
existencia?

Era o estylo hydropico de Arlincourt; mas é de crêr que exprimisse
garrafalmente a singela e natural commoção que lhe fez a gentileza, a
poesia elegiaca, a magestade inflexa d'aquella mulher a quem a desgraça
dera uma critica moderna e revolucionaria na religião das mães.

D. Andreza, escandalisada, cortava-lhe os voadouros perguntando-lhe se a
separação judicial poderia dar meios de subsistencia a Honorata. O
bacharel, muito abstracto, parecia esquecido do codigo. O estado da sua
alma não lhe consentia folhear a infame prosa com mão jurisperita.

--Que havia de estudar a questão; mas que lhe parecia que ella,
requerendo o divorcio, apenas tinha alimentos por não ter trazido nada
ao casal.--Estas phrases eram mastigadas com um tedio, um engulho, como
se, depois de declamar uma _Contemplação_ de Lamartine, tivesse de
recitar dois paragraphos da lei da emphyteuse.

D. Andreza era senhora ajuizada, muito séria, educada no convento de
Vairão; tinha missa em casa, e escrevia cartas a diversas freiras,
pondo sempre no alto do papel: _Jesus, Maria, José_. Andava nos trinta
a cinco annos, muito lymphatica e um grande horror aos vicios da carne.
O mano Adolpho conhecia-lhe a indole. Não podia esperar d'ella
applauso, nem sequer condescendencia, e muito menos auxilio á sua
affeição a mulher casada. Andreza concordava com o irmão na formosura
de Honorata; mas observava com um risinho malicioso que o não chamára
para saber se a sua amiga era bonita ou feia; mas sim para aconselhal-a
e dirigil-a na separação do marido por justiça.

O doutor Adolpho absteve-se de enthusiasmos, e poz-se a estudar a
questão, em conferencias com o Bento Cardoso, de Guimarães, e o Torres
e Almeida, o Rasqueja de Braga, dois chavões. Mas o que elle queria era
córar as delongas nos Pombaes, ganhar tempo, a salvo das suspeitas da
mana e do seu capellão, um realista finorio que sabia da poda, e trazia
a pedra no sapato, dizia, cacarejando uma risada velhaca--e conhecia
até onde podia chegar a fragilidade de um homem sem solidos principios
de religião, estragado por essas nações.

D. Andreza andava assustada, porque o mano nem ia para Amarante nem dava
começo ao processo. A Honorata apparecia-lhe radiosa, com um grande
esmero no trajar, vestidos fóra da moda, mas elegantes, ricos, de
mangas perdidas, com uns decotes que punham nos olhos do capellão
luzernas exquisitas, escrupulos. Adolpho era discreto na presença da
mana. Contava as suas viagens, durante a emigração, citava nomes de
litteratos desconhecidos á fidalga, seus amigos intimos em Pariz; ai!
Pariz!--exclamava--Se eu então me passaria pela mente que havia de vir
de Pariz para Amarante!


--Elle porta-se muito serio--dizia D. Andreza ao padre Rocha. Ella é
que me parece mais levantada, muito azevieira, não acha?

--Acho, acho...--confirmava o capellão.--D'aqui rebenta coisa, minha
senhora; rebenta, v. ex.ª verá...

E, com effeito, estava a rebentar, na phrase explosiva do padre Rocha. O
delegado tinha correspondencia diaria com Honorata, mediante uma caseira
de sua mana, irmã d'uma criada do Cerveira Lobo. Cartas incendiarias
escriptas durante a noite trocavam-se de manhã, quando o Adolpho sahia
a respirar os balsamos das ribanceiras orvalhadas. Ás vezes, subia a
encosta até á crista do monte do castello de Vermuim. D'aqui, avistava-se
por sobre as selvas verdes de carvalheiras e pinhaes a vasta
casaria pardacenta de Quadros, com dous torreões denticulados. No
andaime de um dos torreões via-se um vulto branco, com o braço
amparado em uma das ameias, e a cabeça encostada á mão como nas
baladas de Baour Lormian. Era Honorata, com o binoculo assestado na
fraga onde estava Adolpho, alaranjado pela primeira resplandecencia do
sol nascente.

Ao cabo de duas semanas, sahiram dos dominios da bailada. Uma noite,
partiram de Guimarães, caminho do Porto, dous cavallos do Gaitas, e
pararam na Ponte de Brito. Um dos cavallos era arreiado com selim de
senhora. Por volta da meia noite, Adolpho e Honorata, n'um passo miudo,
com uma anciedade, mixto de exultação e de susto, chegaram á Ponte de
Brito. Elle ajudou-a a sentar-se na sella; cavalgou, disse aos dois
arrieiros o seu destino, e partiram a trote largo.


[Nota de rodapé 2: Como seria de máo gosto inventar este episodio,
imponho-me o dever de affirmar que estas noticias me foram transmittidas
por um illustrado cavalheiro da Povoa de Lanhoso, o snr. José Joaquim
Ferreira de Mello e Andrade, da casa nobillissima das Argas, fallecido,
com mais de oitenta annos de idade, em 1881. Comquanto a imprensa
contemporanea, que eu saiba, não fallasse no pseudo--D. Miguel, as
revelações do ancião de Lanhoso merecem-me e são dignas de toda a
confiança.

Além d'isso, consultei o reverendo Casimiro José Vieira, tão
celebrado quando dirigia com mão armada a revolução do Minho, que se
chamou Maria da Fonte. Hoje, com 66 annos de idade, vive na sua casa da
Alegria, no concelho de Felgueiras, ao sopé do monte de Santa Quiteria,
preparando as suas _Memorias_, que devem esclarecer as obscuridades
originaes da insurreição de duas provincias. Este padre que, aos
trinta annos, foi conclamado general pelo povo, e parlamentou face a
face com o conde das Antas, respondeu assim á minha consulta: _Eu
apenas posso dizer a v. que foi verdade ter estado o tal impostor
occulto em casa do abbade, por que elle mesmo m'o disse; mas nada lhe
perguntei a tal respeito, por me lembrar que elle teria vergonha de se
deixar enganar, depois de lhe ter beijado a mão muitas vezes, no tempo
de estudante e seminarista, quando o snr. D. Miguel esteve em Braga, a
ponto de se ter tomado saliente para o mesmo snr. D. Miguel, como o
mesmo abbade me contou tambem, mas por isso mesmo nada mais posso
accrescentar_...[3]]

[Nota de rodapé 3: Carta de 11 de novembro de 1882.]



V


Seis annos depois, em 1845, quando o Zeferino das Lamellas andava em
roda viva de Barrimáo para Quadros, o Cerveira não tinha alterado
sensivelmente os seus habitos. Estava muito gordo, saude de ferro--um
desmentido triumphante aos follicularios que desacreditam as virtudes
hygienicas, nutrientes do alcool. Os vomitorios quotidianos explicavam a
depurada e sadia carnadura do tenente-coronel. Orçava pelos cincoenta
annos, com um arrogante aspecto marcial, de intensas barbas
grisalhas,--olhos rutilantes afogueados pela calcinação cerebral. As
filhas não mostravam vestigios alguns de educação senhoril. Aquella
Therezinha, que a Rosa de Carude denunciára, fugira para casar com o
minorista das Quintans. As outras duas, muito boçaes e alavradeiradas,
tinham amantes--uns engenheiros e empreiteiros do conde de Clarange
Lucotte, que andava fazendo as estradas entre Braga, Porto e Guimarães.
Ninguem decente as queria para casar porque, além do descredito, o pai
não dava dote; e, desde que a mãe fugira, convenceu-se de que não
eram suas filhas. Heitor e Egas, dous galhardos moços, de jaqueta de
alamares de prata, faixa vermelha, e sapatos de prateleira com ilhozes
amarellos, tinham eguas travadas que entravam pelas feiras n'um arranque
de rópia e pimponice, que ia tudo razo. De resto, valentes e bebedos,
possantes garanhões de femeaço reles, e muito esquivos a tratarem com
senhoras--canhestros e bestiaes. Roubavam o milho e o vinho; vendiam,
nas mattas distantes, ao desbarato, córtes de madeira e roças de
matto; além d'isso tinham umas pequenas mezadas que o pai lhes dava.
Ainda assim, a casa de Quadros não estava empenhada, prosperava, e era
das primeiras do concelho. O luxo do fidalgo era a garrafeira. Mais
nada. As filhas de Honorata quando, entre si, fallavam da mãe,
chamavam-lhe «aquella desavergonhada»; os rapazes com um desapego
desleixado que poderia fingir dignidade, nem se lembravam que tinham
mãe. Quanto ao pai, esse antes de jantar, era taciturno, casmurro, como
quem se esforça por sacudir um pesadello; e, de tarde, sumia-se para
recomeçar as suas visões luminosas interceptadas pelas trevas
momentaneas da razão. Não se sabe o que elle pensava da mulher.

Admittia pouca gente em sua casa e pouquissima á sua presença. Além
dos caseiros que lhe pagavam as grossas rendas de Villa do Conde, de
Esmoriz e S. Cosme do Valle, apenas recebia o pedreiro das Lamellas que
lhe fizera os canastros e reconstruira algumas paredes desabadas.
Conhecia-lhe o pai, o alferes, desde a batalha de Ponte Ferreira.
Mandava-lhe botijas de genebra e massos de cigarros;--que bebesse, que
se embebedasse, que os tempos não iam para outra coisa. E o alferes com
vaidade de fino:

--A quem elle o vem dizer!

Ultimamente, fallavam muito da chegada do snr. D. Miguel--«o meu velho
amigo,» dizia o Cerveira, pondo as mãos no peito e os olhos ao tecto.

--Venha elle, e vêr-me-has, Zeferino, á frente dos meus dragões de
Chaves:--Relampagueavam-lhe então as pupillas e fazia largos gestos
marciaes, com o braço tremulo como se brandisse a espada, rompendo um
quadrado; montado na phantasia, arqueava as pernas, descahia o tronco
sobre um imaginario cavallo empinado e bufava com tregeitos ferozes. Era
d'um ridiculo lacrymavel. O Zeferino dizia ao pai que ás vezes lhe
tinha medo quando elle fazia aquellas partes.

--O vinho do Porto é o diabo!--dizia o alferes com uma grande
experiencia d'essas façanhas incruentas--é o diabo!

O Zeferino, na volta de Santa Martha de Bouro, contou-lhe o que soubera
em casa do capitão-mór. O tenente-coronel quiz immediatamente partir
para Lanhoso; mas não tinha roupa decente para se apresentar a el-rei.
As fardas estavam traçadas, podres com um bafio de rodilhas no fundo de
uma arca; dos galões restava um tecido esbranquiçado com laivos
verdoengos; o casco das dragonas esfarinhou-se-lhe nas mãos roido pelos
ratos. Não tinha casaca. Desde a convenção d'Evora Monte, mandava
fazer a Guimarães uns ferragoules de mescla á laia de capote de
soldado para o inverno; de verão, para equilibrar o calor artificial
interno com o da atmosphera, andava em ceroulas e fazia leque da fralda.
Por decencia, fechava-se nos seus aposentos. Mandou chamar um alfaiate a
Braga, o Cambraia da rua do Souto, para se vestir á militar e á
paizana.

Entretanto o Zeferino, um pouco desanimado, contou-lhe que o seu
padrinho de Barrimáo e mais o frade não acreditavam que el-rei
estivesse em Calvos; que era uma comedella do dr. Candido d'Anêlhe e
dos padres para apanharem cincoenta contos á D. Isabel Maria; que os
generaes do snr. D. Miguel não sabiam de nada.

O Cerveira Lobo esfriou. Tambem me parece, dizia, que se o meu velho
amigo D. Miguel ahi estivesse, já me tinha mandado chamar.

Mas, depois que o Bezerra de Bouro asseverou que beijára a mão
d'el-rei, o pedreiro e o tenente-coronel já não podiam duvidar.
Combinou o fidalgo com Zeferino que partisse elle para Lanhoso, e
dissesse ao capitão-mór que o levasse a Calvos, e o abbade que
participasse a el-rei que estava alli um proprio com uma carta de Vasco
da Cerveira Lobo, tenente-coronel de dragões.

--Assim que el-rei ouvir o meu nome, entras logo, immediatamente, n'um
prompto. Depois, põe-te de joelhos, e entrega-lhe a carta, percebeste?
Tu vais e trazes-me resposta. Por estes oito dias, o mais tardar, tenho
cá o fardamento. No caso que sua magestade me mande ir vou, se não,
trato de chamar ás armas cinco ou seis mil homens com que posso contar.

Zeferino, para evitar questões atrasadoras, não disse nada ao padrinho
nem ao pai, receando as expansões usuaes da carraspana.


O Cerveira dizia ao padre Rocha, capellão de D. Andreza:--Idéas não
me faltam; mas esqueci aquillo que se chama ... sim aquillo com que se
escreve, quero dizer...

--Ortographia?

--É como diz, padre Rocha, ortographia.

Era o exordio para lhe dar parte que o seu amigo e rei D. Miguel estava
no concelho da Povoa de Lanhoso; que lhe queria escrever; mas que não
se mettia n'isso; e accrescentava:--elle, o rei, aqui ha treze annos
sabia tanta ortographia como eu; mas agora dizem as gazetas que elle
estudou coisas e coisas e tal. Pedia, portanto, ao padre Rocha que lhe
escrevesse a carta para elle a copiar de seu vagar. E, pondo-lhe a mão
no hombro:--E ouviu, padre? Vá pensando no que quer; uma boa abbadia,
S. Thiago d'Antas, hein? serve-lhe? ou antes quereria ser conego? Emfim,
pense lá... Nós cá estamos ás ordens.

O padre era a fina flôr do clero realista. Sensato, intelligente e
honesto. Primeiro, quando o Cerveira lhe revelou a meia-voz a chegada do
seu amigo e rei D. Miguel, imaginou-o no seu estado normal de bebedeira.
Depois, reparando mais nas attitudes firmes e desempeno da lingua,
julgou-o sandeu, amollecimento cerebral pela alcoolisação;--por fim
convenceu-se de que o pobre homem era enganado e escarnecido por alguns
disfructadores. O padre tinha muita compaixão do fidalgo que a mulher e
as filhas enlameavam torpemente. Elle avisára D. Andreza que, no dia em
que o snr. doutor Adolpho entrasse nos Pombaes pela porta principal,
elle sahiria pela porta travessa; e a fidalga levára tão a mal o
proceder do irmão que pensava em fazer testamento para que os filhos
d'elle e de Honorata lhe não herdassem as quintas. Sabia-se n'esse
tempo que o doutor Adolpho da Silveira era juiz de direito nos Açores e
tinha comsigo uma formosa amante com tres meninos.

A unica idéa com que o Cerveira contribuiu para a redacção da carta
foi que escrevesse:--«se vossa magestade precisa de dinheiro, diga o
que quer que eu até onde chegarem as minhas posses está tudo ás
ordens del-rei meu senhor.»

O padre Rocha não sé esquivou a collaborar na indromina, dizia elle a
D. Andreza,--porque «eu, pela resposta da carta, hei-de seguir o fio da
esparrela que querem armar ao parvo do homem.»


A carta ia pomposa, a ponto de Cerveira pedir commentarios,
explicações. Que estava uma obra profunda--dizia o fidalgo instruido
em fim nas obscuresas do estylo.

E, tirando seis pintos do bolso do colete:

--Ahi tem para o seu rapé, merece-os.

O capellão não acceitou; pediu que os applicasse por sua intenção ás
necessidades do snr. D. Miguel.

--É um realista ás direitas, padre, um grande realista!--E, guardando
os seis pintos, abraçou-o effusivamente e offereceu-lhe um calice de
1817.

--Eu desejaria muito vêr a resposta de sua magestade--dizia o padre
Rocha.

--Isso é logo que ella chegar, padre! pois então? Cá entre nós não
ha segredos; e, se o amigo quizer, no caso que el-rei me mande ir, vai
commigo, e póde logo vir despachado. Pois então?

--Está dito!--e o padre com um regosijo muito comico, e o calice
aromatico de baixo do nariz:--Quem sabe se eu ainda serei arcebispo, ó
snr. tenente-coronel!

--Ora! como dous e dous são quatro! Ha-de ser arcebispo, não tenha
duvida. Isto vai tudo mudar!--E carregava-lhe forte no 1817.--Arre!
estou aqui mettido ha doze annos n'estes montes, que me tem levado os
diabos! Tenho 49 annos: mas este punho ainda póde com a espada! Ha-de
haver pancadaria de criar bicho! Olé! Eu dizia ás vezes ao meu amigo
D. Miguel quando o Sedvem, e o Matta e o Miguel Alcaide davam cacetada
nos malhados que aquillo não era bonito. Pois agora, padre Rocha,
hei-de dizer-lhe: «É p'ra baixo, real senhor! môcada de metter os
tampos dentro a esses malhados! E acabar com elles por uma vez! uma
forca em cada concelho, real senhor, muitas forcas! Ah! meu camarada
Telles Jordão! tu é que a sabias toda!»

O Cerveira começava a gaguejar, a cambalear, e entornava o calice. O
padre despediu-se.



VI


Na residencia do abbade Marcos Rebello, em S. Gens de Calvos, havia uma
sala com alcova e janellas sobre uma horta arborisada. As pereiras,
macieiras e abrunheiros principiavam a florir. Era no começo de abril.
Alli, n'aquellas frigidas alturas, sopram as ventanias mordentes de
Barroso, do Gerez, e gelam a seiva nos troncos filtrados da neve e das
crystallisações glaciaes. Fazia frio. Na saleta caiada, muito
excrementicia de moscaria, com tecto de castanho esfumaçado e o
pavimento lurado do caruncho, havia a um lado duas caixas de cereaes, no
outro algumas cadeiras velhas de nogueira de diversos feitios,
esfarpeladas no assento; nas paredes duas lytographias--o retrato de D.
João VI com o olho velhaco e o beiço belfo, e o marquez de Pombal
sentado com o decreto da expulsão dos jesuitas, apontando
parlapatonamente para a barra onde alvejam pannos de navios que levam os
expulsos. Na velha cal esburacada e emporcalhada de escarros seccos de
antigas catarrhaes, destacavam molduras de carvalho com dois paineis a
oleo cheios de grêtas, S. Jeronymo no deserto, com uma cara afflicta,
de tic doloroso, e Santo Antonio de Padua, n'um sadio _en bon point_, um
bom sorriso ingenuo, com o Menino Jesus sentado, muito nutrido, em uma
bola que os agiologos diziam ser o globo terraqueo. No centro da quadra
estava uma banca de pinho pintada a ocre, com uma coberta de cama, de
chita vermelha, com araras, franjada de requifes de lã variegada. Ao
lado da banca, uma cadeira de sola, com espaldar em relevo e pregaria
amarella com verdete; do outro lado havia um fogareiro de ferro com
brazas e uma cesta de vêrga cheia de carvão. Entre as duas pequenas
janellas de rotulas interiores e cachorros de pedra, trabalhava
estrondosamente um relogio de parede com os frisos do mostrador sem
vidro, cheios de moscas mortas, penduradas por uma perna, de ventres
brancos muito inchados e as azas abertas.

Dez horas. Abriu-se então a porta da alcova que ringiu ligeiramente na
couceira desengonçada, e sahiu um sujeito de mediana estatura, hombros
largos, barba toda com raras cans, olhos brilhantes, pallido-trigueiro,
um nariz adunco. Representava entre trinta e seis e quarenta annos.
Sentou-se á brazeira e preparou um cigarro, vagarosamente, que accendeu
na aresta chammejante de uma braza. Com o cigarro ao canto dos labios e
um olho fechado pelo contacto agro do fumo, foi abrir uma das vidraças,
e poz fóra a mão a sondar a temperatura. Coxeava um pouco. Recolheu a
mão com desagrado e fechou a janella. Vinha subindo a escada de
communicação com a cozinha uma mulher idosa, em mangas de camisa,
meias azues de lã e ourelos achinelados. Pediu licença para entrar,
fez uma mesura de joelhos sem curvar o tronco, e perguntou:

--Vossa magestade passou bem?

--Optimamente, Senhorinha, passei muito bem.

--Estimo muito, real senhor. O snr. abbade foi chamado ás oito horas
para confessar uma fregueza que está a morrer d'uma queda, e deixou
dito que puzesse o almoço a vossa magestade, se elle não chegasse ás
nove e meia.

--Quando quizer, Senhorinha, quando quizer, visto que o abbade deu essas
ordens e quem manda aqui é elle.

Da cozinha vaporava um perfume de salpicão frito com ovos. Sua
magestade farejava com as narinas anhelantes, n'um forte appetite. A
creada voltou com toalha, guardanapo, loiça da India, talheres de
prata, e uma travessa coberta. Sua magestade, muito familiar, tirou de
sobre a mesa uns cadernos escriptos, cosidos com sêda escarlate, e um
grande tinteiro de chumbo com pennas de pato.

--Ora vossa magestade a incommodar-se! Valha-me Deus! eu tiro isso, real
senhor! Não que uma coisa assim! Um rei a...

E o real senhor:

--Ande lá, Senhorinha, que eu ajudo. Um rei é um homem como qualquer
homem.

--Credo! faz muita differença ... mesmo muita...

Ella descobriu a travessa a rir-se:

--Vossa magestade diz que gosta...

--Sardinhas de escabeche? Se gosto!... Vamos a ellas que estão a
dizer--comei-me.

E atirou-se ás sardinhas com uma sofreguidão pelintra.

Depois, serviu-lhe rodelas de salpicão com ovos. Sua magestade gostava
muito d'estas comezanas nacionaes. Já tinha comido tripas, e dizia que
no exilio se lembrára muitas vezes d'esta saborosa iguaria com feijão
branco e chispe, que tinha comido em Braga. O abbade de Calvos
sensibilisava-se até ás lagrimas quando via el-rei a esbrugar uma unha
de porco e a limpar as regias barbas oleosas das gorduras suinas. O
terceiro prato era vitella assada. A Senhorinha trazia-lh'a no espêto,
porque sua magestade gostava de ir trinchando finas talhadas, emquanto a
cozinheira, de cocoras ao pé do fogareiro, conservava o espêto sobre
o brazido, a rechinar, a lourejar. Bebeu harmonicamente o real hospede
um vinho branco antigo, da lavra de um fidalgo de Braga, proprietario do
Douro, que estava no segredo do ditoso abbade de Calvos--capellão-mór
d'el-rei e dom prior eleito de Guimarães.

A creada assistia muito jovial áquella deglutição formidavel, e dizia
particularmente ao abbade:--Este senhor, pelo que come, parece que tem
passado muitas fominhas! Ninguem hade crêr o que sua magestade atafulha
n'aquelle bandulho!--e dizia que lhe dava vontade de chorar,
lembrando-se das lazeiras que elle tinha apanhado; porque o abbade
contava que lêra no _Deus o quer_, do visconde de Arlincourt, que o
snr. D. Miguel, em Roma, não tinha ás vezes 10 réis de seu para
almoçar uma chicara de leite. E, perguntando a el-rei se era verdade
aquillo--que sim, que chegara a essa extremidade; mas que preferia a
fome a ceder os seus direitos e a felicidade dos seus vassallos pelos
sessenta contos anuaes que lhe offereceram da Casa do Infantado, e que
elle rejeitara.

Por fim, vinha o café. As fatias eram torradas ali, no fogareiro. S.
magestade barrava-as de manteiga nacional,--preferia a manteiga do seu
paiz, como a vitela, e o lombo do porco no salpicão portuguez, e o pé
do porco nas tripas tambem portuguezas--tudo do seu paiz. Que rei, que
patriota!--meditava o abbade de Priscos, bispo eleito de Coimbra,
esmoncando-se e aparando as lagrimas ternas no alcobaça.

No fim do copioso almoço, el-rei fumava charutos hespanhoes, de
contrabando; desabotoava o colete, dava arrôtos, repoltreava-se na
cadeira de sola um pouco desconfortavel, e vaporava grandes columnas de
fumo que se espiralavam até ao tecto.

A Senhorinha veio á beira d'el-rei, e disse baixinho:

--Saberá vossa magestade que está ali o snr. Trocatles.

--O...?

--Ai! Já me esquecia ... o snr. visconde....

--Que suba.

O sujeito que entrou era o Torquato Nunes, um sargento do exercito
realista, de S. Gens. O rei ergueu-se e fecharam-se na alcôva.

A cozinheira dizia em baixo á outra creada de fóra:--Ó coisa! Mal
diria eu que ainda havia de chamar visconde ao safardana do Trocatles!

E a outra, benzendo-se:--Não que elle, o mundo sempre dá voltas! Veja
você! aquelle moinante que me pediu uma vez dois patacos p'ra cigarros,
e por signal que nunca m'os pagou!

--Pois vês-ahi! Foi elle o primeiro que conheceu o snr. D. Miguel, é o
que foi, a sua magestade gosta muito d'elle. Foi feliz o diabo do homem!
Aquillo vai a governo, tu verás; e já ouvi dizer que o sobrinho
d'elle, o padre Zé da Eira, o de Rio Caldo, que é zanagra, está
conego. Limparam-se da carepa, é o que é. A mulher d'elle já botou no
domingo passado a sua saia e jaqué de panno azul.

--E que rico panno!

--Pois vês-ahi...

Entrava n'esta conjunctura o abbade, esfadigado, suarento--que levasse o
diabo a freguezia, que pouco tempo havia de aturar maçadas d'aquellas,
para confessar uma bebeda de uma velha que tinha bebido de mais na feira
da Povoa e cahira d'um valado abaixo. E elle?--perguntava--almoçou bem?

--Ora! não ha que perguntar, senhor! Aquillo, salvo seja, é como a cal
d'uma azenha. É quanto lhe deitarem p'rá tripa. Coisa assim! Subiu
agora p'ra lá o Nunes. Ai! já me esquecia, ó snr. abbade! Olhe que na
villa já perguntaram se cá na casa estavam hospedes, porque vinham
p'ra cá muitas comida. Que não vão elles pegar a desconfiar... Esta
pergunta á moça traz agua no bico.

--E tu que respondeste, moça?

--Que vinham por cá jantar uns senhores padres, que agora era tempo de
confesso...

--Andaste bem.

Quando o padre Marcos Rebello subia á sala, pedindo licença a meio da
escada, já o rei e o visconde vinham sahindo da alcôva--um, aprumado
na attitude da magestade, o outro, na do respeito, muito composto.

--Pede licença na sua casa, dom Prior?--disse el-rei.

O dom prior de Guimarães genuflectiu a perna direita; o soberano
apressou-se a erguel-o.

Nada de etiquetas, já lh'o disse duzias de vezes.

--Não posso nem devo proceder d'outra maneira, senhor!

--Póde e deve que o mando eu.

E o abbade, inclinando-se com os brados em cruz sobre a batina:

--Saberá vossa magestade que o snr. capitão-mór de Santa Martha, a
quem vossa real magestade fez barão de Bouro...

--Bem sei ... aquelle amavel cavalheiro...

--Perfeito cavalheiro--attestou o Nunes.

--Escreveu-me a carta que tenho a honra de depositar nas mãos de vossa
magestade.

El-rei leu alto:


_Amigo Dom Prior de Guimarães.--Um realista do concelho de Famalicão
chegou ha pouco a esta casa, afim de que eu escrevesse ao meu nobre e
velho amigo para obter de S. M. licença para lhe apresentar como
portador de uma carta do snr. Vasco Cerveira Lobo, morgado de Quadros, e
tenente-coronel que foi do regimento de dragões de Chaves. Diz elle que
o snr. D. Miguel fôra amigo pessoal do dito tenente-coronel, e por isso
entende, e eu tambem que será muito ao real agrado do nosso rei e
senhor receber a carta d'este legitimista que nos pôde ser muito util,
já pelo seu nome, como tambem pela sua riqueza. Ouvidas as ordens de S.
M. F., queira transmittir-m'as_...


--Estou-me recordando--dizia o principe pausando as suas
reminiscencias--_Cerveira Lobo_ ... _tenente-coronel de dragões_... O
Cerveira, o meu amigo Cerveira...

--Que foi prisioneiro na Chamusca, quando o Urbano se passou para os
liberaes com a cavallaria e mais o coronel de dragões, o
Albuquerque--lembrou o Nunes, o visconde Nunes--V. magestade lembra-se?

--Perfeitamente. Dom prior, queira escrever ao barão e dizer-lhe que
espero anciosamente a carta do meu amigo Cerveira.

Emquanto o abbade ia ao seu quarto escrever, o hospede disse ao ouvido
do outro:

--Isto corre mal...

--Porque?!

--Se o homem cá vem, o meu _grande amigo_...

--Recebel-o como o teu _grande amigo_...

--Se me falla em particularidades ...

--Elle não sabe fallar em particularidades. É uma besta, muito rico, e
disse-me o morgado do Tanque, de Braga, seu primo, que está sempre
bebedo. Nem elle cá vem, tu verás ... Eu até acho que as coisas
correm perfeitamente.--Ouviam-se os passos do abbade.--Tem dinheiro,
elle tem muito dinheiro, ouviste?

Entrou o abbade.

--Só duas palavras. E leu: _S. Magestade recebe com muito prazer a
carta do snr. tenente-coronel Cerveira Lobo_.

--Muito bem,--approvou el-rei.--Hoje á noite, com todos os resguardos
que urgem as cautelas.

--Um homem, o Caneta de Braga, o chapelleiro com uma carta--annunciou
Senhorinha--só a entrega em mão propria ao snr. abbade.

--Que entrasse.

O rei e o visconde metteram-se á alcova, simulando receios.

Era uma carta do abbade de Priscos, bispo eleito de Coimbra. Tinha a
honra de enviar a el-rei cem peças, donativo que as senhoras Botelhas,
de Braga, offereciam de joelhos a S. M. F. e diziam que todos os seus
haveres estavam as ordens d'el-rei seu senhor.

E entregou dois grossos cartuchos, cintados por fitas cruzadas de sêda
escarlate. E o Caneta muito pontual.

--Queria um recibinho, se lhe não custa, reverendo snr. abbade.

--Venha d'ahi que eu passo-lhe o recibo.

Os dois sahiram da alcova. Os rolos estavam sobre a mesa. Elles tinham
ouvido fallar em recibo. O visconde Nunes, esgaziando os olhos, foi
apalpar o embrulho, e muito baixinho:

--Arame! peza que tem diabo! é oiro! Começa a pingadeira! Vês?

O outro arregalou os olhos e deitou a lingua de fóra quanto lhe foi
possivel. Nem parecia um rei!



VII


As sete da noite a soirée do monarcha de Calvos compunha-se do visconde
Nunes, seu secretario privado e brigadeiro de infanteria, do abbade
capellão-mór de el-rei, de dois reitores, conegos despachados, e o
ex-sargento-mór de Rio Caldo nomeado capitão-mór de Lanhoso. Estavam
todos em pé resistindo á licença de se sentarem. A cadeira de sola
estava com o principe encostada ao relogio; e, na mesa central, papeis,
o tinteiro de chumbo, o _Novo Principe_, de Gama e Castro, a _Besta
esfolada_ e o _Punhal dos corcundas_, do bispo fr. Fortunato. Em cima
das caixas do milho estavam em meio alqueire com feijões brancos
destinados ás tripas, e dois folles vasios que a Senhorinha tencionava
encher de grão para a fornada quando el-rei se recolhesse. Sobre um dos
folles resbunava um gato enroscado.

Esperava-se o apresentante da carta de Vasco da Cerveira.

Ás oito horas annunciaram-se os adventicios. O barão de Bouro entrou
primeiro a passo mesurado, com o peito alto, e o pescoço hirto n'uma
gravata enchumaçada, preta, de cordãosinho de arame, sem laço,
atacando os lobulos das orelhas, um pouco reintrante na altura dos
gorgomilos. Usava oculos de oiro quadrados, e uma pêra grisalha; de
resto, rapado. Envergava casaca nova de lemiste, muito refestelada, de
abas compridas com ancas proeminentes, segundo a moda; de cós das
calças, côr de gemma de ovo, pendiam berloques com armas, uma medalha
com o retrato de D. Miguel aos vinte e dous annos, a uma peça de oiro
com a mesma real effigie. No peito da camisa, entre as lapellas do
collete de velludo côr de laranja, trazia pregado um punhal esmaltado,
em miniatura, enygma convencional dos cavalleiros de S. Miguel da Ala,
obra patriota do ourives Novaes, pai do poeta Faustino.

De pés elle, entrou o Zeferino das Lamellas, muito enfiado, n'um
spasmo, sentindo-se aluir pelos joelhos. Ia de niza de panno azul com
botões amarellos, calça branca espipada com joelheiras pelos atritos
do alhardão. As pernas das calças chegavam apenas a meio cano das
botas, que pelo tamanho dos pés dir-se-iam roubadas a um gigante.

O Bezerra dobrou o joelho, inclinando o tronco á mão esquiva de sua
magestade. Por de traz d'elle, o Zeferino ajoelhára batendo com ambas
as rotulas no taboado. O barão ia fallar, quando o rei, reparando no
outro, disse:

--Levante-se, homem! Isto aqui não é capella.

O pedreiro teimava, achava-se bem n'aquella postura que o dispensava de
procurar outra.

--Sua magestade manda-o levantar--disse o visconde Nunes.

Ergueu-se, e n'um impeto silencioso ia entregar a carta ao da cadeira,
quando o capellão-mór lhe observou que as cartas se entregavam ao
secretario.

O barão expoz que não pudéra resistir aos pedidos que aquelle honrado
legitimista lhe fizera para o acompanhar, porque não se atrevia a
entrar sósinho á presença d'el-rei, seu amo. Que era filho de um
bravo alferes, o Gaspar das Lamellas, que em 1838, á frente de 300
homens, atacára a villa de Santo Thyrso, dando vivas a el-rei. Contou a
façanha de atravessar o Ave a nado em janeiro, com a espada nos dentes,
e que por causa d'isso entrévecera e nunca mais se levantou.

--Oh!--interjecionou compungidamente o monarcha.--Eu ignorava esse
notavel ataque ... estava em Roma, sem noticias... Digno homem o meu
honrado e bravo ... como se chama seu pai?

--Saberá vossa magestade que se chama Gaspar Ferreira.

E o rei:

--Visconde, escreva na lista.

O Nunes sentou-se á mesa, pedindo venia a sua magestade que ditou:

--_Gaspar Ferreira, reformado em coronel de infanteria, com vencimento
desde 1838_. Escreva á margem: _Batalha de Santo Thyrso_. E voltando-se
para Zeferino que ladeava para a parede:

--Diga a seu bravo pai que lhe dei a reforma em coronel, e vencerá
soldo dos sete annos passados.

O Zeferino abriu a bôca para dizer o que quer que fosse.

--A carta do meu velho amigo Teixeira?--perguntou o rei ao visconde
Nunes.

--_Cerveira_, perdôe vossa magestade, Cerveira Lobo.

--Ah! sim ... Cerveira Lobo.

Abriu, leu para si, passou a carta ao secretario, e commentando
exultante:

--Um grande amigo! dos raros! um dos nossos melhores esteios! Com homens
assim dedicados, o triumpho é certo. Posso dizer com o grande vate
Camões:


    _E dir-me-heis qual é mais excellente
    Se ser do mundo rei, se de tal gente._


Um dos reitores que estavam na penumbra, lá em baixo ao pé das caixas,
olhou com espanto para o outro, que lhe disse á puridade,
discretamente:

--Diz que elle tem estudado o diabo ... até o latim!

El-rei proseguiu:

--Vou responder por meu proprio punho ao meu nobre amigo. É digno
d'esta e de maiores considerações. Visconde, escreva na lista:
_Vasco da Cerveira Lobo, general de cavallaria, e conde de Quadros_.
Depois, tirou de uma velha pasta de papellão uma folha de almasso,
sentou-se a escrever--e que conversassem.

O abbade, capellão-mór, aproveitou o ensejo para servir vinho do Douro
e pasteis de Guimarães, cavacas do convento dos Remedios e forminhas.

Havia mastigação de mandibulas pesadas; as forminhas eram frescas,
muito torriscadas, davam rangidos n'uma trincadeira voluptuosa.
Conversava-se em dous grupos. O sargento-mór de Rio Caldo contava
passagens de caça no Gerez, com emphaticos arremedos, movimentados, da
altaneria. Que o porco bravo viera direito a elle, e cortava matto,
troncos de giestas como a sua coxa--e mostrava--; tinha apanhado de
raspão a cadella, a Ligeira, raça de todos os diabos que o atacava
pela orelha, e ficou aleijada para nunca mais; e elle então cahira
sobre a esquerda, e trepara á fraga da Portella, e esperára o porco na
clareira; e mal elle apontou, _pumba_! metteu-lhe tres zagalotes no
quadril.

--A gente a fallar incommóda talvez el-rei...--observou o barão de
Bouro.

--Podem conversar á vontade, que não me incommodam.

--Aquillo é que é cabeça!--disse baixinho, tocado, um dos conegos a
outro conego.

Generalisou-se a cavaqueira. Faziam-se brindes laconicos, circumspectos,
com um grande respeito, indicando-se el-rei por um simples gesto de
olhos.--A virar! a virar!--Carminavam-se os conegos. O dom Prior de
Guimarães suggeriu uma lembrança graciosa ao barão. Que havia dois
_padres Marcos_, ambos priores de Guimarães. Mas o legitimo, o de S.
Gens de Calvos, dizia do outro:

--Forte bebedo!

O visconde Nunes ria-se sarcasticamente; e emquanto os padres n'um
crescendo palavroso, expluiam sarcasmos ao outro padre Marcos, o
secretario privado curvou-se sobre o hombro de el-rei e segredou-lhe:

--Carrega-lhe!

--Ora!...

--Quanto?

--2.

--3. Anda-me. 3.

--Será muito!...

--Bolas. 3, por minha conta. Coisa limpa.

E, em voz alta e voltado para o grupo:

--El-rei pergunta se o snr. Conde de Quadros tem familia, se tem senhora
e filhos.

O Bezerra perguntou ao Zeferino.

--Que soubesse sua Magestade, disse o pedreiro, mais animado, que o
fidalgo de Quadros tinha dois rapazes e tres raparigas, uma já casada;
mas que a fidalga, a mulher d'elle, aqui ha annos atraz, tinha fugido
com o doutor dos Pombaes, e nunca mais voltára.

--Desgraças!--disse o capelão-mór--desgraças! A corrupção dos
tempos... Se se não acudir quanto antes a isto, não sei que volta se
lhe ha-de dar.

Fez-se um silencio condolente. Todos sentiam o caso infausto.

O rei continuava a escrever, de vagar, pulindo a frase, boleando os
periodos; achava difficuldades em se medir com as locuções redondas e
muito adjectivadas da rethorica do padre Rocha. Animava-o, porém, a
idéa de que D. Miguel não tinha fama de sabio, e que a sua carta seria
mais verosimil com alguns aleijões grammaticaes.

Releu a carta, e accrescentou ás virgulas. Pediu obreia ao Munes.
Acudiu o padre com uma quadrada, de certa grandeza, vermelha,
cuidadosamente recortada.

O envelope ainda não tinha subido até Lanhoso. Sua magestade dobrou em
quatro a folha do almaço e sobrescriptou--_Ao conde de Quadros, general
do Exercito real_.

N'esta occasião, o Christovão Bezerra chamou de parte o Nunes,
fallou-lhe em segredo, e terminou em voz alta: «se for do agrado de sua
magestade.»

--Eu vou fallar a el-rei--disse Nunes com satisfatoria condescendencia.

Acercou-se do outro, com os braços pendentes, os pés juntos, um pouco
inclinado, e fallou-lhe baixo.

--Sim--respondeu o monarcha.

--Está servido, snr. barão--communicou o secretario, e foi registar no
livro das mercês, proferindo em voz alta: _Sua magestade há por bem
nomear sargento-mór das Lamellas Zeferino Ferreira, em attenção aos
serviços de seu pai, o coronel Gaspar Ferreira_.

--Vá agradecer a el-rei, snr. sargento-mór--disse o barão de Bouro ao
pedreiro. Zeferino foi ajoelhar, querendo beijar as botas ao homem.

--Levante-se, amigo--disse o principe.--Aqui tem a resposta da carta do
meu amigo Cerveira Lobo. É necessario que ninguem veja este
sobrescripto. Tome sentido, que ninguem saiba a quem esta carta é
dirigida. Vá com Deus, e estimarei vêl-o aqui, snr. sargento-mór, com
outra carta do meu honrado amigo, emquanto não posso abraçá-lo
pessoalmente. Adeus.

A côrte sahiu em recuansos, dando-se mutuos encontrões para não
voltarem as costas á magestade.

A creada appareceu então esfandegada para pôr a mesa, que estava a
cela prompta, e que o frango com arroz não esperava--que era preciso
comêl-o logo que estava feito. Ficou para cear o Nunes. Geava sempre
com el-rei e com o abbade.

O Zeferino, que tinha ali a egua e conhecia o caminho, não quiz ir
pernoitar a Santa Martha de Bouro. Havia luar e sahia um rancho de
romeiros para o Bom Jesus do Monte. Partiu em direcção a Braga, e ao
outro dia de tarde apeava no sonoro pateo da casa de Quadros por onde
entrára com a egua em grande estropeada, com a cara escandecida n'uma
congestão de jubilo.

O Cerveira estava a dormir a sesta.

--Apanhou-a hoje d'aquella casta! Como um cacho!--informou um
caseiro.--Mandou apparelhar a poldra castanha do snr. Egas, com os
coldres das pistolas, escanchou-se na sella, com a espada desembainhada
e desatou a galope por debaixo das ramadas a dar gritos: «Avança,
dragões! carrega, esquadrão!» Eu estava a vêr quando o levava a
breca de encontro a um esteio de pedra, que malhava abaixo da burra como
um dez!... Depois o snr. Egas e mais o snr. Heitor lá o apearam como
puderam, e foram-n'o pôr a dormir. Arre diabo! lá que um homem uma vez
por outra apanhe um pifão, vá; mas embebedar-se todos os dias, é
muito feio! E depois ninguem se entende com elle. Medra com o suor dos
pobres. Um fona. Que vá para o diabo, que o carregue. Tanto se me dá
como se me deu. Se me mandar embora, boas noutes. Não é capaz de
perdoar um alqueire de milho a um caseiro! Tem vinte mil cruzados de
renda, não gasta nem cinco, andam os filhos a vender o matto e os
pinheiros, uma vergonha, porque elle, a dois homens gastadores, que tem
amigas, uma a cada canto, dá cada mez vinte pintos para os dois! O
homem deve ter muita somma de peças enterradas! Qualquer dia cae-lhe
ahi em casa o José Pequeno da Lixa que lhe põe a faca ao peito até
elle pôr ali o dinheiro á vista. Diz que quer comprar mais terras, e
aqui ha dias offereceu seis contos pela quinta do Lopes de Requião.
Veja você. Tem seis contos ao canto da gaveta, e ainda não deu cinco
réis que são cinco réis á filha, á D. Therezinha que casou com o
estudante das Quintans. Anda por lá de socas, sem meias, a fazer o
serviço da cozinha. E estão ahi as outras duas, que parecem umas
fadistas, nas romarias, e, quando Deus quer, topa a gente de noute por
esses quinchosos esses marotos dos engenheiros e empreiteiros a saltarem
paredes para se irem metter com ellas na casa do palheiro. Uma vergonha,
mestre Zeferino, a vergonha das vergonhas! Eu sou um pobre; mas raios me
parta, que se eu tivesse assim umas filhas... Olhe... (batia com o pé
em cheio na relva) esmagava-as como quem esborracha, uma toupeira. Deus
nos livre de bebedos! Deus nos livre de bebedos! Você bem sabe o que
isso é, mestre Zeferino, que pelos modos lá por casa não tem pouco
que aturar a seu pai que tambem as agarra muito _profeitas_! Olhe você
como elle se tolheu quando foi, dia de natal, dar fogo aos de S. Thyrso!
Aquillo só com meio almude no bucho!

--Não é tanto assim--atalhou o sargento-mór de Lamellas.--Não lhe
digo que meu pai não tivesse algum graieiro na aza; mas o que elle fez
não era você capaz de o fazer, tio Manoel.

--Ah! isso não, bem o póde dizer, mestre Zeferino. Nunca me
emborrachei, aqui onde me vê com cincoenta annos já feitos; mas, se
algum dia me emborrachar, que ninguem está livre d'isso, prego-me a
dormir e não vou atirar-me ao Ave em dezembro! ágora vou, se Deus
quizer. Vai-se pôr o alma do diabo a dar vivas ao D. Miguel! Qual
Miguel nem qual carapuça! Se D. Miguel cá vier ha-de fazer tanto caso
de seu pai como eu d'aquella bosta que ali está. O que elle devia era
tratar de conservar os terrões, e fazer como você que se pôz a
trabalhar e se fez pedreiro quando viu que os malhados lhe tomaram conta
das terras. E d'ahi? Você hoje tem o seu par de _mel_ cruzados,
ganhados com o suor do seu rosto, e até já me disseram que você dava
quinze centos ao de Prazins para lhe casar com a rapariga. É assim ou
não é?

--Isso acabou--respondeu com desdem, irritado.--Agora não a queria nem
que elle a dotasse com tres contos; entenda você o que lh'eu digo, tio
Manoel, nem com seis contos! Você não sabe quem eu sou, mas brevemente
o saberá. Pouco ha-de viver quem o não vir.

--Não sei quem você é? Ora essa... Já lhe disse que você é homem
capazorio, honrado...

--Quero cá dizer outra, coisa... Você não entende... E Ouvindo abrir
uma janella--lá está o fidalgo... Deixe-me lá ir.

E afastando-se do caseiro, ia dizendo comsigo:

--Que tal está o labroste! Um homem vem de fallar com el-rei, e topa
com uma cavalgadura d'estas! Canalha ordinaria!...



VIII


Quando Zeferino entregou a carta com um gesto soberbo da sua
intervenção entre o fidalgo e o rei, o Cerveira olhou para o
sobrescripto com estranheza, e disse que a carta não era para elle; e
lia: _Ao conde de Quadros, general da exercito real_.--Isto que diabo
é?

--É isso mesmo, fidalgo; isso que ahi está vi-o eu com estes olhos
escrever el-rei o snr. D. Miguel, hontem á noute, das nove para as dez.
O snr. conde é vossa exccellencia mesmo, e eu sou sargento-mór das
Lamellas; lá ficou o meu nome no livro e mais o de meu pai, que foi
despachado coronel por el-rei.

--O teu pai?! coronel!...

--É como diz.

--Ora essa! ... coronel! caramba!--disse despeitado; parecia-lhe iniqua
a promoção; mas occorreram-lhe os velhos caprichos analogos d'el-rei;
as injustiças d'algumas patentes superiores desde 1828 até á
convenção. E abriu a carta com moderado enthusiasmo. Parecia que a sua
razão immergida, restaurada depois de duas horas bem roncadas, de papo
acima, queria duvidar da authenticidade de um D. Miguel que fazia
sargento-mór um pedreiro, e coronel um reles alferes que passára das
milicias de Barcellos para infanteria. Achava natural e plausivel em si
as charlateiras de general e a corôa de conde; mas as mercês feitas
aos dous plebeus... Caramba!--Uma intermittencia de juizo. Emfim, abrira
a carta e lêra para si com uma custosa interpretação, ora
aproximando, ora distanciando o papel dos olhos.

A pouco e pouco, desavincou-se-lhe a fronte carregada,
illuminaram-se-lhe os olhos, coava-se-lhe no sangue o suave calor do
convencimento. Lia coisas que lhe evidenciavam um snr. D. Miguel
authentico, o auctor da carta. Conhecia-lhe a lettra. Lembrava-se muito
bem; era assim; e então a assignatura--_Miguel, Rei_--era tal qual.
Chegou a um certo periodo que devia impressional-o mais pela mudança
subita que lhe transluziu no semblante. Depois dobrou vagarosamente a
carta.

O Zeferino esperava a confidencia do contheudo; mas o fidalgo, apesar da
nobilitação do sargento-mór, continuava a consideral-o o pedreiro que
lhe fizera os canastros e reconstruira as paredes da cozinha. Não
estava assaz bebedo para confidencias.--Conta lá o que te aconteceu,
Zeferino--e sentando-se, metteu o saca-rolhas á botija de Hollanda.

O Zeferino contou tudo com muita particularidade. Descreveu a figura do
rei, as barbas que mettiam respeito: pausava como elle os dizeres, dando
ao braço direito, com a mão aberta, um movimento compassado. Repetiu,
peorados na fórma, os elogios que o snr. D. Miguel fizera ao seu amigo
Cerveira; que quando estava a escrever, perguntou se o conde de Quadros
tinha filhos.

O fidalgo sentia muita sêde. Misturava de meias a genebra com agua
assucarada. E ao passo que lhe'sorriam as alvoradas do seu mundo
phantastico, e as trevas da razão se desteciam, crescia-lhe o interesse
na narrativa do pedreiro. Reperguntava pormenores já respondidos. Não
havia já no seu espirito passageira sombra de duvida. Era o seu amigo
D. Miguel quem estava em S. Gens de Calvos; e, se elle fizera coronel o
plebeu das Lamellas e sargento-mór o pedreiro, foi decerto com a
intenção de o obsequiar a elle, para lhe mostrar com que prazer
recebera a sua carta.

--Sua magestade disse-me que estimava lá vêr-me com outra carta do
snr. conde, emquanto não ia lá abraçal-o--esclareceu Zeferino.

--Tens de lá ir amanhã. Apparece cêdo.

--Prompto, senhor.

--Mas, se vais para casa, passa pelos Pombaes e dá parte ao padre Rocha
que preciso fallar-lhe hoje á noite ou ámanhã cêdo.


O padre Rocha preferiu vir de manhã, antes dos transportes civicos do
tenente-coronel. Repugnava-lhe o ebrio e professava uma sincera
compaixão pelo homem.

Pouco depois do sol nado, o capellão de D. Andreza estava em Quadros
com um grande interesse. Queria salvar o visinho d'uma ratoeira armada
ao seu dinheiro, ou convencer-se de que realmente o principe proscripto
estava no concelho da Povoa de Lanhoso.

Chegára um pouco tarde. O Cerveira Lobo já tinha matado o bicho
copiosamente, um bicho muito antigo, invulneravel, que não se afogava
em pouca genebra.

--Não ha duvida, padre Rocha! Cá está o homem!--exclamou o fidalgo.

--Máo!--disse comsigo o padre, quando lhe apanhou em cheio as
inhalações alcoolicas do bafo.--Então é certo, snr. tenente-coronel?

--Se me quer chamar o que eu sou, amigo padre Rocha, chame-me general a
conde. Veja.

--Oh! sim? muitos parabens, snr. conde, muitos parabens! Quanto
folgo!--e lia o sobrescripto.

--Póde abrir e leia alto.

--Muito boa fórma de lettra, sim senhor... É do proprio punho do snr.
D. Miguel?

--Leia e verá. É d'elle mesmo. Conheço a assignatura muito bem. Tal
qual, sem tirar nem pôr. Vai um copito?--perguntava com a botija
inclinada sobre o calice.

--Muito obrigado a v. ex.a. Tenho de dizer a missa á snr.ª D. Andreza
ás dez horas.

--Leia lá então. Olhe que o nosso homem estudou. Explica-se muito
soffrivelmente. Veja o padre que espiga se eu lhe mando uma carta
escripta p'ráhi á tôa, hein? Bem diz a _Nação_ que elle andava a
estudar lá por fóra.

--Se dá licença, leio--interrompeu o padre com impaciencia curiosa.

--Vá lá!--e puxou a cadeira e a botija para junto do capellão.


_Velho, honrado e leal amigo, Vasco da Cerveira Lobo, conde de Quadros e
general dos meus exercitos. Eu El-Rei vos envio muito saudar. Não
podeis imaginar o grande prazer que senti quando ouvi o vosso nome e o
li escripto no final da vossa mais que todas preciosissima carta._


--Hein?--interrompeu o Cerveira.

--Muito bem--e proseguiu lendo:


_Muitas vezes me lembrou no desterro de onze annos o vosso nome, porque
não podia esquecer o de um amigo que tão de perto conheci e tanto me
acompanhou nas alegrias da minha mocidade._


--Eu não lhe disse, padre, que o rei e mais eu tinhamos feito pandegas
rasgadas quando éramos rapazes?

--Sim, snr., v. ex.ª tinha-m'o dito.

--Ora ahi tem, eu nunca minto. Ah! que bambochatas!--e recordava-se com
os olhos n'um spasmo entre a saudade e as iniciativas da borracheira.

--Continúo, se v. ex.ª permitte.

--Ande lá... Quem te viu e quem te vê, Cerveira Lobo!--disse com
tristeza, muito abatido. Padre Rocha encarava-o com piedade, sentia
ancias de abraçal-o, e dizer-lhe: «Regenere-se!»

--Ande lá. Leia, que o melhor está p'ra baixo.


_Logo que cheguei a Portugal chamado por amigos de primeira ordem e fui
para aqui enviado, perguntei se ainda ereis vivo. Alegraram-me com a
resposta; mas delicadamente me obrigaram a não escrever a alguem,
emquanto o triumpho infallivel da minha justiça dependesse de certas
negociações pendentes entre as nações da Europa e o meu ministro em
Inglaterra, o Ribeiro Saraiva que muito bem deveis conhecer de nome.
Tendo eu sido violentamente accusado pelos meus proprios amigos de ter
sacrificado os meus direitos aos meus caprichos, submetti-me ás
deliberações da Junta de Lisboa e por isso vos não escrevi para vos
abraçar e chamar para meu lado._


O Cerveira começou a soluçar com a cara coberta de lagrimas que
destacavam no rubor da epiderme.

--Então que é isso? São lagrimas de alegria?--perguntou o padre.--Se
são, deixe-as correr.

--Qual alegria! estou velho... Já não posso fazer nada a favor
d'el-rei... Este pulso...--e retezava o braço. O padre
assustava-se.--Ora leia para baixo, que está ahi uma passagem muito
bonita.


_Nunca me esqueceu nem já mais esquecerá que ereis o tenente coronel
dos meus queridos dragões de Chaves; que fostes vós o commandante da
carga solemne que soffreram as tropas liberaes em uma das primeiras
sortidas do Porto; e que fostes traiçoeiramente arrastado pelo infame
general Urbano quando com outro infame, o coronel Albuquerque, fizeram
acabar deshonrosamente na Chamusca os ultimos esquadrões do Regimento
de Chaves. Mas vós, honrado Cerveira, ficastes illeso da ignominia
geral, porque rejeitastes o perdão e dissestes que ereis um prisioneiro
de guerra, e aceitaveis as consequencias da vossa posição._


--Foi assim!--exclamou o Cerveira erguendo-se de salto. O Saldanha era
meu capitão quando eu era cadete; conhecia-me. Mandou-me chamar á sua
presença; que me fizesse liberal, e me entregavam a minha espada; e eu
(batia duramente no peito com as mãos ambas) eu, padre, eu, aqui onde
me vê, disse-lhe que levasse o diabo a espada para as profundas dos
infernos; que a minha espada tinha-m'a dado o snr. D. Miguel I e que
elle me daria outra, quando fosse precisa. Ficaram estarrecidos; e o
patife do Saldanha, que tinha sido um realista de todos os diabos,
quando era o gajo da Isabel Maria, chamou-me _estupido_. E eu, vai não
vai, estive a mandal-o...

Disse o resto. O padre riu-se, e pediu-lhe licença para continuar a
leitura, porque se chegava a hora de ir dizer a missa.

--Ande lá.


_Desgraçadamente o vosso heroismo e amor á minha causa legitima não
foi muito imitado. Eu perdi a corôa, mas a perda maior foi a de amigos
como vós, bem poucos, mas que valem um reino._


--Torne a lêr esse bocado que é cousa muito profunda, ó padre Rocha.

Fez-se-lhe a vontade. O Rocha tambem admirava, e de si comsigo dizia que
o rei tinha bom palavriado sentimental, ou que o impostor não era
qualquer pedaço de asno. Continuou:


_Vou responder com repugnancia e tristeza ás ultimas linhas da vossa
carta em que me offereceis liberalmente recursos. Eu vivo ha doze annos
dos beneficios dos meus vassalos: seria loucura fingir que não preciso
que m'os prestem hoje. A demora que tem havido no meu apparecimento aos
meus amigos e partidarios não m'a explicam, mas supponho que é falta
de dinheiro. Sei que minha irmã, a senhora infanta D. Isabel Maria, deu
cincoenta contos para começar o movimento, e esse dinheiro está em
poder de um doutor Candido Rodrigues Alvares de Figueiredo e Lima, lente
de Coimbra. Mas o que são cincoenta contos para sustentar uma
insurreição em que ha-de haver necessidade de sustentar, de vestir e
de armar cem mil homens! Vós, meu honrado amigo, que sois militar,
comprehendeis que nada se póde fazer sem que os poderosos, os
opulentos, cooperem com a minha boa mana a senhora D. Isabel Maria._

_Dizem-me que tenho amigos muito ricos que hão-de apparecer a tempo;
mas eu necessito de preparar a occasião em que elles promettem
apparecer. Á primeira voz tenho a certeza de levantar 12.000 homens
n'um pequeno circulo de leguas; mas não me atrevo a fazel-o, a
tental-o, sem me vêr bastante provido de recursos, para não recear o
peor dos inimigos que é a necessidade. Por tanto muito amado conde, meu
valoroso general, acceito o vosso emprestimo; e tomarei da vossa fortuna
tres contos de réis que vos recompensarei com o menos, que é o
dinheiro, e com o mais, que é a minha eterna gratidão. Deus Nosso
Senhor vos tenha em sua santa guarda. De S. Gens de Calvos aos 12 de
maio de 1845._

                             _Miguel, Rey._


Esta carta não confirmou nem removeu as suspeitas do padre Rocha.
Quando o Cerveira lhe perguntou:--que tal? o que dizia elle?--dobrava a
carta vagarosamente, encolhia os hombros e respondia:--Em fim ... não
sei...

--Não sabe o quê? Lá que eu lhe levo o dinheiro isso levo. Pudéra
não! Tudo o que eu tiver até á camisa do corpo. Ou se é amigo ou
não se é amigo, hein? Que diz a isto, padre?

--Se quem escreveu esta carta é o snr. D. Miguel, faz v. exc.ª o que
deve porque faz o que póde; mas seria bom ter a certeza...

--De que é o rei que me escreve?

--Sim ... a prudencia... Ha muito maroto por esse mundo.

--O padre está então a lêr! Cuida que eu lhe dava o meu dinheiro sem
o vêr? Hei-de vêl-o com estes, e ou vil-o fallar primeiro. Mas
deixe-se d'asneiras, padre Rocha! É tão certo Deus estar no céo como
elle estar em Calvos.

--Bem!--atalhou o Rocha apressado, erguendo-se--quando vai v. exc.ª a
Calvos?

--Hoje é terça-feira; a roupa chega de Braga na sexta, e parto no
sabbado. Ora agora, vou lá mandar o Zeferino a dizer-lhe que vou
beijar-lhe a mão e levar-lhe os tres contos. Se faz favor, escreva-me
ahi duas linhas, só duas linhas, a dizer isto.

O padre escreveu, e sahiu muito preoccupado. Celebrou a missa a D.
Andreza, e pediu-lhe licença para se ausentar por tres dias. Relatou á
fidalga as suas desconfianças, o dever que se impunha de salvar o pobre
idiota de alguma cilada á sua imbecilidade, e talvez de um roubo á
mão armada.

--Mas quem sabe se é na verdade o D. Miguel que lhe pede o
dinheiro?--reflectia D. Andreza, discreta e sensibilisada.

--É o que eu vou saber.



IX


N'aquelle tempo, (1845) no Porto, rua de S. Sebastião n.° 1, morava o
padre Luiz de Sousa Couto, paleographo da Misericordia. Representava
sessenta e tantos annos, uma nutrição doentia, pesado, com os pés
turgidos da gota, cheios de nodosidades. Era jovial. Tinha um sorriso
lhano, conversava morosamente pausado com admiravel correcção;
deixava-se interromper sem impaciencias e não interrompia nunca os
desatinos, maçadas, e até as tolices de quem quer que fosse. E ouvia
muitas. Este padre obscurecido na sua paleographia que lhe dava oito
tostões por dia, n'aquella asquerosa alfurja chamada rua de S.
Sebastião, com o aljube á esquerda e as immundicies da Pena Ventosa á
direita, era o impulsor, a alma, o cerebro do gigante miguelista nas
provincias do norte. A Junta de Lisboa consultava-o. Ribeiro Saraiva
enviava-lhe de Londres os elementos para os seus calculos, pedia-lhe
conselhos; e D. Miguel escrevia-lhe frequentemente. Dizia-se que o
principe proscripto o elegera bispo ou patriarcha de Lisboa--não me
recordo qual era a mitra.

A sua presença veneravel impunha sem artificio; uma grande bondade
obsequiadora[4]; não proferia palavra offensiva dos seus adversarios
politicos; não acceitava donativos dos seus correligionarios; vivia com
severa parcimonia dos seus 800 réis havidos da Santa Casa, e morreria
de penuria antes de pedir ao governo liberal a paga dos seus lavores
illustrados, correctissimos de interprete de velhos e quasi
indecifraveis codices.

Ao entardecer do dia 15 de maio de 1845 o padre Luiz de Sousa escrevia a
sua correspondencia para Londres. Annunciou-se o padre Bernardo Rocha,
perguntando a hora menos occupada para poder dar duas palavras ao
reverendo dono da casa. Foi logo recebido.

--Que todas as horas eram livres para receber os amigos.

Padre Rocha principiou allegando que os seus sentimentos politicos eram
bem conhecidos; que cumpria sempre as ordens que recebia do centro
realista, e que facilmente daria o socego da sua vida em sacrificio das
suas convicções. Que se julgava com direito a fazer uma pergunta e a
exigir que lhe respondessem a verdade.

--Se a pergunta fôr feita a mim, não poderei responder d'outra
maneira. Que quer saber, padre Rocha?

--Se o snr. D. Miguel está em Portugal.

--Não, snr. Ha 15 dias estava em Italia.--E abrindo uma gaveta,
extrahiu de uma pasta muito ordinaria de carneira surrada com atilhos um
papel que mostrou.--Aqui está uma carta assignada pelo snr. D. Miguel
de Bragança, datada no l.° de maio. Quanto a isto, está satisfeito.
Que mais quer saber?

--Mais nada. Agora corre-me o dever de justificar a pergunta.

--Bem sei--preveniu o padre Luiz.--Essa mesma pergunta me fez ha dias o
Bezerra de Barrimáo, seu visinho, e mais de um cavalheiro de Braga, o
Barata, o Manoel de Magalhães, etc. Diz-se por lá que o snr. D. Miguel
está no Alto Minho, no concelho da Povoa de Lanhoso. Propalam-o certos
padres, não sei com que alcance. A estupidez tem intuitos
impenetraveis. Não percebo para que fim espalham tão absurdo boato, se
não é para alarmar o governo ou lograr incautos...

--É isso mesmo: lograr incautos--interrompeu o Rocha e contou o que se
estava passando com o tenente-coronel de Quadros, a carta do supposto D.
Miguel e o emprestimo dos tres contos, que o fidalgo tencionava levar no
proximo sabbado ao impostor.

--Seria bom evitar a perda ao tenente-coronel e o opprobrio ao partido
legitimista--alvitrou o paleographo.

--Eu não o podia fazer sem a certeza de não praticar alguma
imprudencia. Para isso vim consultar o reverendo Luiz de Sousa, e d'aqui
irei para Braga entender-me com o governador civil.

--Faz bem. Não lh'o aconselharia, se pudessemos dar remedio mais suave
á doença d'esse miseravel impostor, de quem eu sei mais algumas
traficancias. Constou-me ha poucas horas, que umas beatas de Braga,
abastadas, e de appellido Botelhas, tinham enviado uma importante
quantia, por intermedio de um certo abbade, a um D. Miguel que está
escondido em Portugal. Eu podia dar aviso d'esta ladroeira; mas tenho
compaixão do abbade: não sei se elle é ladrão ou tolo. A segunda
hypothese é que o salva de ser processado. Portanto, amigo padre Rocha,
faz um bom serviço á humanidade e ao partido, solicitando o castigo
d'esse homem que conspurca o nome d'el-rei e a honra do partido. Agora,
visto que veio, vou dizer-lhe o que ha. Saraiva trata de contrahir um
emprestimo e de negociar generaes que infelizmente precisamos. O Povoas
está decrepito e quasi morto para a nossa fé desde Souto Redondo. As
patentes superiores, pela maior parte, estão em pessoas que regulam
pela intelligencia do seu amigo tenente-coronel de Quadros. Ha por ahi
outros que aprenderam a tatica da covardia desde o cêrco do Porto. Mal
podemos contar com elles, quando os vêmos intervir nas facções dos
liberaes a fim de abrirem brecha na mesa do orçamento com as espadas
postas em almoeda. No anno proximo futuro, o partido legitimista deve
dar signaes de vida; se esses signaes hão-de ser como os do cadaver
galvanisado que se convulsiona e recahe na sua podridão, isso não sei.
O snr. D. Miguel tem de vir a Londres; e quando lhe constar, padre
Rocha, que el-rei está em Inglaterra, prepare-se com a sua energia para
nos dar o muito que esperamos da sua influencia e do seu affecto á
legitimidade. E adeus que sahe depois d'ámanhã de Lisboa o paquete:
estou escrevendo ao nosso Ribeiro Saraiva.


O secretario geral governador civil interino de Braga na ausencia do
conselheiro João Elias,--uma victima burlesca de troça dos
setembristas--era o Marques Murta, uma gigantesca actividade phrenetica
n'um corpo mediano, fino, acepilhado aristocraticamente, com a bossa da
perspicacia politica muito saliente. De resto, serviçal, agradavel, com
uns requintes de delicadeza de bom tom.

O padre Rocha procurou-o no seu gabinete e contou-lhe os casos
succedidos e a necessidade de não deferir a prisão do impostor até
além do dia seguinte, porque no sabbado sahia de Quadros o Cerveira
Lobo com os tres contos.

--Talvez fosse mais curial e exemplar prendêl-o depois, e entrar com os
tres contos no cofre do districto, visto que o Cerveira os quer applicar
ás necessidades da monarchia;--opinou o secretario sorridente.

O padre não percebeu a ironia, e entendeu que de qualquer dos modos já
não podia obviar que o seu amigo fosse roubado, ou em nome de D. Miguel
l.° ou de D, Maria 2.ª.

--Vá descansado — emendou a auctoridade com o seu sorriso
intelligente, habitual.--Se o homem estiver em Calvos, ámanhã a esta
hora ha-de estar na cadeia de Braga.

Pela meia noute d'este dia sahiu do quartel do Populo, uma escolta de
infanteria 8 que chegou a S. Gens ao apontar da manhã. Era guiada por
um pratico sabedor das avenidas da residencia abbacial, um socio
convertido e aproveitado da quadrilha de ladrões que devastára o
concelho da Povoa em 34, e saboreava agora na policia secreta uma
qualquer prebenda honestamente ganha. Elle dispôz a soldadesca á volta
da casa, debaixo das janellas, rente ao muro do passal, e mostrou ao
sargento a porta de carro. Rompia a aurora quando a passarada do
arvoredo se esvoaçou piando, alvorotada pelo estrondo das cronhadas á
porta principal, e uns berros formidaveis:

--Abra! abra! se não vai dentro a porta!

O abbade saltou da cama, espreitou por uma fresta das portadas, e viu um
cordão de soldados, a olharem para as janellas, e com as bayonetas nas
espingardas. Correu descalço para a saia contigua á alcôva do
hospede, e encontrou-o no meio da quadra, em fralda, a enfiar as
calças, quasi ás escuras, com a respiração anciada.

--Que é?--regougou o homem n'uma estrangulação de susto, muito
offegante.

--Tropa, senhor, tropa! Fuja depressa, que eu vou esconder vossa
magestade na adega antes que arrombem a porta.

As cronhadas e as intimações ameaçadoras repetiam-se. Uma algazarra
de inferno. Vozes roucas pediam machados e ferros do monte. A
Senhorinha, muito esganiçada, espectorava agudos ais na cozinha; não
acertava a enfiar o saioto pelo direito. Os cães de Castro-Laboreiro,
muito ferozes, arremettiam ás portas com a dentuça refilada. Porcos
grunhiam dando bufidos espavoridos. A moça dos recados chamava a sua
Mãe Santissima e a alma da tia _Jacintra do Reimundles_ que estava
inteira na egreja. Dous criados da lavoura, estranhos ao segredo do real
hospede, como estavam recrutados, cuidaram que a tropa os vinha prender;
enterraram-se nos fenos do palheiro, promettendo esmolas de quartinho ao
Bom Jesus do Monte e ao _martyle São Trocatles_, se os livrassem
d'aquella. Entretanto, o outro, de chinellos de tapête, guiado pela
mão do abbade até á cozinha, passou d'aqui para a adega que a creada
abriu com muita subtileza. Havia lá dentro um recanto encoberto por
duas pipas vasias, postas ao alto; pela convexidade das aduellas e entre
as pipas e a parede, abria-se um vacuo onde cabia á vontade um homem. O
abbade muito afflicto:

--Suba depressa vossa magestade que eu ajudo por cima das pipas e
deixe-se escorregar p'r'ó lado de lá. Coza-se bem com a parede; se
vierem revistar, não se bula, não se bula, senhor!

O homem ficou em cega escuridade. Quando resvalava com as costas pela
parede, as teias d'aranha despegavam-se dos vigamentos de que pendiam,
enrodilhavam-se-lhe viscosas ao nariz e aos beiços. Elle sacudia-as,
cuspinhava com nojo, queria acocorar-se, mas não cabia. Ouvia rôjos de
ratazanas por debaixo das pipas, e lá fóra o rodar das portas que se
escancaravam com estridor.

Em cima, o sargento e tres soldados entraram e examinaram vagarosamente
os quartos e recantos.

--Snr. abbade, ponha p'r'áqui o rei, disse o sargento, um farçola, o
_Pilula_ do 8,--queremos o rei e algumas botijas de genebra. A
garrafeira da casa real deve ser coisa muito rica! Venha primeiro o snr.
D. Miguel que lhe queremos fazer uma saude.

--O snr. está a mangar!--disse o abbade afinando pelo tom da
chalaça.--Genebra, se a querem, dou-lh'a; mas a respeito de rei, só
lhe posso dar o de copas, que tenho ali um.

--Pois sim, traga o rei de copas, e não será máo que ponha em guarda
tambem o az do mesmo naipe.

--Dá-se-lhe já duas biqueiras n'este padreca, ó meu sargento!--propoz
o 24.

--Deixa vêr se a coisa se arranja sem biqueiras. Ande lá, snr. abbade,
vamos á genebra, á adega. Mêxa-se.

--A genebra está cá em cima--observou o abbade um pouco enfiado.

--Mande-a ir p'r'a baixo, que é mais fresco. Mêxa-se, mêxa-se que
temos pressa. Abra a porta da adega.

--Sim, snr., abro tudo o que vocemecê quizer--resoluto, com um ar
ironico de condescendencia, sem receio.--Os senhores tem coisas! Onde
diabo procuram o snr. D. Miguel!--E descia, pedindo a chave á
Senhorinha.

A creada demorava-se a procural-a, a fingir; e o sargento:

--Se se demora, ó santinha, vai dentro a porta! Ó 24, vai buscar um
machado que eu ali vi na cozinha. Salta um machado!

--Não é preciso, camarada--acudiu o abbade.--Aqui está a chave. Eu
abro. Entrem, procurem á vontade.

O sargento parou á porta a familiarisar-se com a escassa luz da
adega:--Ó padre! isto aqui é que é a sala do throno? ou é o
subterraneo da inquisição? Mande lá accender uma candeia, se não tem
um archote.

--Ó mulher, traz d'ahi uma placa accêsa--disse o abbade Marcos,
contrafazendo o seu terror.

E o homem, lá dentro atraz das pipas, tiritava como Heliogabalo na
latrina, seu derradeiro refugio.

A Senhorinha entrou adiante com a placa, um luzeiro mortiço de cêbo
com morrão que parecia condensar mais as trevas da lôbrega caverna.

--Arranja ahi um fachoqueiro de palha, ó 14! Que raio de placa você
cá traz, mulher!

--É emquanto não péga bem a torcida--explicou a creada caminhando
atraz do padre para o lado opposto ao esconderijo. Com effeito, a
claridade difundia-se, mas tão de vagar que ninguem diria a velocidade
que os naturalistas marcam a um raio de luz. Os soldados batiam com os
nós dos dedos nos tampos das pipas que toavam o som abafado de cheias.

E o 14:--Ó meu sargento, o tanso do abbade casca lhe rijo no verdasco!
Estão cheiinhas! E apontando para as duas pipas vasias do canto, o
sargento perguntava se o vinho d'aquellas já lhe tinha cabido na
sachristia--e dava piparotes na barriga do padre.

O abbade tinha uns sorrisos pallidos, compromettedores como uma
denuncia. O 24 escutava e dizia que a modos que ouvira mexer coisa atraz
das pipas!

--Ha-de ser ratos--conjecturou o abbade, tremulo, engasgado.

--Palpa com a bayoneta por traz das pipas, ó 241--disse o sargento.

Assim que o aço da bayoneta raspou na parede a Senhorinha começou a
dar gritos, sentou-se a espernear, e perdeu os sentidos.

--Que diabo tem a velha?!--perguntou o Pilula.--Dão-lhe estupores,
hein?

--É flato, costuma-lhe a dar--elucidou o abbade.--O 24 voltára-se a
vêr a velha escabujar, e retirara a bayoneta de traz das pipas. O
abbade teve um momento de esperança, cuidando que o exame estava feito:

--Tem visto, snr. sargento? Aqui não ha nada. Os senhores vieram
enganados a minha casa.--E caminhou ara a porta com a luz.

--Espere ahi, seu padre! Anda-me com a bayoneta, 24. Escarafuncha-me
esses ratos.

O outro soldado entrou no mesmo exame; e, apenas as bayonetas resvalaram
por corpo que lhes abafava os tinidos metalicos das pontuadas, ouviu-se
um grande estrupido de coisa que trepava pelas pipas. E n'isto appareceu
uma cabeça com enormes barbas sobre um dos tampos.

--Oh!--bradou o Pilula!--muito bem apparecido n'esta funcção, snr. D.
Miguel I! Suba p'ra cima d'esse throno e dê lá de cima um bocado de
cavaco ás tropas! Mas o melhor é descer cá p'ra baixo, real senhor!

O 24, muito espantado, a olhar para a cabeça do homem:

--Parece o padre eterno, ó meu sargento!

--Com quem elle se parece é com o _Remexido_ do Algarve,--affirmava o
14.

--Desça d'ahi que ninguem lhe faz mal, homem. Está preso á ordem do
governador civil--concluiu o sargento com seriedade imponente.

--Este senhor?... não...--disse o abbade com as mãos postas.[5]

--Não seja asno!--volveu o sargento. Este homem não é D. Miguel. É
um falante que o está aqui a comer a você e mais aos patólas da sua
laia. Vá-lhe buscar a roupa, senão elle entra na escolta em mangas de
camisa.

--Dê licença que este senhor se vá vestir ao seu quarto--supplicou o
abbade.

--Sim, que se arranje com guardas á vista.--E acompanhou-os á saleta.

Quando envergava o casaco de panno piloto, o abbade disse-lhe, com um
gesto, que o dinheiro das Botelhas de Braga ia nas algibeiras do
paletó.

O sargento perguntou que papelada era aquella que estava sobre a mesa.
Leu a primeira folha e desatou a rir e a dizer ao barbaças:

--Olha que grande pandego você é! Você como se chama, ó seu coisa? E
leu alto:

_Rol das mercês que sua magestade o snr. D. Miguel I fez em Portugal e
que se descrevem n'este livro de apontamentos provisoriamente._

E na primeira pagina.

_Marcos Antonio de Faria Rebello, abbade de S. Gens de Calvos,
capellão-mór de el-rei e D. Prior de Guimarães_. E perguntava ao
abbade:--Este ratão d'este dom prior é você, hein? Parabens!

Em seguida:

_Torquato Nunes Elias, visconde de S. Gens, secretario privado
d'el-rei._

--_Torquato Nunes_! recordava o Pilula.--Eu parece-me que conheço este
diabo de o vêr em Braga no _Café_ da Açucena na Cruz de Pedra.
_Nunes_! um pelintra. Onde está o visconde que lhe queria dar um
cigarro? Emfim cá levo a papelada para Braga--e enrolava os papeis. A
gente precisa conhecer os titulares novos para os respeitar e acatar,
amigo D. Prior de Guimarães.

Quando a escolta se formou fóra do portão e o preso entrou ao centro,
com a fronte magestosa abatida e os braços cruzados, levantou-se na
residencia um choro como á sahida de um defunto muito querido. Eram a
cozinheira e a outra creada, n'um arrancar de soluços, emquanto o
abbade afogava os gemidos com o rosto apanhado nas mãos. O povo da
aldeia, com um grande terror da tropa, espreitava de longe por entre as
arvores e de traz das paredes. O Torquato Nunes Elias, acordado pela
mulher que recebera a nova da prisão, saltára da cama, e correra á
residencia, perguntando ao abbade se el-rei tinha levado as peças das
Botelhas de Braga.

--Que sim, que levára; pudéra não levar!

--Pois então, abbade, empreste-me ahi meia moeda, que eu vou
disfarçado a Braga vêr o que se passa. Estou sem vintem.

--Veja lá se o prendem, visconde--acautelou o abbade.

--O meu dever é seguir a sorte de el-rei! Onde elle morrer, morro eu!


[Nota de rodapé 4: O auctor teve relações muito saudosas com este
venerando sacerdote, que em 1851 residia n'um antigo casarão da rua de
St. Antonio, que depois se transformou em casa de banhos. Por esse
tempo, se congregavam ali os homens eminentes, por intelligencia e
haveres, do partido realista. N'este anno, padre Luiz de Sousa passava
os seus dias rodeado de pergaminhos, immobilisado em uma poltrona,
gemendo as dôres da gota. Morreu muito pobre e muito desamparado.]

[Nota de rodapé 5: São as textuaes palavras e a attitude do padre,
significativas da crença entranhada na realeza do preso e da sua
paixão n'aquelle lance. Parece que intentava mover á piedade a
escolta, increpando-a pela profanação de pôr mãos no rei legitimo.
(Informação de _Ferreira de Andrade_).]



X


O Cerveira Lobo sahira, com o Zeferino, para Braga na sexta-feira de
manhã. Estariam aqui até á madrugada de sabbado, e partiriam então
para a Povoa de Lanhoso com os tres contos de réis repartidos em libras
pelas algibeiras dos dois. Além d'um criado de velha libré, avivada de
azul, de botas de prateleira e chapéu de sola, levavam bacamartes nos
arções dos sellotes, todos tres. Foram descançar e jantar á
hospedaria dos _Dous amigos_. O Cerveira vestia casaca no trinque muito
lustrosa, e gravata de cambraia com laço; o peitilho postiço atado ao
pescoço sahia muito rijo de gomma reles d'entre as lapellas derrubadas
do collete de velludo preto. A calça de prégas, ampla, á cavallaria,
afunilava-se no artelho, quebrando no peito do pé. As botas de
polimento novas rangiam e as esporas amarellas no tacão, com grandes
rosetas, tilintavam n'um estardalhaço de caserna. Comprara chapéu de
pasta com molas que faziam saltar a copa, e enchiam como uma bexiga, que
parecia _pantominice das comedias_, dizia o Zeferino.

Ás quatro horas o fidalgo de Quadros e mais o pedreiro sentaram-se á
mesa redonda. Já constava em Braga que estava ali o Cerveira Lobo que
desde 1835 não sahira da casa solar de Vermuim. Alguns primos
visitaram-o; as familias legitimistas e principalmente senhoras velhas
mandavam-lhe bilhetes.

Dizia ao Zeferino que o encommodavam tantas etiquetas, que estava morto
por se safar, não estava para lérias: que as taes senhoras
Sotto-mayores e as Peixotas e as Menezes deviam ser mais velhas que a
Sé, uns estafermos. Elle segredava ao ouvido do Zeferino coisas,
ratices suas em Braga, quando era rapaz.--Que fizera um destrôço nas
primas, tudo pelo pó do gato. Que pagára bem o seu tributo á asneira;
e casquinava com vaidade paparrêta, carregando-lhe a mão no verde.
Quando entravam pelo assado, chegou um tenente do 8 a contar a um amigo,
que estava á mesa, que chegára n'aquelle momento preso ao governo
civil, vindo da Povoa de Lanhoso, um marôto que dizia ser D. Miguel, e
ouvira dizer a um realista que o vira em Roma, havia tres annos, que se
parecia bastante com elle.

O Cerveira erguera-se n'um grande espanto indiscreto a olhar para o
official que o fixava com uma curiosidade ironica. Convergiram todos os
olhares para o homem das barbas respeitaveis. Quedou-se momentos
n'aquelle spasmo, n'um tremulo, e perguntou:

--E é com effeito o snr. D. Miguel esse homem que chegou preso?

--Elle diz que é--respondeu o tenente--Veremos o que se averigua no
governo civil.

--Na falta do verdadeiro D. Sebastião, appareceram tres falsos--disse
emphaticamente um professor de latim, com um sorriso pedante. O Cerveira
olhou-o de esconso, e sahiu da mesa, seguido do Zeferino, muito
enfiados ambos.

--Está tudo perdido!--disse dolentemente o fidalgo--El-rei preso!... E
não se levanta este Minho a livral-o!... Vamos vêl-o, quero vêr se
lhe posso fallar. Dentro de tres dias entro em Braga com dez mil homens
e arrazo a cadeia.

Fez saltar a copa do chapéu de molas e sahiu para a rua, a bufar.

O campo de Santa Anna parecia um arraial. Aglomeravam-se ali as duas
Bragas--a fiel, a caipira, pletorica de fidalgos, de grandes
proprietarios, conegos, de chapelleiros e da clerezia miuda;--a liberal,
muito anemica, encostada ao 8 de infanteria, toda de bachareis e
empregados publicos, o Manso, o Mello Cavacão, o Motta, o Rocha Veiga,
o Alves Vicente, negociantes de tendas mesquinhas, professores muito
rhetoricos, o Capella, que ensinava francez, o Pereira Caldas soneteiro
e polygrapho, o velho Abreu bibliothecario, lacrimoso, o Pinheiro, muito
grande, philosopho sensualista, mas bom visinho, todos á volta do
Mont'Alverne, um conego muito assanhado que foi, mezes depois,
commandante da brigada dos Seresinos.

Cerveira Lobo impunha e dominava com as suas barbas, o trajar aceado com
muito lustro, e o bater metallico, patarata das esporas. Abriram-lhe
passagem, rodeavam-no cavalheiros da primeira plana, os Vasconcellos do
Tanque, os Magalhães, o Freire Barata, o Cunha das Travessas, a gemma
d'aquelle enorme ovo realista, chocado no seio da religião da Carlota
Joaquina, do conde de Basto e do Telles Jordão. O Cerveira perguntava
aos seus:--É?--uns encolhiam os hombros, outros negavam gesticulando. E
elle, com intimativa:--Pois saibam que é!--O Manoel de Magalhães dizia
ao ouvido do Henrique Freire:

--Deixa-o fallar, que está idiota.

O Bernardo de Barros, um fidalgo de Basto que fôra capitão de
cavallaria, com um bisarro sorriso de côrte e ademanes d'uma selecção
rara:--Meu tenente-coronel, el-rei, quando vier, não ha-de estar ao
alcance da canalha. Descance vossencia.

Os janotas acercavam-se, disfructadores, do Cerveira. Eram o Russel, o
Antonio Gaspar, os de Infias, o Bento Miguel de Maximinos, o Paiva
Brandão, o D. Manoel da Prelada, o D. João da Tapada, o Antonio Luiz
de Vilhena, um loiro, muito enamorado, com uma rosa-chá na lapella da
casaca azul com botões amarellos.

D'ahi a pouco fez-se um torvelinho de povo á porta do governo civil. A
soldadesca afastava a multidão com phrases persuasivas de cronha
d'arma. Formou-se a escolta, e o preso sahiu, de rosto levantado e
affoito, para a multidão. Cerveira Lobo fitava-o com uma anciedade
afflictiva.--Que se parecia ... e ia jurar que era elle!--quando um
realista convencionado e que estava no grupo, o major de Villa Verde,
disse com um desdem de achincalhação:

--Olha quem elle é! Oh que traste! que grande mariola! Forte malandro!

--Quem é? quem é?--perguntavam todos.

--É o Verissimo, foi furriel da minha companhia, andou com o Remexido,
e safou-se de Messines com o pret dos guerrilhas.

O Cerveira inclinou-se ao pedreiro e disse-lhe á orelha:

--Ouviste, ó Zeferino?

--Estou banzado!--murmurou o outro.

--Olha que espiga! 3 contos! hein?

--Raios parta o diabo!--disse o pedreiro, n'uma synthese condensada da
sua incommensuravel angustia.

Minutos depois, o padre Rocha encarava de frente o Cerveira, chamava-o
de parte e dizia-lhe:

--Está desenganado, meu amigo? Eu, para corresponder á confiança de
V. Ex.ª, impuz-me o dever de o salvar d'um roubo de tres contos, e da
vergonha de ser logrado por um impostor. O maior serviço que podemos
fazer ao snr. D. Miguel é entregar á justiça um infame que se serve
do seu sagrado nome para roubar os amigos do augusto principe. Snr.
Cerveira, vá para sua casa; e, quando eu lhe disser que é tempo,
então desembainhará a sua espada.

O Cerveira, abraçando-o:

--Honrado amigo, honrado amigo! Ainda os ha...


O Verissimo entrou na cadeia de Braga, e na madrugada do dia seguinte
foi transferido para a Relação do Porto.

O nome e appellidos que elle deu no governo civil eram verdadeiros:
Verissimo Borges Camêlo da Mesquita.[6]

Tinha nascido em 1806 em Alvações do Corgo, no Douro. O pai
chamavam-lhe o Norberto _das facadas_, quando já era velho, e meirinho
geral da comarca, em Villa Real. Uns diziam que a alcunha _facadas_ lhe
vinha de ter esfaqueado a mulher por ciumes; outros, de ter levado tres
facadas, na Campean, quando puzera cêrco a uns salteadores que
pernoitavam na estalagem d'aquella aldeia, nas vertentes do Marão. O
certo é que a quadrilha tinha sovado os aguasis, e o commandante da
diligencia, o meirinho geral, recolhera á villa em uma padiola.

Norberto Borges Camêlo tinha pedra de armas na casa de Alvações, uma
edificação do seculo XVII. Dava-se como descendente do bispo do
Algarve D. João Camêlo. Contava a origem do brazão da sua casa,
concedido ao seu sexto avô Lopo Rodrigues. Habituado a contar aos
Juizes de fóra e carregadores da comarca o facto provado por
incontestaveis pergaminhos, era convidado muito a miudo
disfructadoramente á exposição heraldica do seu escudo, que elle
fazia n'uma toada monotona de quem reza.[7]

O Verissimo era _Mesquita_ pela mãe, que não conhecera. Tambem florira
da cêpa illustre dos _Mesquitas de Villar de Maçada_; mas o Norberto,
achando-a em flagrante adulterio com um primo Pizarro, anavalhou-a
mortalmente, escondeu-se, fugiu com o Junot no regimento do conde da
Ega, e quando voltou, estava esquecido o caso.

Em 1827, o Verissimo estudava em Coimbra humanidades para seguir a
jurisprudencia. Era bom estudante, applicado e sério. Em 28 teve uma
vertigem politica. Fez-se caceteiro do partido dominante, quiz atacar na
Ponte a punhal os estudantes presos no Cartaxo como salteadores
assassinos. Perdeu o habito de estudar e a compostura de que fôra
exemplo. Em 29, abandonou a Universidade e assentou praça em
infanteria. Quando o Porto se fechou, era sargento aspirante e bravo. Em
uma das primeiras sortidas dos liberaes, foi ferido em uma perna; e,
apezar de côxo levemente, não quiz a baixa nem a reforma. Era um
bonito homem, rosto oval, olhos de rara belleza, nariz ligeiramente
aquilino. Diziam-lhe que era o vivo retrato de D. Miguel, aperfeiçoado
pelo desaire de coxear.

Depois da convenção, Verissimo Borges recolheu a Alvações de Corgo,
onde encontrou o pai n'um grande abatimento de tristeza e de recursos. A
sua lavoira de vinho era pequena. Privado do officio e malquisto como
ladrão, o representante de Lopo Rodrigues soccorria-se á beneficencia
de uma irmã, a D. Agueda, viuva d'um major de milicias que morrera no
ataque ao forte das Antas. O convencionado, n'aquella estreiteza de
meios, quiz voltar á fileira: mas o pai negou-lhe a licença,
arguindo-lhe a baixeza de sentimentos, em querer servir o usurpador, e
citava-lhe as côrtes de Lamego. O Verissimo, argumentando contra estas
côrtes, allegava que antes queria encontrar na casa de seu pai, em vez
das velhas instituições de Lamego, os modernos presuntos da mesma
cidade.

O Norberto gabava-se de que na sua geração, Camêlo liberal não havia
um só, e que a sua maldição pesaria como chumbo derretido sobre a
cabeça do filho que perjurasse a bandeira do throno e do altar.

A tia Agueda, a viuva do major, tinha pouco. Desde 1828 até 1833
gastara seis mil cruzados em festejar os natalicios e as victorias do
snr. D. Miguel com banquetes e illuminações que duravam tres noites,
n'um delirio de bombas reaes e foguetes de lagrimas, com adéga franca.
Mandava cantar _Te-Deum_ na egreja de Alvações assim que no paiz
vinhateiro soava a noticia de alguma victoria do exercito fiel. Ora, os
realistas, a contar por cada _Te-Deum_ de Alvações, entravam no Porto
ás quinzenas para sahirem por uma barreira e voltarem logo pela outra.
D. Agueda começava a desconfiar que o Deus de Affonso Henriques
voltára a casaca.

Restava-lhe pouco; mas não queria que o Verissimo se fizesse malhado.
Sacrificou-se á honra da familia, levou-o para casa, deu-lhe mesa
farta, e consentiu que o vadio se mantivesse regaladamente, de papo
acima, tocando flauta, a tresfegar em si o resto da garrafeira.
Aconselharam-na que ordenasse o sobrinho, visto que elle já tinha
exames de latim e logica. O Verissimo disse que sim, que queria ser
padre. Tinha-se esclarecido nos encargos do officio, observando a vida
socegada e farta dos parochos. Um seu parente, o abbade de Lobrigos,
tinha liteira, parelha de machos, matilha de cães e hospedes na sua
residencia episcopal. Outros, com menos rendas, eram ainda invejaveis;
um viver espapaçado em dôce mollêza, inoffensiva, com grande
estupidez irresponsavel, um regalado epicurismo. Verissimo achou que, se
não pudesse ser bom padre, havia de pertencer á maioria; e, se désse
escandalo, um de mais ou de menos não perturbaria a ordem das coisas.
Os seus amigos e parentes abundavam no dilemma.

D. Agueda fazia concessões á fragilidade do clero;--que seu sexto avô
tambem fôra bispo e pai de sua quinta avó, por Camêlos. O parente
abbade de Lobrigos, em confirmação das preclaras linhagens de coitos
sacrilegos, affirmava que a serenissima casa de Bragança descendia de
padres pelo pai de D. Nuno Alvares Pereira, que era prior do Crato, e
pelo avô, o padre Gonçalo, que fôra arcebispo de Braga; e que os
condes de Vimioso e Atalaya, e todos os Noronhas oriundos de certo
arcebispo muito devasso de Lisboa, e muitas outras familias da côrte
descendiam de prelados. Estas genealogias orientavam o Verissimo no
futuro do sacerdocio. Queria ser abbade, resalvando tacitamente certas
condições a respeito dos rebanhos e particularmente das ovelhas.

Em outubro de 1835 foi para Braga. Tinha trinta annos: sentia o cerebro
moroso na digestão da theologia, andava enfastiado e triste. Acaso
encontrou um camarada, sargento do mesmo regimento, o Torquato Nunes
Elias, que andava a estudar para procurador de causas. Eram
inseparaveis, identificaram-se n'uma intimidade de tasca e de alcouce. O
Verissimo nunca mais abriu compendio nem o outro um processo. D. Agueda
mandava regularmente a mezada, e perguntava-lhe quando cantaria a missa.

Em 1836 appareceu no Algarve a poderosa guerrilha de José Joaquim de
Sousa Reis, o _Remexido_, em S. Bartholomeu de Messines. Os dous
ex-sargentos alvoroçaram-se com a noticia e resolveram apresentar-se ao
formidavel caudilho. Verissimo pediu á tia uma quantia mais avultada
para pagar as ultimas despezas do sacerdocio. A velha mandou-lhe o
preço de uma vinha vendida e a sua benção. Os aventureiros partiram
para o Algarve. O general recebeu-os nos braços, e deu-lhes divisas de
capitães. Verissimo Borges escreveu ao pai, a dar-lhe parte do seu
heroico destino: que advogasse a sua nobre causa na presença da tia
Agueda, e lhe dissesse que elle não podia largar a espada vencida
emquanto visse no campo brilhar o ferro de um realista. Que o general
Sousa Reis estava destinado a repôr o snr. D. Miguel I no throno, ou
ser o ultimo a morrer em sua defeza; que elle e um seu amigo e camarada
tinham sahido de Braga juramentados a morder o pó onde cahisse o seu
general. Que eram já commandantes de companhias, e tinham duas
carreiras abertas--uma que levava á gloria, outra á sepultura,--que
tambem era uma gloria morrer pela patria.

José Joaquim, o _Remexido_, era um bem figurado homem de trinta e oito
annos. Nascera em Estombar, estudára para clerigo no seminario de Faro,
e distinguira-se em perspicacia e subtileza na percepção das
theologias. O amor inutilisou-lhe o talento applicado a um pacifico e
humanissimo destino. Viu uma esbelta môça de S. Bartholomeu de
Messines quando ahi foi prégar um sermão, sendo minorista. As serenas
visões do levita deslumbrou-lh'as a formosa algarvia. Não hesitou
entre o amor da humanidade e o culto egoista da familia. Casou, e de
homem estudioso e contemplativo, volveu-se lavrador, lidou rudemente nas
searas, e redobrou de esforços á proporção que os filhos lhe
multiplicavam o amor e os cuidados.

Insensivelmente compenetrou-se da paixão politica. N'esta provincia,
onde em 1808 estalou o primeiro grito contra o dominio francez, a
liberdade proclamada em 1820 abriu um abysmo entre duas facções que
por espaço de dezoito annos se despedaçaram. José Joaquim de Sousa
Reis alistou-se entre a clerezia de quem recebera as boas e as más
idéas, e manifestou-se em 1823 um ardente sectario das más,
perseguindo os affeiçoados á revolução do Porto. Em 1826 emigrou
para Hespanha, e voltando em 1828 extremou-se entre os aclamadores do
rei absoluto. D'ahi em diante, receoso das retaliações, não teve mais
uma hora de remançoso contentamento nem abriu mão da espada tão
affoita quanto cruel.

Logo que o duque da Terceira aportou com a divisão expedicionaria ás
praias da Lagoa, em 24 de junho de 1833, Sousa Reis com alguns
cumplices, foragiu-se nos reconcavos do Penedo Grande, cujas veredas
montanhosas conhecia. Deixou mulher e filhos, na primeira flôr dos
annos, inculpados das paixões de seu pai, fiados na generosidade dos
vencedores e na propria innocencia. A vingança fez reprezalias na
familia do fugitivo. A mulher e os filhos foram espancados pela tropa,
depois do roubo e do incendio da sua casa de Messines. O leão, como se
ouvisse bramir os cachorrinhos nas garras do tigre, irrompeu da caverna,
precipitou-se dos penhascaes á frente da sua alcatéa, e atacou
Estombar com irresistivel impeto. Estava ahi a sua familia sob a
pressão das bayonetas que a vigiavam como armadilha á queda do
guerrilheiro; mas a tropa não pôde resistir á furia de pai. Elle
atirava-se ás descargas, abrindo com a espada a vereda do seu ninho. Os
inimigos que o viram n'esse dia conservaram longo tempo a lembrança da
sua catadura transfigurada pela desesperação. E todavia era um homem
gentilissimo. Depois, senhoreou-se de povoações importantes do Algarve
e estendeu até ás fronteiras do Alemtejo os seus dominios. Moveram-se
contra elle muitos regimentos de primeira linha e de batalhões da
guarda nacional. Elle tinha adoecido de fadigas incomportaveis, e
descançava com algumas centenas de homens n'um desfiladeiro da serra,
chamado a _Portella da corte das velhas_. Ahi o atacou uma columna de
caçadores 5. O _Remexido_, a final, faltou-lhe a coragem de se fazer
matar. Viu talvez a mulher e os filhos, entre a sua agonia e as
bayonetas. Deu-se á prisão, e cinco dias depois era arcabuzado em
Faro.

O regimento em que eram capitães o Verissimo e o Nunes dispersou, e
elles, claro é, fugiram á maneira dos muito discretos e bravos
generaes de que rezam os fastos militares.

O pret das guerrilhas devia ser quantia diminuta, uma bagatella
ridicula, que não merecia a pomposa qualificação de ladroeira. Como
não tiveram tempo de fazer o pagamento, retiraram-se com o cofre nas
algibeiras. É o que foi, e a historia não póde dizer outra coisa.
Queria talvez o major de Villa Verde, o denunciante de Braga, que elles
andassem á cata das praças dispersas pelas montanhas, a repartir os
quatro vintens diarios e o vintem do municio!

Verissimo foi para Alvações e Nunes para S. Gens. O Norberto morreu
por esse tempo d'uma congestão cerebral; alguem diz que o esganaram na
cama dois malhados de Lobrigos contra os quaes elle tinha jurado em 28.
D. Agueda recebeu o sobrinho carinhosamente. A herança do pai estava
empenhada; foi á praça; sobejaram uns nove centos mil réis e a casa
com as armas, pagadas as dividas. O Nunes dizia-lhe da Povoa que andava
por lá miseravel, um piranga, na gandaia; que o pai dava-lhe um caldo
de feijões e o tratava como um cão vadio. Que, depois da partida do
Algarve, não tinha com quem praticar em Braga para solicitador, nem
tinha que vestir. O Verissimo chamou-o para Alvações com generosidade.
Vestiu-o, e dava-lhe meios para elle poder estudar em Villa Real, com
advogados miguelistas, que o estimavam muito.

A velha passava os dias a chorar entre o retrato do defunto major e o do
snr. D. Miguel das illuminações, que se parecia muito com o sobrinho.

No inverno de 1840, D. Agueda morreu de uma indigestão de castanhas,
complicada com interite chronica e saudades da realeza. Deixou ao
sobrinho a casa, as vinhas muito delapidadas; e o retrato do snr, D.
Miguel ás freiras de Santa Clara de Villa Real e mais dez moedas de
ouro com a condição de lhe accenderem quatro velas de cêra no dia dos
annos de sua magestade.

Verissimo viveu então largamente. Fez-se chefe de partido nas
redondezas de Alvações do Corgo, onde era conhecido pelo
_capitão-Verissimo_. Deitou cavallo e mochila; jogou rijo dous annos na
Feira de Santo Antonio em Villa Real, e perdeu tudo. O Nunes, que já
sollicitava causas na Povoa, repartia com elle dos seus proventos muito
escassos, porque o juiz e os escrivães faziam-lhe guerra implacavel, e
as partes fugiam d'elle.

O Verissimo sahiu de Alvações, onde não possuia palmo de terra; e,
como tinha boa forma de lettra, offereceu-se para amanuense a um
tabellião de Alijó. Ganhava tres tostões por dia e jantar. Como era
boa figura, a mulher do tabellião, uma trigueira de má casta, entrou a
comparal-o com o marido que tinha os dentes muito lurados e os olhos
tortos. Mas o tabellião viu as cousas pelo direito, e pôz o amanuense
na rua, e a mulher em lençoes de vinho, dizia-se. Verissimo conhecia o
capitão-mór de Murça, o Campos, um hebreu realista, muito abastado.
Offereceu-se-lhe para escudeiro e foi acceite com bom ordenado. O
capitão-mór era viuvo; mas tinha uma governanta fresca, d'uma fome de
peccado irritada pela indifferença judaica do amo em materia de
religião. O Verissimo tinha a fatalidade femieira do seu _Sosia_, do
snr. D. Miguel. O capitão-mór com o seu fino ôlho de raça, lobrigou
as sentimentalidades da rapariga. Pagou generosamente ao escudeiro, e
impôl-o. Voltou ao Douro, e procurou o amparo d'um realista poderoso, o
Antonio de Mello, de Gouvinhas, o pai do snr. Lopo Vaz, um grande
ministro liberal cheio de embriões de coisas. O fidalgo de Gouvinhas
nomeou-o feitor das suas quintas. Estava regalado; feitorisava pouco; o
fidalgo admittia-o ás suas palestras intimas de politica; mas um
sobrinho do Mello, um valente navalhista que chamavam em Coimbra o
_Malagueta_, ganhou-lhe odio, por ciumes de uma tecedeira chibante, uma
raparigaça de tremer, de quadris roliços, a Libania de Covas.
Travaram-se de razões. O _Malagueta_ correu sobre elle com um punhal.
Verissimo acovardou-se na sua posição dependente e despediu-se.

A Libania tinha cordões e umas moedas ganhadas com o pudor diluido no
suor do seu bonito rosto, a corso das algibeiras copiosas dos
vinhateiros. Seguiu-o para o Porto em 1844. O neto do bispo D. João
Camêlo, abriu uma escóla de primeiras lettras em Miragaya. Ao cabo do
primeiro mez, dava pontapés impacientes nos garotos, andava ralado,
não podia com aquella bestialidade da instrucção primaria. A Libania
queixou-se um dia de dôr de dentes. Foi uma inspiração. O Verissimo
resolveu fazer-se dentista, e foi estudar com o Pinac, á rua de Santo
Antonio, um bom homem. Andava n'este tirocinio, quando encontrou no
Tivoli, defronte da Bibliotheca, o Nunes. A Libania gostava muito de
resvalar pela _montanha russa_, dava umas risadas argentinas, batia as
palmas e queria montar os cavallos de páo que giravam no jogo da
argolinha.

Quando se encontraram, o Torquato vinha pedir-lhe dinheiro. O pai tinha
morrido deixando a casa ao outro irmão. Estava casado, e tinha dous
filhos. Queria ir tentar a fortuna ao Brazil, trabalhar em mangas de
camisa, se fosse necessario. O Verissimo respondeu-lhe que o unico favor
que lhe podia fazer era tirar-lhe um dente de graça. Confidenciou-lhe
as suas miserias mais intimas; que aquella boa rapariga tinha gastado
com elle quinze moedas e vendêra o seu oiro; mas, tão generosa, tão
honrada que nunca lhe vira no rosto uma sombra de tristeza. Que estava
resolvido a ir estabelecer-se como dentista na provincia, logo que
pudésse comprar o estojo que custava 12$000 réis, e não os tinha.

--Se os não tens--disse o Torquato--minha mulher tem um cordão que
pesa tres moedas; para mim não lh'o pedia; mas para ti vou buscal-o
ámanhã.--E accrescentou, de excellente humor;--Deus permitta que na
terra onde te estabeleceres sejam tantas as dôres de dentes que não
tenhas mãos nem queixos a medir.

Sahiram alegres do Tivoli. Sentiam-se bem aquellas duas organisações
esquisitas. Havia ali duas almas que se amavam devéras, dous naufragos
a quererem chegar um ao outro a mesma taboa de salvação. É n'estes
esgotos sociaes que ainda, uma vez por outra, se encontram Pilades e
Orestes.

O Verissimo morava atraz da Sé, na rua da Lada, uma casa d'um andar,
muito empenada, com o peitoril de ferro de uma unica janella
desencravado de uma banda, e uma porta viscosa e negra como a bôca de
um antro. Cearam todos. Havia cabeça de pescada cosida com cebolas,
sardinhas fritas e pimentões. O Nunes foi buscar duas garrafas da
companhia de tostão á rua Chã, e enfiou no braço uma rôsca de
Vallongo que comprou na bodega da Caçoila, uma esmamaçada com cordões
de ouro que frigia peixe á porta e dava arrôtos.

Cearam n'uma esturdia de rapazes, como em Braga, nove annos antes, na
tasca do Catrambias, na rua do Alcaide. A Libania de Covas muito
laraxenta--que levasse o diabo paixões, e mais quem com ellas medrava;
que, em se acabando o dinheiro, fazia-se cruzes na bôca; mas que deixar
o seu Verissimo, não o deixava nem á quinta facada.

--Nós deviamos ir todos para o Brazil--lembrou o Torquato, que tinha
meditado n'um recolhimento extraordinario.

--E chelpa?--perguntou a Libania.

--Se tu quizeres, Verissimo, dentro de um mez temos um conto de réis.

--Boa!...--disse o outro.--Bem se vê que as duas garrafas deram o que
podiam dar--uma fantazia de um conto de réis. Por dous tostões é
barato.

--Estás disposto a ouvir-me sem interrupção de chalaça? Eu não
estou bebedo, palavra de honra!

Libania pôz a face entre as mãos e os cotovellos na toalha suja de
vinho e migalhas, com os olhos muito fitos e rutilantes na cara do
Nunes. O Verissimo atirou com as pernas para cima da banca, accendeu um
charuto de 10 réis e disse que fallasse á vontade.

--Tu sabes que te pareces muito com D. Miguel?

--Começas bem. Temos asneira.

--Máo! não me falles á mão.

--Já sei onde queres chegar. Vais dizer-me que me faça acclamar rei,
e, para evitar effusão de sangue, venda a minha sobrinha D. Maria 2.ª
os meus direitos á corôa por um conto de réis. Dou-os mais em conta.

--Adeus minha vida!--retrucou o Nunes impaciente. Ámanhã
conversaremos.

--Deixa fallar o homem!--interveio a Libania.--Ora diga lá, ó sê
Nunes.

O Torquato expôz a sua theoria do conto de réis, desfez atritos,
removeu difficuldades, convenceu afinal. Tinham de partir para o Alto
Minho, os dois. Libania iria para Ramalde trabalhar nos teares da
Grainha que lhe dava comida, cama e doze vintens por dia. Venderiam a
um adeleiro da rua Chã os trastes para o Verissimo se enroupar de panno
piloto, quinzena e calças com alguma decencia, roupa branca, reforma
das botas cambadas, chapéu de fêltro e um paletó de agazalho.

Na quinta-feira gorda, a Libania, com exemplar coragem, foi para
Ramalde. A Grainha negociava em teias, ia vendêl-as ao Douro, tinha
visto em Gouvinhas o limpo trabalho da rapariga, e quando a encontrou no
Porto:--Olhe, môça, quando quizer ganhar a vida honradamente lá
estamos em Ramalde. Uma de doze, comer como eu e lençoes lavados na
cama.

O Nunes e o Verissimo foram juntos até perto de Braga. Ahi, o de Calvos
seguiu para casa, e o outro no sabbado gordo partiu para a Povoa de
Lanhoso.


[Nota de rodapé 6: Segundo as informações textuaes do já referido
José Joaquim Ferreira de Mello e Andrade o dialogo da auctoridade e do
preso correu assim: "Sendo apresentado ao governador civil e respondendo
a varias perguntas disse:

"Que era das immediações de Villa Real, em Traz-os-Montes, e um dos
amnistiados em Evora Monte, na qualidade de sargento do exercito
realista;

"Que n'uma sortida que fizeram os do Porto fôra ferido n'um quarto por
uma bala, ficando um pouco côxo: mas que não deixára ainda assim o
serviço;

"Que achando-se no ultimo carnaval no logar de S. Gens, ali tomára
parte nos folguedos do povo com o abbade da freguezia, o qual o
convidára no fim para sua casa;

"Que o tratára muito bem, e que, passados alguns dias, lhe disséra,
depois de ceia, de uma maneira muito recolhida e sonsa: que desconfiava
ter em sua casa sua magestade el-rei o snr. D. Miguel I (por que elle
era em tudo um fac-simile);

"Que nem lhe negára, nem confessára, mas que, passados dias, á mesma
hora, lhe repetira aquella suspeita; porém que ainda d'essa vez lhe
respondêra com uma evasiva.

                   _Auctoridade_

"Que utilidade tirava em manter o abbade n'essa illusão?

                   _Preso_ (cynico)

"Que a tirava toda, porque só assim podia continuar no goso da
commodidade que se lhe offerecia;

"Que d'ahi por diante lhe ficara dando o tratamento de Magestade, como
coisa decidida, e lhe revelára o desejo de que o elevasse á dignidade
de seu capellão-mór, ao que annuira;

"Que, passados alguns dias, lhe propozera a admissão á sua presença
nocturna e clandestina d'alguns ecclesiasticos e tambem seculares,
consummados realistas, no que concordara;

"Que d'esse dia por diante principiaram a concorrer ali, por alta noute,
um até dois por vez, pedindo-lhe todos, depois de lhe beijarem a mão,
commendas, beneficios, logares civis, postos militares e até
prelazias--o que elle tudo lhes concedeu de bom grado.

                   _Auctoridade_

E depois?

                    _Preso_

"Depois? que lá se aviessem, porque o seu fim era conservar aquella
commoda situação, _maxime_ quando as suas finanças estavam no maior
apuro."]

[Nota de rodapé 7: _Nota erudita_. A historia, aliás exacta, que o
fidalgo de Alvações contava, acha-se nos Nobiliarios, e está gravada
no escudo d'esta familia. Lopo Rodrigues Camêlo foi moço da estribeira
d'el-rei D. Sebastião, e muito querido de seu real amo. Viajára muito
e era primoroso em pontos de cortezia. Uma vez acompanhára o rei a
Coimbra; e, na passagem de S. Marcos para Tentugal, encontraram a ponte
do Mondego cahida. O rei quiz passar a váo, e o estribeiro observou-lhe
que o passo alli era perigoso. D. Sebastião redarguiu: "Então passai
vós primeiro."--Se vossa alteza me engana,--volveu o cortezão--ditoso
engano é esse.--E, mettendo-se á vala espapada de limos e lodo,
submergiu-se a ponto de ficar só com a cabeça e um braço de fóra.
El-rei acudiu-lhe, tomando-o pela mão, e tirando-o com valente pulso
para a margem. Lopo Rodrigues, afim de que os seus descendentes lêssem
este caso no marmore do seu brazão de armas, pediu a el-rei que lhe
mandasse reformar o escudo em lembrança de tal successo.

E assim lhe foi debuxado o escudo: _Em campo verde uma ribeira de prata
ondeada. D'esta ribeira emerge um braço vestido de azul, do qual pega
outro vestido de brocado com lettras de negro que dizem R E Y. Este
braço real sahe da banda direita do escudo, na esquerda está uma
estrella de oiro de oito raios, e no canto direito de baixo uma flôr de
liz de ouro. Timbre o braço vestido de azul com a estrella nos dedos_.
A carta foi registada no "Livro dos Privilegios", no anno de 1574.

Marcial fez rir os romanos á custa de um genealogico esquadrinhador de
tal casta, que, não tendo já humanas gerações que espanejar do lixo
dos seculos, entrou a deslindar os remotos avoengos de um cavallo
chamado Herpino. Passarei tambem ás caudelarias quando o brazão subir
da tenda ao sport, e derivar dos especieiros esparramados ás bestas
elegantes.]



XI


O Torquato, antes de entrar em casa, foi á residencia. Ia mysterioso,
circumvagava uns olhares cautelosos:--se ninguem o ouviria?--perguntava
ao abbade Marcos.

E o abbade, entrepondo as cangalhas nas paginas do breviario,--pôde
fallar, que estou sósinho. Que é?

--D. Miguel I está em Portugal--disse, curvando-se-lhe ao ouvido, com
uma voz guttural.

--Você que me diz?! Como sabe isso? Pataratas!

--Chego agora do Porto; estive com o escrivão fidalgo, o Ferreira
Rangel e com o abbade Gonçalo Christovão. El-rei está n'esta
provincia. Desconfia-se que é em Braga, e o José Alvo Balsemão
disse-me que talvez eu o visse brevemente no nosso concelho, porque o
levantamento ha-de começar por aqui.

--Que me diz você, amigo Torquato?--sacudia os braços, fazia estalar
os dedos como castanholas, tinha gestos mudos de exultação
extatica--que ia escrever ao abbade de Priscos, que indagasse, que
apparecesse...--É preciso trabalhar, preparar os animos...

--_Chiton_!--acudiu o Nunes com o dedo a prumo sobre o nariz. Nada de
espalhafato! Não ferva em pouca agua, abbade. Se dér á lingua,
esbarronda-se o negocio. O rei só ha-de apparecer aos seus amigos
quando os generaes entrarem pela Gallisa. Não falla a ninguem; não se
dá a conhecer. Diz que só fallára em Lisboa com o conde de Pombeiro e
com o Bobadella, e no Porto com o José Antonio, o morgado do Bom
Jardim, e mais com o padre Luiz do Torrão... O abbade conhece.

--Pois não conheço? como as minhas mãos; é o vice-rei nas provincias
do norte ... o nosso bom padre Luiz de Souza que pelos modos está
nomeado patriarcha de Lisboa... Que pechincha, hein?

--É esse mesmo... Bem! até logo; vou vêr a mulher e os filhos a casa,
que ainda lá não fui. Um abraço, amigo abbade! Parabens! A choldra
vai cahir! Vida nova! D'aqui a um mez está todo esse Minho em armas, e
el-rei á frente dos seus vassallos. Outro abraço, e viva el-rei!

Lagrimas jubilosas, como contas de vidro sujas, tremeluziam nas
palpebras inflammadas do abbade.

--Jante comigo, Nunes, jante comigo! Vai-se abrir uma de 1815, á saude
d'el-rei!

--Parece que me estoira a pelle! Não estou em mim!--Que ia vêr a
mulher e que voltava já.

Na noite de sabbado para domingo de carnaval, o Verissimo pernoitou na
Povoa de Lanhoso, na estalagem do Rêlhas.

Disse ao estalajadeiro que era de longe e andava a viajar pela
provincia. Perguntou se por ali não se festejava o entrudo. O
bodegueiro informou que na Povoa havia guerra de laranjadas e ás vezes
pancadaria de senhor Deus misericordia; mas que na freguezia de Calvos
havia comedias nos tres dias de entrudo, por signal que o seu filho, um
barbado que ali estava, com uma cara angulosa muito alvar, fazia de
namorado no _Medico fingido_, um entremez coisa rica, que era de um
homem malhar de costas n'aquelle chão a rir--que se elle quizesse vêr
as comedias, podia ir com o seu rapaz, que lhe arranjava lá uma cadeira
de casa do abbade.


O scenario para a representação do _Medico fingido_ arranjou-se na
eira do Gonçalves, muito espaçosa e ageitada, porque as figuras
entravam e sabiam, conforme a rubrica, do palheiro que tinha tres
portas. O palco, barrado de ferro, ainda humido, estava ao abrigo de
cobertas de chita alinhavadas umas nas outras, retezadas nas pontas por
postes de pinho que rematavam em forquilhas para receberem uns varaes
lançados transversalmente. Havia dous mastros de castanheiro
descascados, afestoados de buxos, alecrim e camelias, coroados por
bandeiras vermelhas esburacadas. Parte dos mastros tinha uma listra em
zig-zag pintada a zargão que se ia espiralando pelo pau acima, com
cercadura de cruzinhas:--era obra de Chêta, um trôlha inspirado que
já tinha pintado um painel das _Alminhas_, onde havia almas do sexo
fraco com grandes têtas lambidas por lavaredas, e um rei coroado com a
bôca aberta no acto de berrar queimado, e tamanha bôca que só cedia
á de um bispo mitrado, muito impertigado, com o seu baculo. O trôlha
ensaiára o entremez, e não entrava, porque lhe tinha morrido o pai,
havia quinze dias, contava elle a um senhor de fóra, desconhecido, que
tinha vindo com o _galan_, o filho do estalajadeiro da Povoa.

O Verissimo foi admittido aos camarins onde estavam sentados em caixas
de milho e na salgadeira, os figurantes á espera da sua vez, já
vestidos. Viam-se os personagens do entremez. Mathilde, amante de
_Almenio_, uma ingenua, a protogonista da peça, _a doente namorada_,
que levou o pai a trazer-lhe a casa o amante, o _medico fingido_. Este
papel fôra confiado a um latagão official de carpinteiro, com os
pulsos cabelludos e os nós dos dedos com umas protuberancias callosas
que pareciam castanhas piladas antigas. Nas maçãs do rosto mascarrára
duas zonas de carmim, que pareciam a distancia umas chagas de mendigo de
romaria aperfeiçoadas. Trajava um vestido de setim branco da fidalga
velha de Rio Caldo, feito em 1824 para um baile que houve em Braga aos
annos de D. João VI. O peito chato do carpinteiro ficava á altura dos
quadris da fidalga, e as claviculas espipavam as hombreiras do corpête,
prendendo os movimentos ao desgraçado _Mathilde_. Posto que a scena
fosse a _Casa de Astolfo_, pai da doente fingida, a velhaca estava de
chapéu de palhinha com enorme telha enconchada e plumas brancas muito
amarellecidas do môfo. O vestido era-lhe curto, mas lucravam com isso
as pernas que se deixavam vêr até cima do jarrete, cingidas de fitas
cruzadas que subiam d'uns sapatos de duraque sem tacões, feitos de
proposito e em concordancia com os angulos reintrantes e salientes dos
pés. Era o grotesco do horror. A creada de _Mathilde_, a _Laberca_,
tambem vestia de setim azul-ferrete, um pouco menos antigo, emprestimo
das senhoras de S. Crau, que o assoalhavam de vez em quando para os
entremezes. Não tinha chapéu nem sapatos de duraque: obedecia mais á
caracterisação natural. Na cabeça usava touca de folhos com laços de
fita escarlate e nos pés os butes do amo com ponteira de verniz; elle
era o creado do juiz de direito substituto; gosava creditos de
representar papeis de lacaia fazendo rebentar a gente.

O Verissimo fez os seus cumprimentos ás duas damas, e manteve uma
seriedade verdadeiramente real. O _Almenio_ era o filho do estalajadeiro
da Povoa de Lanhoso, o Rêlhas. Calças brancas, quinzena de velludilho,
bengala de castão de prata, chapéu branco de castor e oculos. Disse ao
Verissimo que punha os oculos para fingir de medico. Estava a um canto o
gallego, o _Gonçalo_, aguadeiro da casa. Como não havia em Calvos o
costume rigoroso dos aguadeiros, o trôlha ensaiador vestiu-o de
almocreve, com as botas refegadas, faixa branca e em mangas de camisa,
com uma monteira comprada em Tuy. A cara era ao proprio, d'uma verdade
typica. O _Pantufo_, um saloio rico que queria casar com _Mathilde_, e
foi bigodeado pelo fingido medico, vestia a melhor andaina de fato do
presidente da camara, um apaixonado pelos entremezes, que a gravidade
das suas funcções impedia de representar; mas emprestava a roupa e a
intelligencia dramatologica. Havia mais duas figuras, o _Falsete_, e o
_Astolfo_, que se estavam vestindo lá dentro, por detraz d'um ripado,
que os deixava vêr em camisa enfiando as pernas sujas nas pantalonas,
emquanto o trôlha lhes rebocava de vermelhão as caras.

O Nunes atravessára a eira, e endireitára para o palheiro, quando lhe
disse o Gonçalves que estava lá dentro um fidalgo de longe.
Encostou-se ao batente da porta, trocou um lance de olhos com o
Verissimo, e sahiu apressadamente, arranjando pelo caminho uma
physionomia cheia de alvoroço, de surpreza.

Entrou pela residencia, muito esbofado:

--Ó abbade, já esteve na eira do Gonçalves?

--Não; estou a acabar de jantar, e lá vou vêr essa borracheira da
comedia. Você vem aganado!

--Vinha perguntar-lhe se conhece um sujeito de fóra que lá está na
eira.

--Aqui veio um rapazola da Povoa pedir-me uma cadeira ha coisa de meia
hora para um fidalgo que tinha vindo com elle. Perguntei-lhe quem era o
fidalgo. Diga que não sabe. Esta canalha em vendo um bigorrilhas de
casaco chama-lhe fidalgo.

--Venha já d'ahi comigo... Por quem é, não se demore... Ó abbade,
lembra-se de vêr el-rei em Braga ha treze annos!

--Ora se lembro!... Beijei-lhe a mão tres vezes.

--E, se o vir agora, conhece-o?...

--Parece-me que sim--o padre limpava á pressa os beiços amarellos dos
ovos do arroz dôce.--Mas isso que quer dizer? Você está doido, ou
temos carraspana, amigo Nunes?

--Homem! venha comigo, e depois chame-me doido ou borrachão, lá como
quizer; mas não se demore que eu estou em brazas vivas.

--Ahi vou, ahi vou, não se atrigue. Vai uma pinga do chôco?

--Venha de lá isso.--Bebeu d'um trago, e pediu outro:--Agora, á saude
de el-rei! á saude d'aquelle que talvez esteja bem perto de nós! a cem
passos!

--Toque!--exclamou o abbade.

Pelo caminho, disse-lhe o Nunes que era preciso o maior disfarce, não
olhar muito de frente para elle, e só deviam fallar-lhe, se a occasião
viesse muito a geito.

--Você está a sonhar, homem!

Quando entraram á eira, já tinha começado a festa. Verissimo estava
em pé, com a mão direita apoiada nas costas da cadeira. D'um e d'outro
lado remexia-se a turba, muitas raparigas a rirem dos actores vestidos
de mulheres, e uns rapazes com chalaças de uma graça aparvalhada,
muito local, a que os do palco respondiam á lettra com manguitos, e os
que faziam de mulheres batiam palmadas no trazeiro, voltando-o para o
publico. Cães ladravam ás figuras; os rapazes davam-lhes pauladas e
elles ganiam. As velhas mandavam calar o gentio para poderem perceber as
fallas:--Canalha brava, calaide-vos ahi!--Uma balburdia que parecia um
theatro de cidade de primeira ordem. O tio Gonçalves, o dono da eira,
dizia que estavam todos bebedos, e voltava-se para o desconhecido, como
a pedir desculpa.

--É entrudo, dizia, é entrudo, senhor!

Quando appareceu o padre na cancella da eira, houve silencio com algumas
fungadellas de riso das cachopas, e recomeçou a comedia em obsequio ao
abbade e á Arte ultrajada pela hilaridade bruta da plateia. Notaram
alguns velhos sisudos que o forasteiro das grandes barbas se mantivera
muito sério durante a troça da canalha. Assim o dizia o Gonçalves ao
abbade, perguntando-lhe se conhecia aquelle senhor.

--Não conheço,--e acotovelava o Nunes, segredando-lhe com o
disfarce:--Você adivinhou. É elle...

--Que me diz, abbade?

--É elle.

O Verissimo déra tres passos para accender um cigarro no de um musico
que estava sentado n'um bombo.

--É elle!--repetiu o abbade.--Você não o viu coxear?

--Falle baixo, falle baixo, e não olhe muito para elle, que eu já o vi
deitar-nos os olhos,--acautelou o Nunes.

--Também eu ...

Estalou n'este momento uma gargalhada geral. Verissimo tambem se riu, e
deu palmas.

--Olha! olha! a dar palmas!--notou o abbade com transporte. Aquillo
sensibilisou-o até ás lagrimas! O snr. D. Miguel I a dar palmas ás
figuras do _Medico fingido_ na eira do Gonçalves em S Gens de Calvos!
Tocante!

A risada geral e as palmas e os apupos não eram rigorosamente uma
ovação ao auctor do entremez nem aos curiosos. Eis o caso. Na scena
l.ª o _Astolfo_ pede carinhosamente á filha que côma alguma coisa.
Mathilde diz que não póde, _que não está em si; que lhe acuda, que
lhe acuda, porque um suor frio lhe faz perder os sentidos_.

O gargajola esperava ser amparado pelo outro, em harmonia com a rubrica
que diz: _Finge desmaio, e Astolfo a sustem nos braços_. Mas ou porque
se antecipasse a desmaiar, ou porque _Astolfo_ se demorasse a amparal-a,
_Mathilde_ escorregou de costas sobre o barro ainda fresco do
palco; e, no acto de se erguer debaixo dos apupos da multidão,
arregaçaram-se-lhe as saias e saiotes até á cintura. Ora a _Mathilde_
não usava calcinhas. Um escandalo.

Verissimo Borges não pôde sustentar a gravidade competente á sua
pessoa. A natureza rebentou por elle fóra n'umas casquinadas convulsas
que poderiam custar-lhe uma môcada, se a deflagração do riso não
fosse geral.

_Mathilde_ fugiu do palco, enfiou pelo palheiro e não voltou á scena.
O ensaiador, o trôlha, sahiu ao terreiro a explicar ao publico a
suspensão do entremez n'estas palavras:--Aquelle alma do diabo despiu
a farpella, e diz que raios o parta, se cá tornar. Vocês póde ir á
sua vida que não ha hoje treato.

Começou a debandar o auditorio em grande algazarra. Verissimo parecia
esperar que o galã, o Rêlhas Junior, se despisse para se retirar. O
Gonçalves perguntava-lhe:--e que tal esteve a chalaça, senhor! Má mez
pr'ó homem, que se mais tivesse mais punha ó léo!--e voltando-se para
o abbade que, a pedido do Nunes, guardava respeitosa distancia:--ó snr.
abbade! coisa assim não consta! Eu, se me succedesse uma d'aquellas,
mettia a cabeça n'um folle.

--São acasos, disse Verissimo com indulgencia.--Não se lembrou que
estava vestido de senhora.

O abbade ganhou animo, abeirou-se do Gonçalves, cumprimentando o outro
cerimoniosamente, e disse:

--O entremez não presta para nada. Se o homem não cahisse, ninguem se
ria.--Provavelmente...--assentiu o Verissimo, correspondendo á cortezia
do Torquato Nunes que parecia aproximar-se mais acanhado.--Estes casos
de escorregar, accrescentou o desconhecido, acontecem nos primeiros
theatros do mundo e até nas salas onde se dança; e de ordinario as
senhoras que desastradamente cahem são verdadeiras senhoras. É muito
peor e mais melindroso.

O abbade e o Nunes com muitos gestos affirmativos--que sim, que era
muito peor, e mais melindroso, muito mais.

Derivou a conversação para as bellezas naturaes do Minho. O
desconhecido sentia ter vindo no inverno, quando apenas se adivinhavam
as pompas da primavera.

Principiava a choviscar. O abbade offereceu a sua casa ao forasteiro,
emquanto não estiava a chuva. Verissimo acceitou por momentos, visto
que não se prevenira com guarda-chuva--um traste que detestava. Os
aguaceiros repetiram-se com pequenas intercadencias, varejados pelo sul;
por fim, as christãs da serrania empardeceram, as nuvens rolavam pelos
declives como escarceus a despenharem-se, fechou-se o horisonte sem uma
nesga, e a chuva não parava. O abbade não permittiu que o hospede
sahisse com tal tempo e já perto da noite.

Durante a ceia, appareceram algumas raparigas mascaradas com lençoes,
abraçando a Senhorinha que servia á mesa, e dizendo em falsete
pilherias ao Nunes a quem chamavam _Trocatles_ e _précurador de causas
perdidas_. Verissimo mostrava-se contente e dizia:

--Bom povo! excellente povo! Este Minho é o bom coração de Portugal,
e os seus habitantes, segundo me consta, possuem os melhores corações
do reino. Eram dignos de ser mais felizes do que são, carregados por
tributos, esmagados pelo peso dos empregados publicos que são o
flagello de Portugal...

O padre escutava-o com religiosa attenção; o Nunes beliscava a côxa
do abbade que tomára a presidencia da mesa e puzera o hospede á sua
direita.

No fim da ceia, o padre Marcos com o copo na mão, e de pé, disse que
fazia uma saude ao seu hospede, porque lhe parecia que tinha a honra de
beber á saude de um realista, d'um partidario de sua magestade o snr.
D. Miguel 1.° que Deus guardasse! O hospede agradeceu, declarando que
mesmo n'uma roda de liberaes não negaria os seus sentimentos politicos:
que era realista, e como tal brindava á saude de todos os amigos do
principe proscripto.

O Nunes dava canelões intelligentes e ás vezes dolorosos no abbade,
que o encarava de esconso como quem diz:--percebo; não faça de mim
asno; sei que estou fallando com el-rei.

A creada deu parte que estava prompta a cama;--quando _Vossoria_
quizer--disse ella ao hospede. Verissimo sorriu-se agradavelmente:

--Que incommodo estou dando a esta excellente familia... Irei
descançar, snr. abbade, e snr. Torquato ... parece-me que lhe ouvi
chamar _Torquato_...

--Nunes Elias, um creado de vossa...--e susteve-se.

Dizia-lhe depois o abbade no quinteiro:--Você ia-se estendendo, Nunes!
Esteve por um triz a dizer, _um criado de vossa magestade_, não esteve?

--Por um triz, abbade, que me estendia! Tal é a certeza de que está
el-rei n'esta casa!--E com transporte olhando para as janellas:--Onde
está pernoitando o snr. D. Miguel l.°! o rei amado dos portuguezes, na
pobre residencia de S. Gens de Calvos! Isto parece um sonho!


A segunda-feira de entrudo foi um chover desabalado. Não houve entremez
nem se via viva alma no cruzeiro. O abbade não consentiu que o hospede
se retirasse; e, aconselhado por Nunes, mandou á Povoa buscar a
bagagem. Era um bahú de lata amolgado na tampa com um cadeado roído de
ferrugem. O legitimista ainda não tinha dado nome algum, nem os outros
ousavam abrir ensejo a que elle tivesse de o inventar. Seria
indelicadeza obrigal-o a mentir. Além de que, o padre Marcos,
tratando-o sempre por _senhor_,--o _senhor_ isto, o _senhor_
aquillo--entendia que se aproximava do tratamento que se deve aos reis,
e ao mesmo tempo ia insinuando ao real hospede que já o conhecia.--Bom
é que elle se vá persuadindo que não somos patêgos--dizia o abbade
ao Nunes.--Sim, bom é que se persuada ... você percebe... E piscava
com esperteza.

--Ora, se percebo! O abbade tem andado com uma cabula muito fina. Eu é
que me custa a ter mão em mim. A minha vontade era deitar-me de joelhos
aos pés d'elle, e dizer-lhe: «Real senhor, nada de disfarces! Aqui
estão dois vassallos de vossa magestade que lhe offerecem o seu
sangue!»

--Deixe estar, acommodava o padre, deixe estar, Nunes... As coisas não
vão assim... Quando fôr tempo, eu lh'o direi... Nada de espantar a
caça.

O Verissimo pediu ao abbade algum livro para se entreter, e não o
obrigar a atural-o. O padre levou-o ao seu quarto onde havia uma estante
de pinho com tres lotes de livros. Mostrou-lhe o _Punhal dos Corcundas_,
a _Defesa de Portugal_ do padre Alvito Buela, a _Besta esfolada_, os
_Burros_, e o _Novo Principe_. O Verissimo levou-os para o seu quarto,
excepto os _Burros_; disse que não gostava de poesia. Fallou com louvor
do padre José Agostinho e de Fr. Fortunato de S. Boaventura--columnas
do altar e do throno, que tinham deixado dois vacuos impreenchiveis na
phalange realista. Perguntou-lhe o abbade se os tinha conhecido
pessoalmente.--Que sim, como as suas mãos... E sorria, como o principe
proscripto, se lhe fizessem semelhante pergunta.

--Que prazer teria o padre José Agostinho, se hoje vivesse e pudesse
vêr el-rei!...--meditou o abbade com a sua grande perspicacia
observadora.

--Decerto...--concordava o Verissimo indolentemente.--Mas quem tem agora
esperanças de vêr D. Miguel em Portugal?

--Eu, senhor, eu!--respondeu o padre batendo na arca do peito com as
mãos ambas--Eu!

O Verissimo folheava o _Punhal dos Corcundas_, e parecia não perceber a
vehemencia do padre.

--Bons desejos, bons desejos do caro abbade...

--E de quasi toda a nação portugueza, senhor! D. Miguel l.° nunca
deixou de reinar nos corações do seu povo. Eu tenho na minha alma o
retrato d'elle desde que o vi ha treze annos em Braga e lhe beijei as
suas reaes mãos!--Escandecia-se o enthusiasmo, punha as mãos,
chammejavam-lhe nos olhos reflexos do fogo interno; e o Verissimo
continuava a folhear o _Punhal dos Corcundas_.

--Então viu-o, abbade?

--Sim, meu senhor, vi-o com estes olhos, toquei-lhe com estas mãos.

--Ainda se recorda das suas feições?

--Perfeitamente.

--Ah! se o visse hoje, decerto o não conhecia... Está muito acabado...

--Conhecia, conhecia...

O abbade sentiu um raio de dramatisação que o vibrou todo.
Eriçaram-se-lhe os cabellos, e coou-lhe pela espinha uma faisca
electrica. Fez um passo atraz, e quando o Verissimo repetiu: «Era
impossivel conhecêl-o» o padre pôz um joelho em terra, estendeu o
braço direito, e com o dedo indicador em riste, exclamou:

--Eil-o! eil-o!

--Ó abbade! o snr. está allucinado! Por quem é, levante-se! Eu não
sou quem pensa!

--Estou como devo estar deante do meu rei!--teimou o abbade, com os
dous joelhos no sobrado.

--Levante-se que vem gente!--dizia o outro, ouvindo passos na escada.

Era o Nunes.

--Entre, amigo!--disse o abbade, respondendo ao visinho que pedia
licença.

Torquato encontrou o abbade de Joelhos e o Verissimo esforçando-se por
levantal-o.

--Ajoelhe a meu lado, Nunes! que eu estou aos pés d'el-rei!--exclamou o
padre.

E o outro, ajoelhando:

--Eu já o sabia, real senhor!


Foi assim que se inaugurou a côrte de D. Miguel I em S. Gens de Calvos,
segunda-feira de entrudo de 1845, ás 3 horas da tarde.



XII


Depois, bem sabem, senhores, como aquelle padre Rocha despenhou
abruptamente o desfecho da farça, cuidando que vingava a moral e punia
com degredo o scelerado que infamava o sacratissimo nome de el-rei D.
Miguel. No transito para a Relação, a meia legua, na estrada do Porto,
o Verissimo com delicadas maneiras e o seu aspecto veneravel, obteve que
o sargento da escolta lhe permittisse alugar a mula de um almocreve que
seguia a mesma direcção. Cavalgou na albarda da mula arreatada com
chocalho, sem estribos; empunhou a corda do cabresto, e ladeado de doze
praças do 8, entrou ao cahir da tarde em Famalicão.

O Torres de Castellões, o administrador, legitimista no fundo, bom
lavrador, mandou-lhe cama para a cadeia e permittiu-lhe que ceasse com
um amigo que o seguira de longe. Era o Nunes, o Pylades das horas certas
e incertas. Orestes estava desanimado; queixava-se das phantasias do
outro, considerava-se perdido.--Pobre Libania!--deplorava, quando ella
souber que eu estou na Relação!

Como tinha alguma pratica do fôro criminal, o Nunes consolava-o: que
não havia materia para pronuncia; e, quando fôsse pronunciado, a
Relação o despronunciaria. Eu é que vou ser o teu procurador, se me
não prenderem--accrescentava muito confiado na lei e na sua
actividade.--Quanto á phantasia do conto de réis, já não falta tudo,
porque tens as cem peças das Botelhas. Se te deixam ser rei mais um dia
ou dois, tinhas n'esta santa hora 3:750$000 réis.

--Tu gracejas e eu vou esperar na cadeia uma sentença de
degredo--atalhou o Verissimo, n'aquella estranha situação, nunca
experimentada, de ouvir os passos da sentinella rentes com a grade do
seu quarto.

Ás oito da noite, fechára-se a porta da cadeia, e Nunes sahira triste,
com um pungitivo arrependimento de metter o amigo n'aquella rascada.

Ao escurecer do dia seguinte, o preso foi conduzido do governo civil do
Porto para a Relação com um mandado do carcereiro na bayoneta do
sargento. Quando sahia do governo civil, já Libania e o Nunes, que se
antecipára a procural-a em Ramalde, o esperavam. A Libania era uma
forte mulher para os trabalhos da vida. Fitou-o com um semblante acceso
de coragem, um sorriso affoito, e disse-lhe muito animosa: Alma até
Almeida e d'Almeida _p'ra diente_ alma sempre!

Verissimo occupou o quarto de malta n.° 2, com uma rasgada janella
sobre o Douro, um quarto cheio de luz e de sol, d'onde tinha sahido o
Gravito para a forca--elucidou o carcereiro, e mostrou-lhe no grosso
alisar da porta as iniciaes de alguns padecentes com a data de 1829.

A Libania e mais o Torquato pernoitaram na estalagem do Cantinho na rua
do Loureiro e passavam o mais do tempo na Relação. Ao fim de seis dias
já o Nunes requeria a soltura do preso, por falta de nota da culpa; mas
a pronuncia chegou ao oitavo dia da comarca da Povoa. O preso aggravou
para a Relação. Era juiz relator do aggravo o conselheiro Fortunato
Leite, natural do Douro, que, quinze annos antes, no reinado de D.
Miguel, tinha sido amigo de Norberto Borges, e lhe devêra a fineza rara
de o avisar na vespera do dia em que lhe havia de cercar a casa por
ordem do facinoroso corregedor de Villa Real, o Albano que os liberaes
mataram, no meio de uma escolta, em 1836. Quando o relator folheava o
processo, os appellidos do preso, a naturalidade, os pormenores,
suggeriram-lhe memorias da sua perseguição em 1831, e o salvar-se tão
extraordinariamente pela amizade do meirinho geral. Informou-se e
evidenciou que o Norberto Borges, de Alvações de Corgo, era o pai do
preso. Estava pois salvo o filho do seu bemfeitor, sem grande violencia
á justiça, porque a pronuncia fôra precipitada, irregular, as
testemunhas citadas--os padres suspeitos de frequentarem a residencia de
Calvos--nada depozeram que provasse projectos revolucionarios do
aggravante.

E lavrou o accordão muito rocheado de grypho:--Que aggravado era o
aggravante pelo juiz da comarca de Lanhoso, porquanto na pronuncia de
primeira instancia haviam sido desprezadas as formalidades mais curiaes,
pois que _nenhuma_ testemunha depozéra que o aggravante se inculcasse
_D. Miguel_ para perturbar a _ordem constituida_, chamando o povo á
revolta; e das respostas do aggravante no interrogatorio a que procedeu
a auctoridade administrativa constava que o preso quasi que _fôra
obrigado_ por um _clerigo estupido e esturrado miguelista_ a deixar-se
chamar _D. Miguel l.°_; mas não constava nem se provava que o
aggravante se aproveitasse de tal fraude e impostura para extorquir
valores aos seus _estupidos cortezãos_; _o que decerto_ praticaria um
_gamenho_ decidido a fingir-se _D. Miguel_ para os espoliar. Que a
pronuncia fôra iniqua, atabafada apaixonadamente, e sem base, visto que
_nada_ se colhia dos depoimentos das testemunhas, e apenas se fez obra
por hypotheses e indicios, fundada em um rei de individuos _alarves_ a
quem o supposto _monarcha_ fazia mercês de commendas, de titulos, de
patentes e até de mitras, sem que d'ahi resultasse alvoroto nem _leve
perturbação_ na ordem publica, nem mesmamente damno para os
mencionados _burros_ que pediam as mercês, e que deviam ser
pronunciados em primeira instancia, se a _côrte de S. Gens de Calvos_,
não fosse uma _farça de entrudo_.

E, dilatando-se philosophicamente e chistoso, o juiz relator,
addicionava, aconselhando, que seria bom e proveitoso que nas terras
selvaticas do Minho se espalhassem muitos _Migueis_ d'aquella casta e
feitio até que os novos _Sebastianistas_ se convencessem de que
_somente assim_ poderiam arranjar um _Miguel_ que lhes désse
commendas, titulos, postos militares e prelazias.

Os desembargadores, com o seu rapé engatilhado aos narizes, riram muito
do final do accordão, e, sorvidas as pitadas sibillantes, assignaram
por unanimidade.

Reformada a sentença e pagas as custas pelo juiz da primeira instancia,
Verissimo foi posto em liberdade; e, quando chegou ao escriptorio do
carcereiro Mello para se despedir, encontrou a Libania de Covas
desmaiada de jubilo, nos braços da mulher do chaveiro. Como era feliz,
deixou-se ser mulher--chorou; e quando lhe cumpria dar animo ao preso,
no pateo do governo civil, riu-se com a valentia dos homens
extraordinarios.

O conselheiro Leite recommendou ao Nunes procurador que lhe mandasse a
casa o Verissimo. O filho de Norberto apresentou-se timorato, receoso,
com maneiras submissas, mas dignas d'um Borges Camêlo infeliz.

O desembargador explicou-lhe que o chamára para lhe fazer conhecer a
divida que lhe pagou, posto que as situações fossem muito diversas.
Improperou-lhe serenamente o seu delicto; estygmatisou a acção de
permittir que o julgassem D. Miguel; fallou acerbamente contra este
tyranno parricida, incestuoso, canalha, e terminou por lhe aconselhar o
trilho da honra, o trabalho, e a expiação das suas irregularidades,
mostrando-se digno da compaixão que lhe inspirára, despronunciando-o.
O Verissimo beijou-lhe a mão, e recusou dez pintos que o conselheiro
lhe dava--que, se um dia necessitasse, lh'os pediria. E o Fortunato
Leite, a rir:

--Então as bêstas dos abbades sempre cahiram? Fez você muito bem.
Devia esfolar essas cavalgaduras!

O Verissimo recuava muito agradecido.

O conselheiro Fortunato exerceu uma energica influencia vitalisadora na
nova encerebração de Verissimo Borges e bastante na do Torquato Nunes
Elias.

Por medeação do bondoso desembargador, obteve o Nunes alvará de
solicitador de causas nos auditorios do Porto. Ganhou boas relações.
Era esperto, zeloso e pagava-se regularmente. Chamou para a cidade a
mulher e os dois filhos. Alugaram casa na rua de Traz as duas familias.
Davam-se muito bem, e gastavam economicamente os 750$000 réis das
Botelhas, de meias com os salarios de procurador. O Verissimo
frequentava á noite o café das Hortas, jogava o quino e, de vez em
quando, ia ao café da rua de Santo Antonio ouvir os demagogos dos manos
Passos, que o festejava e catequisavam. Dava-se com os Navarros, com o
Almeida Penha, com os Peixotos vidraceiros. Elle, sobpondo ao
reconhecimento os escrupulos de espião, contava ao conselheiro Leite,
cabralista intransigente, os planos dos setembristas, os clubs, as lojas
de carbonarios, as tramoias arranjadas em Braga pelo barão do Casal,
muito setembrista, padre Alves Vicente, de combinação com o Passos
José, com o Faria Guimarães, com o medico Resende, com o Damasio, com
o Alves Martins. O governador civil, visconde de Beire, estava em dia
com as conspirações da viella da Neta--aquelle baluarte da Liberdade
que demorava paredes-meias com os escombros do Deboche, não griphado,
muito á franceza;--tudo acabado hoje em dia, e soterrado debaixo d'uma
loja de modas, d'um café e d'uma taberna,--o vitalismo soez e chato da
decadencia.

Verissimo arrecadava uma gratificação, umas seis libras mensaes,
mesquinha paga dos serviços que fazia á ordem, á tranquillidade
civica da rua das Flores e das Congostas.

Na contra-revolução de 9 de outubro de 46, quando foi preso o duque,
José Passos encontrou o Verissimo na Praça Nova, chamou-lhe
_patriota_, pôz-lhe a mão no hombro, sacudiu-o pelas lapellas, e
disse-lhe que movesse, que agitasse as massas, por que o duque estava a
desembarcar. Os sinos tangiam a rebate, a plebe ondeava para Villar,
n'um restrugir de tempestade, quando o Verissimo e o Nunes procuraram o
conselheiro Fortunato que tiritava de mêdo com as suas enxundias
espapadas entre as filhas, n'uma consternação. Disseram-lhe que se iam
armar para se constituirem sentinellas da segurança do seu bemfeitor. O
conselheiro abraçou-os muito commovido, n'uma excitação apopletica.

Depois formaram-se os batalhões nacionaes. Verissimo e Torquato foram
promovidos a tenentes do batalhão da Vista Alegre. Quando foi da
refrega de Valpassos tinham comprehendido intelligentemente que a
retirada de Sá da Bandeira, da veiga de Chaves, era a fraqueza
precursora de uma derrota. Conheciam o perfido espirito do 15 e do 3 de
infanteria,--previram a traição. Tinham pensado maduramente os dois
tenentes, sem enthusiasmo, com a prudencia dos quarenta annos apalpados
pelos revezes de vinte batalhas. Resolveram desertar quando os
batalhões de linha se passassem para as forças reaes. Travou-se o
encontro de Valpassos. Com os dois regimentos que n'um turbilhão e a
gritos de _Viva a Rainha_ se abraçaram ás vanguardas do Casal, tambem
elles, por debaixo do fogo do seu batalhão, se passaram, dando _vivas
á Carta Constitucional_. Eram a obra da prudencia e do conselheiro
Fortunato Leite.

Quando o barão de Casal foi espostejar os miguelistas a Braga, os dois
tenentes apresentados pediram venia ao general para servirem na columna
do visconde de Vinhaes;--que tinham repugnancia de pelejar cara a cara
com os seus parentes bandeados nas guerrilhas do padre Casimiro José
Vieira e do padre José da Lage. A vergonha impunha-lhes o dever de
dourar a mentira. Não lhes pareceu decente irem acutilar nas ruas de
Braga o Christovão Bezerra, de Bouro e o abbade de Calvos e o padre
Manoel das Agras. Não poderiam vêr sem magua a soldadesca a dar saque
aos dinheiros das snr.ªs Botelhas.

Ainda assim não puderam esquivar-se a perseguir os realistas da
comitiva de Mac-Donald, desde Villa Real até Sabroso; mas não
desembainharam as espadas, porque o visconde de Vinhaes os admittiu ao
seu quartel-general, e os cadaveres que encontraram pela serra do Mezio
até Sabroso, onde pereceu acutilado o caudilho escossez, eram façanhas
das guardas avançadas. Os dois tenentes não deram nem tiraram gota de
sangue n'esta lucta fratricida. Um triumpho a sêcco.

Concluida a guerra civil pelo convenio de Gramido, depositaram as armas
e pediram empregos. O conselheiro Leite, o Casal, o Vinhaes, o
Alpendurada, o Carneiro Geraldes, o Joaquim Torquato, o centro
cabralista recommendou-os á consideração magnanima de sua magestade.
O Nunes, como sabia do fôro, foi despachado escrivão de direito para a
Estremadura. Verissimo Borges obteve uma fiscalisação rendosa dos
tabacos e sabão em Traz-os-Montes: depois foi transferido, com
vantagem, para a alfandega de Vianna do Minho; e por ultimo para uma
direcção aduaneira do Ultramar. Ainda vivia ha poucos annos, porque um
jornal da localidade, debaixo de um symbolo funebre--um anjo curvado e
deplorativo sobre a sua urna, enlutada pelas madeixas de um
chorão--publicava:


_Verissimo Borges Camêlo da Mesquita dá parte aos seus numerosos e
respeitaveis amigos que foi Deus servido chamar á sua divina presença,
hoje pelas 5 horas da manhã, sua chorada esposa D. Libania de Covas
Borges da Mesquita, a cujo cadaver, etc. Pelo seu profundo estado de
consternação pede desculpa de cumprimentos._


O jornal, depois de uns adjectivos lugubres e velhos como a morte,
accrescentava: _A exc.^ma snrª D. Libania, que todos choramos com seu
exc.^mo viuvo, era uma senhora de esmeradissima educação, pertencia á
illustre familia dos Covas;--modêlo no tracto insinuante com que
captivava o respeito e a amizade de todas as pessoas d'esta Ilha, que
tiveram a fortuna de a conhecer. Receba s. exc.ª o snr.
conselheiro-director os nossos mais sentidos pesames pela desgraça que
acaba de o ferir implacavelmente_.


Verissimo e Nunes podem ainda viver, porque eram robustos de corpo e
d'alma.



XIII


O Zeferino deixou o Cerveira Lobo em Quadros, com os tres contos de
réis, foi para as Lamellas, e entrou de noite para que o não vissem.
Elle tinha-se gabado aos visinhos de que estava despachado sargento-mór
e seu pai coronel reformado. Ao José Dias de Villalva e mais ao pai que
era regedor, mandára-lhes dizer que elles brevemente haviam de topar
com o seu homem. Da Martha de Prazins dizia trapos e farrapos. A sua
paixão nao tinha outro respiradoiro. Além d'isso, nao podia
esquecer-se da nadega exposta pelo cão ás descompostas gargalhadas da
rapariga. Era uma vergonha chronica. E, para remate de desastres,
voltava para as Lamellas, a ouvir as rabugices do pai que lhe chamava
cavalgadura--que se deixasse de politica e fosse fazer paredes, que é o
que elle sabia.

Constava-lhe de mais a mais que o José Dias, o estudante, estava sempre
em Prazins, e tinha ido com Martha e mais o Simeão ao fogo preso da
romaria de S. Thiago da cruz. Viram-os todos tres a tomar café de
madrugada n'uma barraca, a cochicharem os dois muito aconchegados, em
quanto o velho tosquenejava a dormitar.

O pai de José Dias, o Joaquim de Villalva, era um lavrador de primeira
ordem. Lavrava quarenta carros de milho e centeio, uma pipa de azeite,
dez de vinho, muita castanha, tinha tres juntas de bois chibantes e
poldros de creação. O José, meeiro no casal, a não se ordenar, era
um dos primeiros casamentos do concelho.

O rapaz amava castamente a Martha com a pudicicia do primeiro amor. Ella
tinha uma formosura meiga, delicada e supplicante. Parecia pedir que a
não immolassem a uma paixão sensual; mas, se o seu amado o exigisse, a
victima coroar-se-ia de flores, e iria risonha e mansamente para o
sacrificio. Tinha extasis a contemplar-lhe os cabellos loiros e a
pallida face doentia; deixava-se beijar com a impassibilidade de uma
santa de jaspe--um quadro paradisiaco sem fructas nem cobras.

O José não necessitava pedil-a ao pai na incerteza de uma recusa.
Disse-lhe que ella havia de ser a sua esposa: a creança contou ao pai
as palavras do amado e o Simeão:--Ora venha de lá esse abraço, amigo
e sê Zé!--e apertou o futuro genro com a ternura de pai que arranja a
sua filha _como se quer_.

Mas os paes do estudante já tinham dito ao rapaz que mudasse de rumo,
que a môça de Prazins não era fôrma de seu pé. A mãe
principalmente protestava que, emquanto ella fosse viva, a tal filha da
Genoveva de Prazins não havia de ser sua nora, nem que a levasse o
diabo, e Deus lhe perdoasse, se peccava. Justificava-se dizendo que a
Martha era de ruim casta; que a mãe, a Genoveva, dera desgostos ao
homem, pintava a manta nas romarias, andára muito fallada com um frade
de Santo Thyrso, e um dia pegára a dar gritos na egreja; toda a gente
disse que ella tinha o demonio no corpo, e afinal morrêra douda,
atirando-se ao rio Ave.

E constava-lhe que o avô d'ella tambem não era escorreito, e quando
já tinha sessenta annos mandára fazer uma sobrepeliz, abrira corda, e
onde houvesse um defunto lá ia com um ripanso á egreja e punha-se a
cantar como os padres. A tia Maria de Villalva tinha inconscientemente
este horror moderno, scientifico da hereditariedade; mas o que mais a
impulsionava na sua resistencia aos rogos do filho era ter sido _má
mulher_ a mãe de Martha. _De má arvore mim fructo_--era toda a sua
philosophia que se encontra diluida modernamente nas explorações
physio-psychologicas do Janet, do Maudsley e no determinismo.

O Joaquim de Villalva, muito instado pelo filho e pelo padre Osorio, o
de Caldellas, promettia fazer o que a sua companheira fizesse: mas
dizia-lhe a ella em particular:--Tu aguenta-te, Maria; nunca digas que
sim, ouviste? E ella:--Deixa-me cá, homem! Vem barrados. Credo!

A tia Maria era muito rezadeira, erguia-se de noite para não perder a
sua missinha no verão ao romper do dia, e garganteava com uma melopêa
fanhosa a via-sacra na quaresma, á volta da egreja; presenteava os
santos dos altares com os mimos da sua lavoira que se leiloavam ao
domingo no adro, dava cama e mesa unctuosa aos missionarias,
confessava-se todos os mezes, e sentia pelas suas visinhas menos beatas
o ineffavel prazer de affirmar que haviam de cahir vestidas e calçadas
no inferno. O filho penetrou-se d'uma idéa trivial a respeito de sua
mãe:--Que os sentimentos religiosos a levariam a dar o consentimento,
se Martha commettesse um d'esses peccados que se remedeiam com o
matrimonio. O padre Osorio dizia-lhe que a intenção era honesta, mas o
expediente mau. Não lhe citou theologos nem preceitos de origem divina.
Argumentou-lhe com a hypothese da pertinaz resistencia da mãe. Que
não esperava nada da sua religião,--um habito de tregeitos de mãos e
de beiços, o automatismo idolatra dos selvagens da America que davam
guinchos mechanicos, prostrando-se por terra, quando ouviram a primeira
missa; que a religião das aldeias, sobre a dos indianos da catechese
dos jesuitas, as vantagens que tinha era a hypocrisia em uns, e o
fanatismo em outros, quando não se ajuntavam ambas as coisas nos mesmos
fieis. O padre Osorio parochiava e conhecia o seu rebanho, joeirando-o
pelos crivos do confessionario. Não conhecia menos a tia Maria de
Villalva. Affirmava que a fragilidade de Martha seria para a velha mais
um motivo de odio e desprezo; por que, na sua cartilha e nos dictames
dos seus directores espirituaes, não se lia nem ouvia que a mãe devia
encobrir a deshonra de uma rapariga casando-a com o seu filho, seductor
d'ella.


As reflexões do vigario de Caldellas eram optimas mas extemporaneas.

Um official de pedreiro de Prazins, que trabalhava com o mestre
Zeferino, contou-lhe que uma noite se enganara com o luar, e, cuidando
que era dia nado, se levantára para ir para a obra; mas que ao passar
por diante da casa do Simeão ouvira duas horas no relogio, e vira luz
pelas frestas de uma janella. Que se puzera á coca debaixo de um
carvalho, a desconfiar que a luz áquella hora não era coisa boa, e
estivera, _vai não vai, ó pernas p'ra que te quero_, lembrando-se se
seria bruxedo ou alma penada, por que se dizia que a Genoveva do
Simeão, a que se deitara ao rio, não podia entrar no purgatorio, e
morrera com o diabo no corpo, salvo seja. Estava n'isto quando a luz se
sumiu, e se coou pelas frestas d'outra janella, e logo depois n'outra
mais baixa, onde um homem podia chegar, com o cabo d'um machado. N'isto
apagou-se a luz e abriu-se a janella de portadas sem vidros. Dava-lhe a
chapada do luar;--era como se fosse dia. O pedreiro, muito no escuro da
ramaria do carvalho, viu apontar uma cabeça e depois meio corpo de
homem que se pôz ás cavalleiras do peitoril da janella, quedou-se a
olhar e a escutar a um lado e outro; depois desmontou-se muito
devagarinho, sem tugir nem mugir, pendurou-se no peitoril e deixou-se
cahir, ficando em pé. A janella fechou-se, e o José Dias, que o
operario conheceu como se o visse ao meio dia, metteu-se ao caminho de
Villalva, por signal que levava sapatos de borracha que brilhavam ao
luar como um espelho.

O oratoriano Manoel Bernardes, como é notorio, escreveu um livro
edificante, muito piedoso, chamado _Armas da Castidade_. O mystico filho
de S. Philippe Nery, com duas palavras sãs, d'um realismo seraphico,
cabalmente explicou a situação d'outro José Dias a respeito d'outra
Martha. _Conhecia-lhe o leito_, dizia elle. É o mais que se póde dizer
sem escandalisar ninguem. Conhecia-lhe o leito.

Mas o Zeferino é que sentiu em cheio no peito amante a facada do
escandalo. O official viu-o sentar-se sobre uma padieira que estava
esquadriando, e, com o rosto entre as mãos, desfazer-se em pranto. Elle
tinha amado aquella rapariga desde que a vira aos treze annos.
Trabalhára e roubára como gallego para a poder comprar ao pai por um
conto e quinhentos e pico. Metteu-se na politica; fez-se sargento-mór a
vêr se se levantava a uma altura em que a Martha o achasse digno d'ella
e superior ao estudante. Desabadas as esperanças com a prisão do
patife de Calvos, scismava ainda em voltar de novo ao campo quando
viesse o D. Miguel authentico, porque o tenente-coronel de Quadros lhe
dizia que el-rei chegava a Portugal na primavera do anno
seguinte--affirmava-lh'o o padre Rocha para o consolar juntamente com as
bebedeiras quotidianas. Tudo acabado, perdido, como se lhe morresse a
Eva do seu paraizo! E por isso o pedreiro chorava como os grandes poetas
trahidos, como Camões, como Tasso, como Alfred de Musset. As lagrimas
na cara tostada d'aquelle operario tinham o travo das que a poesia
crystallisou no pantheon dos martyres do amor.

Depois, levantou-se, limpou as faces á manga da camisa, pegou da
esquadria e continuou a trabalhar, assobiando a musica triste d'uma
cantiga d'esse tempo:


    _Ó mar, se queres,
     Tem dó de mim._


Estes assobios eram o silvo da serpente da vingança; mas o seu rancor
não punha a pontaria em Martha. Se deixava de cinzelar a pedra, e
fitava os olhos extaticos n'um immenso vacuo, via passar lucilante a
imagem da pequena, pura, angelical como a vira aos treze annos. Um
grande romantico--uma explosão de ideaes que florejavam d'aquelle
pedreiro como um canteiro de boninas nos musgos de um penhascal. Havia
d'estas transigencias com os anjos despenhados. Dir-se-ia que elle tinha
lido as _Confissões de um filho do seculo_, aquella torrente de
lagrimas ignobeis que lava os pés de uma dissoluta illustrada.

Elle, desde essa hora funesta, pensou em matar o José Dias; mas, nas
ricas protuberancias osseas do seu grande craneo, a bossa do homicidio
era muito rudimentar. Tinha tido varias occasiões de poder-se gabar
d'essa perfeição. Haviam-lhe batido dois estudantes a um pinhal, por
causa das denuncias ao padre mestre Roque; e, quando o cão do Dias lhe
rasgou a calça n'um sitio melindroso, o Zeferino desconfiou que, se
fosse capaz de matar um homem, deveria ter atirado com o machado á
cabeça do caçador. Elle queria espesinhar o cadaver de José Dias,
espostejal-o, trincal-o, mascal-o, esmoêl-o, devoral-o, mas á maneira
dos devoristas incolumes que compram um porco já morto na Ribeira
Velha, e o esquartejam com um grande regosijo anthropophago, com as
mãos ensopadas nas banhas da victima.


O pedreiro denunciante ia contando em segredo a toda a gente a
descoberta que fizera n'aquella noite em que se enganára com o luar. A
Martha estava desacreditada na freguezia; as mulheres que sachavam os
milharaes faziam commentarios perpetuos ao texto do pedreiro, recordavam
as façanhas da Genoveva, contadas pelas velhas, e as mais antigas
diziam que a Brigida Gallinheira, avó da Martha, já tinha dado o
exemplo á filha.--Uma geração de maratonas do alto, dizia a tia Rosa
de Carude, cuspindo no chão, e pondo a soca em cima. Riam-se do
Zeferino que andava como a cobra que perdeu a peçonha, muito escamado;
que lhe tinham sahido dois casamentos com boas lavradeiras, e elle diz
que havia de ir morrer solteiro ás Pedras Negras, depois de matar um
homem; e houve quem affirmasse que o vira com um bacamarte debaixo dos
carvalhos, por essa noite fóra, defronte da casa do Simeão. Uma
calumnia.

Avisaram a mãe do José Dias da espera do pedreiro, e ella fez dormir o
filho era uma trapeira que não tinha janella por onde saltasse, e
fechava-o de noite por fóra, rogando pragas á serêsma de
Prazins:--Que um raio a partisse e o diabo a levasse para as profundas
do abysmo! Depois ia rezar a corôa com os creados, e rogava a Deus
pelos que andavam sobre as aguas do mar e pelas almas de todos os seus
parentes e visinhos, com uma intonação chorada que fazia devoção.

O José Dias vivia amargurado. Tinha sido creado n'um grande respeito
aos paes, e sentia-se inhabil para lhes reagir. A doença de peito que
principiava a desvigorisar-lhe o corpo, implicava-lhe com a atonia da
alma. Sentia o egoismo indolente dos enfermos minados pela consumpção
lenta. Invejava a robustez do irmão, um trabalhador forte que dormia
dez horas, e ao romper da aurora ia lavar a cara ao tanque e pensar o
gado com uma grande alegria, de assobios remedando as requintas das
chulas. Passava muitas horas com o seu confidente, o padre Osorio.
Pedia-lhe conselhos--que arranjasse modo de elle poder casar com a
Martha.--Que eu, dizia com desalento, não vou longe; mas queria
remediar o mal que fiz.

A Martha escrevia-lhe para Caldellas, porque a tia Maria de Villalva,
uma vez que lá viu um garoto com carta para o filho, deu sobre elle com
um engaço, que por pouco o não apanha pela cabeça com os dentes do
instrumento. As cartas eram desconfianças, receio do abandono,
lagrimas. O pai não a mortificava. Pelo contrario, dizia-lhe a
miudo:--Se o Zé de Villalva não casar comtigo, talvez seja a tua
fortuna, por que póde ser que teu tio adregue de gostar de ti, e mais
mez menos mez elle rebenta por essa porta dentro rico como um porco. O
brazileiro da Rita Chasca que chegou agora diz que elle tem quatrocentos
contos fortes, p'ra riba, que não p'ra baixo.--A Martha escondia-se a
chorar; e, ás vezes, lembrava-se do fim da mãe--o suicidio; e
punha-se a olhar para o Ave e a escutar o rugido cavo de uma levada que
parecia trazer-lhe os gemidos agonisantes de muitos afogados.

O Dias fallava-lhe na sua doença, no desfallecimento de forças que já
o não deixavam caçar, da tristeza que o consumia, do desamor com que a
familia o via padecer, do odio que começava a ter á mãe, e das
saudades dilacerantes que sentia pela sua querida Martha.--Que o seu
amigo padre Osorio trabalhava para obter o consentimento do pai; mas
que, se o não obtivesse, estava resolvido a fugir com ella, mesmo sem
recursos, ou com os poucos que o seu amigo lhe podia emprestar.

De tempo a tempo ia vêl-a de dia; mas a mãe trazia-o muito espreitado,
e ralava-o:--que a tal croia havia de dar cabo d'elle. O cirurgião
tinha-lhe dito delicadamente que o José abusava do 6.°. Ella, como
sabia os mandamentos de cór e salteados, entendeu logo, e dizia a toda
a gente que o seu Zé andava assim um pilharengo por causa do 6.°. Era
o resultado de saber a doutrina christã esta decencia no explicar-se
por numeros. As visinhas entendiam-na e diziam-lhe que o José andava
_forgado_, que lhe mettesse uma enxada nas unhas e o puzesse a roçar
matto oito dias, que elle perdia o cio.

Decorreram alguns mezes. Com a primavera a saude de José Dias pareceu
restaurar-se. Elle attribuiu as suas melhoras ao contentamento. O pai,
que era regedor, a pedido do governador civil que o mandou chamar a
Braga, por intervenção do padre Osorio, dava o consentimento; mas a
mãe recalcitrava. Esperava-se, porém, a vinda dos missionarios a
Requião, para a reduzirem ao dever de catholica. O vigario de Caldellas
já tinha prevenido um egresso do Varatojo, fr. João de Borba da
Montanha, das terras de Celorico de Basto, d'uma força prodigiosa em
emprezas mais difficeis.

Martha recobrava alegres esperanças, e o Zeferino das Lamellas digeria
a sua dôr, assobiando a musica da melancolica bailada:


    _Ó mar, se queres.
     Tem dó de mim._


Para seu desafôgo, ia a miudo a Quadros saber quando chegaria o snr. D.
Miguel. O Cerveira estava relacionado com os setembristas. Formára-se a
juncção dos dois partidos hostis aos Cabraes, aproximados pelas
eleições sanguinarias de 1845. O tenente-coronel reunia espingardas em
Quadros e dava dinheiro para o fabrico de cartuchame no concelho da
Povoa de Lanhoso e nos arrabaldes de Guimarães. O padre Rocha
communicava-lhe as noticias enviadas de Londres pelo Saraiva, e
conseguiu que elle fosse ao Porto receber o gráo de commendador da
ordem de S. Miguel da Ala a casa do João d'Albuquerque, da Insua, que
representava nas provincias do norte o Grão-Mestrado. O Zeferino sentia
momentos de jubilo de tigre que se agacha a medir o salto á presa.
Tinha um riso que era um ringir de dentes. Parecia-lhe que estava a
mastigar os ligados do José Dias.



XIV


Em março d'aquelle anno, 1846, os setembristas de Braga fomentaram os
motins populares do concelho de Lanhoso. Na Inglaterra, na camara dos
communs, lord Bentinck explicou tragicamente, em phrases pomposas, a
origem d'essa revolução, que um desdem indigena chamou «rebellião da
canalha». Elle disse _que os Cabraes mandaram construir cemiterios; mas
não os muraram; de modo que entravam n'elles cães, gatos e porcos
bravos em tamanha quantidade que chegaram a desenterrar os cadaveres_.[8]
As nações e os naturalistas deviam formar uma idéa assaz agigantada
do tamanho dos gatos portuguezes que desenterravam cadaveres, e das boas
avenças dos nossos cães com os referidos gatos na obra da exhumação
dos mortos, e não menos se espantariam da familiaridade dos javalis que
vinham do Gerez collaborar com os cães e gatos n'aquella mineração
das carnes podres das terras de Lanhoso. A origem pois da insurreição
nacional de 1846 está definida nos fastos da Europa revolucionaria. Foi
uma reacção, uma batalha social á canzoada e gataria confederadas com
o focinho profanador de porco montez. E d'ahi procedeu escreverem os
jornalistas da Allemanha, um paiz sério, que a revolução do Minho era
o «typo da legalidade». Os cadaveres servidos nos banquetes illegaes e
nocturnos dos javalis, com a convivencia de gatarrões a rosnarem com o
lombo erriçado, e molossos de colmilhos ensanguentados foi caso que
impressionou grandemente as raças tudescas, por ser um acto prohibido
pela Carta Constitucional. Quer fossem os setembristas de Braga, quer a
alcateia das feras colligadas, o certo é que a insurreição do Alto
Minho talou esta provincia e a transmontana, devastando as papeletas
impressas e os vinhos das tascas sertanejas. A guerra motivada pelos
gatos e seus cumplices fez soffrer ao capital do paiz uma diminuição
de 77 milhões e meio de cruzados, segundo o calculo do ministro da
fazenda Franzini, muito retrógrado, mas um genio no algarismo.

O Zeferino das Lamellas, ás primeiras commoções do vulcão popular,
nos arredores de Guimarães, preparou-se; e assim que ouviu repicar a
rebate em Ronfe, cheio de ciumes como o sineiro de _Notre-Dame_,
agarrou-se á corda do sino, reuniu no adro os jornaleiros e vadios de
tres freguezias, e pegou a dar _morras_ aos Cabraes com applauso
universal. Depois, explicou o que era o cadastro, confundindo este
expediente estatistico com canastro:--que os Cabraes e os seus
empregados andavam a tomar as terras a rol para empenharem Portugal á
Inglaterra; que esses roes estavam nos cartorios das administrações e
em casa dos regedores; que era preciso queimar-as _papelêtas_ e matar
os cabralistas.

Em seguida, invadiram a administração de Santo Thyrso, quebraram as
vidraças dos cartistas fugitivos e queimaram os impressos e quantos
papeis acharam, no Campo da Feira. Depois, abalaram para Famalicão.
Zeferino nomeára-se _chefre_ da gentalha embriagada nas adegas
arrombadas dos cabralistas, e alvitrou que se prendessem os regedores
que topassem. Dizia que o Joaquim de Villalva, nas eleições do anno
anterior, muito socadas, cascára no povo e mais os cabos, na assembleia
de Landim, cacetada brava. A bebedeira dos ouvintes dera á perfida
aleivosia do pedreiro vingativo o valor de facto historico. O plano de
Zeferino era abrir opportunidade a que José Dias fosse assassinado ou,
pelo menos, preso e degredado como cabralista.

Villalva ficava-lhes a geito, no caminho de Famalicão. O amante de
Martha ouvira grande alarido e vira ao longe a multidão que galgava um
outeiro turbulentamente. Via-se desfraldado no ar, em oscillações
largas, o panno escarlate de uma bandeira: era um pedaço do Velho
estandarte que servia nas procissões de Santa Maria d'Abbade. José
pediu ao pai que fugisse. O regedor disse que não--que nunca tinha
feito mal a ninguem, nem sequer prendêra um refractario: que o mais que
podiam fazer era tirar-lhe o governo.

José Dias tinha mêdo ás covardes ameaças do Zeferino; diziam-lhe que
o pedreiro jurára matal-o, e já constava que era elle o chefe da
guerrilha, em que se alistaram todos os ladrões e assassinos conhecidos
na comarca. A mãe empurrava-o pela porta fóra--que fugisse para
Caldellas; que não fosse o diabo armar-lhe alguma trempe por causa da
Martha, da tal bebedinha que não dera cavaco ao pedreiro. Elle deitou o
sellote á egua e fugiu a galope; mas o regedor, com a sua consciencia
illibada, esperou os revoltosos com o Zeferino á frente, brandindo a
espada do pai, que não se desembainhára desde o ataque a Santo Thyrso.

--Está você preso por cabralista!--intimou o pedreiro, deitando-lhe a
mão á lapella da véstia; e voltado para a turba:--Rapazes, cercaide a
casa; tudo que estiver, preso!

--Os meus filhos sahiram; mas entrem, busquem á vontade disse o
regedor; e, olhando para o pedreiro, ironicamente:--Ah seu Zeferino, seu
Zeferino, você não veio aqui p'ra me prender a mim... É outra
historia que você lá sabe. Isto de mulheres são os nossos peccados,
mestre Zeferino...

--Não me cante!--bradou o das Lamellas com furiosos arremêssos.--Está
preso, e mexa-se já para a cadeia.

--Você não pôde prender-me, mestre Zeferino--contrariou a auctoridade
dentro da lei--Vá buscar primeiro uma ordem do meu administrador ou do
governador civil.

--Já não ha governador civil!--explicou o caudilho--Agora são outros
governos, seu asno! Quem reina é o snr. D. Miguel l.° E você não me
esteja ahi a fanfar, que eu já o não enxergo. Ande lá p'ra cadeia com
dez milhões de diabos!

O regedor entrou em Villa Nova de Famalicão na onda de alguns milhares
de homens e rapazes que davam _vivas_ a D. Miguel, ás leis novas, á
santa religião e _morras_ aos cabralistas. Quando queimavam os papeis,
um brazileiro setembrista, o Sá Miranda, disse ao commandante que não
convinha por emquanto aclamar D. Miguel; que dessem _morras_ ao governo
e vivas á religião. N'esta barafunda, o regedor preso entre meia duzia
de jornaleiros que discutiam as leis velhas e as novas na taverna do
Folipo, comprehendera um acêno do taverneiro e fugira pelos quintaes.
Metteu-se ao caminho de Braga, onde estava o general conde das Antas. O
José Dias, receando que o perseguissem em Caldellas, refugiara-se
também em Braga e alistou-se no batalhão dos serezinos commandado pelo
conego Mont'Alverne.


N'este meio tempo, chegou da America o Feliciano Rodrigues Prazins, tio
de Martha. Demorou-se poucos dias. Ganhára medo que o roubassem as
guerrilhas. Foi para o Porto pôr em segurança as suas lettras e voltou
quando a queda dos Cabraes garantia o socego dos capitalistas. Na volta
a Prazins, olhou mais attentamente para a sobrinha, deu-lhe alguns
cordões, e disse ao irmão que não se lhe dava de casar com ella. O
Simeão affirmou logo com um descaramento perdoavel:--que não se fosse
sem resposta o mano que a moça dava o cavaco por elle.

Feliciano tinha quarenta e sete annos. Não se parecia com a maioria dos
nossos patricios que regressam do Brazil com uma opulencia de fórmas
almofadadas de carnes sucadas. Era magro esqueleticamente, um organismo
de poeta sugado pelos vampiros do _spleen_. Dizia, porém, que tinha
febras de aço e nunca tomára remedios de botica. Muito myope, usava de
monoculo redondo n'um aro de bufalo barato. Como era economico até á
miseria, dizia-se em Pernambuco que o Feliciano usava um vidro só para
não comprar dous; e que, se pudésse, venderia um olho como coisa
inutil. Com a economia e o trabalho bem propiciado em trinta annos
arredondára trezentos contos. Chegára aos quarenta e sete, ao outono
da vida, sem ter amado. Nunca se conspurcára nos latibulos da Venus
vagabunda. A sua virgindade era admirada e notoria; depunham a favor
d'ella os seus caixeiros, os feitores e--o que mais é--as suas
escravas. Os seus patricios devassos chamavam-lhe o Feliciano
_Pudicicio_. Elle não se envergonhava de confessar a sua castidade ao
parocho de Caldellas. Tinha vivido como um dessexuado;--que trabalhava
muito nos seus armazens, que dormia poucas horas, e não dava folga ao
corpo nem péga aos vicios. Originalissimo. Que lhe sahiram casamentos
ricos; mas que elle para ser rico não tinha precisão de mulher; que
vira algumas meninas pobres a namoral-o; mas que desconfiára que lhe
namorassem o seu dinheiro. Não tinha queda para o sexo que elle dizia
_seixo_. N'uma palavra, estava virgem. Elle podia dizer como Hamlet:
_Não me deleitam os homem não tão pouco as mulheres_.

A sobrinha reformára aquella natureza aleijada. Talvez o desdem com que
Martha o tratava na crise da sua paixão, fosse grande parte no amor do
brazileiro. Além d'isto, a môça, muito parecida com elle na delgadeza
das fórmas, tinha encantos que dispensavam a esquivança para se fazer
amar de um homem de quarenta e sete annos--intacto de mais a mais. O
presente que lhe fez de uma meada de cordões de ouro significava uma
desordem, pelo menos interina, na sua condição sovina. Martha acceitou
a dadiva sem enthusiasmo nem alegria. Lembrava-se que o pai a prevenira
da possibilidade de ser mulher de seu tio, _se adregasse gostar d'ella_.
Quando o tio lhe deu os cordões, teve-lhe uma nausea, um quasi odio,
suspeitando-lhe os projectos; e quando elle fugiu para o Porto, com medo
ás guerrilhas, sentiu ella uma satisfação incomparavel. Entretanto,
apezar das más informações do brazileiro da Rita Chasca, o Feliciano
sentia filtrar-se-lhe nas cellulas impollutas do coração o veneno
dôce de uma paixão cheia de condescendencias, pouco superciliosa em
pontos de honra, como quem pensa que no thalamo conjugal não se faz
mister a virgindade em duplicado. Mas não era assim que elle pensava.
Ninguem lhe desdourára a honra da sobrinha, nem o derriço com o José
Dias fazia implicancia á sua honestidade. Elle não tinha os
rudimentos de malicia necessaria para desconfiar que uma menina de
dezeseis annos, creada nos seios da Natureza immaculada de uma aldeia do
Minho, pudesse abrir de noite uma janella, debruçar-se no peitoril e
ajudar a subir um homem. O official do pedreiro é que sabia casos,
anomalias, desde aquella noite em que o luar o enganou.

Martha ouvira aterrada a noticia que o pai lhe deu da vontade do tio.
Irritou-se. Tinha sido creada com muito mimo, sem mãe, voluntariosa, e
com uns ares senhoris que desauctorisavam o respeito que o pai, rustico
lavrador, não sabia incutir. Em vez de chorar como as filhas
desgraçadas e humildes, respondeu desabridamente que não casava com o
tio; que o desenganasse, se quizesse; e, se não quizesse, ella o
desenganaria. A terrivel nota golpeára-lhe o coração cheio de
saudades de José Dias que lhe escrevêra de Braga, por intervenção do
padre Osorio, dando-lhe coragem e esperança no casamento logo que
cessasse a guerra. Foi esse alento que a revoltou contra o pai quando
elle instava com ella a casar com o tio, que era talvez, dizia, o homem
mais rico de Portugal, abaixo do rei. Martha replicava com tregeitos de
tedio desdenhoso; e, exaltada pela boçal insistencia do pai,
protestava, se a apoquentassem, atirar-se ao rio como sua mãe.

O Simeão perdeu a vontade de comer; andava atordoado n'uma tristeza
estupida a dar uns ais pela casa que pareciam mugidos de bezerro perdido
na serra. A pequena já não queria ir á mesa, mettia-se na cama e
fingia-se doente para não encontrar o tio Feliciano.

José Dias e o pai permaneciam em Braga, por que em differentes pontos
da provincia continuavam as agitações miguelistas; o novo ministerio
não tinha força, e o Zeferino das Lamellas nunca depozera as armas. Os
seresinos faziam excursões e batiam os realistas ou prendiam os
agitadores. José Dias, em uma d'essas sortidas a Villa-Verde, a pé e
com pouca saude, ganhára uma bronchite que o teve de cama largo tempo.
Quando se levantou, n'uma apparente convalescença, a tisica tuberculosa
recrudescia pessimamente caracterisada. O padre Osorio fôra visital-o,
ouvira o medico e sabia que o seu amigo estava perdido. Fallou ao pai,
em particular, no estado do filho. Lembrou-lhe a sua promessa de
consentir no casamento com a pobre Martha, que se perdêra confiada nos
compromissos do José. O lavrador mostrou não perceber a conveniencia
de Martha em casar, se o seu filho tinha de morrer cêdo.--Que a viuva,
dizia, nada ganhava com isso, porque os herdeiros de José eram seus
pais. Não comprehendeu a questão por outra face. Mas, apertado pela
palavra que déra, repetiu que elle pela sua parte concedia a licença,
se a mãe a désse; e justificava-se d'este respeito á mulher,
allegando que a casa de Villalva era toda da sua companheira, e o que
elle levára para o casal não valia dois caracoes.--Emfim, concluia, se
o rapaz arrijar, casa querendo a mãe; mas, emquanto elle assim estiver,
faça favor de lhe não fallar na rapariga... Bem lhe basta o seu mal...
E um homem que está doente devéras não deve pensar em mulheres, é na
salvação da sua alma. Eu penso assim, amigo padre Osorio.

--O vigario aprende o _padre-nosso_, dizia o de Caldellas.

Entretanto, o doente, muito animado, não sentia aquelles desalentos e
presagios de morte que mezes antes o affligiam. Habituára-se ao
soffrimento; já não tinha memoria das perfeitas delicias da saude.
Quando espectorava sem violencia, e a dyspnea cedia aos xaropes e ao pez
de Borgonha julgava-se em uma quasi completa restauração. Escrevia ao
Osorio e a Martha com muita alegria e devotos agradecimentos a Deus e a
Maria Santissima com quem se apegára fervorosamente desde que padecia,
e tambem com o oleo de figado de bacalháo.

A repugnancia de Martha, face a face do tio Feliciano, seria um
affrontoso desengano para o millionario, se não interviesse o
implacavel e engenhoso ciume do Zeferino. Este chefe de guerrilha em
armisticio soube que o brazileiro queria casar com a sobrinha e que o
José Dias estava em Braga muito acabado, a dar á casca. O pedreiro
chamou os bravos da sua jolda e fez-lhes saber que o brazileiro de
Prazins pedira para Famalicão um regimento da divisão do Antas para
deitar cêrco ás casas dos realistas, e sujeitára-se a sustentar o
regimento á sua custa. Resolveram atacar o Feliciano, prendel-o como
cabralista, e fazel-o pôr á má cara o dinheiro que havia de dar á
tropa. Um dos da malta, visinho do brazileiro, o _Metro_, tinha-o
convidado para padrinho de um filho. Procurou-o ás escondidas e
avisou-o que se escondesse. Feliciano fugiu para o Porto a toda a
pressa. Queria que a sobrinha tambem fosse. Escrevia-lhe que, se
quizesse ir, compraria casa no Porto. Martha respondia que estava muito
doente, que não podia sahir da cama. O pai chegava a descompôl-a:--Que
não tinha molestia nenhuma, que era por causa do Zé Dias; mas que
perdesse d'ahi a idéa por que estivera com o doutor Pedrosa, de Santo
Thyrso, que o vira em Braga, e lhe dissera que o Dias estava _ethego_ e
mais mez menos mez esticava a canella.

Martha respondia com serenidade de alma forte, e escorada n'uma
resolução suicida:--Se não casar com elle n'este mundo, casarei no
outro.

--Que te leve o diabo!--resmungava o Simeão, riçando phreneticamente
as suissas. Depois voltava manso e velhaco á beira do leito:--Olha,
menina, teu tio está velho e esmagriçado. Aquillo não póde ir longe.
Tu ficas p'r'ahi podre de rica, e podes casar depois com um fidalgo, se
quizeres...

--Valha-me nossa Senhora!--murmurava Martha, pondo os olhos na
litographia da Mãe de Jesus traspassada das sete espadas.--Quem me dera
morrer.

A tisica do José Dias com as frialdades humidas de novembro entrou no
segundo periodo. Recrudesceram as dôres de peito e a dyspnea, com
accessos febris nocturnos. Expectoração esverdeada com istrias
amarellas, e extrema magreza com repugnancia a todo o alimento. Pela
auscultação ouvia-se-lhe o som gargarejado do fervor cavernoso. Os
medicos disseram ao pai que o tirasse de Braga, das incommodidades da
estalagem, e o levasse para casa onde lhe seria mais suave a morte na
sua cama com a assistencia da familia. Foi para Villalva transportado
n'uma liteira, e dizia ao pai que se sentia melhor, que respirava mais
desafogado; e que, se ha mais tempo tivessem sahido de Braga, já elle
estaria rijo.

A mãe, quando o viu entrar tão acabado, tão desfigurado, fez um
berreiro descommunal, e não teve mão em si que não rogasse pragas á
Martha, que lhe matára o seu querido filhinho. As visinhas
concordavam:--que diabos levasse a mulher que o tolhêra!

O doente affligia-se, chorava como creança, e pedia ao pai que o
deixasse ir para Caldellas, para casa do seu amigo; que não podia vêr
a mãe; que lh'a tirasse de diante dos olhos; e que, se elle tivesse de
morrer, que lh'a não deixassem ir á beira da sua cama. E fazia
tregeitos furiosos, com os olhos a estalar das orbitas escavadas,
incendido pela febre.

Chegou o padre Osorio, e o doente applacou-se sob as consolações
calmantes do seu santo amigo. Deitou-se, com promessa de ir no dia
seguinte para Caldellas; mas nunca mais se levantou, nem fez inuteis
esforços.

Osorio não o desamparou. Ia á sua egreja dizer a missa dominical e
voltava para Villalva com as respostas de Martha aos bilhetes que José
lhe escrevia--poucas linhas em que ainda por vezes lampejavam alegres
esperanças.

Toda a influencia de Osorio não conseguiu que o enfermo recebesse a
mãe no seu quarto. Não lhe podia perdoar o odio que ella tinha a
Martha; e bradava que a fazia responsavel perante Deus da deshonra da
desgraçada menina. A velha escutava estes tremendos emprazamentos para
a eternidade, e dizia de si comsigo, a beata:--bem me fio eu n'isso.

Por fim já não podia escrever, nem levantar a cabeça no travesseiro;
mas perguntava ao Osorio se tinha noticias de Martha; que pedisse ao
irmão que fosse lá, e lhe dissesse que elle estava mais doente, e não
podia escrever.

Um d'esses recados motivou o bilhete que se copiou na _Introducção_
d'este livro, e que o moribundo já não pôde lêr. Desde que a mãe
lhe metteu á força dentro do quarto o vigario com a extrema-uncção,
um homem de opa com a campainha, outro com a agua-benta na caldeirinha,
mais dous com tochas, e outros com a sua devota curiosidade, o moribundo
cahiu na modorra comatosa, e apenas, com longos espaços, tinha uns
accessos sibilantes de ligeira tosse sêcca. Abria então os olhos que
fitava no rosto de Osorio, e ás vezes circumvagava-os espavoridos como
em busca da visão espectral da mãe que o vigario de Caldellas
cuidadosamente e com doloroso constrangimento defendia de entrar á
alcôva.


Em Prazins ouvia-se dobrar a defunto em Villalva. Martha perguntou ao
pai quem tinha morrido.

Elle respondeu serenamente:--Dizem que foi o Dias que está com Deus.
Reza-lhe por alma que é o que elle precisa agora.--Martha deu um grande
grito, e com as mãos na cabeça, a correr, deitou a fugir pelos campos.
Ella sabia onde era o remanso fundo do rio Ave em que a mãe se
suicidára. O pai correu atraz d'ella, a gritar, que lhe acudissem.
Fóra d'aldeia, andava uma roça de matto, com muitos jornaleiros que
correram todos atraz de Martha, e a levavam quasi apanhada quando ella
cahiu, a estrebuchar, em convulsões. Conduziram-na para casa com os
sentidos perdidos, e puzeram mulheres a vigial-a na cama. Esta nova
chegou a Caldellas. D. Thereza, a irmã do padre Osorio, foi com o
irmão a Prazins, e convenceram o Simeão a deixar ir a filha para a
companhia d'elles algum tempo.

Martha chorava muito, abraçando-se no amigo de José Dias; e elle,
quando o lavrador com impertinencia dizia á filha «está bom, está
bom», observava-lhe com azedumes:--Deixe-a chorar, deixe-a chorar!--E
voltando-se para a irmã:--A estupidez é cruel!


[Nota de rodapé 8: _Carta dirigida ao cavalheiro José Hume_. Versão
de Antonio Pereira dos Reis, 1847, pag. 99.]



XV


O Simeão de Prazins tinha sido antigamente regedor um anno; depois,
cahido o ministerio e o governador civil que o nomeara, voltou ao poder
o Joaquim de Villalva, cartista puritano, com a restauração da Carta.
Duas restaurações boas. O Simeão lembrava-se com saudades da sua
importancia no anno em que governára a freguezia--o respeito dos
rapazes recrutados, as considerações dos taverneiros, que davam jôgo
em casa, das raparigas solteiras que andavam gravidas, a auctoridade do
seu funccionalismo na junta de parochia, etc. Ora, como o Joaquim de
Villalva, desgostoso e doente com a morte do filho, pedira a demissão,
o administrador nomeou a regedoria no de Prazins. O brasileiro achou que
era bom ter de casa a auctoridade para maior segurança dos seus
cabedaes e pessoa. Foi uma desgraça.

Depois do convenio de Gramido, Zeferino recolhêra ás Lamellas com
alguns dos seus primitivos legionarios. Elle tinha passado trances
amargos. Ajuntára-se ao aventureiro Reinaldo Mac-Donell, em Guimarães,
quando o escossez descia do Marco de Canavezes para Braga; esteve nas
barricadas da Cruz da Pedra quando o barão do Casal espatifou a
resistencia d'aquelles desgraçados illudidos pelo caudilho estrangeiro;
foi dos primeiros a fugir por Carvalho d'Este, a comprehender a
inutilidade da defeza, e por montes e valles deu comsigo em Porto d'Ave,
e d'aqui foi para Guimarães onde se aquartellaram o Mac-Donell com o
seu estado-maior. Logo que chegou foi procurar o tenente-coronel
Cerveira Lobo, que fazia parte do cortejo do general. Mandaram-o ao
palacete do visconde da Azenha, onde o escossez se tinha aquartellado
com o seu estado-maior. O Cerveira Lobo estava a beberricar cognac velho
copiosamente sobre uma ceia farta, comida sem sobresaltos. Á mesa, onde
faiscavam os crystaes dos licores, avultavam, scintillando os metaes das
suas fardas, o quartel-mestre general Victorino Tavares, de Fagilde,
José Maria de Abreu, ajudante de ordens, o morgado de Pé de Moura, o
Cerveira Lobo e o Sebastião de Castro, do Covo, commandante do
batalhão de voluntarios realistas de Oliveira de Azemeis, que
arredondava 42 praças, e seu irmão Antonio Carlos de Castro, ajudante
de ordens do general,--dois homens gentilmente valorosos;--o coronel
Abreu Freire, morgado d'Avança, e o Bandeira de Estarreja que é hoje
padre.

A noite era de 27 de dezembro de 1846, muito fria. Bebia-se forte. A
garrafeira da casa do Arco era um calorifico. O Mac-Donell, muito rubro,
n'aquella bebedeira chronica que lhe assistiu na vida e na morte,
esmoía a ceia passeando n'um vasto salão, de braço dado com uma
formosa senhora da casa, D. Emilia Correia Leite d'Almada. Dir-se-ia que
o bravo septuagenario tinha vencido uma batalha decisiva, e procurava
matizar com flores de Cupido os seus louros de Mavorte. E o Cerveira
Lobo bebia e relatava proezas dos seus saudosos dragões de Chaves com
gestos bellicos e as pernas desviadas como se apertasse nas côxas a
sella de um cavallo empinado no fragor da peleja. N'isto entrou um
camarada, ás 11 da noite, a chamar apressadamente o quartel-mestre
general, que o procurava com muita urgencia um capitão de atiradores do
batalhão do Populo.

O Victorino de Fagilde encontrou na sala de espera o capitão Pinho
Leal,[9] um robusto e jovialissimo rapaz, de trinta annos, com uma fé
politica, antipoda da sua forte intelligencia--uma especie de poeta
medieval, com um grande amor romantico ás cathedraes e ás
instituições obsoletas e extinctas. Elle tinha muitos d'estes
camaradas visionarios e respeitaveis na sua phalange da Madre-Silva...

--Que ha?--perguntou o quartel-mestre general.

--Ha que estamos cercados pelos Cabraes. Os nossos piquetes de Santa
Luzia e do Castello já foram atacados, e ouve-se fogo de fuzil em
outros pontos. Veja lá o que quer que eu faça.

O Victorino ficou passado de terror, e levou o capitão á sala em que o
Mac-Donell passeava pelo braço de D. Emilia Azenha, e o visconde, o
hospedeiro fidalgo palestrava com numerosos hospedes, conegos, abbades,
capitães-móres, antigos magistrados. Pinho Leal repetiu ao escossez o
que dissera ao seu quartel-mestre. «O alma do diabo--escreve o snr.
Pinho Leal ficou com a mesma cara imperturbavel, e disse-me: _Isso não
vale nada. Tenho tudo prevenido. Mande recolher a gente a quarteis_.»
Mas a dama assustada desprendeu-se do braço do general, e foi preparar
os bahus para a fuga; e os do estado-maior compelliram o general a fugir
tambem. Era uma hora da noite quando o exercito realista abandonou
Guimarães e entrou na estrada de Amarante.

Pinho Leal inventára o ataque dos cabralistas para salvar-se a si e aos
outros da carniçaria inevitavel; porque, ao romper a manhã do dia
seguinte, entraram em Guimarães seiscentos soldados do Casal ainda
embriagados da sangoeira de Braga. Reproduzem-se textualmente no seu
estylo militarmente pittoresco os veracissimos esclarecimentos de Pinho
Leal: ...«_A bêsta do escossez continuava na sua panria sem se
importar da guerra para nada, e o mesmo faziam os da sua «côrte». Eu,
vendo que de um momento para outro, podiamos ser surpreendidos e
trucidados pelos Cabraes, aproveitando a circumstancia de estar
«superior do dia» e tendo na casa da camara um «supporte» de cem
homens, commandados pelo alferes José Maria (o morgado do Triste)
dei-lhe a ele somente parte do que ia pôr em execução. Escolhi da
gente do «supporte» um sargento e quatro soldados da mesma companhia,
de todo o segredo e confiança. Sahi com eles por um bêcco e fui com
eles pela frente dar uma descarga no nosso piquete de Santa Luzia, e
outra no piquete do Castello. Ao mesmo tempo, não sei quem é que
estava num monte ao norte de Guimarães que deu uns poucos de tiros que
muito ajudaram o meu plano. O «Triste» em vista da nossa previa
combinação, mandou tocar a reunir e formou o supporte debaixo dos
Arcos da Camara. Eu e os meus cinco homens viemos surrateiramente
mettermo-nos na villa. Fui «passar revista ao supporte» a tempo em que
já na Praça da Oliveira estava muita gente armada_.»[10]

E d'ali, Pinho Leal foi á casa do Arco, afim de salvar aquelles homens
que se ensopavam em bebidas de guerra numa pacificação de idiotas, e
retardar alguns dias a benemerita morte do general escossez assalariado
por Guizot com credenciais de Costa Cabral.

O Cerveira Lobo, quando soube que a força marchava á uma hora
d'aquella noite frigidissima, encarregou o Zeferino de lhe comprar uma
botija de genebra da fina, Fockink legitima. Tinha um frasco empalhado
que punha a tiracollo nas marchas nocturnas. Encheu-o com ajuda do
pedreiro. O tenente-coronel, n'um grande desequilibrio, não acertava a
despejar a botija no frasco. O Zeferino dizia depois que o vira tão
borracho que logo desconfiou que malhava abaixo do cavallo. O Cerveira
affirmava que se sentia com os seus trinta annos; que andara a trote
largo do seu cavallo treze leguas e não estava cançado. O Zeferino
perguntou-lhe se o Casal os apanharia ainda de noite; se estaria tudo
acabado com outra mastigada como a de Braga. Cerveira respondeu iracundo
que o general era um asno, e que elle estava resolvido e mais o
Victorino a matal-o como traidor ao snr. D. Miguel I.

Moveu-se o exercito em direitura á Lixa. O Cerveira ia no grupo do
quartel-general. Mac-Donell, de vez em quando, regougava monossilabos em
hespanhol ao quartel-mestre. O Cerveira retardava-se ás vezes um pouco
e emborcava o candil, grogolejando e despegando pigarros teimosos. O
Victorino notava-lhe que elle bebia de mais--que o calor da genebra não
se espalhava pelo corpo, mas sim concentrava-se na cabeça--que era um
perigo. O Cerveira dizia que estava affeito; mas queixava-se de dôres
nas fontes e zunidos nas orelhas; que não se podia lamber com somno, e
que dava cinco mil cruzados por estar na sua cama. E abaixando a voz
tartamuda:--Este ladrão d'este inglez metto-lhe a espada até aos
copos! Palavra d'honra que o mato ámanhã!

O Victorino deu tento de que o tenente-coronel gaguejava; mas attribuiu
á embriaguez o embaraço na falla. Entrou a queixar-se o Cerveira de
que estava tonto da cabeça, que se queria apear, por que não podia
agarrar as redeas; e chamava com anciedade o Zeferino que vinha muito á
retaguarda. O quartel-mestre general chamou um ajudante de ordens, e
pediu-lhe que o ajudasse a apear o tenente-coronel. Cerveira Lobo
dobrava o tronco ao longo do pescoço do cavallo que estranhava o peso e
o sacudia, sentindo-se livre da pressão do freio.

O apopletico ia resvalar, quando os dois officiaes o ampararam nos
braços, n'uma syncope. Um d'elles accende um palito phosphorico no lume
do charuto, e disse que o tenente-coronel tinha o rosto inchado e muito
vermelho. Chamavam-o, sacudiam-no; não dava signal de vida; nem um
ronquido estertoroso. Inclinaram-o sobre um combro de matto molhado;
não lhe acharam pulso; a bôca entortára-se, e os olhos muito abertos
com umas istrias sanguineas. Estava morto, fulminado pela apoplexia
alcoolica.

A respeito d'este desastroso remate do ebrio illustre, escrevo Pinho
Leal: _N'esta retirada pelas duas ou tres horas da noite, morreu em
marcha com uma apoplexia fulminante o P...[11] Coitado! quando me lembra
isto ainda tenho cá meus remorsos de consciencia. Quem sabe se seria eu
a causa da morte d'aquelle pobre diabo? Consola-me porém a certeza de
que--mesma que eu fosse a causa indirecta da morte do fidalgote, poupei
muitas vidas de gente moça (e a minha que era o principal para mim); e
o morto já poucos annos podia durar, pois estava no calçado
velho_.[12]

Zeferino e alguns homens da comitiva do Cerveira passaram o restante da
noite á beira do cadaver do fidalgo de Quadros. Á claridade fusca da
manhã invernosa viram-lhe o semblante que mettia pavor. Quizeram
cerrar-lhe as palpebras que resistiam á distensão, coriaceas, n'um
retezamento orgastico. A maxilla inferior parecia deslocada e torta,
repuxando a commissura direita dos labios n'um esgar de escarneo ou de
angustia dilacerante. A côr do rosto era agora d'uma amarellidão de
barro, molhado pelo orvalho que se filtrára atravez do lenço com que
lh'o cobriram. Tinha os dedos aduncos, inflexiveis e uma das mãos
afincada como garra nas correias da pasta.

O Zeferino disse que o seu tenente-coronel devia trazer um cinturão com
dinheiro em ouro; mas ninguem ousou desabotoar a farda do morto
defendido pelo sagrado terror da morte. Apenas uma das sentinellas,
intanguidas de frio, votou que se bebesse o resto da genebra. Assim que
foi dia claro, o Zeferino desceu á egreja proxima, a Margaride, avisar
o parocho que tinha morrido na estrada um fidalgo do exercito do snr. D.
Miguel. O padre, estremunhado e liberal, respondeu que não era coveiro;
que se dirigisse ao regedor. A auctoridade, sem as delongas dos
processos legaes, depositou o cinturão com as peças na mão do
administrador, e mandou abrir uma cova no adro da egreja, onde o
baldearam com um responso economico. Passavam jornaleiros para as
roças. Punham as enxadas no chão e encostavam ás mãos callosas as
caras contemplativas. O regedor contava que lhe acharam mais de um conto
de réis em ouro.

--Toma!--disse um dos jornaleiros--um conto de réis! E inclinando-se á
orelha d'outro jornaleiro:--Ó Tonio, se temos ido mais cedo para o
monte ... e topamos o morto...

--Que pechincha!...

Restos de virtudes antigas. Estavam a fazer um idyllio em prosa.

O Zeferino acompanhou a guerrilha até que mataram o general em
Traz-os-Montes os soldados do Vinhaes; depois passou com alguns chefes
realistas para a Junta do Porto; e, acabada a lucta, foi para casa e
entregou a espada ao pai, que o recebeu com estas caricias:--Eu sempre
te disse que eras uma cavalgadura! Que te não fiasses no bebado de
Quadros; que não sahisses a campo sem lá vêr o morgado de Barrimáo.
Agora, pedaço d'asno, torna a começar com as paredes, e tem cuidado
que te não deitem a unha. Lembra-te que prendeste o regedor de
Villalva, e quizeste agarrar o brazileiro de Prazins que tem agora de
mais a mais o irmão regedor. Olha se te lembras... A mãe do José Dias
anda por ahi a berrar que a Martha e mais tu lhe mataste o filho. Lume
no olho, homem, lume no olho!

--Se alguem embarrar por mim, dou-lhe cabo da casta!--protestava o
pedreiro cortando com o braço e punho fechado punhadas aereas.--Se me
matarem ... até lh'o agradeço!--E com desalento: Sou o maior infeliz e
desgraçado que cobre a rosa do sol! Veja você: ha tres annos que não
tenho uma migalha de estifação, c'um raio de diabos! Isto acaba mal,
digo-lh'o eu! Você verá, sôr pai, que ou me matam ou eu acabo n'uma
forca pr'ámor d'aquella rapariga que foi o diabo que m'appareceu, e
não me passa d'aqui!--e apertava o gorgomilo nodoso entre dois dedos
como quem apanha uma pulga.


Os administradores de concelho receberam ordem de recolherem as
espingardas reiunas que se encontrassem nas aldeias, em poder do povo.
Para as cabeças dos districtos ramificaram-se destacamentos afim de
coadjuvarem a auctoridade. Simeão de Prazins, como regedor, foi chamado
a Famalicão e incumbido de dirigir a diligencia militar que devia dar
um assalto a Lamellas, a casa do Zeferino, onde se haviam denunciado as
espingardas com que alguns miguelistas se tinham recolhido, contra as
condições estipuladas no protocolo de Gramido. O regedor comprehendeu
o perigo da empreza; pediu que o demittissem; mas a auctoridade
impoz-lhe com azedume o cumprimento dos seus deveres, e negou-lhe a
demissão.

Quando o Zeferino, succumbido á carga dos revezes, indifferente á vida
e á morte, se chamava _infeliz_ e _desgraçado_, o destino implacavel
preparava-lhe novo desastre. Elle, ao romper da manhã, depois de uma
insomnia febril, sonhava que era sargento-mór das Lamellas e assistia
á formatura do regimento de milicias de Barcellos debaixo do solar de
D. Maria Pinheiro. Na janella gothica do velho edificio da época de D.
Affonso IV estava D. Miguel I assistindo ao desfilar do seu exercito
vencedor, em que havia muitas musicas marciaes, de fulgurantes trompas,
tocando o _Rei-chegou_: e o abbade de Calvos, dentro de um carroção e
vestido de pontifical, borrifava o povo com hyssopadas de agua-benta,
cantando o _Bemdito_. As tropas estendiam-se até Barcellinhos, e pelo
Cavado abaixo velejavam muitos barquinhos embandeirados de galhardetes
com as bandas musicaes de S. Thiago d'Antas e de Ruivães tocando a
_Cana-verde_ e _Agua leva o regadinho_. Em um d'esses bergantins com
pavilhão de colchas vermelhas vinha sentada a irmã do padre Roque,
mestre de latim, com os seus oculos, a fazer meia; e ao lado d'ella,
vestida de setim branco e borzeguins vermelhos dourados, com os cabellos
soltos, vestida como os anjos da procissão da Senhora da Burrinha em
Braga, a Martha de Prazins. Elle estava na ponte, absorto na visão da
noiva que chegava pelo Cavado para se casar quando um visinho lhe bateu
com o cabo da sachola na janella tres pancadas. Saltou da cama
atordoado.

--Que fugisse pelo quintal que já estavam soldados a entrar nas
Lamellas com o regedor.

Zeferino ganhou de prompto os desvios d'um pinhal, e por detraz d'um
socalco enxergou o Simeão ao lado do sargento da escolta parar em
frente da sua casa e apontar para as janellas. Ouviu bater estrondosas
cronhadas no portal, e viu alguns soldados invadirem depois o quintal, e
entrarem pela porta da cozinha que ficara aberta. Depois avistou a
escolta a retirar-se com dous homens carregados de armas.

O velho alferes, entrevado, estava muito afflicto quando o filho entrou.
O sargento quizera levar-lhe a sua espada; e compadecera-se d'elle
quando o vira a chorar e a dizer-lhe que era um alferes do antigo
exercito, e que o deixasse morrer ao lado da sua espada, já que elle
não podia defendel-a porque estava tolhido.

O Zeferino perguntou pacificamente:

--E o Simeão que dizia?

--Não dizia nada. Eu é que lhe disse... _Arrieiros somos, na estrada
andamos_, visinho Simeão.

O pedreiro quedou-se longo tempo sentado com as mãos afincadas na
cabeça: olhava para o canto em que tivera duas duzias de espingardas
compradas pelo Cerveira Leite, e dizia com resignação contrafeita:

--Ellas assim com'ássim já não serviam de nada... A guerra acabou ...
Que leve o diabo tudo...--E, passados alguns segundos de recolhida
angustia:--Veja você, sôr pai! O Simeão dá-me a filha, depois diz
que m'a não dá; isto não se fazia a um homem que põe navalha na
cara... Eu levava a minha vida muito direita, estava muito bem, você
bem sabe; deitei-me a trabalhar quanto podia; e vai depois, por causa da
minha paixão, fiquei areado do juizo, deixei a arte, andei por esse
mundo a gastar á minha custa, ao frio e ao calor, em términos de me
levar o diabo com uma bala; e vai agora o Simeão entra-me pela porta
dentro, leva-me as armas, e, se me pilha, mettia-me uma baioneta no
corpo...

--Homem--atalhou o pai com juizo--não fosses tu lá a Prazins embirrar
com o brazileiro...

--Eu tenho a minha paixão--objectou o filho com transporte--tinha cá
dentro do peito esta navalha de ponta espetada; e elle ... que mal lhe
fiz eu p'ra me querer mal?... Sabe você que mais?... Assim com'ássim,
estou perdido...

Sahiu arrebatadamente e foi para o Monte Cordova conversar com o
Patarro, um velho scelerado que se batêra em Braga com a cavallaria do
Casal e pudéra salvar-se com o sacrificio de tres dedos e do nariz
acutilados.


Na semana seguinte, quarta-feira, era o mercado de Famalicão. O regedor
tinha comprado duas juntas de bois para o caseiro da Retorta, uma quinta
solarenga, torreada, com o brazão dos Brandões, que o brazileiro
comprára a um fidalgo de Afife. O negocio deitára a tarde. Simeão
sahira ao desfazer da feira com o caseiro da Retorta e mais dous
lavradores d'outra freguezia que montavam eguas andadeiras de muitos
brios. O Simeão cavalgava a sua velha russa, d'uma pachorra mansa,
invulneravel á espora. Recebia as chibatadas encolhendo os quadris e
andando para traz. Ella não podia manifestar de um modo mais sensivel
a sua repugnancia pelas pressas. O dono gabava-se de só ter cahido
juntamente com ella poucas vezes. Sahiram da feira conversando a
respeito de Martha. Constava aos outros que ella se quizera matar á
conta do José Dias. O Simeão achava que sim, que ella quizera
atirar-se ao rio; mas que estava quasi boa em Caldellas; que o vigario e
mais a irmã lhe tinham dado um geito ao miôlo; e logo que ella
estivesse fina, casava com o tio.

--E elle quél-a? — perguntou o Bento de Penso.

--Pois então!... Tomára-a elle já.

--Emfim--tornou o Bento--você ha-de perdoar que eu lhe diga o que tenho
cá no sentido. O povo diz que o Dias entrava lá de noute. Eu não vi,
mas é o que diz o povo. Ora um home sempre se atriga de casar com
mulher de maus cretos. O seu brazileiro pelos modos é de bô comer...

--Tem bô estomago, é o que é--confirmou o Belchior da Rechousa.

O Simeão não estranhava estas franquezas muito triviaes nas aldeias
ainda immaculadas do resguardo das conveniencias; mas defendia a honra
da filha, attribuindo ao Zeferino as calumnias que espalhava para se
vingar.

--Emfim--disse o Belchior--você tinha-lh'a dado por quinze centos. É o
que diz o povo, e palavra d'home não torna a traz.

--Isso cá da minha parte foi chalaça...--defendia-se o Simeão, quando
tres homens, mascarados com lenços, fincando as argolas dos paus no
caminho, saltaram de uma ribanceira, á frente das tres eguas que
caminhavam a passo. Um dos tres jogou uma paulada á cabeça do Simeão
e derrubou-o.

Os dois lavradores das eguas travadas deram de calcanhares e pareciam
dois duendes de comedia magica vistos á luz crepuscular. O caseiro
abandonou as sôgas dos bois, galgou paredes e searas em desapoderada
fuga até Famalicão, e á entrada da villa gritou--aqui d'el-rei
ladrões! Contou o successo ao povo alvorotado, acudiu a auctoridade,
encheu-se a estrada de gente em cata de Simeão e da malta dos ladrões.
Acharam-o prostrado, de costas, arquejando, com a cara empastada de
sangue que borbotava empoçando-se dos dois lados da cabeça. A egua
rilhava entre os dentes e o freio umas vergonteas tenras de tojo, e de
vez em quando tossia a sua pulmoeira com os ilhaes enfolipados. O
Futrica, um ferrador da Terra Negra, examinou a cabeça do ferido, e
disse que tinha o miôlo á vista; não podia durar muito, que lhe
dessem a santa uncção. Pediu-se uma padiola ao lavrador mais proximo e
levaram-o para Prazins promettendo duas de doze a dous jornaleiros. O
caseiro montou a egua para ir a Santo Thyrso chamar o Baptista, o
cirurgião da casa; mas a burra estranhando as esporas dos tamancos,
levantou-se com o cavalleiro, deixou-se cahir sobre os jarretes
trazeiros, voltou-se de lado como quem se ageita para dormir: foi
necessario levantal-a. O povo dava risadas estridentes quando o caseiro
puxava debaixo do ventre da egua a perna entalada, muito cabelluda; e
alli perto estava a padiola com um velho gemente, agonisante, a pedir a
confissão.

Assim que a padiola entrou em Prazins, foi aviso á Martha que o pai
estava a morrer com pancadas que lhe deram os ladrões de estrada. D.
Thereza e o prior acompanharam-a. Quando chegaram, sahia o parocho de o
confessar e tocava o sino ao viatico. Havia uma agitação de angustiosa
curiosidade no povo que confluia á egreja chamado pelo signal. Dizia-se
que eram ladrões que sahiram ao lavrador em S. Thiago d'Antas; havia
opiniões mais individualistas: segredava-se o nome do pedreiro; um
pastor de cabras dizia que vira passar de madrugada para as Lamellas o
Patarro de Monte Cordova e mais outro mal encarado; mas todos é uma
diziam que não tinham visto nada, nem queriam saber de desgraças, com
medo á malta do Zeferino.

O Simeão estava ainda com a face arregoada de sangue, vestido sobre a
cama, resfolegando com muita anciedade, gemendo com dôres, e a cabeça
um pouco elevada sobre um magro travesseiro muito comprido dobrado em
tres pelo vigario. Esperava-se o cirurgião. A filha teve um desmaio
quando viu a cara ensanguentada do pai, á luz mortiça de uma vela de
cebo n'uma placa de lata. D. Thereza com a Martha nos braços, disse ao
irmão:--Que miseria de casa! Pede luzes e agua para se lavar aquelle
sangue.--E, assim que Martha voltou a si, levou-a para o seu
quarto,--que a viria chamar quando o pai a pudésse vêr. Queria
retiral-a do espectaculo dos paroxismos.

Quando chegou a extrema-uncção com o prestito clamoroso do _Bemdito_ e
o tilintar espacejado da campainha, Martha carpia-se em altos gritos, e
pedia que a deixassem despedir-se de seu pai.

Ella tinha ouvido dizer a uma das visinhas que lhe invadiram a
alcôva:--quem lhe bateu, ó mulheres, não foi outro senão o Zeferino
das Lamellas. Juro que não foi outro.--Esta affirmativa cravou-lhe no
coração o remorso de ser ella a causa da morte do pai. Queria ir
pedir-lhe perdão; rogava á sua amiga que pelas chagas de Christo a
deixasse ir ajoelhar-se á beira de seu desgraçado pai. D. Thereza
conteve-a, receando novo ataque de loucura; que esperasse que se fizesse
o curativo; que o cirurgião não queria no quarto senão o barbeiro que
lhe estava a rapar a cabeça.

Pouco depois chegava o tio Feliciano da quinta da Retorta, onde residia
assistindo ás obras. Vinha aterrado. Disse ao Osorio que já estava
arrependido de comprar a quinta; que Portugal era uma ladroeira e um
bando de faccinoras; que se ia embora muito breve. E, entrando no quarto
onde a sobrinha chorava, disse-lhe consternadamente que, se morresse o
pai, fizesse de conta que tinha em seu tio um segundo pai.

O cirurgião sahiu desconfiado do ferimento. Uma das pauladas despegara
um pedaço de tegumento, deixando descoberto o craneo que o ferrador da
Terra Negra chamára o miôlo. A hemorrhagia era grande, e havia receio
de commoção cerebral. O facultativo, depois de o sangrar, mandou-lhe
pôr pannos molhados na cabeça, de quarto em quarto de hora. Martha e
Thereza não abandonaram um momento o catre do enfermo; o padre Osorio
passou a noite na saleta attendendo o brazileiro que lhe fallava muito
na sobrinha, na paixão que ella tivera pelo José Dias, e não lh'o
levava a mal, pelo contrario.

Ahi pela madrugada o ferido sentiu-se muito angustiado, tinha
estremecimentos, dizia disparates; queria arrancar os pachos da cabeça,
bracejava, e puxava para o peito a face da filha lavada em lagrimas. O
padre acudiu e mais o Feliciano; receavam que elle estivesse agonisando.
Depois aquella agitação esmoreceu n'um dormitar sobresaltado, com a
cabeça no regaço de Martha que brandamente lhe compunha o pacho na
ferida. Quando espertou da modorra conheceu a filha, e repelliu-a.
Fallou no pedreiro que o matára, e recahiu no estado comatoso. O padre
Osorio attribuia aquella somnolencia a derramamento de sangue no craneo,
um symptoma de morte provavel. O cirurgião veio de madrugada,
mandou-lhe deitar sanguesugas atraz das orelhas, e disse ao vigario do
Caldellas que estava mal encarado o negocio; que aquelle diabo de somno
lhe parecia de máo agouro. Que ia vêr uns doentes e voltava logo.

Martha fazia muitas promessas á Senhora da Saude; dez voltas de joelhos
ao redor da sua capella, um resplendor de prata, jejuar a pão e agua
seis mezes a fio, não comer carne durante um anno, ir descalça á
romaria da milagrosa Senhora. Com estas promessas sentia-se menos
opprimida do seu remorso; o pai estava ali a morrer por causa d'ella, e
a Maria de Villalva já dizia tambem que fôra ella a causa da morte do
seu filho. Uma desgraçada, que vinha assim a causar a morte do noivo e
do pai.

O ferido teve uma intermittencia de repousada vigilia. Olhou para a
filha, e disse-lhe que morria, que a deixava sem pai nem mãe. O
Feliciano acudiu:

--Isso não lhe dê cuidado, mano Simeão. Nada lhe ha-de faltar. É
minha sobrinha; não tenho mais ninguem n'este mundo.

--Eu morria contente--balbuciou o Simeão lacrimoso--se ella fosse sua
mulher...

Fez-se um silencio exquisito. Martha abaixou os olhos; a D. Thereza
olhou para o irmão a vêr o que elle dizia; o padre Osorio olhava para
o brazileiro a vêr como se expressavam as suas idéas; o Feliciano
esperava que os outros dissessem alguma coisa. E então o pai de Martha,
aconchegando-a de si, com muita ternura:

--Casas com o teu tio, minha filha? É o ultimo pedido que te faço...

Martha fez um gesto affirmativo, e cahiu de joelhos, curvada sobre o
leito, a soluçar; depois, deu um grito e escorregou para o chão, em
convulsões, com o rosto muito escarlate e a bocca a espumar. D. Thereza
e o irmão conduziram-a ao seu quarto. Deitaram-a já socegada, mas
n'uma rigidez insensivel, com a bocca ligeiramente torta.

O cirurgião chegava n'esta conjunctura e disse que a rapariga herdára
a molestia da mãe, que eram ataques epilepticos; e ao tio Feliciano
disse-lhe particularmente que o peior da herança não era a epilepsia;
era a demencia que levou a mãe ao suicidio. Que a rapariga era fraca, e
tinha sido creada com umas mimalhices de menina da cidade, que estragam
o corpo e a alma; que era preciso ter muito cuidado com ella, não a
affligir, distrahil-a, casal-a, emfim, que seria bom casal-a, e dar-lhe
vinagre a cheirar, quando viesse outro ataque, e ter cuidado que ella
não apanhasse a lingua entre os dentes; que lhe mettessem um panno
entre os dois queixos, quando lhe désse outro ataque.


--Elle disse que o melhor era casar-se--lembrou o Feliciano ao padre
Osorio.


[Nota de rodapé 9: Era o meu actual e pregado amigo Augusto Soares
d'Azevedo Barbosa de Pinho Leal, auctor do "Portugal antigo e moderno".]

[Nota de rodapé 10: Carta de 10 de junho de 1877.]

[Nota de rodapé 11: Quando Pinho Leal publicar as suas _Memorias_,
então se saberá o verdadeiro nome do morto.]

[Nota de rodapé 12: Carta citada.]



XVI


Relatava o vigario de Caldellas:

--O cerebro do Simeão, se era refractario aos golpes da dignidade, não
era mais sensivel ás commoções das pauladas. Duas vezes feliz quanto
á cabeça: nem honra nem predisposições inflammatorias. Cicatrisou a
ferida; começou a comer gallinhas com a fome de um cannibal e com o
prazer carnivoro d'uma raposa. Dera tacitamente Martha o consentimento
de casar com o tio; esperava em soturno abatimento que a casassem; e, se
minha irmã lhe tocava n'esse assumpto, dizia: «Façam de mim o que
quizerem... Para o que eu hei-de viver ... tanto' me faz...» Quanto ao
casamento, proseguiu o padre Osorio, eu scismava se a primeira noite
nupcial seria a véspera de escandalosas desavenças, arrependimentos,
choradeiras, divorcio, vergonhas, coisas; mas occorria-me que Feliciano
me confessára repetidamente que sahira da sua aldeia aos doze annos e
tornára casto e puro como sahira. E eu então, attendendo a que a
castidade, além de ser em si e virtualmente uma coisa boa, tem umas
ignorancias anatomicas, e umas inconscientes condescendencias com as
impurezas alheias, descançava, tranquillisava o meu espirito
escrupuloso. Uma falsa comprehensão da honra alheia ás vezes me
aconselhava que mandasse o brazileiro conversar sobre o assumpto com o
operario que o luar enganára em certa noite; mas a honra, como a
consciencia, não são quantidades constantes no geral das pessoas; são
condições da alma tão variaveis como a materia exposta ás mudanças
climatericas. Ora as condições mentaes e moraes de Feliciano Prazins
eram as melhores e as mais garantidas para a sua felicidade. Com que
direito ia eu estragar aquelle excellente organismo?

Até aqui o padre Osorio com a sua grande pratica ethnologica dos usos e
costumes dos maridos sertanejos do Minho.

O mano lavrador não era mais apontado em melindres de pundonor. Assim
como curára em silencio o coração, golpeado pelas deslealdades da
defunta Genoveva, do mesmo modo se acommodára com os estragos soffridos
nos tegumentos da cabeça. Dizia-lhe o administrador que querelasse
contra o Zeferino, porque havia testemunhas indicativas que faziam
prova. Não quiz.--Depois é que me dão cabo do canastro;--dizia com um
dom prophetico, e circumspecção admiravel em um homem sem instrucção
primaria.

No entanto, Zeferino debatia-se n'um azedume de desesperado, muito má
lingua, insano de paixão, a degenerar para faccinora em theorias de
escavacar meio mundo. Começou a superar-lhe nas entranhas o vicio do
pai com sêdes ardentes de vinho do Porto e genebra. Sentia allivios,
consolações ineffaveis, quando se embebedava; rejuvenescia; a vida
encarava-se-lhe melhor. Arranchava com vadios nas noitadas das tavernas
onde se jogava esquineta e monte. Trocava na mesa da tavolagem peças de
duas caras que comprára no tempo em que amealhára dez mil cruzados com
dez annos de trabalho. Os parceiros roubavam-no. Vinham de noite de
Famalicão a Landim, perto das Lamellas, jogadores professos, armar a
forquinha ao pedreiro com cartas marcadas e pêgo. Depois das perdas,
quando se via atascado na esterqueira do jogo e da borracheira,
embriagava-se de novo, e n'essas allucinações ia a Prazins, de clavina
ao hombro, com o Tagarro de Monte Cordova, e fallava alto, com
petulancia, para que Martha o ouvisse. O brazileiro e o Simeão
tinham-lhe medo e não abriam as janellas depois do sol-posto.

Espalhou-se então a noticia de que o brazileiro ia effectivamente casar
com a sobrinha.

O Zeferino escreveu ao Feliciano uma carta anonyma, que era um traslado
augmentado do depoimento do pedreiro que vira o José Dias saltar da
janella. E por fim ameaçava-o--_que se casasse com a Martha, não a
havia de gosar muito tempo_. O Feliciano mostrou a carta ao irmão.
Concordaram que era o pedreiro com a sua paixão, damnado de raiva. O
brazileiro entrou a scismar que o scelerado era capaz de levar a
vingança ao cabo--bater-lhe, matal-o. Os tiros desfechados á sua honra
de marido de Martha resvalavam-lhe na coiraça da consciencia: «eu sei
o que faço» dizia elle; mas a idéa de um tiro ao seu physico,
inquietava-o devéras. «É preciso dar cabo d'este ladrão» dizia o
brazileiro ao mano, n'um grande mysterio.

Lembrou-lhe o seu compadre, o Francisco Melro da Pena, um taverneiro de
olhos estrabicos, d'alcunha o _Alma-negra_, um que o tinha avisado,
quando a malta da patuleia tencionava agarral-o. O Melro rompera
relações com o Zeferino, por causa da partilha de uns dinheiros
apanhados na mala do correio de Guimarães, e dizia hyperbolicamente ao
seu compadre que o Zeferino, quando andára na patuleia, era ladrão
como rato.

O Melro era má bisca. Estivera tres annos na Relação como cumplice em
um homicidio que se fizera na sua tasca. Vivia apertadamente com mulher
e quatro filhos, e não cessava de pedir emprestimos ao compadre desde
que o avisara. Quando o Simeão foi espancado, o Melro logo lhe disse em
segredo que quem lhe batêra fôra o Zeferino, com as costas guardadas
por dois pimpões do Monte Cordova. E accrescentou:--Elle bem sabe a
quem as faz. Havia de ser commigo eu com pessoa que me doesse...


O Feliciano deu um passeio para os lados da Pena, onde morava o
compadre. Disse-lhe que ia vêr a quinta da Commenda que se vendia; que
lh'a fosse mostrar. Conversaram; e, no regresso, pararam em frente de
uma casa com tres janellas e um quintal espaçoso.

--É aqui, disse o Melro.

O brazileiro poz o monoculo e leu um bilhete pregado na porta com quatro
tachas: _Domingo, ás 10 da manhã, depois da missa, vai á praça a
quem mais dér sobre a avaliação judicial de 500$000 réis esta casa,
dizima a Deus, para partilhas_. O Feliciano leu, retirou-se apressado
para que o não vissem, murmurando quaesquer palavras a que o compadre
Melro respondeu:

--Vossoria então está a lêr! Tão certo tivesse eu o céo como tenho
a casa...

Feliciano seguiu para Prazins e o Melro disse aos freguezes da taverna
que o seu compadre ia comprar a quinta da Commenda, e que estivera a
lêr o escripto da casa do Cambado que se vendia, e dissera que talvez
a comprasse para a dar a um afilhado ...

--Ao teu pequeno?!--perguntavam.

--Pois a quem ha-de ser! Aquillo é que é um homem ás direitas!

--Elle não sabe o que tem de seu. Tanto lhe monta dar-te a casa como a
mim pagar-te um quarteirão d'aguardente--encareceu um pedreiro.--Anda
agora a trabalhar no palacio da Retorta. Que riqueza! Parece um
mosteiro. Pelos modos vai para lá viver logo que case com a Martha. Lá
o mestre Zeferino rebenta que o leva os diabos! Isso diz que dá cada
arranco...

--O Zeferino, a fallar a verdade, tem razão--disse o Melro.--O Simeão
tinha-lh'a promettido. Gente sem palavra que a leve o diabo! Eu, se
fosse commigo... Mas, emfim, é irmão do meu compadre ... não devo
dizer nada. Que se governem.


O Melro, ás 8 da noite, quando os freguezes desalojaram, fechou a
taverna; e, espreitando se os pequenos dormiam, disse á mulher:--A casa
do Cambado é nossa, mas é preciso vindimar o Zeferino...

--Credo!--exclamou a mulher com as mãos na cabeça.--Nossa Senhora nos
acuda!

--Leva rumor!--e punha o dedo no nariz.

--Ó Joaquim, ó marido da minha alma, alembra-te dos tres annos que
penaste na cadeia! Olha para aquelles quatro filhos!...

--Já te disse que me não cantes--e relançava-lhe o seu formidavel
olhar vêsgo incendido com os lampejos da candeia em que afogueava o
cachimbo de páo. Depois, foi tirar d'entre a cama de bancos e a parede
uma velha clavina. Sentou-se á lareira e disse á mulher que tivesse
mão na candeia. Enroscou o sacatrapo na ponta da vareta de ferro e
descarregou a arma, tirando primeiro a bucha de musgo, e depois,
voltando o cano, vazou o chumbo na palma da mão.

--Ó Joaquim, vê lá o que vaes fazer!--insistia a mulher, limpando os
olhos com a estopa da camisa. E elle, assobiando o hymno da Maria da
Fonte, despejava a polvora da escorva, desaparafusava a culatra e tirava
as duas braçadeiras. A mulher soluçava, e elle cantando n'uma surdina
rouca:


    _Leva ávante, portuguezes,
     Leva ávante, e não temer_...


--Pelas chagas de Nosso Senhor, lembra-te dos nossos pequenos.

E o Melro n'uma distracção lyrica:


    _Pela santa liberdade,
     Triumphar ou padecer_...


Depois, bufava para dentro do cano e punha o dedo indicador no ouvido da
culatra para sentir a pressão do sopro, que fazia um fremito aspero
impedido pelas escorias nitrosas. Pediu á mulher umas febras d'algodão
em rama, enroscou-as n'uma agulha de albarda e escarafunchou o ouvido do
cano.--Está suja--disse elle--dá cá um todo--nada de aguardente.

--Joaquim, vamo-n'os deitar, pelas almas. Não te desgraces!

--Traz aguardente e cala-te, já t'o disse, mulher, com dez diabos!--E
poz-se a assobiar a _Luizinha_. Enroscou algodão embebido em aguardente
no sacatrapo e esfregou repetidas vezes o interior do cano até sahirem
brancas e seccas as ultimas farripas da zaracotea. Soprou novamente e o
ar sahia sem estorvo pelo ouvido com um sibillo egual. Parecia
satisfeito, e cantarolava, _mezza voce_:


    _Agora, agora, agora,
     Luizinha, agora._


Armou a clavina, aparafusou as braçadeiras, a culatra e a fecharia,
introduzindo a agulha. Aperrou e desfechou o cão repetidas vezes,
acompanhando o movimento com o dedo pollegar, para certificar-se de que
o desarmador, a caxêta e o fradête trabalhavam harmonicamente.
Levantou o fusil de aço que fez um som rijo na mola e friccionou-o com
polvora fina; e, com o bordo de um navalhão de cabo de chifre, lascou
a aresta da pederneira que faiscava.

--Valha-me a Virgem! valha-me a Virgem!--soluçava a mulher.

E elle, zangado com as lastimas da mulher, com expansão raivosa, n'um
_sfogato_:


    _E viva a nossa rainha,
            Luizinha,
     Que é uma linda capitôa_...


--Vai á loja atraz da ceira dos figos e traz o masso dos cartuchos e
uma cabacinha de polvora de escorvar que está ao canto.

A mulher dava-lhe as coisas, a tremer, e fazia invocações ao Bom Jesus
de Braga, e ás almas santas bemditas. Elle encarou-a de esconso, e
regougou:--Máo! ... máo!...

Carregou a clavina com a polvora de um cartucho; bateu com a cronha no
sobrado, e deu algumas palmadas na recamara para fazer descer a polvora
ao ouvido. Fez duas buxas do papel do cartucho, bateu-as com a vareta
ligeiramente, uma sobre a polvora e a outra sobre a bala.


    _Agora, agora, agora,
     Luizinha, agora._


Depois, pegou da clavina pela guarda-matta, e poz-se a fazer pontarias
vagamente, passeando um olho, com o outro fechado, desde a mira ao
ponto.

A mulher fôra sentar-se no sobrado, á beira da enxerga de tres filhos
a chorar; o mais novo esperneava, dava vagidos na cama a procural-a. O
_Alma negra_ fôra dentro beber uns tragos de aguardente, voltou
enroupado n'um capote de militar, despojo das batalhas da _Maria da
Fonte_.--Ora agora--disse elle--ouvistes? porta da cozinha e a cancella
da horta aberta, porque eu venho pelo lado do pinhal.

--Vai com Nossa Senhora--disse a mulher--e poz-se de joelhos a uma
estampa do Bom Jesus a rezar muitos _Padre-nossos_, a fio.

Era uma noite de fevereiro, de nevoa cerrada, um céo de carvão
pulverisado em brumas molhadas, sem clareira onde lucilasse uma
estrella. Não se agitava um galho de arvore nua movido pelo ar nem
ondulava uma erva. Era a serenidade negra e immota das catacumbas. Ás
vezes rugia nas folhas ensopadas de nebrina no chão esponjoso das
carvalheiras a fuga rapida das hardas, dos toirões e das raposas que se
avisinhavam do povoado a fariscarem as capoeiras. O Joaquim Melro
estremecia e punha o dedo no gatilho. O restolhar d'um gato bravo, o pio
da coruja no campanario distante punham arrepios de medo na espinha
d'aquelle homem que ia matar outro--chamal-o á janella e varal-o á
traição com uma bala.--Era o traçado.

--Que raio de escuro!--dizia, esbarrando nos espinheiros perfurantes.

Em noites assim, o universo seria o immenso vacuo precedente ao _Fiat_
genesiaco, se os viandantes não esbarrassem com as arvores e não
escorregassem nos silvêdos das ribanceiras. O noctivago sente na sua
individualidade, nos seus callos e no seu nariz, a doce impressão
pantheista das arvores e dos calháos. Que este globo está muito bem
feito. Os transgressores do descanço que Deus estatuiu nas horas
tenebrosas, os scelerados das aldeias que larapeam o presunto do
visinho, que fisgam a moça incauta ou empunham o trabuco homicida, se
não temem encontrar as patrulhas civicas das grandes municipalidades,
encontram os troncos hostilmente nodosos das arvores que são as
patrulhas de Deus. Alguns, porém, protegidos pelo Mephisto a quem
venderam a alma pelo preço da consciencia eleitoral, ou mais barata,
chegam incolumes ao delicto, passando illesos como o lobo e o javali por
entre os troncos das carvalheiras esmoitadas, hirtas, com os galhos a
esbracejarem retorcidos n'uma agonia patibular.

O Melro, como o porco montez e o lobo cerval, embrenhára-se por pinhaes
e carvalheiras; ás vezes, parava a orientar-se pelo cucuritar dos
gallos tresnoitados e latir dos cães. Ao fundo das bouças ladeirentas,
rugia o rio Pelle nos açudes das azenhas e nas guardas dos pontilhões.
Lamellas era da parte d'além. Mas o rio, de monte a monte, rugia
intransitavel nas pequenas pontes. Foi á de Landim, uma aldeia
engravatada, onde ainda se avistavam clarões de luz nas vidraças das
familias distinctas que jogavam a bisca em ricos saráos do _faubourg
Saint-Honoré_, com uns deboches sardanapalescos de sueca a feijões.

Havia também um rumorejo de vozes que altercavam na taverna do Chasco.
Tinha dinheiro lá dentro. Jogava-se o monte.

O Melro cuidou ouvir proferir o nome do Zeferino. Abeirou-se, pé ante
pé, do postigo da taverna, e convenceu-se de que estava ali o pedreiro.
Era elle quem reclamava um quartinho que puzéra de _porta_, e o
banqueiro recolhêra com as paradas que estavam _dentro_, quando tirou a
contraria _de cara_.

--Que não admittia ladroeiras!

E o banqueiro desfeiteado observava-lhe que nada de chalaças a respeito
de ladroeiras; que todos os que estavam d'aquella porta para dentro eram
cavalheiros. O Zeferino replicava que não queria saber de cavalheiros;
que queria o seu quartinho ou que se acabava ali o mundo. Que quem
queria roubar que fosse para a Terra Negra.

A allusão era muito certeira e inconveniente. Estavam na roda dos
cavalheiros alguns veteranos da antiga quadrilha do Faisca, na Terra
Negra, muito desfalcada pelo degredo e pela forca. Travou-se a lucta a
sôco e páo; havia lampejos de navalhas que davam estalos nas mollas; o
Tagarro de Monte Cordova tinha feito afocinhar o banqueiro sobre os dois
galhos do baralho com um murro herculeo, phenomenal. O taberneiro abriu
a porta para escoar o turbilhão. Elles sahiram de roldão; e, quando
entestaram com a treva exterior, quedaram-se cegos como n'um antro de
caverna. Um, porém, dos que estavam, não sahiu; encostára-se ao
mostrador com as mãos no baixo ventre, gritando que o mataram; e,
vergando sobre os joelhos, n'um escabujar angustioso, cahiu de bruços,
quando o taberneiro e o Tagarro o seguravam pelos sovacos. Era o
Zeferino.


Quando, á meia noute, o _Alma-negra_ entrava em casa pela porta do
quintal, encontrou a mulher ainda de joelhos diante da estampa do Bom
Jesus do Monte. Ao lado d'ella estavam duas filhas a rezar tambem, a
tiritar, embrulhadas em uma manta esburacada, aquecendo as mãos com o
bafo.

O Melro mandou deitar as filhas, e foi á loja contar á mulher, livida
e tremula, como o Zeferino morreu sem elle pôr para isso prego nem
estopa. Ella poz as mãos com transporte e disse que fôra milagre do
Bom Jesus; que estivera tres horas de joelhos diante da sua divina
imagem. O marido objectava contra o milagre--que o compadre não lhe
dava a casa, visto que não fôra elle quem vindimára o Zeferino; e a
mulher--que levasse o demo a casa; que elles tinham vivido até então
na choupana alugada e que o Bom Jesus os havia de ajudar.

Ao outro dia, o Joaquim Melro convenceu-se do milagre, quando o
compadre, depois de lhe ouvir contar a morte do pedreiro, lhe disse:

--Emfim, você ganha a casa, compadre, porque mátava Zéférino, se os
outros não matam elle, hein?



XVII


Celebrou-se o casamento na capella da quinta da Retorta. Foi o vigario
de Caldellas o ministro do sacramento, D. Thereza madrinha, e o padrinho
veio do Porto, o barão do Rabaçal, um gordo, casado com as brancas
carnes velludosas da filha do Eusebio Macario. O padrinho, muito
faceiro, dizia ao Feliciano:--Mi pérdoe, amigo Prázins, você si casa
com minina mágrita, muito sêcca di encontros. A mi mi dá na tineta
para gostar das redondinhas, hein? É a minha philosophia. A mulher si
quer roliça, de manêras que a gente ache nos braços ella.

O devasso fazia córar o casto noivo. A Martha, á sobremesa, não lhe
percebia umas graçolas obrigatorias em bodas canalhas, que faziam
nauseas á aristocratica D. Thereza, muito pontilhosa em não admittir
equivocos. O vigario achava no barão a salôbra brutalidade que faz nos
intelligentes a cocega do riso que o Cervantes, o Rabelais, o Swift e o
portuguez snr. Luiz d'Araujo nem sempre conseguem quando querem.

A Martha, n'uma tristeza inalteravel, desde que sahiu da egreja. Ao fim
da tarde, fechou-se com D. Thereza no seu quarto, abriu o bahu, e tirou
do fundo o pacotinho das cartas do José Dias, e disse-lhe:--A senhora
ha-de guardal-as; e, quando eu morrer, queime-as, sim?

--E se eu morrer adiante de ti?--perguntou D. Thereza risonha.

--Diga então ao snr. padre Osorio que as queime: porque olhe--e
abraçou-se n'ella a chorar, a soluçar--eu ... eu morro, ou endoudeço.
Cheguei a esta desgraça; estou casada para fazer a vontade a meu pai,
cuidando que elle morria; não sei como hei-de sahir d'isto senão
acabando de vez ou perdendo o juizo como a minha mãe ... bem sabe como
ella acabou.

D. Thereza Osorio banalmente a consolava com o vulgarismo das coisas que
se dizem ao commum das meninas casadas com maridos repugnantes e
ricos.--Que se havia de affazer, que tudo esquecia com o tempo. Ella, um
pouco aristocrata por bastardia, não acreditava em melindres de
sentimentalidade na filha do lavrador parrana e da Genoveva da vida
airada. O apaixonar-se pelo Dias, um bonito rapaz d'aldeia, parecia-lhe
trivial; tentar suicidar-se quando elle morreu, para uma senhora lida em
novellas romanticas, era um caso ordinario e pouco significativo;
porém, condescender com a vontade do pai, casando com o tio,
pareceu-lhe um acto de condição plebea, a natureza reles da filha do
Simeão que afinal dominava estupidamente as indecisas manifestações
de uma indole artificialmente delicada.

O padre comprehendia mais humanamente Martha, dizendo á irmã:--Ella
quando consentiu em casar com o tio já estava doente da molestia
nervosa que a ha-de levar ao suicidio. D. Thereza, com o seu criterio um
pouco adulterado pelas excentricas heroinas de Sue e Dumas, não podia
entroncar aquella rapariga d'uma aldeia minhota na genealogia d'essas
parisienses naufragadas em romanescas tempestades. E de mais, se Martha,
como o irmão dizia, estava sob a influencia da loucura, a sua desgraça
parecia-lhe uma doença e não uma tragedia, segundo as exigencias de
uma senhora que tinha lido o mais selecto da bibliotheca romantica
franceza desde 1835 a 1845--tudo o que ha de mais falso e tolo na
litteratura da Europa. D. Thereza queria mais drama na desgraça de
Martha; porque, se alguma poesia elegiaca lhe concedêra pela tentativa
de matar-se, toda se resolvia em chilra prosa pelo facto de a imaginar
no thalamo conjugal com o arganaz do tio.


Eram horas de deitar. O padre tinha ido para Caldellas a fim de dizer a
missa de madrugada, e deixára a irmã a pedido de Martha; o barão do
Rabaçal escancarava a bocca n'uns bocejos ruidosos e levantava uma
perna espreguiçando-se; o noivo olhava para o mostrador do relogio
collado aos olhos; e Martha, muito aconchegada de D. Thereza.
queixava-se de caimbras; que lhe zuniam coisas nos ouvidos, que via
faiscas no ar, e tinha muito calor na cabeça. D. Thereza dizia-lhe que
se fosse deitar, que precisava de recolher-se. Martha pedia-lhe que a
deixasse ir dormir ao pé d'ella, pedia-lh'o pela alma de sua mãe, pela
vida de seu irmão.

A hospeda comprehendia, compadecia-se, receava o ataque epileptico,
precedido sempre das faiscas e caimbras de que se queixava a noiva; mas
não sabia como dirigir-se ao marido de Martha a pedir-lhe que se fosse
deitar sósinho. Nos seus numerosos romances não achára um episodio
d'esta especie. Interveio na critica conjunctura o Simeão, dizendo á
filha:

--São horas de ir á deita. O teu marido está a cahir com somno.

Martha fixou o pai com os seus olhos esmeraldinos rutilantes de colera,
n'um arremesso de cabeça erguida, e com os labios a crisparem. Era a
nevrose epileptica. Seguiram-se as convulsões, o espumar da bocca, um
paroxismo longo de vinte minutos. D. Thereza pediu que a ajudassem a
leval-a para a sua cama, e disse com fidalga impertinencia ao Simeão
que a deixassem com ella, e não lhe fallassem no marido. Simeão
coçava-se com grande desgosto. O brasileiro contava ao barão que a sua
sobrinha era atreita áquelles ataques; mas que o cirurgião lhe dissera
que lhe haviam de passar em casando. O do Rabaçal notou que o remedio
então bom era, e seria bom começal-o quanto antes. Disse mais
chalaças a proposito e foi-se deitar. Feliciano ainda foi saber como
estava a esposa; mas já não havia luz no quarto de D. Thereza.
Reoolheu-se á cama, e continuou mais uma noite no seu leito solitario,
virginalmente.


D. Thereza sentia-se mal, n'um embaraço quasi ridiculo, n'aquelle meio.
Martha não a largava, parecia uma creança espavorida, agarrada ao
vestido da mãe, assim que ouvia os passos do tio. Elle, muito
carinhoso, com o monoculo no olho direito, a offerecer-lhe castanhas
d'ovos, toicinho do céo, a pegar-lhe da mão e a fazer-lhe festas no
rosto muito córado de pudor. D. Thereza discretamente deixou-os
sósinhos. A Martha ficou a olhar para a porta por onde a amiga se
evadira, e fazia uns gestos de quem meditava raspar-se; mas o marido
tinha-a segura pelas mãos mimosas, beijando-lh'as ambas com uma
sensualidade delicada, um pouco babada, mas muito commedida, estendendo
os beijos quentes e humidos até aos pulsos lacteos e redondinhos.
Martha, n'uma impassibilidade, não se recusava ás caricias, e pareceu
mesmo inclinar um pouco o rosto quando o esposo com um bom sorriso do
amor dos quinze annos lhe pediu um beijinho, que foi mais demorado do
que era de esperar da sua candura e da inexperiencia de taes delicias.
Estavam ambos rosados; mas o rubor de Martha era carminado de mais e nos
seus olhos havia uma rutilação vaga pela extensão da grande sala.
Ella via a sombra de José Dias: era o José Dias em pessoa, dizia ella
depois a D. Thereza, quando recuperou os sentidos, e não sabia como a
transportaram para a cama da sua amiga. Apenas se lembrava de que o tio,
depois que a beijára no rosto, a levára pelo braço e entrára com
ella no seu quarto, apertando-a muito ao peito, levantando-a nos braços
com muita força, não a deixando fugir e suffocando-lhe os suspiros com
os beijos. Não se lembrava de mais nada. E D. Thereza, quanto cabia na
sua alçada, contava-lhe o resto imperfeitamente; isto é que o marido a
fôra chamar ao laranjal, um pouco afflicto, dizendo que a sua esposa
estava na cama sem sentidos; e pedia vinagre para lhe chegar ao nariz.

Padre Osorio veio jantar e buscar a irmã. Observou no aspecto do
brazileiro uma irradiação de felicidade, o jubilo de um homem que se
sentia impavidadamente completo, na integridade da sua missão
phyloginia. Foi então que o padre assentou as suas theorias um pouco
fluctuantes ácerca das vantagens da castidade em beneficio das
impurezas alheias.

O Feliciano, quando o cirurgião chegou á tarde, contou-lhe com pouco
recato de pudicicia conjugal as circumstancias, particularidades
occasionadas no «fanico da sua esposa», dizia elle. O facultativo, um
velho patausco, disse que não se admirava, porque a snr.ª D. Martha
era muito nervosa, imperfeita ainda na sua organisação, e que as
impressões desconhecidas e um pouco violentas nas constituições fracas
produziam extraordinarias perturbações; mas que não se assustasse,
que não era nada; que as segundas naturezas se faziam com o
habito.--Banhos de mar, aconselhava, bife na grelha e vinho do Porto,
quanto mais chôco melhor. O que se quer cá fóra é um rapaz; não ha
como um filho para fortalecer a compleição d'uma mulher debil; um
filho, quando sae do ventre da mãe, traz comsigo para fóra os máos
nervos, e acabam os cheliques. Ande-me com um rapagão p'rá frente!


Na ausencia de D. Thereza, a melancolia de Martha cerrava-se de dia para
dia. O governo da casa era-lhe de todo indifferente, como se fosse
hospeda. O marido não a compellia a interessar-se n'esses arranjos de
que, dizia o Simeão, ella nunca quizera saber em Prazins. O barão do
Rabaçal mandára-lhe do Porto cozinheira e governante. Martha sahia
raras vezes de uma saleta onde tinha um oratorio que trouxera de casa.
Confessava-se mensalmente a frei Roque, o irmão da sua mestra, e
professor do de Villalva, e demorava-se no confissionario com perguntas
desvairadas a respeito da alma de José Dias, por que dizia ella ao
padre-mestre que o via muitas vezes em corpo e alma, e até o ouvia
fallar e lhe sentia as mãos no seu corpo. O frade, sem revelar o sigilo
da confissão, dizia á irmã que a Martha dava em douda como a mãe.

O Feliciano ficou espavorido quando a mulher, n'um dos paroxismos
epilepticos, se pôz a rir para elle com os olhos espasmodicos e a
chamar-lhe _José, seu Josésinho_. Passada a nevrose, quando ela
imergia num torpor physico e mental, o marido contou-lhe o caso de lhe
chamar _Josésinho_. Ella parecia esforçar-se muito para recordar-se, e
dizia que não se lembrava de nada. Vinha o cirurgião a miudo:--que era
hysterismo, e consolava o marido com a esperança no tal rapagão,
esperanças bem fundadas, segundo as confidencias do pai; mas,
consultado pelo padre Osorio, o Pedrosa, um grande clinico, dizia que
a brazileira não tinha simplesmente a gota coral; que havia ali
epilepsia complicada com delirio, alienação mental intermittente, um
estado de inconsciencia ou consciencia anormal, e que verdadeiramente
se não podiam determinar bem quais eram os seus actos de lucidez
intercorrente.

--Ella está gravida--observou o vigario de Caldellas.--Parece que este
facto denota uma tal ou qual normalidade de consciencia, uma concepção
racional dos deveres de esposa...

--Não denota nada--refutou o medico.--Faça de conta que é uma
somnambula. E, como a sua demencia é funccional e não organica, não
ha desorganisações physicas que a estorvem de ser mãe. O meu collega
que lhe assistiu á ultima vertigem disse-me que, alguns minutos antes
do ataque, ella, n'uma grande irritabilidade, lhe dissera que fugia para
Villalva, que queria vêr o José Dias... O marido felizmente fôra
n'essa occasião prover-se de vinagre á dispensa. Eu considero-a
perdida, a menos que se lhe não dê uma prompta e completa diversão ao
espirito, e nem assim se consegue senão temporariamente desherdar os
desgraçados que tiveram mãe e avó como esta Martha. Eu assisti ao
primeiro e ao ultimo periodo da Genoveva. Repetiram-se as vertigens,
veio a decadencia gradual da razão, delirios, idéas confusas,
concepção difficil, nevroses vesanicas, e por fim, suicidou-se já
n'um estado de demencia epileptica, que os especialistas consideram a
mais incuravel. Este me parece o itinerario da Martha, e o casal-a com o
tio deixou de ser um acto immoral para ser um estupido arranjo de
fortuna por lado do pai e de luxuria por parte do marido. Esta pequena
tinha de vir a isto, e ha-de ir á demencia, mesmo sem drama nem
paixão. Tem o cerebro defeituoso assim como podia ter a espinha
vertebral rachitica. Como se faz a perda da vista? Pela paralysia dos
nervos opticos; pois a perda da vista normal da alma é tambem a
paralysia d'uma porção de massa encephalica. Bem sei que isto
embaraça um pouco os senhores theologos-methaphysicos, mas lá se
avenham: a verdade é esta.



XVIII


Chegaram por este tempo, vindos das terras de Basto a Requião, os tão
almejados missionarios, interrompidos no seu esteril apostolado pela
revolução da Maria da Fonte. Martha ouviu a noticia com alvoroço, e
disse que queria seguir os sermões,--que precisava de salvar a sua
alma. O Feliciano viera um pouco estragado de Pernambuco a respeito de
religião; mas respeitava as crenças alheias, e não contrariava as
devoções da sobrinha. O padre Roque era de parecer que se não
deixasse Martha entrar muito pela mystica; aconselhava o marido que
fosse viajar com a mulher, que a tirasse d'aquella terra, porque as suas
enfermidades não podiam cural-as os sermões nem as hostias. O egresso
conhecia a Pharmacia do varatojano de Borba da Montanha, e sabia que a
primeira receita de frei João era exorcismal-a como demoniaca.

--Dão cabo d'ella, vocês verão, dão cabo d'ella--dizia o
padre-mestre.

Eram quatro os missionarios que assentaram o vestibulo do paraizo em
Requião.

O padre José da Fraga ainda novo, bem composto e limpo nas suas vestes
sacerdotaes, grave e semblante intelligente. Tinha-se ordenado em
Brancanes com o proposito de ir propagar o christianismo na China;
depois, interesses e rogos de familia determinaram-o a ficar na patria,
sem abrir mão da vocação apostolica. Lêra e percebêra Raulica,
Lacordaire, e imitava o segundo com bastante engenho. O padre Osorio
dizia-lhe que guardasse as suas perolas para outro auditorio menos
suino. E, de feito, as mulheres, quando de madrugada o viam no pulpito,
aconchegavam-se umas das outras para commodamente tosquenejarem o seu
somno da manhã; e os homens diziam que não o chamava Deus por aquelle
caminho--que _não calhava p'r'á prédega_.

O padre Cosme de Tagilde, robusto, de meia idade, auctor da _Escada do
céo pelas escarpas do Golgotha_ e da _Via seraphica para o reino dos
Cherubins_, era pregador de sentimento. Tinha sido furriel no exercito
realista, e ordenára-se para herdar uns bens de uma parenta beata que
tinha horror á tropa. Lêra as novellas do Prévost e Madame de Genlis,
quando era furriel. Ficou-lhe d'essas leituras uma linguagem
amellaçada, com interjeições tragicas, e um geito especial de tocar
as mães com imagens ternas tiradas das coisas infantis. Por exemplo: _E
o teu filhinho, mulher, o filhinho que Deus te levou para a companhia
dos anjos, quando lá do céo te vê peccar, estende para ti os seus
bracinhos, e diz: Mãe, ó mãe! não peques; mãe, não peques! pelas
lagrimas que por mim choraste, não caias na tentação, porque, se te
perdes, se te afundas no abysmo eterno não tornarás a vêr o teu
filhinho que te chama do céo, mãe, ó mãe_! E infantilisava o timbre
da voz, inclinava a um lado a cabeça n'um langor menineiro, estendia os
braços do pulpito abaixo com as mãos abertas, alongava os beiços no
geito da boquinha de criança, e muito mavioso, n'um tremulo de voz e
braços: _Mãe, ó mãe_! E todas as que tinham perdido filhinhos
desatavam n'um berreiro.

O padre Silvestre da Azenha, homem antigo, d'uma porcaria de sotaina
digna dos agiologios, boa pessoa, incapaz de mentir voluntariamente, era
forte na topographia do inferno e nas genealogias, usos e costumes dos
diversos diabos. Affirmava que a legião d'elles se dividia em
esquadras, capitaneadas por Lucifer, principe da Luxuria, por Asmodeu,
Satanaz, Belzebut e outros, cada um com a pasta ministerial dos seus
competentes vicios. Dava noticia de um caudilho de esquadra, chamado
Behemoth, cujo empenho era bestializar os fieis--verdadeira
superfluidade.--Leviathan capitaneava o esquadrão da Soberba; e o
ministro e secretario de estado encarregado da pasta da Avareza
chamava-se _Mamona_. A sciencia moderna matou este diabo, extrahiu-lhe o
oleo, e pôl-o ao serviço dos intestinos dos peccadores--_oleo de
Mamona_. Explicava o padre ás mulheres o que era a corja dos _demonios
incubos_. Contava casos de algumas que ficaram gravidas d'esses
devassos, e dizia em latim que taes demonios fecundos podiam,
mesmo contra a vontade da mulher, _rem habere cum ilta_. E as
mulheres, sem pôr mais na carta, farejavam o latim e murmuravam
indignadas:--Tarrenego! Catixa! cruzes, canhoto!--e benziam-se,
cuspinhando nos calcanhares umas das outras.

Fr. João de Borba da Montanha, com quanto não frequentasse o pulpito,
era o vulto mais proeminente da missão. Sahira já velho do Varatojo,
peito fraco, um pigarro chronico de catarrho pituitoso, com poucos
dentes, por onde as palavras lhe sahiam assobiadas que nem melro nos
sinceiraes de julho. Por isso o confissionario era a sua faina de
prosperrimas colheitas para o céo, e os exorcismos a sua famosa gloria
cheia de triumphos sobre todas as esquadras dos demonios conhecidos do
seu companheiro padre Azenha. Eram ambos, de mãos dadas, o terror do
inferno; um a explorar diabos no planeta, o outro a enxotal-os. Á
omnipotencia d'este varatojano é que o vigario de Caldellas confiara a
reducção da mãe de José Dias.

Este egresso tinha feito á sua custa a terceira edição do _Peccador
convertido ao caminho da verdade_, obra do seu conventual varatojano
frei Manuel de Deus. Vendia o livro por 720, meia-encadernação.
Chamava-lhe elle o _seu balde de tirar almas do profundo poço do
enxofre infernal_ Todas as beatas se consideravam mais ou menos
empoçadas, e por 720 mettiam-se no balde de frei João. Barato.

Foi este o missionario escolhido por Simeão, de harmonia com o genro.
Martha lembrava-se que o seu José Dias lhe fallára n'elle com muita
esperança em que desfizesse os obstaculos do casamento. Quiz
confessar-se ao varatojano, e revelou para esse acto uma espectativa
seraphica, grande deliberação anciosa, um sobresalto jubiloso em que
parecia influir a cooperação sobrenatural do querido morto. O padre
Osorio entrevia preludios de loucura nas alegres disposições com que
Martha, n'um recolhimento contemplativo, desde o apontar da aurora,
esperava á porta da egreja que chegassem os missionarios com o cortejo
das mulheres encapuchadas, muito ramellosas, estralejando os seus
tamancos ferrados na grade do adro que vedava a passagem aos porcos.

Em quanto na egreja, depois da missão, se depunha a hostia nas linguas
saburrentas e gretadas das beatas--que enguliam aquella farinha triga
como quem devora sevamente um Deus--cá fóra armavam-se no adro dois
taboleiros, assentes em tripêças de engonços, com seus pavilhões de
guarda-soes de panninho azul. Algumas mulheres de aspectos repellentes,
sujas da pójeira das jornadas, com os canêllos callosos e encodeados,
expunham nos taboleiros as suas mercadorias, e ao mesmo tempo
injuriavam-se reciprocamente por velhas rixas invejosas á conta de
subornarem freguezas com caramunhas e palavreados. No silencio do
templo, ouvia-se cá de fóra:--Arre, bebeda!--Cala-te ahi, calhamaço!

A exposição bibliographica, feita nos taboleiros, além das obras em
brochura e encadernadas dos missionarios, constava da _Regra de S.
Bento_, da _Missão augmentada_, da _Missão abreviada_, das _Piedosas
meditações_, das _Horas do christão_, do _Mez de Maria_, do _Mez de
Jesus_ e do _Livro de Santa Barbara_. Havia tambem _Novenas_,
_Via-sacras_ com estampas d'um horror sacrilego, uns Christos que
pareciam manipansos do Bihé. Seguia-se a camada dos _Escapularios_; uns
eram de _N. S. do Carmo_, de _N. S. das Dôres_, da _Conceição_;
outros do _Preciosissimo sangue de Jesus_, do _Coração_ do mesmo, da
_Santissima Trindade_ e de _S. Francisco_. Tinham grande sahida os
_Cordões_ do mesmo santo, e as _Correias de S. Agostinho_, com um
botão de ôsso, a apertar na cintura,--arnez impenetravel ao diabo, por
causa do botão, que, posto na correia, tem virtudes para ôsso muito
admiraveis, quasi como as da carne, mas no sentido inverso--ella
attrahindo o cão tinhoso, e elle repulsando-o. De _Santo Agostinho_ e
do _Anjo da Guarda_ também havia _Rezas_ enfiadas em metal, ou em
cordão, simplesmente, mais baratinhas. Na especie medalheiro, grande
profusão: as medalhas mais procuradas eram as do _Coração de Maria_,
do _Coração de Jesus_, do _Anjo da Guarda_ e de _Santa Thereza_, a 10
réis.

As _corôas_, penduradas em barbantes ou estendidas em meadas, eram
diversas no tamanho e na nomenclatura: as _seraphicas_ com sete
_mysterios_, e cada mysterio com dez _Ave-Marias_; as da _S. da
Conceição_ com doze _Aves_ e tres _mysterios_:--uma certa conta que
os missionarios lá graduavam com a gafaria espiritual das confessadas.
Havia algumas que se aguentavam com os _Rosarios de quinze mysterios_, e
a _Corôa dos nove coros dos Anjos_, e a do _Preciosissimo sangue e
coração de Jesus_. Mas o grande consumo era de _contas de azeviche_,
refractarias aos máos olhados; de modo e maneira que, se o azeviche é
legitimo, senhores, logo que um inimigo nos encara a conta racha de meio
a meio.

Martha, a beata, a senhora _brazileira de Prazins_, como lhe chamavam as
regateiras das drogas da salvação, fornecera-se de tudo em duplicado;
mas sobre todos os devocionarios o da sua leitura dilecta era o
_Peccador convertido ao caminho da verdade_, edição do seu confessor
varatojano, fr. João de Borba da Montanha.

São impenetraveis os segredos revelados no tribunal da penitencia por
Martha ao seu director espiritual. O padre Osorio, não obstante,
suspeitava que a penitente revelasse, com escrupulosa consciencia,
solicitada por miudas averiguações do missionario, saudades,
reminiscencias sensualistas, carnalidades que se lhe formalisavam no
espirito dementado, emfim, visões e sonhos com o José Dias. Inferia o
padre a sua conjectura, sabendo que frei João lhe mandára lêr no
_Peccador convertido_, tres vezes por dia, o capitulo 33, intitulado
_Resistencia ás tentações contra a castidade_. Fortalecia esta
hypothese ter dito Martha a D. Thereza que a alma de José Dias lhe
apparecia em sonhos; e ás vezes, mesmo acordada, lhe parecia sentil-o
na cama á sua beira; e então mordia o travesseiro para que o tio a
não ouvisse chorar. Póde ser que estas revelações, communicadas ao
confessor, um simplorio incapaz de destrinçar entre doença e peccado,
fossem acompanhadas de particularidades sensitivas que Martha por
vergonha não contava á sua amiga. É certo que a confessada do
varatojano lia, declamando, deante do seu oratorio, tres vezes por dia,
a _Resistencia ás tentações contra a castidade_.

A oração dizia assim:

_Senhor amorosissimo, não vos escondais, não me deixeis sósinha, que
me cerca o leão para me devorar; os seus rugidos me atormentam para que
não goste as suavidades do vosso amor. Cercarei todo o mundo, subirei
aos ceos, não descançarei emquanto não achar o meu amor. Conjuro-vos,
filhas de Jerusalém, creaturas da terra que, se encontrares o meu
amado, lhe digaes que morro d'amor. E, se quereis os signaes para
conhecêl-o, ouvi. O meu amado é candido e rubicundo, escolhido entre
milhares; candido por divino, e rubicundo por humano, candido porque
innocente, e rubicundo por chagado. Ai! doce amor, onde vos escondestes?
Tende compaixão de quem vos busca. Estes signaes que de vós tenho só
servem de avivar-me a saudade, são settas que me ferem; morro,
desfalleço, se vos não acho._

_Os cabellos da sua cabeça são como o ouro mais puro e mais precioso,
são como palmitos e pretos como o corvo. Se não entendeis, filhas de
Jerusalém, nem eu vo'l'o saberei explicar; o que vos digo e que os seus
cabellos são fortes laços que bastam para prender a todo o mundo,
bastam para abrazar tudo de amor. Ai! amado do meu coração, se as
admirações do que sois abrazam a alma, que vos vê por enigmas, que
será quando vos vir claramente! Os seus olhos são como pombas sobre
correntes de aguas, mansos, puros, suaves, benignos, amorosos. Que
magestosos, que humildes, que graves, que serenos, que doces, que
suaves! Oh dulcissimo amor, já que tanto fechais os olhos para não
serem vistos, ao menos não os fecheis para me não verem! As suas faces
são como canteiros de flores aromaticas, sempre bellas, sempre
cheirosas; passam os dias, os mezes e os annos, e os seculos, e as faces
do meu amor sempre são flores, nem o sol as murcha nem o frio as corta,
nem a agua as corrompe, nem o vento as desfolha; são rosas, são
assucenas, são brancas e encarnadas. Oh! quem me dera uma gota da agua
que as rega, um grão do calor que as vivifica; quem me dera que o
jardineiro que as compõe me quizera semear umas flores no meu jardim e
tomar á sua conta compôl-as e regal-as, que o meu amado gosta muito de
flores. Dizei-me, aves do ar, flores do campo, peixes do mar, viventes
da terra, dizei-me se sabeis onde assiste este jardineiro. Mas que digo,
se este mesmo é o amado a quem busco e não mereço achar! Ó saudade
ardente, ó sede matadora, ó setta penetrante, ó amor escondido! Que
fareis, Senhor, que fareis, se o vosso empenho é ser amado, por que a
minha ventura está em vos ter amor, como escondeis o mesmo que me havia
de enamorar? Os seus labios são lirios, que distillam myrra excellente,
lirios de pureza d'onde sahem palavras que inflammam no amor da
mortificação. Oh! se fôra tão ditosa minha alma que recebêra alguma
parte da myrra que distillam teus lirios! Oh! se foram tão felizes meus
olhos que viram a engraçada côr de taes labios! Aonde estaes
escondido, amado do meu coração? Não sahem por esses labios as
palavras com que andais chamando pelas ruas, fortalezas e muros da
cidade: «Se algum é pequenino venha para mim?» Logo, como vos
escondeis d'esta pequenina pobre e necessitada que com tanto empenho vos
busca? Suas mãos são como de ouro feitas ao torno e cheias de jacintos,
todas perfeitas, todas preciosas; mas reparai, filhas de Jerusalém, e
por aqui vos será mais facil conhecêl-o, que, no meio do ouro e
jacintos, tem em cada mão um precioso rubi que a passa de uma para a
outra. O seu peito e entranhas são de marfim ornadas de safiras, dando
a conhecer a côr celeste da safira, a branca do marfim e sua dureza,
que os seus affectos são puros, candidos, castos, virginaes, fortes,
celestiaes e divinos, sinceros, compostos, solidos e constantes. Ó
peito de amor, entranhas de piedade, como assim vos fechaes para quem
vos ama? Aqui deve de haver mysterio! Gostaes talvez de me vêr afflicta
para provar se sou amante! Quereis que me custe muito o que muito vale,
porque, se o lograr a pouco custo, farei talvez pouco caso do que não
tem preço. Mas aí, amado meu, que, se me não dizeis aonde passaes a
sesta ao meio dia, temo que, andando vagabunda, venha a cahir nas mãos
dos vossos contrarios! A sua apparencia é como a do Libano, a sua
composição como a do cedro; em Judéa o monte mais formoso é o
Libano, no Libano a arvore mais excellente é o cedro: assim é o meu
amado entre os filhos dos homens. A sua garganta é suavissima, porque
sahem por ella as vozes, as respirações do peito, que é archivo de
amores e suavidades; em fim todo é formoso, todo perfeito, todo amavel.
Tal é o meu amado, este é o meu amigo, filhas de Jerusalém, creaturas
da terra; se o achardes, dizei-lhe que morro d'amor_...


Martha dizia a oração em voz alta, em modulações cantadas, n'um
arrobamento de _preghiera_. Aquelles dizeres, alinhavados pelo
varatojano, são extractos e imitações das escandecencias erothicas do
poema dramatico da _Sulamita_ no «Cantico dos Canticos»--os trêchos
mais lyricamente sensuaes da antiguidade hebraica. Elles deram o tom de
todas as exaltações nevroticas, desde os extasis hystericos de Thereza
de Jesus até ás allucinações da beata Maria Alacoque e da portugueza
madre Maria do Céo, a cantora dos passarinhos de Villar de Frades.
D'esta peçonha doce, elanguecente, vibratil e enervante, cheia de
meiguices epidermicas de um corpo nú em frouxeis de arminhos, é que se
fizeram uns Manuaes modernos em França por onde as adolescentes
principiam a conversar com Jesus e a comprehendêl-o em linhas
correctas, sob plasticas macias, a esperal-o, a desejal-o, como lh'o
figuram com todas as pulsações, redondezas e flexibilidades da carne.

Martha, entre o Deus incomprehensivel e o Christo-homem, via um ser
tangivel, o seu unico termo de comparação--o José Dias, esposo da sua
alma e dominador dos seus nervos reaccendidos e abraseados pela saudade.
Nas apostrophes a Jesus, palpitavam-lhe nitidas as curvas do amante que
a ouvia de entre as nuvens, n'uma clareira azul, com a sua lividez
marmorea e os anneis dos cabellos louros esparsos como nas cabeças dos
cherubins. Tinha aquelle namoro no céo quando abria a pagina do livro
com que o confessor lhe dissera que havia de exorcisar as tentações
voluptuosas da sua alma e do seu corpo.



XIX


Frei João não se entendia já com a sua confessada. Deviam ser
grandemente disparatadas as revelações de Martha para que o varatojano
desconfiasse que ella estava obsessa e que as suas visões deviam ser
malfeitorias de demonio incubo. Feliciano discordava da opinião do
inexoravel exorcista, quando elle o interrogava sobre miudezas de
alcôva. O marido contava singelamente que sua mulher passava a maior
parte do dia a rezar pelo livro no oratorio; que tinha dias de comer bem
e outros dias de não comer nada; que não dava palavra ás creadas, nem
se mettia no governo da casa; que com elle tambem fallava pouco, e não
desatremava. Que dormia bem e sempre na mesma cama com elle. Verdade era
que ás vezes elle acordava e a via sentada com os olhos postos no
tecto.

--Pois é isso...--atalhava o varatojano.

--É isso quê, snr. frei João?--perguntava o marido.

O confessor não podia explicar-se. O seu praxiste Brognolio, ampliado
pelo padre-mestre arrabido frei José de Jesus Maria, admoestava-o a
occultar de terceiras pessoas os signaes evidentes da obsessão de uma
alma, sem estar devidamente apparelhado para o combate e na presença do
inimigo. O apparelho, n'este caso, era a estola, a agua-benta, o
latim--uma lingua familiar ao diabo. Além dos preceitos da arte, havia
a inviolabilidade do segredo da confissão; e uma caridade decente
aconselhava que Feliciano ignorasse as tentativas adulteras do demonio
incubo, figurado na pessoa espectral do José Dias. Com o vigario de
Caldellas foi menos reservado o exorcista. Asseverou-lhe que a
brazileira de Prazins estava possessa, muito gravemente energumena. O
padre Osorio abriu um sorriso importuno, d'estes que vem de dentro em
golfos involuntarios como a nausea d'um embarcadiço enjoado. O egresso
reparou no tregeito heretico da bocca do padre, e perguntou-lhe se tinha
alguma duvida a pôr.

--Uma pequena duvida, snr. frei João, respondeu intemeratamente o
vigario.--Não posso acceitar que o diabo, sendo filho de Deus, seja o
ente perverso que faz soffrer a pobre Martha...

--_O diabo, filho de Deus_!--interrompeu o varatojano, levando as
mãos inclavinhadas á testa. Padre Osorio, o snr. disse uma blasfemia
enorme... Santo nome de Jesus! O _diabo filho de Deus_! Anathema!

--Anathema á logica, ao raciocinio, por tanto!--contraveio sereno e
risonho o outro.

--A logica? a logica de Calvino, de Voltaire.

--Não, senhor, a logica do professor que m'a ensinou no seminario
bracharense. Creador não é pai?

--É sim, e d'ahi?

--Deus é pai de todas as suas creaturas; ora o diabo é creatura de
Deus; logo: Deus é pai do diabo.

--_Distinguo_!--contrariou o varatojano.

E o vigario, sem attender á interrupção escolastica:

--Se Deus é bom, as suas creaturas não podem ser más; ora, o demonio
é máo: logo, o demonio não póde ser creatura de Deus; mas, se o
diabo não é creatura de Deus, pergunto eu o mesmo que um negro da
Africa perguntava ao missionario: Quem é o pai do diabo?

--_Distinguo_!--insistiu o varatojano apoiado nas velhas formulas da
dialectica esmagadora--Deus creou os anjos; d'estes houve alguns que se
rebellaram contra o seu creador, e foram precipitados do céo: são os
espiritos infernaes. Alguns d'esses anjos não desceram ás trevas
inferiores, e permanecem para flagello do genero humano no ar
caliginoso. _Aer caliginosus est quasi carcer dœmonibus usque in diem
judicii_, diz S. Agostinho. Deus permitte que os demonios vexem as
creaturas, pelo bem que póde resultar ás creaturas d'esse vexame. É o
que se colhe do Evangelho de S. João: _Omnia per ipsum facta sunt_. Por
tanto, Deus permitte o mal? logo: este mal é bom, por que Deus é o
Summo Bem. Verdade é que os males não são bens...

--Ia eu dizer...--atalhou o padre Osorio; ao que o missionario acudiu
prestes e victoriosamente:

--Mas Deus tira os bens d'esses mesmos males, como diz S. Thomaz:
_Bonum invenire potest sine malo, sed malum non potest invenire sine
bono_. Logo: Deus permitte o mal como causa do bem; _id est_, permitte
o demonio como exercitação saudavel do genero humano. _Melius
judicavit Deus de malis bona facere, quam mala nulla esse permittere_,
diz D. Agostinho: e S. Thomaz ainda é mais claro e persuasivo: «A
divina sabedoria permitte que os demonios façam mal pelo bem que d'ahi
resulta.» _Divina sapientia pennittit aliqua mala tieri per malos
Angelos propler bona quæ ex eis elicit_. São doze as causas por que
Deus permitte que os demonios atormentem as creaturas humanas. Primeira:
para que o homem obstinado na culpa seja n'este mundo e no outro
atormentado; segunda...

--Estou convencido, snr. frei João--atalhou o vigario,--vossa
reverencia já esclareceu a minha duvida. É o caso que Deus permitte
demonios flagellantes para depurar com elles os peccadores,--uns e
outros creaturas da sua divina justiça.

--É isso mesmo.

--O espirito do máo homem--do peccador que é em si um demonio interno,
depura-se pela acção de outro demonio externo, ambos creaturas do seu
divino amor... Percebi. Estou convencido... Deus é como um pai que
azorraga o seu filho querido a vêr se elle recebe as mortificações
como caricias. Rico pai!--E accrescentou com amargura:--Ah! meu frei
João, receio muito que as superstições venham a desabar o
catholicismo que deve a sua existencia á victoria que alcançou sobre
as mentiras da idolatria com as armas da verdade. _Ego sum veritas_.

Frei João ia fulminar segunda vez a argumentação do padre Osorio,
quando os outros missionarios chegavam, para assistirem ao jantar de
despedida em casa da brazileira.

Fechára-se a missão; os padres iam d'ali para Barcellos; mas frei
João, empenhado em desendemoninhar a pobre Martha, hospedou-se na
quinta da Revolta, em cuja capella celebrava missa e confessava as suas
filhas espirituaes insaciaveis do pão dos anjos, que digeriam n'uma
vadiagem dorminhoca, amesendadas nos adros das egrejas e nos soalheiros,
catando as proprias pulgas e as vidas alheias.

Frei João andava apercebido com todos os utensilios infestos ao diabo.
Resolvido a dar-lhe batalha, armou a energumena das mais provadas armas
nos seus triumphos sobre o inferno. Lançou-lhe ao pescoço um santo
lenho, um breve da Marca, a veronica do S. Bento, o Symbolo de Santo
Athanasio, cruzinhas de Jerusalém, veronica com a cabeça de Santo
Anastacio, reliquias de varios santos, umas esquirolas de ossos
grudadas em farrapinhos, orações manuscriptas da lavra do varatojano,
mettidas em saquinhos surrados da transpiração d'outras obsessas.

Martha devia jejuar, como preparatorio. Parece que o demonio se compraz
de habitar estomagos confortados na quentura do bôlo alimenticio. O
exorcista jejuava tambem conforme o preceito dos praxistas, e
aconselhava ao Feliciano que jejuasse, em harmonia com o texto de Jesus
que dissera pela bocca de S. Matheus que «taes diabos, sem jejum nem
oração, não sahiam do corpo:» _Hoc genus demoniorum in nullo potest
exire nisi oratione et jejuino_. O Feliciano dizia que sim, que jejuava;
mas, ás escondidas do frade, comia bifes de presunto com ovos;
começava a revelar idéas egoistas, um cuidado da sua alimentação e
do seu repouso, certo desprezo cynico pela parte que o diabo tomára na
sua familia.

Frei João de Borba da Montanha expendeu ao vigario de Caldellas os
fortes symptomas que Martha apresentava de estar possessa. Eram muitos,
e bastava-lhe citar os seguintes:

Ouvir a voz de José Dias que a chamava, no sonho e na vigilia. E
mostrava o texto: _quando patiens audit quasdam voces se vocantes_. Por
que aborrecia a carne e o pão, e tinha grande fastio. O Osorio
lembrava-lhe que seriam enôjos peculiares da gravidez; mas o varatojano
confundia-o com o latim. _Quando quis non potuit gustare panem aut
carnem_. Ella digeria com muita difficuldade os alimentos. Era obra do
diabo, por que o livro dizia,--bem vê--mostrava frei João ao padre
Osorio: _Quando quis sanus cibum digerere non potest in stomacho_.
Chorava e não dizia por que chorava. Diabrura com toda a
certeza:--_Quando lacrymas plorat et nescit quid ploret_. Havia um
artigo que accentuava as mais fortes presumpções da obsessão incuba
de Martha. Parece que ella no confissionario se accusava de
repugnancias, de concessões violentadas, de resistencias ás caricias
do esposo: e talvez revelasse que a imagem de José Dias intervinha
n'essas luctas da alcova. É o que se deprehende do _Signal_ decimo
terceiro que frei João mostrava com o dêdo no seu _Brognolo_, e vai em
latim, como lá está, para que poucas pessoas possam alegar
intelligencia:--_Quando vir uxori et uxor viro apropinquare non potest,
quia videt aliud corpus intermedium, aut sibi videtur esse_.--Aqui é
onde bate o ponto!--dizia frei João martellando com o dedo indicador na
pagina indecente.

--Mas não será essa visão o introito de uma alienação
mental?--perguntava o de Caldellas.--Não vê, padre João, que esta
rapariga está abatida por uma grande amargura que prende com actos da
sua vida passada? Não a vê tão cahida, tão melancolica...

--Os melancolicos são os mais vexados pelo demonio--replicou o egresso.
Veja Galeno e Avicena, que aqui vem citados.--E folheou o Brognolo, até
encontrar o texto triumphal.

--Aqui tem; leia, verá que a demencia póde ser obra do demonio.

O padre Osorio leu com uma grande ignorancia curiosa: _Os demonios
acommettem mais os melancolicos. Primeiro, porque o humor melancolico
com difficuldade se tira e é de sua natureza inobediente e rebelde.
Segundo, porque o humor melancolico é mais apto para gerar diversas
enfermidades incuraveis, porque, se é muito enxuto, offende as
membranas do cerebro e faz ao homem doudo; se offende os ventriculos
causa apoplexia, e gera raivas, frenesis e odios; e estes effeitos de
melancolia muitas vezes os costuma causar o demonio_, etc.

--O padre Osorio está-se a rir?!--invectivou fr. João abespinhado.
Sabe o snr. que mais? Eu já tinha ouvido dizer ao abbade de S. Thiago
d'Antas que o snr. padre vigario de Caldellas não era muito seguro em
materia de fé; que tinha um bocado de fedor heretico nas suas predicas,
e que dava mais importancia á quina do que aos santos milagrosos na
cura das maleitas.

--Se isso fede a heresia, então, snr. frei João, estou de todo
pôdre--obtemperou Osorio, e continuou deixando impar de espantada
indignação o missionario.--A respeito da enfermidade de Martha, sou a
dizer-lhe que em vez de exorcismos quereria eu que lhe ministrassem
banhos de chuva, calmantes, distracções; e, baldados estes recursos,
que a internassem n'um hospital de alienadas, porque esta mulher é
filha de uma douda, é neta de outros doudos, e pouco ha-de viver quem a
não vir de todo mentecapta. Além de herege sou propheta, meu caro
senhor frei João. A sua energumena tem infelizmente o demonio que raras
vezes a sciencia vence--o demonio da demencia hereditaria que a não se
curar com a agua em chuveiro, também se não cura com a agua benta.
Seria bom que vossa reverencia, antes de pôr á prova os exorcismos,
ouvisse a opinião dos medicos.

--Eu sei o que dizem os medicos--e sorria com menospreço da pobre
medicina. Eu, aqui onde me vê, com os exorcismos, com este remedio que
não inventei, mas que a egreja de nosso Senhor Jesus Christo me deixou,
e que elle mesmo, o divino Mestre usou, como o senhor padre Osorio deve
ter lido nos seus Evangelhos ... ou nega a auctoridade dos Evangelhos?
Nega que Jesus Christo expulsava demonios?

--Não senhor, eu sei a historia da legião que se metteu nos porcos...

--E outras; os livros sagrados estão cheios d'esses _factos_ a que o
padre Osorio chama _historias_; não são historias, são factos.

--Ah! snr. frei João! Jesus Christo, a sua vida e os seus milagres não
são historia? não pertencem á historia? Máo é isso então!

A polemica prolongou-se um tanto azeda; Osorio escandalisava os pios
ouvidos do egresso que, pondo as mãos no peito e os olhos no céo,
exclamava com S. Paulo que era necessario que houvesse escandalos.
Interrompera-os o brazileiro dizendo que a sua sobrinha estava com um
ataque e que lhe dera no jardim. Frei João entrou na alcôva para onde
a tinham levado em braços, e o padre Osorio ficou ouvindo a revelação
da governanta, que lhe dizia:

--A desgraçadinha está de todo varrida! Eu estava no tanque a passar
uns lenços por agua quando ella entrou no pomar sem fazer caso de mim,
como se ali não estivesse viva alma. E vae depois poz-se a cortar rosas
e a dizer que eram para o seu amado José Alves, para o seu esposo José
Alves. V. S.ª não me dirá quem diacho, Deus me perdôe, é este José
Alves?

--E depois?

--Depois, sentou-se debaixo da ramada, esteve a chorar com o ramo das
rosas muito chegado á cara e d'ahi a pouco cahiu para o lado a dar aos
braços e a espernear. Eu então chamei a cozinheira e levamol-a para o
quarto com os sentidos perdidos! O José Alves, quanto a mim, acho que
foi derriço que ella teve em solteira. Já ouvi dizer que a casaram com
o arenque do tio contra vontade... É o que tem estes casamentos...

O padre Osorio não illucidou a governante. Assim que o Feliciano lhe
disse que se iam lêr os exorcismos, retirou-se, pretextando deveres
parochiaes, e observou-lhe:

--Não deixe mortificar muito sua sobrinha com os exorcismos, snr.
Prazins. O demonio que ella tem é a doença. Faça o que lhe disse o
padre mestre Roque que é um velho illustrado e virtuoso. Vá dar um
giro com ella. Leve-a á capital; demore-se por lá; e, quando a vir
distrahida, contente e com bom appetite, volte para sua casa.

O brazileiro disse que bem sabia que os exorcismos eram chérinolas; mas
que o frade se lhe mettera em casa, e dizia que não se ia embora sem
curar ella. Accrescentou que não podia agora sahir do Minho porque
estava á espera que os filhos do Cerveira de Quadros perdessem na
batota do Porto a sua parte de alguns contos de réis, que acharam por
morte do pai;--que lhe convinha muito comprar a quinta da Ermida que
partia com a d'elle, e havia outro brazileiro que a trazia d'olho. Que a
respeito da sobrinha tencionava leval-a a banhos do mar, e havia de
comprar o Manual do Raspail, a vêr o que elle dizia da molestia, porque
em Pernambuco toda a casta de doença se curava pelo Raspail, e que
levasse o diabo o frade e mais a caiporice dos exorcismos.

--Que sim, que comprasse o Manual do Raspail--concordou o padre Osorio,
e sahiu muito cançado--dizia elle á irmã--de lidar com as duas
cavalgaduras.



XX


Martha estava no quarto, onde tinha o seu oratorio de pau preto com
frizos dourados, e dentro uma antiga esculptura em marfim d'um Christo
dignamente representado na sua agonia humana. De cada lado da cruz ardia
uma vela de cêra benzida. Frei João entrára de sobrepeliz e estola:
seguiam-no o Feliciano com uma vela de arratel acceza, e o Simeão com
a caldeirinha da agua-benta. Martha, com um pavor na vista, tremia, de
pé, encostada á commoda. O exorcista sentou-se, e chamou a energumena
com um gesto imperativo de cabeça. Ella aproximou-se hesitante e
ajoelhou. Fr. João compoz o semblante e deu á voz uma toada lugubre em
conformidade com a rubrica de Brognolo--_com grave aspecto e voz
horrivel_, diz o demonómano. Começou por exercitar o _Preceito
provativo_, a vêr se havia effectivamente demonio. E então bradou,
fazendo estremecer Martha: _In nomine Jesu Christi. Ego Joannes est
minister Christi_... Vinha a dizer, em vulgar, ao demonio ou aos
espiritos immundos, _vet vobis spiritis immundis_, que, se estavam no
corpo d'aquella creatura, dessem logo um signal evidente, ou vexando-a,
ou movendo-lhe os humores, segundo o seu costume, pelo modo que por Deus
lhe fosse permittido _eo modo quod a Deo juerit permissum_. Martha
estava retranzida d'um sagrado horror, posto que não percebesse do
latim do padre senão _demonio_ e _espiritos immundos_. Nunca lhe tinham
dito que ella estava endemoninhada, e á sua mentalidade faltava-lhe
n'este alance a força convincente e a energia da palavra para combater
o engano do seu confessor. Não tinha vigor de caracter nem rudimentos
de intelligencia para reagir. Educada em melhores condições,
succumbiria com a mesma vontade inerte sob a violencia do confessor. Ha
condescendentes humildades mais vergonhosas sem o diagnostico da
demencia que as desculpe. Ella estava de joelhos; mas, não podendo
suster-se, sentou-se n'um arfar de suspiros, anciada, até que as
lagrimas lhe explodiram n'uma torrente.

Frei João fez um tregeito de satisfação, um agouro de victoria, e
poz-lhe o _Preceito lenitivo_: «Que a vexação cessasse
immediatamente--impunha elle aos demonios malditos--e toda a afflicção
causada por elles» _et omnia afflictio a vobis causata_. E atacou logo
os demonios com o _Preceito instructivo_ «que immediatamente a
prostrassem na presença d'elle, se ella estava possessa» _et statim
coram me illam prosternatis_. Martha, com effeito, estava prostrada, com
a face no pavimento, estirando os braços no paroxismo epileptico, e o
collo e o tronco hirtos n'uma inflexibilidade tetanica.

--Não ha que duvidar--disse o exorcista ao marido e ao pai da
possessa.--Levem-na d'aqui e depois continuaremos.

Martha, passado o lethargo, disse ao tio que mal se lembrava do que
passára no oratorio com o snr. frei João; mas que lhe tinha mêdo, que
não queria mais confessar-se com elle.

--Cada vez mais provado que está obsessa. Já não é ella quem falla;
é o demonio que me teme!--exclamou o exorcista com uma santa basofia,
refutando as vacillações um pouco scepticas do brazileiro; ao passo
que o Simeão asseverava que a filha tinha o demonio; porque a sua
defunta mulher tambem o tinha, e se deitára ao rio porque nunca quizera
que lhe fizessem as rezas.

Ao outro dia, vencidas as repugnancias de Martha, continuou o exorcista,
carranqueando cada vez mais e pondo vibrações horrorosas na larynge.
Deu-lhe a ella o seu Brognolo para que lêsse em voz alta os _Preceitos
que a creatura vexada pôde pôr ao demonio_. Martha, de joelhos, diante
do oratorio, leu: _Demonio maldito, eu como racional creatura de Deus,
redimida com o seu precioso sangue, depois que para me salvar se
humanou, cheia de fé, te mando em virtude do santissimo nome de Jesus,
que logo me obedeças e me atormentes levemente, ou fazendo tremer o meu
corpo ou lançando-o em terra, deixando me em meu juizo_.

O corpo de Martha visivelmente tremia; ella deu o livro ao exorcista com
um arremesso impaciente, e murmurou soluçante:

--Deixem-me, deixem-me pelas chagas de Christo!

Frei João sorriu-se, e resmuneou á orelha do Feliciano--o maldito
serve-se do nome de Christo para me afastar! Eu vou escangalhar-te,
Satanaz!

E lançou mão do gladio das _Objurgações_. As objurgações são
perguntas feitas ao diabo, á má cara, e latinamente. _Dize, maldito
demonio, serpente insidiosa, conheces que existe Deus? Conheces que
foste creado anjo allumiado de muitas prendas, e que pela tua soberba te
perdestes? Sabes que, repulso do paraiso, perdeste para sempre a graça
de Deus_? Pergunta-lha a final, depois de muitas injurias, se reconhece
n'elle um ministro de Deus, e como ousará a não manifestar-se?
_Quomodo igitur poteris contra estimulum calcitrare_?

O demonio não respondeu ainda; mas o frade ia apertal-o, mandando que
se ajoelhassem todos. Elle então, n'uma postura seraphica, braços
cruzados no peito e olhos no Christo, declamou:

_Veni, sancte spiritus: reple tuorum corda fidelium, et tui amores in
eis ignem accende_. Pedia ao Espirito Santo que descesse a encher os
corações dos seus fieis, e abrazal-os no fogo do seu amor. Depois:
_Dominus vobiscum_.

--_É de co espirituó_--respondeu o Simeão, que sabia ajudar á missa.

Seguiram-se varios _Oremos_ e deprecações, e a _Ladainha de Nossa
Senhora_; mais outros _Oremus_, e a _detestação_ da energumena, uma
estirada que principiava: _E tu, demonio maldito, com que auctoridade
intentas possuir jamais meu corpo ou molestar-me por modo algum_? Martha
rejeitou o livro, e disse que não podia lêr nem estar de joelhos; que
tinha vágados e que se queria ir deitar. Mas o exorcista, severo e
formidavel no seu ministerio--que não, que não se ia deitar, que não
lhe fugia, que se puzesse de joelhos a seus pés! Elle então, segundo
a rubrica do livro director, _sentou-se, cobriu-se, voz grave e
horrivel, virado contra o demonio, como juiz para tal réo já
convencido_, aspergiu a possessa de agua-benta, ululando: _Asperge me,
Domine_ ... e recommendou aos circumstantes que apagassem duas velas, e
não dessem palavra. Profundo silencio. Ouvia-se apenas o zumbido das
moscas que se esvoaçavam do tecto attrahidas pelo calor da luz unica e
pousavam na fronte chagada do Christo. O recinto era espaçoso e quasi
em trevas. A vela, encoberta pelas curvas lateraes do oratorio, não
alumiava senão o curto espaço da projecção em que Martha, retrahida
n'um terror, tinha os dedos das mãos postas, chegadas aos labios, como
se quizesse abafar os suspiros.

Passados minutos, o exorcista começou a conjurar e ligar o demonio em
nome do Padre e do Filho e do Espirito Santo, tratando-o de _immundo_,
affrontando-o bravamente com epithetos que deviam offender o mais
desbragado patife. Martha fez um movimento de afflictivo desabrimento;
parecia querer fugir; mas o padre prendeu-a com a estola, em harmonia
com o Brognolo: _Se não estiver quieta, póde-a prender com uma
estola_. Feitas novas e mais terriveis conjurações, o exorcista
levantou-se com pavorosa solemnidade, e exclamou: _Exurge, Christe!
adjuva nos_! Levanta-te, Christo, e auxilia-nos!

O egresso continuava as evocações ao Christo, quando Martha cahiu sem
acôrdo.

--Victoria!--exclamou o exorcista--victoria!

E, mostrando ao brazileiro uma pagina do livro: ouça lá, snr.
Feliciano: _O signal mais certo de que o demonio obedeceu e se retirou
de todo é o que a sagrada Escriptura nos expõe no capitulo IX de S.
Marcos:--Deixar a creatura por terra algum tempo como morta. Isto se viu
no endemoninhado surdo e mudo que Christo nosso bem curou, e do qual diz
o texto: Et factus est sicut mortuus_. Depois, com jubilo, limpando o
suor:

--Podem leval-a, deitem-na, ponham-lhe as reliquias todas debaixo do
travesseiro.

Os dois não podiam facilmente levantal-a; na rigidez, como empedernida
do corpo, parecia collada ao pavimento. O brazileiro pedia ao exorcista
que a amparasse por um dos braços; mas o frade, artista austero,
respondeu que lhe era defêso pôr mãos nas possessas. E, de feito,
Carlos Baucio, na _Arte do exorcista_, legisla: «que os exorcistas não
ponham as mãos physicamente sobre a creatura, principalmente sendo
mulher (_propter periculum_), pois que as mulheres nem com o signal da
cruz se devem tocar--_Mulieres nec signo crucis sunt tangendæ_.

Martha passára a noite muito agitada, febril, com delirio; dava
risadinhas muito argentinas, fallava no José Alves; sacudia a roupa com
frenesi, e, quando emergia do torpôr, sentava-se no leito a olhar para
o tio, com uma fixidez repellente. Feliciano não se deitára, e de
madrugada disse ao irmão que fosse chamar o medico, que a Martha estava
com um febrão; e que levasse o diabo o frade para as profundas do
inferno e mais os exorcismos.

Já quando era dia, o brazileiro foi descançar um pouco na cama de D.
Thereza, porque receava que se lhe pegasse a febre da mulher. Ás nove
horas, a governante foi acordal-o, muito alvoroçada, para lhe dizer que
a snr.ª D. Martha tinha sahido sósinha ao nascer do sol e que uma
mulher a encontrára já perto da casa do vigario de Caldellas, a
correr, que parecia uma doudinha. Fr. João recebeu tambem a nova da
fuga, quando acabava de dizer missa em acção de graças pelo triumpho
obtido sobre o demonio. O medico chegava ao mesmo tempo, e informado das
scenas dos exorcismos, disse ao varatojano injurias que o frade não
tinha dito ao diabo; chamou ao brazileiro e ao irmão corja de
estupidos, e partiu para Caldellas com o Feliciano. O frade, insultado
pelo medico, e pelos modos bruscos e desabridos do brazileiro, citou
umas palavras de Jesus que manda sacudir o pó das sandalia no limiar da
casa dos impios, e foi-se embora. Seguiram-o algumas beatas n'um alto
chôro por longo espaço: e, quando elle desappareceu no cotovello da
estrada, houve d'ellas que arrancavam cabellos, cheios de lendias;
outras davam-se bofetadas, e as mais hystericas guinchavam uivos
estridentes.

O Melro, o taverneiro, o compadre do Feliciano, quando ellas lhe
passaram á porta a chorar, atraz do missionario, sahiu fóra, e
disse-lhes com um racionalismo brutal:

--Ah grandes coiras!



CONCLUSÃO


Martha regressou com D. Thereza, alguns dias depois. O brazileiro
conveio no tratamento hydropathico da esposa; e a compadecida irmã do
vigario offereceu-se como enfermeira da pobre senhora que se abraçava
n'ella com medo imbecil, a pedir-lhe que a não deixasse, que a
defendesse do missionario.

D. Thereza assistiu ao nascimento da primeira filha de Martha. Imaginava
a irmã do vigario que no espirito da mãe se havia de operar uma
benigna mudança; que o amor á filha seria diversão á saudade de
José Alves; mas a medicina não esperava alteração sensivel, porque
era materia corrente nos tratados alienistas que um cerebro lesado não
se restaura sob a impressão do amor maternal que só actua nas
organisações normaes. Porém, D. Thereza não podia crer que Martha
estivesse confirmadamente louca, posto que nas suas conversações em
que, raras vezes, se interessava, disparatasse, affirmando que via a
alma de José Alves, como quem conta um caso trivial.

Quando lhe mostraram a filha recem-nascida, contemplou-a alguns
segundos; mas nem balbuciou uma palavra carinhosa, nem fez gesto algum
de contentamento. A amiga dizia-lhe coisas muito meigas da filhinha, a
vêr se lhe espertava o coração. Punha-lh'a nos braços, dava-lh'a a
beijar. Martha cedia com tristeza e constrangimento, beijando a filha
como se fôra uma creança alheia. A ama ia dizer ás creadas que a
brazileira era uma cafra, que não podia vêr o anginho do céo.

Os paroxismos eram menos frequentes; mas, tres dias antes do ataque, a
torvação de Martha manifestava-se com extravagancias, delirios.
Fechava-se no quarto com muitos vasos de flores, que enfileirava no
sobrado, como se ajardinasse um passeio. Uma vez disse a D. Thereza, á
madrinha de sua filha, que arranjára aquelle caminho de rosas, porque o
seu José Alves lhe dissera em Prazins que havia de fazer-lhe um jardim
em Villalva quando casassem, e ella fizera aquelle jardim para passearem
juntos quando elle viesse á noite. D. Thereza encarou-a com uma grande
piedade, porque se convenceu então que estava perdida.

O Feliciano, quando ella se fechava no quarto, já sabia que estava a
preparar-se o ataque; ia dormir n'outra cama: necessitava do seu
repouso, dizia elle; tinha de erguer-se cedo para vêr o que faziam os
jornaleiros, e não podia perder as noites. Como o arrependimento de se
casar já o mortificava, evadia-se ás irremediaveis apoquentações,
olhando egoistamente para o seu bem-estar, e lembrando-se ás vezes que,
tendo uma mulher assim doente, não lhe seria muito desagradavel ficar
viuvo. Não obstante, como, passado o ataque epileptico, a esposa
recahia n'uma serena indolencia, n'uma impassibilidade mansa e
tranquilla, o tio ia dormir com ella, tendo sempre em vista as
condições do seu bem estar, as necessidades imperiosas da sua
physiologia. Assim se explica a fecundidade de Martha, que deu em sete
annos cinco filhos a seu marido. O medico já tinha explicado
satisfatoriamente ao padre Osorio que a demencia de Martha era
funccional, e as qualidades reproductoras não tinham que vêr com as
anormalidades cerebraes. A Providencia não teve a bondade de fazer
estereis as dementes.

Entretanto, nos tres dias precedentes ás crises epilepticas, parece que
o marido lhe era repulsivo. Dava-se então a revivencia de José Alves,
o seu amado sahia do sepulchro, e transportava-a nas suas azas de anjo
ao paraizo de Prazins. D. Thereza, collando o ouvido á fechadura da
porta, ouvia-a conversar como era dialogo, ficar silenciosa, depois
d'uma interrogação, por largo espaço de tempo; vinha de mansinho á
porta espreitar que a não escutassem. Dizia palavras confusas,
abafadas, cariciosamente proferidas, como se tivesse os labios postos em
contacto de um rosto amado. O nome de _José_ realçava com uma nitidez
jubilosa, com um timbre de meiguice infantil; e ás vezes, um grito em
esforçado desespêro como se elle se lhe desatasse dos braços para lhe
fugir. Um espiritista da escola de Kardec tiraria d'esta loucura um
argumento a favor das _Manifestações visiveis_, em que o fluido, o
_perispirito_ se apresenta semi-material, com as fórmas vagas do corpo,
quasi tangivel ao _medium_.

O Feliciano ignorava estas scenas extra-naturaes. Elle, ao sexto anno de
casado, encouraçára-se n'um impenetravel egoismo de avarento, cortando
fundamente por todas as despezas que em vista da sua grande fortuna se
reputavam sovinarias. A medicina já o considerava lunatico, mais ou
menos inficcionado da alienação da mulher. E a loucura que é se não
a exaggeração do caracter? Porque o viam ás vezes atravessar os seus
pinhaes, com o monoculo, gesticulando, e faltando sósinho, chamavam-lhe
doudo. Errada hypothese do vulgo ignorante. Elle fazia operações
arithmeticas em voz alta como os velhos poetas inspirados faziam
madrigaes n'uma declamação rythmica ao ar livre e ao luar. O certo é
que ninguem o apanhava em intervallo escuro para o defraudar n'um
vintem. Comprou, umas após outras, todas as quintas que foram do Vasco
Cerveira Lobo, de Quadros; umas á viuva, e outras aos filhos. A D.
Honorata Guião, casada em segundas nupcias com o desembargador do
Ultramar Adolpho da Silveira, veio á metropole assim que viuvou para
se habilitar herdeira de metade do casal não vinculado do
tenente-coronel. Os filhos Egas e Heitor, sabendo que sua mãe estava
nos Pombaes, com o marido e filhos, tentaram escorraçal-a com ameaças
e insultos, atirando-lhe tiros á janella. O magistrado fugiu com a sua
familia e acompanhou com força armada os actos judiciaes. Afinal,
Honorata, vendeu a sua parte, ao desbarato, ao brazileiro Prazins; e o
morgado, vendido o seu patrimonio desvinculado, e mais o irmão,
vergonhosamente casados, esfarrapam hoje o resto da torpe existencia na
tavolagem das tavernas. As filhas salvaram-se do naufragio agarradas ás
pranchas dos seus dotes. Arranjaram facilmente maridos que desempenharam
os seus casaes e as sovavam de pontapés injustos e extemporaneos,
quando se lembravam dos engenheiros do conde de Clarange Lucotte.

A brazileira de Prazins tem hoje cincoenta e tres annos. Os seus
visinhos que contam trinta annos, nunca a viram, por que ella, desde
que, em 1848, morreu D. Thereza, nunca mais sahiu do seu quarto. Já
ninguem a vai escutar; mas repete as mesmas palavras do seu amor de ha
quarenta annos, pede que lhe levem flores, tem as mesmas allucinações,
e--o que mais é--ainda tem lagrimas, quando, nos intervallos dos
delirios, entra na angustiosa convicção de que José Dias é morto. O
padre Osorio ainda a procura n'esses periodos de razão bruxuleante e
falla-lhe da irmã por sentir a ineffavel amargura doce de se vêr
acompanhado nas lagrimas. Mas o padre diz que nunca pudéra vêr
nitidamente a linha divisoria entre a razão e a insania de Martha.
Depois do delirio, sobrevem a monomania hypocondriaca. A alma continua a
dormir sem sonhar, sem as allucinações. N'essa segunda crise de
torpor, elle e só elle é admittido ao seu quarto, depois de esperar
que desça da cama ou se embrulhe n'um challe para encobrir a sordidez
do corpête dos vestidos. Este challe é uma scintilla resistente de
instincto feminil que raras vezes se apaga no commum das dementes,
excepto no maior numero das hystericas com erothismo.

Martha tem duas filhas casadas e já mães. Ás temporadas, vestem
serenamente os seus trajes domingueiros e vão para casa dos paes, onde
continuam na sáfara dos campos a sua lida de solteiras. O pai
educára-as na lavoira, de pé descalço; e sachola nas unhas. Trabalham
nas lavras com uma grande alegria e garganteiam cantigas muito frescas.
E os maridos, cheios de bom senso, já as não procuram. Quando
regressam, recebem-as sem as interrogarem; porque, se as affligem,
dão-lhes vágados e choram. Nos outros filhos intanguidos,
escrofulosos, tristes e sem infancia predomina a diathese da
imbecilidade e a falta de senso-moral que é uma especie pathologica
menos estudada dos alienistas. Entre estes filhos ha um que estudou para
clerigo. Passava por ser o mais escorreito. O pai achava-lhe talento.
Estudou seis annos latim, em Braga, debaixo das mais rigorosas
violencias á sua incapacidade; e quando Feliciano, prodigo de dinheiro
para este filho, e desenganado pelo professor, o mandou buscar com tres
reprovações, elle trazia em uma caixa de lata cinco mil e tantas
hostias com que se prevenira para as suas consagrações de sacerdote. E
o pai foi tão feliz que pôde vender as hostias com o pequeno prejuizo
de dez por cento.

--Ahi tem o brazileiro de Prazins, se nunca o viu--dizia-me ha trez
mezes o padre Osorio mostrando-me no mercado de Famalicão um velho
escanifrado, muito escanhoado, direito, com o monoculo fixo, vestido de
cotim, com um guarda-pó sujo, esfarpelado na abotoadura, e uma chibata
de marmeleiro com que sacudia a poeira das calças arregaçadas.

--Tem 84 annos--continuou o vigario de Caldellas--veio a pé de sua
casa, que dista d'aqui legua e meia, janta um vintem de arroz, bebe
outro vintem de vinho, tem quinhentos contos, e volta para sua casa a
pé, atravez ou pouco menos das suas quatorze quintas. Com a
frugalidade, com o exercicio e com o seu egoismo sordido viverá ainda
muito tempo, porque o velho Alexandre Dumas disse que os egoistas e os
papagaios viviam cento e cincoenta annos.



P.S.


Com os subsidios ministrados pelo cura de Caldellas compuz esta
narrativa, espraiando-me por accessorios de duvidoso bom senso, cuja
responsabilidade declino dos hombros d'aquelle discreto sacerdote. Tudo
que n'este livro tem bafio de velhas chalaças, ironias e satyras é
meu; e, se alguem por isso me arguir de pouco respeitador do vicio e da
tolice, retiro tudo.

Se o meu condescendente informador me permitte, ouso dizer-lhe--para nos
esquivarmos ambos ás insidias da critica portugueza--que a demencia de
Martha não é extremamente original nem o meu romance uma singularidade
incontroversa. O que, sem disputa, é original, é duvidar eu de que o
sou.

Em um _Conto_ de Charles Nodier, auctor remoto que se perde no
crepusculo da litteratura archeologica, ha uma LYDIA que endoudeceu
quando o marido, um barqueiro de limpo nascimento e generosa indole,
pereceu n'um incendio salvando tres creanças e sua mãe.

Lydia enlouquece e cuida que seu esposo está no céo de dia e a visita
de noute. Ella, desde o repontar da aurora, sae ao jardim, e colhe
flores para o brindar quando elle desce do azul com azas de pennas de
ouro. Ao cabo de seis annos d'este sonhar delicioso, a ditosa douda,
quando andava a recolher as flores dilectas para o _bouquet_ das nupcias
com o anjo de cada noute, sentou-se em dulcissima somnolencia e expirou.

As analogias de Lydia e Martha frizam pela visão dominante na demencia
de ambas--uma especie de resurreição do amado. No que ellas
diversificam essencialmente é que uma sonhou seis annos e a outra vai
no trigesimo setimo da sua demencia; Lydia sonhou absorvida na sua ideal
alliança com um celicola, um bem-aventurado com azas de ouro; Martha
quando immerge allucinada no seu lethargo, é a paixão leal ao amado
sempre vivo na terra e no seu coração. Lydia passa as noutes em
amplexos do marido celestial: Martha, sem consciencia da sua vida
organica, tem cinco filhos, como se arrancasse de si a porção ignobil
de seu ser e a rejeitasse ao sêvo sensual do marido resalvando a alma
d'essa inconsciente materialidade. Quer-me, portanto, parecer que não
ha nodoa de plagiato no meu livrinho--uma coisa original como o peccado.

O leitor pergunta:

--Qual é o intuito scientifico, disciplinar, moderno, d'este romance?
Que prova e conclue? Que ha ahi proveitoso como elemento que reorganise
o individuo ou a especie?

Respondo: Nada, pela palavra, nada. O meu romance não pretende
reorganisar coisa nenhuma. E o auctor d'esta obra esteril assevera, em
nome do patriarcha Voltaire, que _deixaremos este mundo tolo e máo, tal
qual era quando cá entramos_.


              S. Miguel de Seide, dezembro de 1882.



*** End of this LibraryBlog Digital Book "A brazileira de Prazins: scenas do Minho." ***

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