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Title: Saudades de D. Ignez de Castro
Author: Azevedo, Manuel
Language: Portuguese
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*** Start of this LibraryBlog Digital Book "Saudades de D. Ignez de Castro" ***
CASTRO ***



                               SAUDADES
                                  DE
                               D. IGNEZ
                              DE CASTRO.



                               SAUDADES
                                  DE
                               D. IGNEZ
                              DE CASTRO.
                            PELO LICENCIADO
                           MANOEL DE AZEVEDO
                            Conimbricense.
                        _OFFERECIDA AO SENHOR_
                           GUILHERME JOAQUIM
                              PAES VELHO.
                             _PELO PADRE_
                            JOÃO DE GOUVEA
                   Prisbitero do habito de S. Pedro.

                            [Ilustração]

                                LISBOA:
                Na Officina JOAQUINIANNA DA MUSICA DED.
          Bernardo Fernandes Gayo, Morador na rua das Mudas.

                             M. DCC. XLV.
                 _Com todas as licenças necessarias._



                            [Ilustração]



                              DEDICATORIA

                               AO SENHOR

                           GUILHERME JOAQUIM

                              PAES VELHO.


_Justo era, que huma taõ excellente obra procurasse hum assyllo taõ
excelso. Publica-se por meyo da estanpa ao Mundo as Saudades de D.
Ignez de Castro, Rainha taõ infeliz, como formoza, e vendo eu que he
perigozo entregar nas mãos do vulgo cousa, para cuja seja materia a
sua distracçaõ, logo me occoreo, que a offerta só era conveniente em
V. M. porque sey, que como V. M. he dado às letras, naõ deyxarà de
amparar hum milagre da Poesia, e juntamente escurecer o alvedrio de hum
Zoylo. Materia difficel seria o querer expór ao publico a Genelogia de
V. M. que como conhecida naõ carece de explicação, mas só lembro a V.
M. que o sangue, que lhe pulsa pelas veyas, mais logra de soberano,
que de nobre. Dedicar o presente papel a V. M. he como divida,
porque confórme, diz Seneca, só se conhecem as remuneraçoens pelo
offerecimento, por essa causa quando eu tenho recebido taõ dilatados
favores, porque razaõ naõ heyde de manifestar o quanto sou devedor a
V. M. Aceyte pois o presente obsequio como divida, porque só assim
lograrey eu a ventura de acertar quando me lembro da sua generosidade
para o restituir. A pessoa de V. M. guarde Deos pelos annos, que todos
os seus amigos dezejamos._

                                            Amigo, e Venerador de V. M.

                                                    O P. Joaõ de Gouvea



                            [Ilustração]



                  SAUDADES DE DONNA IGNEZ DE CASTRO.


I.

  Era na meya idade, a q̃ chegava
  Em fraguas de Zafir o Sol, q̃ ardia,
  e nas asas do tẽpo, q̃ passava,
  Icaro de seus rayos era o dia
  Quando pois com as chammas se abrasava,
  Que morrer incendîdo entaõ queria,
  Sendo por renascer com novo alarde,
  Em cinzas de rubim Féniz da tarde.


II.

    Na lisongeira planta se enlaçava
  Cortez o vento com gentil porfia,
  E nos jardins a Rosa, que encalmava,
  Em berços de esmeralda adormecia:
  A simples avesinha se banhava
  No murmúreo correr da fonte fria,
  Renovando na vista o doce alento,
  Narciso nos crystaes, Orfêo no vento,


III.

    Mas Ignez só, que por penar vivia,
  Naufragava em soluços cada instante,
  Ignez, aquella Ignez, que amor fazia
  Por lhe dobrar as magoas mais constante:
  Aquella, em cujas graças competia
  Ser formosa, discreta, e ser amante,
  Em cujas prendas naõ tiveraõ parte
  Artificios da industria, invençoẽs da arte.


IV.

    A que nos dotes da alma taõ possante,
  Discreta, grave, terna, e generosa,
  Que da mesma bellesa sendo Atlante,
  Tinha por menór prenda o ser formosa:
  Nos donaires do talhe taõ galante,
  Nos alinhos da graça taõ vistosa,
  Que topando na culpa de Narciso,
  Fora sem culpa seu discreto aviso.


V.

    Mas qual o passarinho descuidado,
  Lisonja mais gentil da tenra idade,
  Foy das maõs do menino aprisionado,
  Que lhe roubou no laço a liberdade:
  Que quando delle mais galanteado,
  Exprimenta no mimo a crueldade:
  E quando a côr das pennas lhe contenta,
  Nas que lhe tira, mais lhas accrescenta.


VI.

    Tal Ignez na manhaã dos ternos annos,
  Nas primeyras Auróras da esperança,
  Deo nos laços de amor doces enganos,
  Do vendádo rapaz linda vingança;
  Mas os golpes da Parca deshumanos
  A belleza por flor em flor alcança,
  Exprimentou na sempre amarga sorte
  Por maõs do Deos do amor armas da morte.


VII.

    Eraõ gentil emprego a seus cuidados
  As finesas de Pedro, que a beldade
  Nelle soube trazer aprisionados
  Sceptro, corôa, vida, e liberdade:
  Entre ambos tinha amor já taõ ligados
  Os soltos alvedrîos da vontade,
  Que foy nelles baldado, e foy perdido
  Nascer Antéros por crescer Cupido.


VIII.

    Mas oh tyranna dor amor inventa!
  Forçosa foy de Pedro a dura ausencia,
  Atropos da alma, que da pena isenta,
  Nella sabe sentir mortal violencia:
  Como preso, partir-se Pedro intenta,
  E sente na alma, Ignez, nova inclemencia,
  Que quer a sorte, pois amor ordêna,
  Onde naõ chega a morte, offenda a pena.


IX.

    Quantas vezes, Ignez, no pensamento
  Este desár notaste a teus favores?
  Quantas vezes, Ignez, na maõ do vento
  Os viste, e vês agora, e verás flores:
  Tanto nas affeiçoens, gosto avarento,
  Este pesár sentiste em teus amores,
  Que naõ posso dizer, que neste emprego
  Estavas, linda Ignez, posta em socego.


X.

    Entre os braços de Pedro, ardẽte Fragoa,
  Se encosta Ignez sem vida, e sem sentido,
  Que multiplîca a dôr, e dobra a magoa
  Lograr presente o bem, que he já perdido:
  Dos olhos sólta dous chuveiros de agoa,
  Oceànos de neve, onde Cupîdo
  Quiz da belleza já colhendo as velas,
  Chegasse a tempestade até as estrellas.


XI.

    Qual em berços de purpura vistosa,
  Delicias da manhaã, da tarde empresa,
  Dos melindres de flor enferma a Rosa,
  Desmayado o verdôr, murcha a lindesa;
  Pois a que foy de Abril pompa lustrosa,
  Livro do amor, emblema da bellesa,
  Perde a graça, por vêr que o Sol lhe talha
  Do mesmo carmesim gala, e mortalha.


XII.

    Tal do fogo de amor na immensa calma
  A côr Ignez perdeo, que amor ordena,
  Os desmayos, que tinha impressos na alma,
  Trasladasse no rosto a viva pena:
  Já despojo da dôr, da magoa palma,
  Com respirar de flor, arde Açucena,
  Exhála nova dôr ao pensamento,
  Em saudosos ays o doce alento.


XIII.

    Ay! cadûco prazer, diz lastimada,
  Esperança de hum bem, doce tormento,
  Ay! que por verde murchas apressada,
  Primavéra do amor, da dor portento:
  Ay! melindrosa flor agonizada,
  Despojado Jasmim de qualquer vento,
  Que quando nasce traz na mesma alvûra
  Gala, mortalha, berço, e sepultura.


XIV.

    Ay! que chegas, oh dia! em que amor tira
  Duas almas de hum peito, oh noite fria!
  Oh noite, digo, porque a quem suspira,
  Fóge a luz, morre o Sol, acaba o dia:
  A bocca, de que hum _ay_, outro _ay_, retira,
  Jà cansando, mais bayxo repetia,
  Paray Senhor; mas hum soluço ardente
  Suffóca o _par_, repete o _ay_ sómente.


XV.

    Paray, torna a dizer, meu gosto amado,
  Gloria desta alma, em quanto gloria tinha;
  Mas ay alivio meu! ay meu cuidado!
  Como podeis parar, se gloria minha!
  Mas se destîna o Céo, e manda o Fado
  Esta alma castigar, que amor mantinha,
  Deixai-me a vossa, porque a sorte ordene,
  Mais almas tenha, porque assim mais pene.


XVI.

    Mas naõ, que he contra amor esta porfia:
  Mas naõ, que deyxo amor nisto aggravado:
  Muitas almas naõ quero, que sería
  Repartir o tormento a meu cuidado:
  Mas se a pena permitte a companhia
  Nesta ausencia cruel, oh triste Fado!
  Antes que a dor ma roube da partida,
  Levai-me, vida minha, a minha vida.


XVII.

    Só com vosco, Senhor, irá segura,
  Sem que mortal achaque lhe aconteça;
  Porque talvez do Fado a sorte dura
  Fóra deste meu peito a desconheça:
  Nem poderá temer minha ventura,
  Que sombra de pesar vos entristeça;
  Pois farey no tormento mais esquivo
  Correr por conta da alma o sensitivo.


XVIII.

    Se só para viver na ley de amante
  Forçosa seja a vida repetida;
  Ay! Senhor, que naõ póde ser bastante
  Para viver ausente huma só vida:
  Porém se amor de vidas taõ possante,
  Huma nos deo para ambos repartida,
  Postoque a dôr entre ambos se accommóda,
  Melhor vos partireis levando-a toda.


XIX.

    Cá me fica outra vida, que naõ passa,
  Com que padeça morte repetida,
  Que quer amor tyranno, que renaça
  Huma vida das cinzas de outra vida:
  Que como taõ crueis penas me traça,
  Como me traz em fogo convertida,
  A acabar, outra Feniz, me condena,
  Morrendo em cinzas, renascendo em pena.


XX.

    Ah! quem cuidára, amor, que meus amores
  Fossem fingidas sombras mentirosas?
  Ah! quẽ cuidará, amor, que em teus favores
  Fossem mais as espinhas, do que as Rosas?
  Mas depois, que triunfo a teus ardores,
  Foraõ de Marte as armas generosas;
  Taõ guerreyro ficaste, ufano, e forte,
  Que bem pódes matar a propria morte.


XXI.

    Mas pois forçosamente me condena,
  A que vos ausenteis, ah tyrannîa!
  Deyxai, deyxai Senhor, deyxai-me a pena,
  Porque só della quero a companhia:
  Na noite mais escura, ou mais serena
  (Que para ausentes nunca nasce o dia)
  Chorarey, permittindo-o minha estrella,
  Mais do que a saudade, a causa della.


XXII.

    Nas remontadas penhas, nas visinhas
  (Se restar a meus ays penhasco possa)
  Vos buscaraõ, Senhor, lagrimas minhas,
  Minhas se póde ser, sendo a alma vossa:
  De meus annos a flor entre as espinhas
  Passarey, sem perder esta fé nossa;
  Mas antes perderâõ seu bruto alento
  O mar, o fogo, o ar, a terra, o vento.


XXIII.

    Mas oh! que he tal a dor de meus retiros,
  E taõ firme na ley da tyrannîa,
  Que vendo, que me assistem meus suspiros,
  Talvez delles me roube a companhia:
  Mas inda mais, e mais acérbos tiros
  Contra mim fulminar amor porfia;
  Pois sem dar attençoens á minha queyxa,
  Por mais só me deyxar, sem mim me deyxa.


XXIV.

    Qual quando na manhaã naufrága o dia
  Nos undósos crystaes, que o Céo desata,
  O Jasmim desmayado se agonîa
  Dos acháques da gotta, que o maltrata:
  Em desares trocando a galhardia,
  Icaro já nas agoas se retrata,
  O que lisonja foy taõ prateada,
  Se no prado jasmim, nas ondas nada.


XXV.

    Tal Ignez já de lagrimas banhada,
  De seus olhos gentîs mortaes desares,
  Que quiz a natureza acautelada
  Que o Occaso de dous Sóes fosse dous mares.
  Exhalava de todo agonizada
  O suspiro final a seus pesares:
  Que com vir entre lagrimas undosas,
  Inda na bocca achou maré de rosas.


XXVI.

    Já Pedro em fim rendido a seu cuidado,
  A dôr quer disfarçar a seu retiro;
  Que como o coraçaõ tem já quebrado,
  Hum pedaço lhe traz cada suspiro:
  E como em fim no peito agonizado
  Sente da mortal frecha o novo tiro,
  Notando Ignez no pranto de seu rogo,
  Exhála em agoa, quanto bebe em fogo.


XXVII.

    Naõ chores, diz, formosa Ignez, agora
  Ficar ausente sem partir commigo,
  Que se es vida da minha, que te adora,
  Na alma te levo por viver comtigo:
  Naõ pertendo ausentar-me hoje, Senhora,
  Supposto que partir-me em fim prosigo;
  Que se as almas trocar amor consente,
  Nem tu só ficas, nem me parto ausente.


XXVIII.

    O corpo só se ausenta, a alma naõ parte,
  Que em fim naõ vivo de potencias suas,
  Que como me alimento só de amar-te,
  Bastaõ para viver memorias tuas:
  E porque amor nos tiros, que reparte,
  Fulmina contra mim frechas mais cruas;
  Quando a vida me rouba, outra me ordena,
  Que fora em fim matar-me a menor pena.


XXIX.

    Mas nota, Ignez formosa, esta fineza,
  A fazer impossiveis offrecida,
  Pois que contraminando a natureza,
  Teu mesmo amor me mata, e me dá vida:
  Mas como amor notou nessa belleza
  Os impossiveis só de merecida,
  Quiz tomar por razaõ força infallivel,
  Obrar por alcançá-la outro impossivel.


XXX.

    Bem vês agora, Ignez, como abrasado
  Nos vivos holocaustos de meu peito,
  Meu coraçaõ consagro a teu cuidado
  Em victimas de lagrimas desfeito:
  Agora alcançarás, como alentado
  Todo me sacrifico a teu respeito,
  Pois chega a consagrar-te em viva calma
  Sangue do coraçaõ, reliquias da alma.


XXXI.

    Sucçeda á Primavera o secco Estio,
  Á serena manhaã tarde calmosa,
  Seja manso regato, quem foy rio,
  Sejaõ seccas reliquias, quem foy Rosa:
  Seja, quem Cravo foy, cadáver frio,
  Seja quem foy Jasmim, cinza olorosa
  Seja tudo á mudança em fim sujeito,
  Que amor firme será dentro em meu peito.


XXXII.

    Nessas gentîs madeixas da beldade,
  Em cuja luz do Sol o Sol se nega,
  Onde feito piráta da vontade
  Nas crespas ondas sempre amor navega:
  Nessas, digo, captiva a liberdade
  Em refens minha fé por fé te entrega:
  Nellas deixo por fim com meus alentos
  Alma, cuidados, vida e pensamentos.


XXXIII.

    A Deos delicia minha, a Deos cuidado,
  A Deos Senhora, a Deos, que amor cõsente,
  Que parta em fim nas magoas sepultado
  Se partir posso de mim mesmo ausente:
  A Deos, que amor nos tinha decretado
  Esta ausencia cruel, forçosa, urgente;
  Mas ay! formosa Ignez, q̃ em vaõ me queixo:
  A Deos, q̃ em fim me parto, em fim te deixo.


XXXIV.

    Já se remonta Pedro a seus retiros,
  E já de morte em morte Ignez discorre,
  Que como entrega a vida a seus suspiros,
  Quantas vezes suspira, tantas morre:
  O coraçaõ sentindo acérbos tiros
  Pelos olhos sangrado em crystaes corre;
  Mas oh! que no sangrar-se em vaõ se cansa,
  Porque em cada sangria huma alma lança.


XXXV.

    Qual na secca vergóntea desfolhada,
  Que despojo restou da tempestade,
  Se lamenta em requebros lastimada
  A casta Rola posta em soledade:
  Soluça, pasma, e geme agonisada,
  Chora, suspira, anéla em crueldade,
  Que seu pesar lhe tem no peito unîdos
  Rigores, magoas, lastimas, gemîdos.


XXXVI.

    Tal lastimada chora Ignez saudosa,
  No seu mesmo tormento sepultada,
  Nos desvélos do dia cuidadosa,
  Nos descuidos da noite desvelada;
  Já se queixa em suspiros lastimosa,
  Fórma razoens dos ays agonisada:
  Que fez para queixar-se em seus retiros.
  Embaixadores da alma seus suspiros.


XXXVII.

    Oh! quanto foy de ti teu Pedro amado,
  Formosa Ignez, mas inda mais sentido;
  Pois sendo grande a gloria de logrado,
  Hoje he mayor a magoa de perdido:
  Foy teu prazer á pena apensionado,
  He teu pesar na pena desmedido:
  Entaõ foraõ de Rosas teus favores,
  Agora saõ de Lirios teus amores.


XXXVIII.

    Já nos braços da Aurora, que assomava,
  Renascido chorava o novo dia,
  Quando Ignez saudosa entaõ negava
  A seu triste pesar a companhia:
  A solidaõ do campo se apartava,
  Onde só lamentava, e só gemia;
  Porque mais no rigor de seus retiros
  A piedade faltasse a seus suspiros.


XXXIX.

    Entre flores inquire o doce amado,
  Presente em cada flor o considéra,
  E dando hum breve encanto a seu cuidado,
  Busca nas flores quanto em flor perdêra:
  Corre de flor em flor, de prado em prado,
  Tópa só magoas, donde gosto espéra;
  Que foraõ seu praser: e seus favores,
  Perda choradas, quando apenas flores.


XL.

    Procûra em cada planta, o que anelava,
  Porque no seu tormento engano escolha;
  Mas oh! que em seu pesar escrito achava
  Liçoens para sentir em cada folha:
  Já nas liquidas pérlas, que chorava,
  Penhascos, plãtas, prado, e folhas molha,
  E na lembrança já de hum bem perdido
  Lhe interrõpe hum gemido outro gemido.


XLI.

    Qual o menino fica enternecido,
  Entre perplexidades pasmadinho,
  Quando no verde prado entretenido
  Lhe foge o gosto atraz de hum passarinho:
  Já soluça, já pasma esmorecido,
  Já busca cada flor, cada raminho,
  Já melindrosos ays, mimoso alento
  Apôs o passarinho leva o vento.


XLII.

    Tal Ignez na penosa tyrannia
  Entre flores inquire o doce amado;
  Mas foy lisonja só da fantasîa,
  Pois mais se nega hum bem, quãdo buscado:
  Já queixosa das flores se desvia,
  Já nas queyxas diverte o seu cuidado,
  E nos alentos da alma, com que espira,
  Já soluça, já pasma, já suspira.


XLIII.

    Na margem de huma fonte se encostava,
  Que já clara correo com seus favores,
  E se delles travêssa murmurava,
  Em lagrimas agora exhála amores:
  Ás plantas, aos penhascos se queixava,
  Outra vez já seu mal contava ás flores
  Onde nos eccos, que respira o monte,
  Suspira o valle, porque chora a fonte.


XLIV.

    Ay! cadûcas bellezas, lhes dizia;
  Ay flores! se queyxava enternecida;
  Que sendo vossa vida de hum só dia,
  Muitas horas contais na vossa vida:
  Mas oh! de minha dor mór agonia,
  Oh morte em menor vida repetida!
  Que como em soledades só discorro,
  Nem conto instantes, porque sẽpre morro.


XLV.

    E vós Rosas no mimo de huma Aurora
  Lograis de vossa adôrno a pompa bella,
  Que talvez por firmar vossa melhóra,
  Tivéstes no nascer tão boa estrella:
  Mas oh! que no pesar, que chóro agora,
  Nestes fogosos ays, que o peito anéla,
  Escolhe minha estrella em triste forte
  Por pena a vida, por lisonja a morte.


XLVI.

    Vós plantas, que sentis mudavel erro,
  Cifrando em cada folha hum pensamento,
  Se Dezembro lamenta vosso enterro
  Abril em flor vos dá dobrado alento:
  Mas oh! q̃ em meu sentir, e em meu desterro
  Eternisa hum rigor meu sentimento;
  Pois quer amor na sorte, que me ordena,
  Se alimente huma pena de outra pena.


XLVII.

    E tû bruto penhasco inhabitado,
  Tosco sepulcro de huma clara fonte,
  Es agora de flores matizado,
  Idolo de crystal, gala do monte:
  Mas oh tyranna dor! que meu cuidado
  Hoje lamenta o mal, que chorou honte,
  Vendo, que teu terror com bruto aviso
  Honte foy Polifêmo, hoje he Narciso.


XLVIII.

    Mas oh queyxas paray, paray cuidados,
  Paray, façamos tregoas pensamento,
  Que dos males talvez communicados,
  Póde nascer desar ao sentimento:
  Correy da alma pedaços distillados,
  Dizey lagrimas minhas meu tormento;
  Minhas naõ digo bem, que juntamente
  Perdi tudo no bem, que chóro ausente.


XLIX.

    Irmanay-vos, correy mais cuydadosas,
  Seja vosso correr mais repetido,
  Naõ cuideis, que vos choro caudalosas,
  Porque deis desaffogo a meu sentido:
  Que como nas memorias rigorosas
  Vossa causa lamento, que hey perdido,
  Se talvez mitigaes hum sentimento,
  Naõ tem valôr nas perdas vosso alento.


L.

    Oh! corraõ com valor vossas violencias
  Por duplicar incendios a meu rogo,
  Que naõ fora querer sentir ausencias,
  Se vos chorára só por desaffogo:
  Que posto deis alivio ás inclemencias,
  Naõ podeis dar alivios a meu fogo;
  Que como sou das penas avarenta,
  Qualquer alivio vosso me atormenta.


LI.

    Correy livres, correy, que amor ordena,
  Sejais a meu rigor ancia penosa,
  Que naõ comprais alivios a huma pena,
  Quando chegais a ser paga forçosa:
  Que pois amor por força me condena
  Tributar-vos por divida custosa;
  Mal podeis mitigar o mal, que tenho,
  Quando sois do que devo desempenho.


LII.

    Naõ me póde obrigar outro motivo,
  Se naõ chorar-vos só por naturesa,
  Que quer, que seja amor por excessivo
  Tributo natural, o que he finesa:
  Que como a seu querer sujeita vivo,
  Rendida a seu querer captiva, e presa,
  Do pranto, que saudosa me convinha,
  Se naõ pode isentar a affeyçaõ minha.


LIII.

    Em vós sentir agora mais penosas,
  De ser mudas razoens faço argumento,
  Que quando naõ chegais a ser queyxosas,
  Naõ limitaes a dor ao sentimento:
  Que foreis só lisonjas enganosas,
  Mas naõ crueis verdugos ao tormento,
  Quando na voz queixosa, que formára,
  Lastimas a meus ays solicitára.


LIV.

    Mais duro sentimento, mais nocivo
  No ser da alma pedaços vos confesso,
  Pois se levais a parte com que vivo,
  A parte me deyxais, com que padeço;
  Que como neste mal por excessivo
  Repartida minha alma reconheço,
  Se levais huma parte naõ pequena,
  A vida póde ser, mas nunca a pena.


LV.

    Oh! torna atraz arroyo fugitivo,
  Alma da penha, coraçaõ do monte,
  Torna atraz, que meu pranto successivo
  Te fará Rio quando apenas fonte,
  Oh! torna atraz veloz, detem-te esquivo,
  Detem-te, espera, que meus males conte,
  Que vás talvez com prata taõ custosa
  Calçar as plantas de huma ingrata Rosa.


LVI.

    Se te vás despenhar ambicioso
  Por aspirar a creditos de Rio,
  Léva meu triste pranto lachrimoso,
  Oceâno será teu senhorîo:
  Embarga teu correr taõ cuidadoso,
  Suspende teu caudal, teu desvarîo,
  Que lá terás no már onde te escondas,
  Quantas lagrimas levas, tantas ondas.


LVII.

    Mas oh! paray razoens, tornay gemidos,
  A dor interpretay, que o peito sente,
  Que talvez em meus ays por repetidos
  Os eccos ouça de quem choro ausente:
  Ay! doce ausente meu, naõ dos sentidos,
  Ay! quem pudéra amor ter-vos presente!
  Mas deyxai-me fallar, talvez que possa
  Ouvir na minha voz eccos da vossa.


LVIII.

    Aqui, meu doce amor, meu bem querido,
  Se me duplîca a dôr ao pensamento,
  Pois quando em vós, me falta meu sentido,
  Naõ me póde faltar meu sentimento:
  Em vós lamenta a dor meu bem perdido,
  Em mim renova a dor novo tormento;
  Mas creyo, doce amor, que sentir possa
  Menos a minha dor, que a falta vossa.


LIX.

    Menos dor, menor danno em fim tivéra,
  Menos cruel sentira o meu cuidado,
  Quando neste rigor, que padecera,
  Me podéra esquecer do que hey logrado:
  Mas ay! que nesta dor outra me espera,
  E hum mal outro me traz apensionado;
  Pois chego a padecer em meu sentido
  O mal, que passo, o gosto, q̃ hey perdido.


LX.

    Bem conheço, que posso na lembrança
  Vossas prendas lograr, meu doce esposo,
  Mas o bem, que se perde na esperança,
  Fica, quando lembrado, mais penoso:
  Mas nesta triste dor, dura esquivança,
  Se me duplica amor mais rigoroso;
  Pois só quer meu sentido avincular-se,
  Para mais padecer, a mais lembrar-se.


LXI.

    Assim chorava Ignez, e assim gemia,
  Mas oh tragica dor! rara estranhesa!
  Que já tópa nas maõs da tyrannia
  Armas sempre mortaes contra a bellesa:
  Nas maõs de dous tyrannos já se via,
  Entre crueis espadas, tosca empresa!
  Mas que Rosa no campo Aurora molhas,
  A que naõ falte a vida, e sóbrem folhas?


LXII.

    Paray, detende a furia procellosa,
  Paray, paray, detende o bruto alento:
  Que contra o fresco mimo de huma Rosa,
  Ah! que sobeja hum Sol, e basta hũ vento?
  Mas ay! discreta Ignez, Garça formosa,
  Remonta agora mais teu soffrimento,
  Que temo, linda Ignez, teus lindos brios
  Accrescentem coraes a tantos fios.


LXIII.

    Qual nas tecidas silvas da espessûra,
  Labyrintho de espinhas intrincado
  Com balîdos se queyxa da ventura
  O simples cordeyrinho aprisionado:
  Já soluça em melindres com ternûra
  Das maternas delicias apartado:
  O que mimos achou na branda hervinha,
  Acha mortal rigor em cada espinha.


LXIV.

    Tal lastimada Ignez troca em gemidos,
  Quantas vozes no peito articulava,
  Em quanto os dous algoses sementidos
  As maõs lhe prendẽ, com que amor matava:
  Já fugindo os alentos aos sentidos,
  O soluçar as vozes lhe embargava:
  Mas oh! que amor lhe deo no pensamento
  Razoens ao pranto, voz ao sentimento.


LXV.

    Ay  tyrannos crueis! oh sorte dura!
  Entre suspiros, diz agonizada,
  Que delicto commette a formosura,
  Com que possa a bellesa ser culpada?
  Oh! deyxai-me esta vida em pena escura,
  Se me quereis a morte dilatada;
  Que nesta triste dor taõ repetida
  Menos me mata a morte, do que a vida.


LXVI.

  Oh! suspendey sentença taõ penosa,
  Mitigay por hum pouco a crueldade,
  Que naõ podeis dar morte rigorosa,
  Que possa matar mais, que a saudade:
  Mas já que minha dôr menos piedosa,
  Vos naõ póde causar nova piedade,
  Naõ me roubeis meus filhos, taõ queridos,
  Unica prenda só de meus sentidos.


LXVII.

    Ay! charas prendas minhas taõ queridas,
  Reliquias de amor, da alma pedaços;
  Ay! como sentireis em mim perdidas
  As mimosas delicias de meus braços:
  Mas pois naõ póde ser entre homicidas
  Lograr, amores meus, vossos abraços,
  A Deos, ficai-vos já gostos amados,
  A Deos alma, a Deos vida, a Deos cuidados.


LXVIII.

    Mais quiséra fallar enternecida,
  Mas oh! indigna acçaõ de hum peito forte!
  Hum tyranno cruel, torpe homicîda,
  Nos fios de hum punhal lhe teçe a morte:
  Inclîna o lacteo collo amortecida,
  Avassallada já da infausta sorte,
  Exhála a vida o corpo de alabastro,
  Feneçe amor com Donna Ignez de Castro.


LXIX.

    Qual a branca Açucena, que cortada,
  Sente do ferro, ou tempo, a crueldade,
  Em seu mesmo candôr amortalhada,
  Defunta flor em flor na flor da idade:
  Á qual ficaõ sómente de engraçada
  Os antigos riscunhos da beldade:
  Tal fica a bella Ignez amortecida
  Sem gala, luz, sem cor, graça, nem vida.


LXX.

    Vós agora, troféos da formosura,
  Apparencias vitaes de ramalhete,
  Colhey as vélas, porque a pouca altûra
  Qualquer onda vos mólha o galhardete:
  Olhay, que a branca Rosa, flor mais pura
  Acha, se berços, campas no alegrête:
  Attentay léve flor, bellesa vaã,
  Que he mais antiga a tarde, que a manhaã.


~FIM~

_da primeyra parte_.

[Ilustração]



[Ilustração]



SEGUNDA PARTE


I.

    Ja da fatal tragédia retiradas
  As restantes ruinas da feresa,
  Ficaraõ só no cãpo idolatradas
  Hũas breves reliquias da bellesa:
  Ausente Pedro, sem que as mal logradas
  Lamentasse memorias da firmêsa:
  Taõ dittoso nas magoas se discorre,
  Que morre ufâno, sem saber que morre.


II.

    Queixosa em fim feneçe a galhardia,
  Solicîta queixûmes a ternûra,
  Vendo jà no desdem da tyrannia
  Menos cruel a Parca, que a ventûra:
  Que como qualquer dote se avalia
  Por symptôma fatal da formosúra,
  Aquella mesma ditta, que entre sortes
  Cumûla prendas, mutiplîca mortes.


III.

    Á ventura se queyxa, que a beldade
  Fosse causa da perda, porque unida
  Naquellas prendas da melhor idade,
  Fez acabar rigôr, o que era vida;
  Mas a Parca tyranna por vaidade
  Solicita bellesas advertida;
  Porque dellas talvez se naõ cuidára,
  Morre fora huma prenda, e só matára.


IV.

    Só suspiraõ, só choraõ lastimosas
  (Que naõ pára nas queyxas a finesa)
  Aquellas, que restaraõ só piedosas
  Troyas do amor, reliquias da bellesa:
  Aquellas, digo, prendas lachrimosas,
  Dous Infantes gentîs, a que naturesa
  Deyxou com vida, porque em seu tribûto
  Fosse a morte da flor vida do fructo.


V.

    Qual nos braços da planta mais visinha
  Em roupas de rubîm, cama olorosa,
  Sentindo huma lanceta em cada espinha,
  Sangrada no jardim fenece a Rosa:
  Consagrando-se flor, quem foy Rainha,
  Em vivos holocaustos sanguinosa,
  De cujas cinzas restaõ por grinalda
  Reliquias de ouro em cófre de esmeralda.


VI.

    Que pesáres, que penas, que rigores
  Amor formáva, cada qual sentia,
  Qual nos gemidos soluçando amores,
  Em carinhossas magoas confundia:
  Qual desmayado no tapiz das flores,
  Se recosta trophéo da tyrannia,
  Notando aquelle peito, cujo enfeite
  Lhe troca em pena, quanto foy deleite.


VII.

    Quantas vezes fallando enternecidos,
  Em soluços lhe pára o doce alento!
  Quantas na voz do monte repetidos
  Os saudosos ays lhe torna o vento:
  Quantas a ser naufragio dos sentidos,
  Se deriva em chrystaes o sentimento;
  Pois quer a dor, querendo amor agora,
  Chórem dous Soes a falta de huma Auróra.


VIII.

    Alentado o rigor, duplîca em tiros,
  Se bem globos de fogo, esphéras de agoa;
  Naõ resiste Clavêl, que nos retiros,
  Naõ morra espûma, e naõ feneça fragoa:
  Multiplica-se o vento nos suspiros,
  Fogósos rayos lhe despede a magoa:
  Já naõ sabe nascêr, nem brilhar Rosa,
  Que naõ pasme defuncta mariposa.


IX.

    Nem tribûtaõ lisonjas aos sentidos
  Nestas mudas razoens, que amor ordena,
  Que sujeitos amantes desunidos,
  Aquelle, que mais chóra, esse mais pena:
  E se lagrimas saõ nos mais sentidos
  Almas do coraçaõ, bem se condena
  Qualquer a mais sentir; pois he patente,
  Que quem mais almas tem, muito mais sẽte.


X.

    A solidaõ de Pedro imaginada,
  Lhe accende as almas, lhe distilla os peytos,
  Que nem morrêra Ignez, se retirada,
  Naõ sentira distante os seus effeitos:
  Que como seja amor, muito apertada,
  Se gentil, uniaõ de dous sujeitos;
  Quando matar hum delles amor trata,
  Se desunir os dous hum só naõ matta.


XI.

    Assi passaõ da mágoa a ser espanto
  Os dous ayos do mimo, os dous Cupìdos,
  Narciso cada qual do proprio pranto,
  Phaetontes em fim de seus gemidos:
  Se foraõ gala da bellesa, em quanto
  Eraõ gentîs desvelos dos sentidos,
  Lastimas ficaõ já da tenra idade,
  Culpas de amor, delictos da beldade.


XII.

    Quaes simples avesinhas, que roubadas
  Ás lisonjas de Abril, mimos de Flora,
  Dos maternaes alentos apartadas,
  Suspira cada qual, cada qual chóra:
  As que foraõ do campo idolatradas
  Oraculos do Sol, linguas da Auróra,
  De si mesmas agora occulta fragoa,
  Concebem pena, quando abortaõ magoa.


XIII.

    Mas já funesta voz, turbado alento
  Por linguas de metal enrouquecido
  Formava o Semideos monstro violento,
  Gigante pela fama conhecido.
  Aquelle, cujo aládo atrevimento
  Se remonta veloz, e taõ subido;
  Porque nelle talvez o mundo veja
  Voarem pennas a pesár da inveja.


XIV,

    La fez a túba lastimoso effeito
  Nos alentos de Pedro, que em suspiros
  Os mais dos eccos lhe interpréta o peito
  Dobrando mágoas, renovando tiros:
  Quando apenas em fim na dôr desfeito
  O coraçaõ se pasma, que em retiros
  Suffocado talvez da intensa calma,
  Se isentou de correr por conta da alma.


XV.

    No combáte fatal deste desmayo
  (Lastimoso parenthesis da vida!)
  Tribûta vivas ao mortal ensayo,
  A sentinella da alma já vencida:
  Naõ morre Pedro, naõ, que aquelle rayo
  Foy lançada de amor, que repetida,
  Se pertende matár, a quem suspira,
  Menos o mata, se lhe a vida tira.


XVI.

    Assi vivendo morre, quando amante;
  Assi morrendo vive, quando ausente;
  Que se morre, pois pena por distante,
  Vive tambem, pois ama, porque sente:
  Mas em fim naõ passâra tanto ávante
  Nas finesas amor, que fora urgente
  Acabar-se na vida, se roubára,
  E taõ fino naõ ser, se naõ matára.


XVII.

    Mas quem diria agora o que sentiste
  Nesta, Pedro, de amor menos ventura,
  Dos carinhos ausente, que já viste
  Brotar melindres, produsir brandûra?
  Oh! que dirias, Pedro, quando abriste
  Aquelles dous conceitos da ternûra!
  Os olhos digo; mas amor ordena
  Parte das queixas interpréte a pena.


XVIII.

    Já no pardo capuz, roupas saudosas
  Emmudecida a terra se encobria,
  E nos hombros das nuvens tenebrosas
  Ataúdes de sombra o tempo erguia,
  Consagrando com tochas lachrimosas
  Mudas exequias ao defuncto dia,
  Dando claros sinaes ao Jovem louro
  Em torres de Zaphir os signos de ouro.


XIX.

    Quando a favor da vida o sentimento
  Novos em Pedro reproduz gemidos,
  Sendo sumilher da alma o novo alento,
  Que lhe corre as cortinas aos sentidos:
  Mas já liquida dôr, claro tormento
  Se acredita nos olhos advertidos,
  Que quem nas penas solitario mora,
  Só lhe resiste vivo, em quanto chora.


XX.

    Solicita retîros, em que unidas
  Se acreditaõ de finas as saudádes,
  Que saõ mais primorosas, se sentidas,
  Naõ permittem motivos a piedades:
  Tributaraõ labéos de mal nascidas;
  A naõ passarem móstra de vaidades,
  Quando naõ foraõ mais, que eternisadas,
  Solitarias, occultas, retiradas.


XXI.

    E já nas solidoens entretenido
  Interpréta lisonjas aos cuidados,
  Pois vay vendo nas flores advertido
  Morraes prendas, alinhos mal logrados:
  Mas apenas se lembra enternecido
  Daquelles Soes agora imaginados,
  Quando já vacilante se discorre,
  Aqui pasma, allî geme, acolá morre.


XXII.

    Qual Girasol gigante, que atrevido
  A beber rayos amoroso aspira,
  Se bem, que entre zeloso, e presumido
  Desdenha ufâno, temoroso gira:
  Mas vendo apenas, que o galân querido
  Com disfarces de nacar se retira,
  Porque se vê das glorias todo ausente,
  Languido pasma, cuidadoso sente.


XXIII.

    Em fim rompe nas queixas amorosas
  Agora Pedro, quando as vê sentidas,
  Que naõ pódem livrar-se de penosas,
  Quando sabem fugir a ser ouvidas:
  E só discretas saõ, se rigorosas,
  As que menos se presaõ de entendidas;
  Que já por isso Pedro se as pertende,
  He só porque a si mesmo naõ se entende.


XXIV.

    Ay! gloria minha, diz, gloria sonhada!
  Minha te chamo, quando assi perdida,
  Que se naõ tens as veras de lograda,
  O desár naõ padeces de esquecida:
  Como gloria maltratas, se lembrada?
  Como molestas gloria possuida?
  Na pósse logras ancias de fallivel,
  Na memoria rigores de impossivel.


XXV.

    Como soube deixar-me assi frustrado
  Este rigor, que gloria se habilita,
  Quando me fez mayor, que o mesmo Fado,
  Mayor, que amor, mayor q̃ a mesma dita?
  Quem me disséra então, que este cuidado
  Fosse Rosa, que apenas se acredita,
  Quando se vê nas maõs da naturesa
  Trophéo da dôr, sangria da bellesa.


XXVI.

    Ay triste solidaõ! ay pena ingrata!
  Quanto menos cruel foras agora,
  Se permittindo a magoa, que maltrata,
  Naõ roubáras a gloria, que te adóra:
  Mas esta dôr naõ fora, que assi mata,
  Rigoroso pesár, se assi naõ fora;
  Pois naõ se méde o mal de quem suspira,
  Pelo que tem, senaõ pelo que tira.


XXVII.

    Mas inda mais avante acompanhada
  Desta dôr outra pena já me alcança;
  Pois na magoa da perda lamentada
  Os alivios me rouba da esperança:
  Mas como, se naõ fora eternisada,
  Maltratára das glorias a mudança?
  Que o pesár sem remedio padecido,
  Mata porque hade ser, e porque ha sido.


XXVIII.

    Nem pódem mitigar esta saudade
  Assistencias de amor, porque resiste
  Outra nova razaõ da soledade,
  Que nas distancias desse amor consiste:
  Que como aquelle objecto da vontade
  Hoje feito impossivel naõ me assiste,
  Sendo vinculo amor entre subjeitos,
  Naõ tendo extremos, naõ produz effeitos.


XXIX.

    Só deixára de ser eternisada
  Esta dor, mas só fora divertida,
  Se a memoria da pena imaginada
  Naõ passára a ser pena padecida:
  Só razão de praser, quando lembrada,
  Essa gloria tivera, que he perdida,
  Se sendo assi passada na lembrança
  Soubéra ser futûra na esperança.


XXX.

    Nem queixumes de lagrimas sentidas
  Alivios pódem ser nesta saudade,
  Que sendo partes da alma desunidas,
  Saõ causas naturaes da soledade:
  Porque quando nos olhos advertidas,
  Procuraõ fugitivas liberdade,
  Aquella mesma vida, que me alenta,
  Tambem nellas partida se me ausenta.


XXXI.

    Oh quem me déra já ser assistido
  Dos penhascos talvez, que o monte cria!
  Mas quem naõ tem razoens para sentido,
  Naõ póde ter nas magoas companhia:
  E hum rigor por ausencias padecido,
  Com nenhuma presença se alivîa;
  Que quem nas ancias, que padece hũ triste,
  Juntamente naõ pena, naõ lhe assiste.


XXXII.

    E menos me permitte esta esquivança
  Ser de vós assistido, lindas flores,
  Pois por gentis emblemas da mudança
  Jeroglyphico sois de meus amores:
  E se produzis glorias na lembrança,
  Mal podeis assistir a meus rigores;
  Que naõ faz assistencia nos retiros,
  Quem motiva principios aos suspiros.


XXXIII.

    Nem já, féras, talvez vossa brutesa
  Resta para topar branda piedade;
  Mas como póde ser, se a naturesa
  As noticias vos néga da saudade?
  E no fatal rigor de huma tristesa,
  Nos efeitos mortaes da soledade,
  Naõ póde ser a dor compadecida,
  Sem que seja na causa conhecida.


XXXIV.

    Nem sereis, avesinhas, no saudôso
  Companheiras gentîs a meus retiros,
  Que diversos sujeitos no penoso,
  Tem diversas as magoas nos suspiros:
  E bem se vê, que o mal todo invejoso
  Mais a mim, do que a vós fulmina os tiros;
  Pois nûm rigôr fatal hum, damno esquivo,
  Mais mata o racional, que o sensitivo.


XXXV.

    E menos podeis ser a meus sentidos
  Deleitoso carinho na saudade,
  Lisonjeiros arroyos, que atrevidos
  Solicitaes dos olhos a vaidade:
  Mas como? se a meus ays, e a meus gemidos
  Multiplicaes melhor a soledáde;
  Pois em vós retratado, e descontente,
  De mim mesmo me vejo estar ausente.


XXXVI.

    Mas ainda assi paray, que se melhora
  Nestas lagrimas minhas vosso augmento:
  Se professais correntes, como agora
  Sabeis livres fugir ao sentimento?
  Paray, naõ murmureis, que nisso fora
  Muito mais conhecido vosso alento;
  Olhay que se condena, ou se aventûra,
  A naõ fazer remansos quem murmûra.


XXXVII.

    E vós paray nas queixas amorosas,
  Galantes cortesans da soledade,
  Que naõ fazeis os pontos de queixosas
  Quando dais tantas falsas na saudade:
  Paray, digo, a meus ays, paray piedosas,
  Paray nos quebros, tende a liberdade,
  Aprendereis a ser nestes retiros
  Hum Féniz cada qual de meus suspiros.


XXXVIII.

    Paray gentîs emblemas da vaidade,
  Flores, digo, paray, paray saudosas,
  Naõ bebais presunçoens, que a pouca idade
  Sereis de meus incendios mariposas:
  Aprendey dos alinhos da beldade,
  De vossa vida, digo, a ser piedosas;
  Que sempre foy nas regras da ternûra
  Muy capaz de liçoens a formosura.


XXXIX.

    Paray féras tambem nesses ruidos,
  Guardas do monte, archeiros da ferêsa,
  Fazey caso das penas, que os bramîdos
  Argumentos parecem da brutêsa:
  Isto basta, paray, que os entendidos
  Pódem talvez notar vossa estranhesa:
  Minhas queixas ouvi, que alivio fora,
  Quem naõ póde fallar, me ouvisse agora.


XL.

    Paray broncos penhascos, que o Céo cria
  Para pardos Atlantes dos retiros,
  Se vos vence huma liquida porfia,
  Como já resistis a meus suspiros?
  Mas oh! que digo! páre a covardia,
  Exhále o peyto, multiplique os tiros,
  Duplîque amor, e dobre o sentimento,
  Agoa nos olhos, nos suspiros vento.


XLI.

    Ferîdo o coraçaõ tribûte em fogo
  Undósa parte, derretido alento,
  Se liquida sangrîa ao desaffogo,
  Lisonjeira lancêta ao sentimento:
  Se excessivo queixúme, ardente rogo,
  Se verte em nuvem, se distille em vento,
  Naõ fique planta, que a pesár do espanto,
  Naõ morra em fogo, naõ se afogue em prãto.


XLII.

    Sejaõ linguas dos olhos mudas agoas,
  Intérpretes da dor tristes retiros,
  Eloquencias do peito vivas fragoas,
  Razoens do coraçaõ ternos suspiros,
  Rhetóricas da pena ardentes magoas,
  Elegancias de amor dobrados tiros:
  Emmudeça a razaõ, que só parece,
  Sabe tambem sentir, quando emmudece.


XLIII.

    Distille o coraçaõ, duplique o vento
  Ethnas a seu pesár, agoas ao rogo;
  Morra por glorias de seu mesmo alento
  Troya nas ondas, e Narciso em fogo:
  Incendios solicîte ao sentimento,
  Diluvios multiplìque ao desafogo,
  Sendo de seu rigor o mesmo ensayo,
  Nas causas nuvem, nos effeitos rayo.


XLIV.

    Naõ cresça lirio, que naõ sinta os tiros,
  Clavél naõ gire, que naõ pasme em fragoas;
  O que Féniz naõ for entre os suspiros,
  Morra já Faetonte sobre as agoas:
  Sejaõ vozes as magoas nos reriros,
  Que melhor nos retiros se ouvem magoas,
  Se se póde na dor, que amor ordena,
  Ouvir a magoa sem sentir a pena.


XLV.

    Naõ reste planta, que se atreva a tãto,
  Que naõ murche dos ays enternecidos,
  Rosa naõ fique, que, a pesár do espanto,
  Se naõ séque ludibrio dos gemidos:
  Em fim, duplique a dor, prodûza o pranto
  Lastimosos naufragios dos sentidos;
  Seja neste pesár, nesta esquivança
  Charybdes da alma o Cabo da esperança.


XLVI.

    Mas ay! que as plantas no desdẽ da idade,
  Mas ay! que as flores no rigor de hũ vento,
  A naõ serem Jasmins na brevidade,
  Naõ seriaõ Perpetuas no tormento:
  Só tu terrivel ancia da saudade
  Eternizas agora o sentimento;
  Porque quando matar-me amor ordena,
  Me deixas vida, com que o corpo pena.


XLVII.

    Quem soubéra cuidar, que a mais crescida
  Tyrannîa cruel da dor mais forte
  Fosse, quando nas perdas de huma vida
  Impossiveis sentisse de huma morte:
  Mas he rigor da magoa repetida
  Por industria fatal da iniqua sorte;
  Porque quando talvez matar-me trata,
  Por topar-me sem vida, naõ me mata.


XLVIII.

    E se fora da vida roubadora
  Esta sorte fatal, tormento esquivo,
  Tivera só por pena matadora
  Qualidades de grande no intensivo:
  Mas naõ, que como amor pertende agora
  Cumulár intensoens ao sensitivo,
  Naõ quer, que amor me mate, pois durára
  Muito menos a pena, se matára.


IL.

    Agora alcançarás, prenda querida,
  Os rigores de amor na minha sorte,
  Pois agora me quer roubar a vida,
  Só por ma naõ tirar primeyro a morte:
  Mas ay! que a pena se duplîca unida:
  Mas ay! que a magoa se eternisa forte;
  Pois que vejo na dor do mal esquivo,
  Que naõ posso morrer, porque naõ vivo.


L.

    Mas agora na pena, que me entrega,
  Vejo, que quer a dôr, e a mais aspira,
  Que padeça na morte, que o mal nega,
  E que pene na vida, que amor tira:
  Aqui verás, Ignez, a quanto chega
  Esta pena de amor, que amor, conspira;
  Pois agora naõ sey, no que discorro,
  Se vivo ausente, nem se ausente morro.


LI.

    Mas em fim: que me queixo dos rigores,
  Com que talvez amor me tyrannisa,
  Quando mais martyrisaõ seus favores,
  Onde qualquer lembrança os eternisa:
  Pois quando apenas se alentaraõ flores,
  Passaraõ quasi flor, que se agonìa;
  Por isso a minha queixa mais se ordena
  A sentir seu desdem, que a minha pena.


LII.

    Oh duro amor! oh fragoa dos gemidos,
  Prisaõ da vida, Argel da liberdade,
  Martyrio da alma, guerra dos sentidos,
  Encanto doce da melhor vontade!
  Teus favores só foraõ conhecidos
  Por gentîs prendas da mais tenra idade,
  A naõ serem primeyro teus favores
  Seccas espinhas, que animadas flores.


LIII.

    Que cuidados naõ causas Jovem cego?
  Que rigores naõ dás ao pensamento?
  Que delicias naõ roubas ao socego?
  Que lisonjas naõ finges ao tormento?
  A que peitos naõ dás custoso emprego?
  A que vida naõ tiras doce alento?
  De que genios naõ reinas? de que idades?
  De que prendas gentìs? de que beldades?


LIV.

    Quem me disséra, quando Ignez lograva
  Nos carinhos gentîs de seus favores,
  Quando nelles amor idolatrava,
  Para poder talvez morrer de amores!
  Quem me dissera, logo, que aspirava
  Hum cadúco praser a taes rigores!
  Quem me disséra então, que da ventura
  Era mortal delicto a formosura!


LV.

    Quem disséra, que os laços de alvedrios,
  Gentîs madeixas, onde a naturesa
  Repartio liberal por tantos fios
  Os melhores extremos da bellesa,
  Esses agora, que acabarão brios,
  Se arrastão já bandeiras da tristesa?
  Mas que muito, se nunca em seus ensayos
  Nenhum por Louro se isentou de rayos.


LVI.

    Oh bem, que pouco duras possuido!
  Só logras algum ser, quando esperado;
  Nos molestos receyos de perdido
  Tyrannizas o gosto de alcançado;
  Oh sonhada lisonja do sentido!
  Oh mais terrivel ancia do cuidado!
  Flor, que apenas se vê, quando se chora
  Enteada do Sol, filha da Aurora.


LVII.

    Aquelles olhos donde o Sol furtava
  Os melhores thesouros da vaidade,
  E em lusidas capellas consagrava
  Dous altares Amor a huma beldade:
  Aquelles, cuja luz interpretava
  Os occultos archivos da vontade,
  Estes mesmos erarios da bellesa
  Deixa a perder de vista huma feresa.


LVIII.

    Oh debil gloria lisonjeiro ensayo!
  Babél da vida, lingua do escarmento,
  Desfeita sombra do mais breve rayo,
  Quebrado vidro da mais tibio vento:
  Jasmim, que pasma de qualquer desmayo,
  Cravo, que morres de teu mesmo alento!
  Oh gloria humana! em fim gloria sonhada,
  Vida, Sombra, Jasmim, ou Cravo, ou nada.


LIX.

    Aquella bocca, donde a mais lustrosa
  Se divisava purpura incendida,
  Em quem se vio nascendo a bella Rosa
  Com menos folhas, quando mais partida
  Agora só se occulta lastimosa
  Em desmayos de neve amortecida;
  Mas que prenda não tem que formosura,
  Muito menor a vida que a ventura!


LX.

    La pretende nascer Cravo lusido,
  Mas em casa gentil botão fechado;
  Porque aquella manhaã, que o vê nascido,
  O chorasse primeyro amortalhado:
  Quem, ô purpurea flor, taõ presumido?
  Mas quem, Cravo gentil, taõ lastimado?
  Que lhe chegue a tecer a naturesa
  A mortalha primeyro, que a bellesa.


LXI.

    Aquelle brando afleyo da ternûra,
  Aquelle doce Argél da liberdade,
  Aquelle emblema só da formosura,
  Aquelle bello encanto da vontade,
  Aquelle gentil pasmo da ventura,
  Aquelle rico erario da vaidade,
  Nos alinhos se vê já confundida,
  Troféo da morte, lastima da vida.


LXII.

    Que pouca duraçaõ, que mal segura,
  Tem nas prendas da vida huma bellesa!
  Só vive em quanto nasce a formosura,
  Espira, em quanto vive a gentilesa:
  Em fim, mais morre, quãto em fim mais dura,
  Mortalidades traz por naturesa;
  Quanto mais alentada, e mais lusida,
  Mais accidentes logra, e menos vida.


LXIII.

    Mas se saõ melindrosa enfermidade
  Prendas de amor, e dotes de huma vida,
  Que muito, bella Ignez, que essa beldade
  Fosse de teus alentos homicida:
  Comtigo a morte foy no Abril da idade,
  Menos ambiciosa, que atrevida,
  Sem reparar, Ignez, que teus rigores
  Perdessem fructos por cortarem flores.


LXIV.

    Mas viveràs, Ignes, que amor ordena
  Nestas memorias, donde a tyrannia
  Por naõ lograr-se mal a minha pena,
  Debuxàra melhor tua galhardia:
  Aqui veràs, Ignes, se me condena
  Amor, que por tyranno se avalia,
  A fazer impossiveis, pois discorro
  Viver lembrado, quando auzente morro.


LXV.

    Morra no ramalhete flor cobarde
  A que Rosa nasceo  mais alentada,
  Vomitando rubins pague na tarde
  Quantas perolas bebeu na madrugada:
  Seja bruto fiscal de tanto alarde
  O mesmo dia, que a chorou cortada,
  Que nenhuma manhãa, nem tarde temo
  As contas tomar possa a tanto extremo.


LXVI.

    Aqui passo tal vez a mais quererte,
  Onde chego mais fino a mais lembrarme,
  Porque foraõ distancias de naõ verte
  Incentivos quiçà para olvidarme:
  Mas nem topo motivos de perderte
  Nesses teus infalliveis de deixarme,
  Que, sendo vida minha, sò pudera
  Por perdida julgarte, se eu morrera.


LXVII.

    Assim se queixa Pedro, quando ausente
  Daquellas prendas nunca esquecidas,
  Pois amor, que lembradas as consente,
  As pintou bellas, quando as vio perdidas;
  Quando nas pennas, que dobradas sente,
  Quando nas queixas, que repete unidas,
  Jà desmayando pasma, porque ordena
  A mesma queixa, que se calle a penna.


LXVIII.

    Qual o Lyrio gentil nas mãos da tarde,
  Quando fragoas se alenta, incendios gyra,
  Funesta tumba de seu mesmo alarde,
  Bebendo rayos, abrazado espira:
  O que roxo matìz a pennas arde,
  Parda nuvem murchando se retira,
  Em quanto a Aurora tarda, q̃ de hum rayo
  Lhe corre galas para novo ensayo.


LXIX.

    Assim Pedro se pasma, e naõ consente
  Os sentidos queyxumes, que derrama,
  Que se vive queixoso quem mais sente;
  Poem limite nas queixas quẽ mais ama;
  Mas aqui lhe concede amor presente
  Aquellas prendas, com que mais o inflãma,
  Que saõ talvez motivos do socego
  As memorias gentis do doce emprego.


LXX.

    Agora, humanas prendas, se entendidas
  O desdem desprezais da infausta sorte,
  Que naõ duraõ taõ pouco vossas vidas,
  Que naõ saibaõ passar àlem da morte:
  Attentay, se notardes advertidas,
  Que naquelle de amor rigor mais forte
  Aconteceo da misera, e mesquinha,
  Que depois de ser morta foy Rainha.


~FIM~

_Da segunda parte_.

[Ilustração]



  PARTE UNICA,

  OU

  TERCEIRA

  DAS

  SAUDADES,

  E

  SENTIMENTOS

  DE

  D. MARIA

  DE LARA.



[Ilustração: _No grande sentimento, que teve da prizão se seu
esposo, Glosou em Oitavas o Mote seguinte em que se ve a causa de suas
lagrymas._]



_Choray, sem descançar, olhos cançados._


GLOZA I.

    Pois fostes olhos meus por quẽ mereço
  Da culpa o perdaõ que busco, e quero,
  Instrumento do mal que hoje padeço,
  Tambem o podeis ser do bem que espero:
  Jà de meus altos pensamentos desço,
  A vil estado humilde, duro, e fero,
  E jà que os males meus por vos saõ dados
  _Choray, sem descançar, olhos cançados_.


II.

    Mortiferos enganos procurastes,
  Dos quaes muy graves damnos padeceis,
  E pois de ver o mal nunca cansastes
  De chorar pelo bem nunca canseis:
  E já que os grandes bens que eniquilastes,
  Por quem vòs suspirais, por quem gemeis,
  Chorando poderaõ ser renovados,
  _Choray, sem descançar, olhos cançados_.


III.

    Das agoas que de vós estaõ manando
  Fazey hum rio claro, hum rio manso,
  Que eu folgo de vos ver cançar chorando
  Pois chorando ganhais vosso descanço;
  Nas cousas em que vos hides cansando
  Nessas me alegro, e eu nessas descanço,
  E pois nos faz o choro descançados,
  _Choray, sem descançar, olhos cançados_.


IV.

    Choray naõ descanceis, pois que ganhais
  Chorando quantos bens aqui perdestes;
  Póde ser, que nas agoas, que chorais,
  Laveis as nodoas grandes, que fizestes:
  Choray as grandes magoas, que me dais,
  Pelo gosto, que vós sem mim tivestes:
  Choray males presentes, e passados,
  _Choray, sem descançar, olhos cançados_.


V.

    Tantas agoas de vós sejaõ lançadas,
  Que affoguem vossos torpes desvarîos:
  E posto que estas agoas saõ salgadas
  Por ellas se navéga a doces Rios:
  Soffrey, por ver-des culpas affogadas,
  Tempestades crueis, calmas, e frios;
  Choray, se dezejais ser perdoados,
  _Choray, sem descançar, olhos cançados_.


VI.

    Acîma desta terra tem subido
  As agoas do diluvio taõ sómente;
  Porém as vossas poucas tem-se erguîdo
  Encima deste Céo mais eminente:
  E lá movendo estaõ com seu ruido
  A Deos, Senhor Supremo, Omnipotente;
  E se delle quereis ser muito amados,
  _Choray, sem descançar, olhos cançados_.


VII.

    Produzem temporal, terrestre fruto,
  As agoas, que os Céos daõ no duro inverno;
  Porém o vosso choro, sem ser muito,
  Produz fruto celeste, e sempiterno:
  Nunca de vós o campo esteja enxuto
  Chorando o mal antigo, e o mal moderno;
  Choray, seráõ os males desterrados,
  _Choray, sem descançar, olhos cançados_.


VIII.

    As agoas, que vós vedes ir correndo,
  Que parece que vaõ de vós fugindo,
  Por natureza vaõ ao mar descendo,
  As vossas por virtude a Deos subindo,
  Humas chegando ao mar, vaõ-se perdendo
  As outras ante Deos ficaõ assistindo:
  E se quereis de Deos ser estimados,
  _Choray, sem descançar, olhos cançados_.


IX.

    As agoas que das fontes vaõ manando,
  Fazem na terra vil vozes terréstes;
  Porém estas, que vós ides chorando
  No Céo Empyreo saõ vozes celestes:
  Chovey, olhos, chovey, iraõ brotando
  Os bens, que cõ a secura aqui perdestes;
  Os quaes se desejais ver restaurados,
  _Choray, sem descançar, olhos cançados_.


X.

    Com muitas agoas cá vay-se apurando
  Qualquer pequeno vaso estando immundo;
  Mas vós com bem pouca agoa estais lavando
  Immunda culpa, mór que o mesmo mũdo:
  Por isso naõ canceis de estar chorando,
  De lagrimas fazendo hum mar profundo;
  E pois por ellas sois galardoados,
  _Choray, sem descançar, olhos cançados_.


XI.

    As agoas cá vaõ só satisfazendo
  A sede aos animaes, que as vaõ gostando;
  Mas estas, que de vós estaõ nascendo
  A vosso Deos a sede estaõ matando:
  Sempre estejaõ de vós agoas correndo,
  Pois por ellas o bem vem navegando;
  Do qual se quereis ser certificados,
  _Choray, sem descançar, olhos cançados_.


XII.

    Ninguem se afogarà se naõ lançado
  Em agoas que o possaõ estar molhando,
  Mas vòs sem que molheis vosso peccado,
  O afogais nesta agoa que ies chorando:
  E pois tendes o mal jà desterrado,
  E os bens por vossas agoas vaõ entrando
  Atè que os possais ver desembarcados,
  _Choray, sem descançar, olhos cançados_.


XIII.

    Choray os annos uteis que gastastes,
  Choray o rico tempo que perdestes,
  Choray os bens divinos que deixastes,
  Choray males crueis que cometestes:
  Choray enganos vãos que tanto amastes,
  Choray conselhos bons que aborrecestes,
  Choray olhos no bem jà melhorados,
  _Choray, sem descançar, olhos cançados_.



                         OITAVAS CONSOLATORIAS

                        _Sobre o mesmo pezar_.


I.

    Ainda que a dor da razão priva,
  Quãdo a causa della he muito amada,
  Ainda que a paixaõ prende, e cativa,
  Os discursos de huma alma atormentada.
  A fé que sobre a mente he bem que viva,
  Pois anda sobre os Ceos alevantada,
  Dos males que sentis, e dos que vedes,
  Vos consola com os bens, que por fé crédes.


II.

    O Deos, centro das almas, guia, e norte,
  Por quem cada qual dellas he regidas,
  Fez que esta nossa vida fosse morte,
  Depois que sua morte fez a vida:
  Assim quem vive mais tem peor sorte,
  Pois que padece morte mais comprida,
  Porq̃ naõ logra mais quem tem mais annos,
  Mas quem mais annos tẽ, sofre mais dãnos.


III.

    Aquelle puro espirito encastoado;
  No delicado corpo que vos vieis,
  Sò consentia ser de vòs amado,
  Porque o divino amor lhe consentieis;
  E pois que Deos aos Ceos o tinha dado,
  E vòs só do emprestado possueis,
  Porque haveis de chorar de ver que Deos,
  Da terra quer levar o que he dos Ceos?


IV.

    Tanto o amador melhor padece,
  O trabalho por mais duro que seja,
  Quanto delle o pezar mais enriquece,
  A cousa que mais ama, e mais deseja.
  Pois se Deos que nos Ceos, quiz que estivesse,
  Naõ quer que a terra indigna mais a veja,
  Possa mais o seu bem para alegrar-vos,
  Do que pòde esse mal para cançar-vos.


V.

    He tençaõ do amor à razaõ dada,
  Que os bens que busca ainda em seu perigo,
  Mais saõ para os dar à cousa amada,
  Que naõ para logralos sò comsigo:
  Pois se estes a que esta alma foy chamada,
  Sem vòs lhos quiz dar Deos, se sois amigo,
  Folgay de carecer da parte vossa,
  Porque ella a parte, e o todo lograr possa.


VI.

    Quem vive no terrestre Purgatorio,
  Vive para ir gozar de hum bem eterno,
  E em quanto tinheis nella o transitorio;
  Em tanto naõ tinha ella o sempiterno,
  Pois se he ponto de fé, claro, e notorio,
  Que acaba o bem antigo, e o bem moderno,
  Se lhe querieis bem, num bem está posta,
  No qual todos os bens possue, e gosta.


VII.

    Mas vòs a quem a dor custa mais caro,
  Direis do damno della atormentado,
  Que naõ chorais da esposa o rico amparo
  Mas que chorais a vòs desamparado.
  Porèm sabendo Deos que era muy raro,
  Poder viver sem amar, e ser amado,
  Amar sua belleza vos convida,
  E quer que vendo a morte, ameis a vida.


VIII.

    Porque este autor de toda a formosura,
  Movido da feição, não de rigor,
  Vos tira dante os olhos a pintura,
  Porque ponhais os olhos no pintor;
  O casto amor que tinheis foy figura,
  Do real, verdadeiro, e puro amor,
  Que se Deos vos tirou cousa tào bella,
  Foy por vos dar a si que o he mais que ella.


IX.

    As cousas que da terra vaõ passando,
  Que nòs andamos nella pretendendo,
  Naõ saõ para os lograr nellas parando,
  Mas para Deos por ellas irmos vendo;
  Assim esta que vos hieis amando,
  Sabey, que ordenou Deos, segundo entendo,
  Que no humano amor vos enssayasseis,
  Porque o divino amor representasseis.



                                OITAVAS

    _Sobre assistir na Corte, para onde veyo solicitar o haverem a
                       liberdade de seu marido._


I.

    He muito natural de quem carece,
  Do bem q̃ desprezou, ou q̃ despreza,
  Louvalo a quem o tem, porque conhece,
  Que louvado se ama, estima, e preza:
  E como bens mais altos appetece,
  Toma de mòr estado, mòr empreza,
  O bem que desprezou esse festeja,
  E o bem que naõ alcança, esse deseja.


II.

    Na corte em que morais louvais a fonte,
  O monte, a solidaõ, bosque cerrado,
  Da qual muito dizeis do prado, e monte,
  Mas muyto mais se vè no monte, e prado;
  Por mais que ninguem diga, e mais que cõte
  Naõ fica ditto nada, nem contado,
  Porque he o que se diz morta pintura,
  E o que se vè real viva figura.


III.

    Eu cà no monte moro, e naõ com elle,
  Vòs na corte morais, mas he com ella,
  Quem logra o monte logra o doce delle,
  Quem sofre a corte sofre o agro della:
  Diga a corte do monte o bem que ha nelle,
  Diga o monte da corte o mal que ha nella,
  Porque he regra direita de amizade,
  Que pague huma verdade outra verdade.


IV.

    Ahi por dar calor a huma esperança,
  Que com dadivas grandes só aquenta,
  Se perde o que se tem, e naõ se alcança,
  Se naõ o que molesta, e que atormenta;
  Ahi se peza tudo em tal balança,
  Que na maõ desigual só se sustenta,
  E com taõ maõ fiel que o mais pezado,
  Contra direito tràs mais levantado.


V.

    De palavras se faz rica almoeda,
  Que deixaõ pobres sempre os compradores,
  Onde comprais cõ tempo, e cõ a moeda,
  As esperanças vãs aos vendedores;
  Gastais a vida, o pam, o pano, e a seda,
  Desejos só vos daõ como penhores,
  Que cada qual por grande preço empenha,
  A quem, ou gasta o tempo, ou desempenha.


VI.

    Ahi onde repousa a esperança,
  A sombra da infamia, e da deshonra,
  Onde a vosso pezar anda a privança
  Taõ alta que os pès tras sobre a honra:
  Ahi onde se tira o ferro à lança,
  Que seu dono levanta, louva, e honra,
  Onde os merecimentos se escurecem,
  Com fantasticos lumes, que apparecem.


VII.

    O fim da pertençaõ he duvidoso,
  E o trabalho della sempre he certo,
  Mas se o mal vos afasta, que he penoso,
  O apparente bem chegarvos perto;
  O dezejo do fim traz-vos mimoso,
  Molesta-vos porèm o vello incerto,
  E se sabe a proveito o falso engano,
  Depois de experimentado sabe a damno.


VIII.

    Ahi onde se vem com liberdade
  Andar todos os doudos desatados,
  Aquem, ou a sciencia, ou dignidade,
  Por mal de quem os vè tras embuçados,
  Detras da vã mentira anda a verdade,
  Para poder falar com os mais privados,
  Ahi vos he pezado, mas forçoso,
  Rogar, fingir, temer, e estar queixoso.


IX.

    Rogar a peito duro, e empedernido,
  Que só com metais ricos se quebranta,
  Em que lançais algum, mas taõ perdido,
  Que nem pode ser situ, nem ser manta,
  Rogar por termo humilde, mas fingido,
  Que vos abate avòs, outrem levanta,
  Rogo que faz Senhor, ao que he ouvinte,
  E ao que roga faz pobre pedinte.


X.

    Fingir, andando sempre atormentado,
  Para o alheyo bem grande alvoroço,
  Fingir que desejais de ser creado
  De quem pudera ser creado vosso:
  Fingir alegre rostro, a rostro irado,
  Que vos desejais ver sem seu pescoço,
  Fingir palavras vãs tintas com cores,
  Que sendo ellas de fel, pareçaõ amores.


XI.

    Temer que seja falsa a esperança;
  Que tanto tarda, cansa, e tanto custa,
  Temer que os bens, que a fama vos alcansa,
  Vos negue a Corte ingrata, dura injusta,
  Temer que este temor que tanto cança,
  Seja da esperança a paga justa,
  Que sejaõ os cortesaõs prometimentos
  Sem nenhuma largura comprimentos.


XII.

    Estar queixoso de ver quanto alcançaraõ,
  Os que parios em paz nunca correraõ,
  Queixoso de ver bens que transbordaraõ,
  Fóra dos que estes bens naõ mereceraõ,
  Queixoso de ver que inda naõ pagaraõ,
  Serviços que fiados se fizeraõ
  Queixoso porque o mào sem seu trabalho,
  Faz bigorna do bom, faz de si malho.


XIII.

    A terra em que repouso, em que descanso,
  Na qual livres cuidados apascento
  Cento me dà por hum, que nella lanço,
  A corte davos hum, lançais-lhe cento,
  Compra-se cà com gosto o que he descanso;
  Comprais lá cõ desgosto o que he tormento,
  O bem que tem o monte nunca o nega,
  O mal que tem a corte, sempre chega.


XIV.

    Depois que o mundo vão experimẽtastes,
  Depois de ser por sorte despachado,
  Me diz que vos deraõ, e o que gastastes,
  E achais que o que trazeis que foy comprado,
  Sabeis quã caro em fim tudo comprastes
  Na corte, que vos tem desenganado,
  Na qual quando as merces saõ muito largas,
  Despachaõ só com cargos, que saõ cargas.



                                OITAVAS

  _Que fes de despedida quando de Villa-Viçosa veyo para hum Mosteyro
 de Lisboa, nas quaes descreveo o triste estado, e o que poderia vir,
                segundo as pennas, que à acompanhava._


I.

    Ficay esteriles campos, calvos montes,
  Incultas serras, tristes arvoredos,
  Ribeiras seccas, peçonhentas fontes,
  Medonhos valles, asperos rochedos;
  Ficai mal assombrados orizontes,
  Parados rios, desiguaes penedos,
  Que jà me naõ vereis como me vistes,
  Inda que o ser mudeis de serdes tristes.


II.

    Meus sentidos trouxestes jà fechados,
  Que agora sem vos ver já trago abertos,
  De ouro, e de azul vestistes meus cuidados,
  Mas agora os vereis de dò cubertos;
  Se os vistes andar sempre acompanhados,
  Metidos os vereis pelos desertos,
  Porque naõ vendo, vejaõ o que naõ viaõ
  E sentindo, naõ sintaõ o que sentiaõ.


III.

    Sempre senti pezar, nunca alegria,
  Nunca em vòs descançei, sempre cançava,
  O bem que achava em vòs, de mim fugia,
  Mas se me achava o mal, em mim parava:
  A treição me dava, e me feria
  Se delle por diante me escuzava,
  Notai deste meu mal este segredo,
  Que sendo matador, he falso, e tredo.


IV.

    Em vós todos os bens vi contrafeitos,
  Cujas internas formas eraõ dores,
  Em vós topey pastores lobos feitos,
  Porém ainda em trajos de pastores;
  A estes procureis, e vãos respeitos,
  Dos bens alheyos vi destruidores,
  Gostando só do mal que entaõ causavaõ,
  E roubando os taes bens, que naõ gostavaõ.


V.

    Mais feroces, que lobos, pois que querem
  Sustentar-se dos males, que causarem:
  Que os lobos mataõ gado por comerem,
  Mas estes só matavaõ por matarem;
  Sómente se recream em offenderem,
  Os que mais suas leys contrariarem,
  Porque a contradicçaõ faz inimigos
  Daquelles, que antes della foraõ amigos.


VI.

    Nenhum seu proprio estado já respeita
  E trazem nas aldeas em que moraõ
  Rebuços de virtude contrafeita,
  E rostos naturaes do mal que adoraõ:
  Condẽnam a ley do Ceo por muito estreita,
  E em todas por seu mal sempre peòram,
  Taõ amigos do bem, que vivo o enterram,
  E taõ destros no mal, que nunca o erraõ.


VII.

    De Astioge se diz que aborrecia
  A Cyro moço tenro, e delicado,
  A quem morte cruel traçava, e ordia;
  Porque era pretensor do seu Reynado;
  Porém o odio destes naõ se cria,
  Por enveja, ou temor demasiado,
  Sò com odio do bem, o bem perseguem,
  Por seguirem o mal, que todos seguem.


VIII.

    Mas eu que escrevo, canto, falo, ou digo,
  Quem me importuna, turba, e desordena,
  Se a cegueira que tem he seu castigo,
  E sua mà vontade he sua pena;
  Quem tem o mundo, que naõ tenha amigo,
  Se Deos assim o traça, assim ordena
  Que tudo quanto ha, tenha adversario,
  E seja o homem de si cruel contrario.


IX.

    Saõ estes desliaes adoradores
  Da propria vontade cega, e dura,
  Que fazem de seus vicios seus senhores,
  E só para seu mal mostraõ brandura,
  Das sempiternas leys contraditores,
  Trazendo destas leys a vestidura,
  Amadores do mal, e da mentira,
  Filhos da perdiçaõ, e vasos de ira.


X.

    Vestem a perversaõ com sua nobreza,
  Querem fazer da noite claro dia,
  Sua maldade cobrem, com a riqueza,
  Rebução com poder a tyrannia:
  Disfarçaõ sua furia em fortaleza,
  A vontade cruel julgaõ por pia,
  Sò tem o mal por bem, que o naõ aborrecẽ,
  E o bem temno por mal, que o naõ conhecẽ.


XI.

    Por peccados que Lucio, e Casso acharaõ
  A seus filhos mataraõ por peccarem,
  Mas estes mais crueis que os que passaraõ
  Querem-lhos inventar para os matarem;
  Os bens dignos de premio nunca olharaõ,
  Sò vem os males para os castigarem,
  E o que he furia cruel digna de espanto,
  Chamaõ-lhe sò rigor, e zelo Santo.


XII.

    Falo com reprovados, que abterno
  Foraõ por culpa sua condemnados,
  Ao fogo abrazador do escuro inferno,
  Sepulchro dos que jà saõ reprovados;
  Juizo foy divino, e sempiterno,
  Que os juizos humanos traz cançados,
  Que vivaõ de mistura os escolhidos,
  Com os que se haõ de perder, e já perdidos.


XIII.

    Mas ay que póde ser q̃ os que reprehendo
  Subaõ do mal ao bem que naõ conhecem,
  E póde vir a ser que os que defendo
  Deçaõ do bem ao mal, que hoje aborrecem,
  Que quaes saõ os de Deos, eu naõ no entẽdo
  Senaõ segundo as obras que aparecem:
  Porèm a graça de huns naõ he segura,
  E nem a culpa de outros sempre dura.


XIV.

    O Principe das trevas naõ pretende
  Com todos seus vassalos preseguirnos?
  Naõ nos deseja mal, naõ nos offende?
  E naõ estuda sempre em destruirnos?
  Naõ temos nòs a Deos que nos defende,
  Se elle quer offendernos, e oprimirnos?
  Se nòs sem paixam nossa o desprezamos,
  Porque com seus ministros nos cançamos?


XV.

    Que ter amigos taes he sorte boa,
  Pois saõ occasiões para a vitoria,
  Artifices sutis da altiva coroa,
  Que Deos costuma dar na eterna gloria;
  Naõ quero que me cause, ou que me doa,
  Trazelos como trago na memoria,
  Porque, ou sejaõ cilicio, ou disciplina,
  Saõ meyos de mayor graça divina.


XVI.

    Quem nunca aborreceo o ferro agudo
  Com que o barbeyro destro dà a sangria,
  Se para o mal que vem serve de escudo,
  Lançando à força o mal que havia:
  Quem trata mal o instrumento tudo,
  Que dente lhe arrancou, que lhe dohia?
  Amem-se pois amigos que daõ pena,
  Pois Deos meyos os faz do bem que ordena.


XVII.

    Chorẽse os dãnos seus que naõ conhecem,
  Pois que primeiro a si se offendem, e mataõ,
  Com os males com que os justos enriquecẽ,
  Que exercitaõ no bem quando maltrataõ,
  A si oprimem, damnaõ, a si empobrecem,
  A si destruem, cansaõ, e disbarataõ,
  A quem dos bens alheyos qualquer copia,
  Serve de afronta, penna, e magoa propria.


XVIII.

    O profeta David Deos defendia,
  Do Rey perverso injusto que o buscava,
  Saul por huma parte o perseguia,
  E Deos por outra parte o sublimava,
  Levanta-o Deos por Rey, porque o sofria,
  Destroe Deos o Rey que o invejava,
  Quem sofre reyna, quem perdoa alcança,
  He o odio do mào a espada, e a lança.


XIX.

    Assim que està por ley jà definido,
  A qual se tem no mundo publicado,
  Que em bẽ redunda o mal quãdo he sofrido,
  E empena fica o bem quando he passado;
  Hum passando deixou triste o sentido,
  Outro durando o traz desenganado;
  Porque hey de gastar bem que tanto damna,
  E temer mal que tanto desengana.


XX.

    Assim Deos o permitte, assim o ordena,
  Que nesta vida triste, e transitoria,
  Com gloria vaã se ganhe eterna pena,
  Com pena temporal eterna gloria:
  O gosto sempre a alma dezordena,
  A penna faz a vida meritoria,
  Quando se gosta o bem entaõ escurece,
  Quando o trabalho cansa, entaõ enriquece.



SONETO.


    Horas breves de meu contentamento,
  Nunca me pareceo quando vos tinha
  Que vos visse mudadas taõ azinha,
  Em taõ compridos annos de tormento.
    As minhas torres que fundei no vento,
  O vento mas levou que mas sustinha,
  Do mal que me ficou a culpa he minha,
  Pois sobre cousas vãas fiz fundamẽto.
    Amor com falsas mostras aparece,
  Tudo possivel faz, tudo assegura,
  Mas logo no melhor desaparece,
    Ó grande mal, estranha desventura,
  Por hum breve prazer que desfalece,
  Aventurar hum bem que sempre dura.



                                OITAVAS

    _Que fes a mudança do Mundo no espelho de seu esposo, sobre que
ponderou a variedade delle segundo o discurso, com que glosou o Soneto
186. das Rimas do Principe dos Poetas o Grande Luis de Camões, que fica
                        na pagina antecedente._


GLOZA I.

    Agora q̃ meu mal trouxe a meu dãno
  Mil annos se detẽ hũ duro inverno,
  Que quẽ em hum sò momẽto acha hũ anno,
  Hum anno lhe parece tempo eterno;
  Assim por castigar meu cego engano,
  Por quem jà me naõ rejo nem governo,
  As horas mudaõ em annos de tormento,
  Horas breves de meu contentamento.


II.

    O gosto por algum tempo me destes,
  Porque vindo o desgosto mais durasse,
  Que se no falso bem me detivestes,
  Foy por manchar o mal quando chegasse,
  Logo me pareceo quando vistes,
  Que nunca longos annos vos lograsse,
  Mas que fosseis agora a penna minha,
  Nunca me pareceo quando vos tinha.


III.

    E com me parecer que vos detinheis,
  O vosso vaõ soheyto me mostrava,
  Ser taõ certa a mudança do que tinheis
  Como a posse do bem que entaõ lograva:
  Cuidey, ó horas breves, quando vinheis,
  Que o tempo por algum tempo vos dava,
  Mas nunca presumio esta alma minha,
  Que vos visse mudadas taõ azinha.


IV.

    Bem podes em breve tempo conhecer,
  Que por discurso as cousas vay sabendo,
  Que a brevidade occulta do prazer,
  Da vaidade delle está nascendo;
  Mas como a payxaõ tira o saber,
  Naõ pude nesse tempo ir entendendo,
  Que vos mudasse o vil contentamento,
  Em taõ compridos annos de tormento.


V.

    Naõ julga o vaõ juizo apaixonado,
  Com segunda razaõ, alta, e profunda,
  Que quando o fundamento vay errado,
  Errado hade ficar quanto se funda;
  Assim para ficar mais magoado,
  E porque o erro meu mais se confunda,
  Em vento resolveo meu fundamento,
  As minhas torres, que fundei no vento.


VI.

    Naõ pode ser constante a esperança,
  Fundada sobre hum falso pensamento,
  Porque a constante, e firme segurança
  Procede de ser firme o fundamento:
  Por isso vi taõ cedo esta mudança,
  Porque as torres que fiz fundei no vento,
  E como eu no vento as torres tinha,
  O vento mas levou, que mas sostinha.


VII.

    Culpa de meu perverso, e vaõ sentido,
  Que vendo só mal huma sombra boa,
  Mas estimou o mal pelo vestido,
  Do que estimou o bem pela pessoa:
  Mas posto que me veja hoje perdido,
  Em penna que a razaõ tanto magóa,
  Como buscar o bem sò a mim convinha,
  Do mal que ficou a culpa he minha.


VIII.

    Por culpa só morre, e padece,
  Quem quer que as armas deu a seu amigo,
  Bem mostra que seu mal naõ aborrece,
  Quem deste mesmo mal ama o perigo;
  Pois logo se a razaõ isto conhece,
  Justo tormento foy, justo castigo,
  Que tudo me levaste o leve vento,
  Pois sobre cousas vãas fiz fundamento.


IX.

    Sente o cego amador em seus amores,
  A paga do serviço ser o engano,
  Converterem-se os bens em puras dores,
  Ser o proveito pouco, muito o damno;
  Mentirosas lisonjas os louvores,
  O fim de seu trabalho hum desengano,
  Porém nestas verdades que conhece,
  Amor com falsas mostras aparece.


X.

    Tudo o que vê cruel, mostra amoroso,
  Tudo o que he puro, mal finge bem puro,
  Tudo o que certo he, faz duvidoso,
  E tudo o que se vay, dà por seguro;
  Tudo que doce he, diz que he penoso,
  Tudo o que he manifesto, mostra escuro,
  Tudo confunde amor, tudo mistura,
  Tudo possivel faz, tudo assegura.


XI.

    Mostra que pode dar contentamentos,
  Aquelle que de taes mostras se fia,
  E mostra que he remedio de tormentos,
  Instrumento do bem, e da alegria;
  Mostra que faz seguros fundamentos,
  E que leva segura, e recta via,
  Mostra que a vida toda permanece,
  Mas logo no melhor desaparece.


XII.

    Mas ó razaõ perversa, e infernal,
  Pois tens a eleiçaõ taõ cega, e injusta,
  Que queres dar hum bem que tanto val,
  Por hum perverso mal, que tanto custa:
  Que por iguaes teu bem, queiras teu mal,
  E que aborreças tanto a vida justa?
  Que ames mais que a vida a morte dura,
  Ó grande mal, estranha desventura.


XIII.

    Nesta alegria falsa, a qual eu douro,
  Com minha razaõ torpe, e com meu erro,
  Onde as promessas saõ de fino ouro,
  E as dadivas saõ de duro ferro;
  Trocava o rico preço, e o thesouro,
  Que me levava à patria do desterro,
  Trocava o eterno bem que permanece,
  Por hum breve prazer que desfalece.


XIV.

    Sò o torpe juizo, e insensato,
  A quem verdades tais saõ odiosas,
  Das cousas preza mais o aparato,
  Do que preza, e ama as mesmas cousas;
  Sò este a quem por falso jà naõ trato,
  Pode por falsas mostras, mas fermosas,
  Por huma breve, e vãa desventura,
  Aventura hum bem que sempre dura.



                                OITAVAS

      _Que fez dirigidas a sua magoa, na consideraçaõ do discurso
   antecedente; e juntamente mostrando o quanto perturbado tinha com
        pennas o seu coraçaõ sobre que glosou o Mote seguinte._

               _Naõ cabe a mesma paz, na mesma guerra._


GLOZA I.

    Naõ pode ser a chama quente, e fria,
  Na tempestade estar o ar sereno,
  Na noyte escura verse o claro dia,
  O fogo abrazador sentir-se ameno,
  Acharse na tristeza à alegria,
  E poder ser mezinha, o que he veneno,
  Naõ se pòde ajuntar o ceo com a terra,
  _Naõ cabe a mesma paz, na mesma guerra_.


II.

    Naõ se acha pelo mar caminho aberto,
  A Lua naõ se vè nunca constante,
  Nem pode o que he desordem ser concerto,
  O preto, o branco ser, hum mesmo instante;
  Na incerteza acharse o tempo certo,
  Nem ser hum mesmo sabio, e ignorante,
  Ninguem na patria fica, e se desterra,
  _Naõ cabe a mesma paz, na mesma guerra_.


III.

    Naõ pode ser piadoso, o que he tyranno,
  Ninguem em seu tormento, tem sua gloria
  Em seu proveito pode achar seu damno,
  E sua destruiçaõ sua victoria,
  Naõ mora o desengano, no engano,
  Naõ he a vida eterna transitoria,
  Naõ sobe o valle nunca, mais que a serra,
  _Naõ cabe a mesma paz, na mesma guerra_.


IV.

    Naõ pòde ser prudente o vicioso,
  Sollicito, sagaz, o descuidado,
  Nem manso pode ser o furioso,
  Nem pode estar contente o magoado,
  Naõ he o temerario temeroso,
  Nem he ditoso o mal afortunado,
  Ninguẽ em hũ mesmo tempo acerta, e erra,
  _Naõ cabe a mesma paz, na mesma guerra_.


V.

    Naõ pode o que he doença ser saude,
  O que he prodigo ser tambem avaro,
  Naõ pode ser peccado o que he virtude,
  O que custa barato, custar caro;
  O engenhoso ser grosseiro, e rude,
  Aquillo que he commum puder ser raro,
  Naõ resplandece o ouro se se enterra,
  _Naõ cabe a mesma paz, na mesma guerra_.


VI.

    Naõ he resplandecente o abysmo escuro,
  Naõ pode ser traiçaõ, o que he lealdade,
  O puro bem, naõ se acha no mal puro,
  A mentira naõ pode ser verdade;
  O fundamento vaõ naõ he seguro,
  Nem pode ser segura a falsidade,
  E assim como naõ cabe o Ceo na terra,
  _Naõ cabe a mesma paz, na mesma guerra_.



                                OITAVAS

_Que ultimamente fez com grande espirito, quando se vio dezenganada do
 mundo, e conheceo a sua variedade sobre que glosou o Mote seguinte._

                 _Salid sin duelo lagrimas corriendo._


GLOZA I.

    Ay Dios, ay alma mia, ay dura suerte,
  Ay triste como estoy tan affligida,
  Pues que pude peccando dar la muerte,
  A quien no puedo dar llorando vida;
  Fue ser mi culpa tal, tanta dura, y fuerte,
  Que solo de Dios, es bien entendida,
  Y pues es tal mi mal que no lo entiendo,
  _Salid sin duelo lagrimas corriendo_.


II.

    Quien me diera, mi Dios, pues te offendi,
  Pues con tanto plazer te he offendido,
  Que fuera igual a el mal que cometi
  El pezar de tenerlo cometido:
  Quien pudiera, Senhor, vengarte en mi,
  Por todo quanto bien he destruido,
  Mas si llorando el mal en parte imiendo,
  _Salid sin duelo lagrimas corriendo_.


III.

    Sin ti quizo el mal mi coraçon,
  Pero contigo del es levantado,
  Pues que para poder darme el perdon,
  Me dás arrepentirme del peccado;
  Abage-se al profundo la razon,
  Pues a Dios de lo alto ha derribado,
  Venid suspiros ya, venid saliendo,
  _Salid sin duelo lagrimas corriendo_.


IV.

    Menos dolor tuviera en la memoria
  Del mal, que a tantos males me condena
  Si me quitara a mi tan dulce gloria,
  Y no te diera a ti tan dura pena,
  Mas pues mi culpa yá es tan notoria,
  Sea notorio el llanto, que ella ordena,
  Y por mostrar que mal me està doliendo,
  _Salid sin duelo lagrimas corriendo_.


V.

    Holgara ò Dias remedio del engaño,
  Que en camino te puzo taõ estrecho
  Que ansi como del mal fue tuyo el daño,
  Pudiera ser del bien tuyo el provecho,
  Pero teniendo de esto el desengaño
  Mirando en tu persona abierto el pecho,
  Con voz llorosa, y triste ando diziendo,
  _Salid sin duelo lagrimas corriendo_.


VI.

    Vi la causa del mal quize agradarla,
  Ya veo la del bien quiero sentirla,
  Miré la falcedad, quize abraçarla,
  Yà miro la verdad quiero seguirla;
  Si para tanto mal fue desecharla,
  Por mucho mayor bien era admitirla,
  Y en quanto su ausencia estoy sintiendo,
  _Salid sin duelo lagrimas corriendo_.


                                 ~FIM~

                    _da Terceira, e ultima parte_.

                            [Ilustração]



                          VIRTUDES, E VICIOS,

  _Feitas pela mesma Autora à instancia de huma Religiosa devota, as
 quaes virtudes augmentaõ as Religoens para melhor servir a Deos Nosso
        Senhor sendo-lhe contrarios os vicios que as destroe._


_Humildade._

    Sempre nos baixos me encerra
  A luz que a Deos me prendeo,
  Mas quanto deço na terra
  Tanto me sobem no Ceo.


_Liberalidade._

    Cubro o bom, cubro o iniquo
  Tudo comigo se cobre,
  Comigo he rico, o que he pobre
  Sem mim he pobre, o que he rico.


_Castidade._

    Quem contra mim nunca erra
  Quem comigo a si venceo,
  Fica estrangeiro na terra,
  Faz-se natural do Ceo.


_Paciencia._

    Quem por meu respeito cansa
  Sofrendo o mal que parece,
  Tudo vence, e tudo alcança,
  Tudo tem, tudo merece.


_Temperança._

    Sou temperada virtude
  Que todo o corpo governa,
  Dou-lhe temporal saude
  A alma saude eterna.


_Charidade_.

    Sou amada, e amadora
  Do mais perverso louvada,
  Das creaturas, criada,
  Mas das virtudes senhora.


_Diligencia._

    Quem nesta vida me tem
  Logra o bem acrescentado,
  Que a diligencia no bem,
  Faz que o bem seja dobrado.


_Prudencia._

    Sou prudente em toda a hora,
  Cousa com que sou contente;
  Porque em quanto sou prudente
  Naõ posso ser peccadora.


_Silencio._

  Dẽtro em mim mesmo me encerro
  Tudo ouço, e tudo callo;
  Porque tanto menos erro,
  Quanto menos vezes falo.


_Fè._

    Sou fè que da alma desterra
  O mal, que a escureço,
  Estando presa na terra
  Subo mil vezes ao Ceo.


_Esperança._

    Espero hum bem immortal
  Donde os bens todos me vem;
  Porque a esperança do bem,
  A doça a penna do mal.


_Penitencia._

    Sou a virtude que tem
  Contra o mal grande potencia,
  Sou a feliz penitencia,
  Que converte o mal em bem.


_Oração._

    Posto que grosseira, e rude,
  Sempre oro em meu coração;
  Porque só nesta Oração,
  Se a prende toda a virtude.


_Perseverança._

    Persevero sem mudança,
  Insisto sem me mover,
  Pois tudo pode vencer
  A longa perseverança.


_Mansidaõ._

    Mansa sou, e assim alcanço,
  Quanto prometem os Ceos,
  Que o que na vida he mais manso,
  He mais semelhante a Deos.


_Fortaleza._

    Resistir he meu officio,
  Tudo venço com firmeza,
  Porque a firme fortaleza,
  Vence, e mata todo o vicio.


_Verdade._

    Sempre acho quem me louve
  Por ser natural dos Ceos,
  A Deos ouve, quem me ouve,
  Quem me busca, busca a Deos.


_Misericordia._

    Sou das virtudes concordia,
  Estou na terra, estou nos Ceos:
  Sou huma cousa como Deos,
  Pois que sou misericordia.


_Abstinencia._

    Tenho o rosto feo, e fero
  Mas sou de summa excellencia,
  Sou o custo da abstinencia,
  Que os apetites tempero.


_Desprezo do mundo._

    O mundo, ou o immundo
  Deixo, como reyno alheyo,
  Pois com desprezo do mundo
  Todo o mundo senhoreo.


_Constancia._

    Sou forte firme, e prestante,
  Tenho a Deos, e Deos me tem,
  Quem no bem he taõ constante,
  Bem he que tenha tal bem.


_Justiça._

    A Deos tenho por farol
  Nunca me cega a cubiça,
  Senaõ sou Sol de Justiça,
  Sou justiça mais que o sol.


_Pobreza._

    Ninguem por mim se governa,
  Antes sou mui perseguida,
  Sendo miseria da vida,
  Posso dar a vida eterna.


_Mortificação._

    Sou das virtudes hum cofre
  Porque a todas faço a cama,
  Se persigo a quem me sofre,
  Guarlado-o a quem me ama.


_Paz da alma._

    Quem me logra cà na terra,
  Quem me tem do Ceo me traz,
  Na terra me sinto em paz,
  Por mayor que seja a guerra.


_Modestia._

    Sou composta e sou honesta
  Exemplar aos que me vem,
  Com exemplo de modestia,
  Provoco todos ao bem.


_Gratidaõ._

    Folgo de ser gratidaõ,
  Porque meus bens conhecendo,
  Agradeço o que me daõ,
  E mereço o que pertendo.


_Simplicidade._

    Quem me logra, e quem me tem
  He quasi celestial,
  Nunca cahe em nenhum mal,
  Porque sempre cuida bem.


_Pureza da alma._

    Todo bem sigo, e procuro
  Todo mal me he odioso,
  Tudo quero virtuoso,
  Tudo alimpo, tudo apuro.


_Zelo do bem._

    Naõ me traz no coraçaõ,
  O máo, o perverso, e rude,
  Pareço as vezes paixaõ,
  Porèm sempre sou virtude.


_Desprezo proprio._

    Pois no mal naõ faço pauza,
  Tudo faço em meu despeito,
  Desprezo o mal como effeito,
  E amim como propria causa.


_Renunciaçaõ._

    Deime com favor dos Ceos,
  A Deos meu ultimo fim,
  Porque dandome eu a Deos,
  Se me desse Deos a mim.


_Innocencia._

    Sò de mim se entende, e cre
  Que sem mal posso ter bem,
  Quem me tem nunca me vé,
  Quem me vè ja me não tem.


_Correiçaõ fraterna._

    Dos vicios sou adversaria,
  Todo o mundo me ha mister,
  Sendo a todos necessaria,
  Ninguem me pode sofrer.


_Recolhimento._

    Recolhimento procuro,
  Do corpo, alma, e sentido,
  Pois quanto mais recolhido,
  Tanto do mal mais seguro.


_Continencia._

    Sempre ando em companhia
  Da singular castidade,
  Em minha difficuldade,
  Consiste minha valia.


_Discripçaõ._

    Eu tiro de todo enleyo
  A qualquer juizo rude,
  Sou a que descobre o meyo
  Em que consiste a virtude.


_Amor Divino._

    Na terra sou peregrino,
  Porém no Ceo sou Senhor,
  Sendo Deos divino amor,
  Faz-me Deos amor divino.


_Amor do proximo._

    Depois que subo às alturas,
  Por amar a meu senhor,
  Como subo ao creador,
  Devo amar as creaturas.

_Devoçaõ._

    Faço doce o que he penoso,
  Faço leve o que he muy grave,
  Tudo o que he difficultoso,
  Faço facil, e suave.


_Fervor._

    A muitos pareço louco,
  Que naõ conhecem meu fruto
  Ainda que eu faça muito,
  Tudo me parece pouco.


_Graça._

    Tudo comigo se cobre,
  Das paixoens tenho a victoria,
  Sem mim nenhuma boa obra,
  Pòde merecer a gloria.


_Bem exemplo._

    Edifico os que me vem,
  Honrarey a quem me der,
  Sò com as mostras do bem,
  Muytos bens faço fazer.


_Conformidade._

    Sou conforme o meu querer,
  A Deos de quem tudo espero,
  Porque tudo quanto quero,
  Seja tudo o que elle quer.


_Pura tençaõ._

    Subiraõ à mayor alteza,
  Os Santos por minha via,
  Conforme a minha pureza,
  Tem as virtudes valia.


_Temor de Deos._

    Por naõ fazer hum aggravo,
  A Deos chego a todo extremo,
  Posto que sou escravo,
  Sò como seu filho o temo.


_Negaçaõ propria._

    Como em tudo a Deos me entrego
  Como me devo entregar,
  Em tudo o que he meu me nego
  Por naõ vir a arrenegar.


_Obediencia._

    Faço prudentes os rudes,
  Que sé regem sò por mim,
  Sou principio, e sou fim,
  De todas as mais virtudes.


_Vergonha._

    Tanto duro virtuosa,
  Devota, sesuda, e prompta,
  Quanto duro vergonhosa,
  A quem comigo se encontra.


_Brandura._

    De ninguem desprezadora,
  De todos muito prezada,
  De alguns naõ sou amadora,
  Mas sou de todos amada.


_Cortezia._

    Quem me tem fama terà,
  Que he o meu mais proprio fruto,
  Sem dar nada quem me dà,
  Fica recebendo muito.


_Compaixaõ._

    Conversando entre a gente,
  Com vontade pouco esquiva,
  Mereço por compassiva,
  A gloria do paciente.


_Lealdade._

    O mundo bem me dezeja,
  Mas naõ toma por guia,
  A que sou na frontaria,
  Sou nas costas da Igreja.


_Consciencia._

    Aviso do mal, e bem,
  A quem, ou bem, ou mal quer,
  Quem quer que me naõ tiver,
  Nenhuma virtude tem.


~VICIOS.~ _Soberba._


    Trago o rostro sesudo,
  Ando melanconizada,
  Cuido de mim que sou tudo,
  E eu sou menos, que nada.


_Avareza._

    Nada dou, tudo retenho,
  Atè a mim me nego o bem,
  Peço quanto os outros tem,
  Naõ dou nada do que tenho.


_Ira._

    Para tudo sou mofina,
  Ando amarella, e rayvosa,
  O mimo brando me indigna,
  Como palavra afrontosa.


_Inveja._

    He minha condiçaõ tal,
  Que me naõ sofre ninguem,
  Porque atè o alheyo bem,
  Me serve de proprio mal.


_Preguiça._

    Nunca me quero mover,
  Porque em nada me resolva
  Mas que o mundo se resolva,
  Naõ me posso resolver.


_Discordia._

    Atè a mim me contradigo,
  Nem me regem, nem eu rejo,
  Ninguem peleja comigo,
  E eu com todos pelejo.


_Liviandade._

    Do canto muy pouco alcanço
  Mas em todo o tempo canto,
  Sem som bailo, trinco, e danço
  Mas, que a casa esteja em pranto.


_Presumpçaõ._

    Seco afrol nunca dou fruto,
  Por ser meu sentido louco,
  Se de mim presumo muito,
  He porque sey muito pouco.


_Vaidade._

    Pretendo as honras mayores
  Por maranhas, e invenções.
  Sempre desejo louvores,
  E eu mereço reprehenções.


_Ignorancia._

    A pena tenho por gloria
  Porque me falta o juizo
  O que he parvoice notoria
  Julgo eu por raro aviso.


_Chocarrice._

    Por nada me movo a riso
  Sò zõbando mostro engenho,
  Naõ falo nunca de siso,
  Porque nenhum siso tenho.


_Amor proprio._

    Com caridade me escuzo,
  Porque assi me naõ conheçaõ
  Só para mim quero tudo,
  Os outros mas que pereção.


_Desconfiança._

    Sem ninguem me affligir,
  Eu mesmo me afflijo a mim
  Todos quantos vejo rir,
  Cuido que se rim de mim.


_Prodigalidade._

    Quem os meus bẽs me levou
  Não mos sabe agradecer,
  Não ha misterio que eu dou,
  E eu dou o que hey mister.


_Curiosidade._

    O que falão, e sonhão
  As outras, quero entender
    tè que venho a fazer
  Mil cousas que me envergonhaõ.


_Melindre._

    Acho grossas as finezas,
  Sou dalfelua, e algodão
  Os mimos são asperezas,
  Epara minha condição.


_Mentira._

    Por ruas, e por travessas,
  Cantar historias pretendo,
  Quando falo, falo às avessas,
  Do que sey, e do que entendo.


_Pouco segredo._

    Qualquer cousinha me encalma
  Que a outrem, ou a mim toca
  Tudo o que me metem na alma
  Lanço logo pela boca.


_Concordia._

    Naõ pretendo prefeiçaõ,
  Por ser covarde, e ser rude,
  Com medo do que diraõ,
  Deixo de ter mayor virtude.


_Vingança._

    Por mais que as outras me afagem
  E por branduras me levem,
  Nenhuma cousa me devem,
  Que dobrado me naõ paguem.


_Malicia._

    Só de mim todo o mal vem
  Ou mortal, ou venial,
  Sou inventora do mal,
  Destruidora do bem.


_Incredulidade._

    De meu mal endurecida,
  Só por mesma me eu rejo,
  O mal creyo só de ouvida,
  E o bem nem quando o vejo.


_Odio._

    Nunca procuro meu bem,
  Porque meu mal naõ conheço,
  Sou penna de quem me tem,
  Sem ser mal de quem aborreço.


_Hypocresia._

    Sou dobrada, triste, e rude,
  Enganar he meu officio;
  Pela casca sou virtude,
  Mas pelo miolo vicio.


_Murmuraçaõ._

    De minha irmãa por mil meyos
  Encubro os bens que saõ seus,
  Publico os males alheyos,
  Naõ sey esconder os meus.


_Traiçaõ._

    Com fingido, e ledo rostro
  Offereço meu serviço,
  A muitos rio no rostro,
  A quem mordo no toutiço.


_Desenvoltura._

    Males que faço, e naõ callo
  Em mim moraõ, e naõ mim jazẽ,
  Mil palavras verdes falo
  Que os rostros vermelhos fazem.


_Pertinacia._

    Nenhum conselho me val
  Naõ me convence ninguem,
  Sou como rocha no mal,
  E como cana no bem.


_Inconstancia._

    O bem em mim nunca para
  Muy pequeno mal me espanta,
  Soa huma hora Santa Clara,
  Noutra, nem Clara, nem Santa?


_Occiosidade._

    Vivo em continuo descuido
  Num, e noutro me embaraço,
  Se naõ faço o mal que cuido,
  Cuido no mal que naõ faço.


_Lisongeria._

    Nenhuma cousa reprovo,
  Ou seja mal dita, ou feita,
  Tudo louvo, tudo approvo
  Por ser a todos aceita.


_Interesse._

    Costumo de usar cruezas
  Com vizinho, e com estranho
  Cayo em cem mil baixezas
  Sò por tirar qualquer ganho.


_Zelo indiscreto._

    Como a ordem naõ entendo,
  Porque me ey de governar,
  Tudo quero emmendar,
  Mas a mim nunca me emmendo.

_Mà condicçaõ._

    Posto que todos me emmẽdem,
  Ninguem faz comigo avença,
  Cuido que todos me offendem,
  E eu sò sou minha offensa.


_Afeiçaõ desordenada._

    Nenhuma alma hoje me tem
  Que seja esperitual,
  Quando quero mayor bem,
  Entaõ me faço mòr mal.


_Amor profano._

    Por fantastica invensaõ
  Procede meu bem querer,
  Por bens que naõ pòdem ser,
  Sofro o mal que jà saõ.


_Arrogancia._

    Da graõ soberba sou filha,
  Cuido que saõ meus os Ceos,
  O mal propio naõ me humilha,
  E incho com o bem de Deos.


_Distraiçaõ._

    Do que he culpa, faço graça,
  Do que he peccado, ventura,
  A alma trago na praça,
  E o corpo na clausura.


_Descortesia._

    A honra como thesouro,
  Nego a todos por mais brio,
  Faço della fino ouro,
  Porque a pezo ouro, e fio.


_Temeridade._

    Por muy indescretos meyos,
  Espreito alheos peccados,
  Naõ entendo meus cuidados,
  Julgo cuidados alheos.


_Dureza._

    No cuidar, no fallar erro,
  Por ter duro o coraçaõ,
  Fallo palavras de ferro,
  Cuido que saõ de algodaõ.


_Rudeza._

    Erro agòra, e sempre errey,
  Nem entendi, nem entendo,
  Sempre apprendendo me sey,
  Mas nunca sey, o que apprendo.


_Mexerico._

    Por malicia, e por parvoice,
  Pecco huma, e outra vez,
  Dizendo o mal que outrem disse,
  Faço o mal, que elle naõ fez.


_Fraqueza da Alma._

    Os que de mim se fiarem,
  Mal lhe irá, se me tiverem,
  Cayo, sem me derrubarem,
  Mas naõ me ergo, sem me erguerem.


_Ingratidaõ._

    Amizades se desfazem,
  Por mim, porque naõ me atrevo,
  Pagar mercès que me fazem,
  E conhecer as que devo.


                                ~FIM.~

                            [Ilustração]



Notas

Os problemas com a pontuação e a ortografia foram corrigidos.




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