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Title: A fallencia Author: Almeida, Júlia Lopes de Language: Portuguese As this book started as an ASCII text book there are no pictures available. *** Start of this LibraryBlog Digital Book "A fallencia" *** JULIA LOPES DE ALMEIDA A FALLENCIA 2ª EDIÇÃO RIO DE JANEIRO Officinas de Obras d'=A TRIBUNA=--rua do Ouvidor 132 1901 INDICE CAPITULO I CAPITULO II CAPITULO III CAPITULO IV CAPITULO V CAPITULO VI CAPITULO VII CAPITULO VIII CAPITULO IX CAPITULO X CAPITULO XI CAPITULO XII CAPITULO XIII CAPITULO XIV CAPITULO XV CAPITULO XVI CAPITULO XVII CAPITULO XVIII CAPITULO XIX CAPITULO XX CAPITULO XXI CAPITULO XXII CAPITULO XXIII CAPITULO XXIV CAPITULO XXV A FALLENCIA I O Rio de Janeiro ardia sob o sol de dezembro, que escaldava as pedras, bafejando um ar de fornalha na atmosphera. Toda a rua de S. Bento, atravancada por vehiculos pesadões e estrepitosos, cheirava á café crú. Era hora de trabalho. Entre o fragor das ferragens sacudidas, o gyro ameaçador das rodas e os corcovos de animaes contidos por mãos brutas, o povo negrejava suando, compacto e esbaforido. Á porta do armazem de Francisco Theodoro era nesse dia grande o movimento. Um carroceiro, em pé dentro do caminhão, onde ageitava as saccas, gritava zangado, voltando-se para o fundo negro da casa: --Andem com isso, que ás onze horas tenho de estar nas Docas! E os carregadores vinham, succedendo-se com uma pressa phantastica, atirar as saccas para o fundo do caminhão, levantando no baque nuvens de pó que os envolvia. Uns eram brancos, de peitos cabelludos mal cobertos pela camisa de meia enrugada, de algodão sujo; outros negros, nús da cintura para cima, reluzentes de suor, com olhos esbugalhados. Ao cheiro do café misturava-se o do suor d'aquelles corpos agitados, cujo sangue se via palpitar nas veias entumescidas do pescoço e dos braços. No desespero da pressa, o carroceiro soltava imprecações, aos berros, furioso contra os outros carroceiros, que passavam raspando-lhe a caixa do caminhão, todo derreado para a aniagem das saccas, respirando a poeirada que se levantava d'ellas. Os outros respondiam com eguaes improperios, que os cocheiros dos tilburys, em esperas forçadas, ouviam rindo, mastigando o cigarro. Os carregadores serpeavam por meio de tudo aquillo, como formigas em correição, com a cabeça vergada ao peso da sacca, roçando o corpo latejante nas ancas lustrosas dos burros. Transeuntes recolhiam-se apressados, de vez em quando, para dentro de uma ou outra porta aberta, no pavor de serem esmagados pelas rodas que invadiam as calçadas, resvalando depois com estrondo para os parallelepipedos da rua. Aqui, alli e acolá, pretinhas velhas, com um lenço branco amarrado em fórma de touca sobre a carapinha, varriam lepidas com uma vassoura de piassava os grãos de café espalhados no chão. Com o mesmo açodamento peneiravam-n'os logo em uma bacia pequena, de folha, com o fundo crivado a prego. Era o seu negocio, que aquelles dias de abundancia tornavam prospero. Enriqueciam-se com os sobejos. Assim, em toda a rua só se viam braços a gesticular, pernas a moverem-se, vozes a confundirem-se, chocando nas pragas, rindo com o mesmo triumpho, gemendo com o mesmo esforço, em uma orchestra barulhenta e desharmonica. A não serem as africanas do café e uma ou outra italiana que se atrevia a sahir de alguma fabrica de saccos com duzias d'elles á cabeça, nenhuma outra mulher pisava aquellas pedras, só afeitas ao peso bruto. Dominava alli o trabalho viril, a força physica, movida por musculos de aço e peitos decididos a ganhar duramente a vida. E esses corpos de athletas, e essas vozes que soavam alto num estridor de clarins de guerra, davam á velha rua a pulsação que o sangue vivo e moço dá a uma arteria, correndo sempre com vigor e com impeto. Já de outras ruas descia aquella onda quente, arfante de trabalho, vinha da rua dos Benedictinos e vinha dos armazens da rua Municipal, todos atulhados de café, que esvaziavam em profusão para os trapiches e as Docas, tornando-se logo a encher famintamente. Em uma ou outra soleira de porta trabalhadores sentavam-se descansando um momento, com os cotovellos fincados nos joelhos erguidos, salivando o sarro dos cigarros, a saborear uma fumaça, olhando com indifferença para aquella multidão que passava aos trancos e barrancos, na ancia da vida, num torvelinho de pó e gritaria. De vez em quando, grupos de rapazinhos, na maior parte italianos, surgiam nas esquinas e percorriam todo o quarteirão, ás gargalhadas, enchendo os bolsos com o café das africanas velhas, cujos guinchos de protesto se perdiam abafadas pelo ruido complexo da rua. Dentro dos armazens a mesma lufa-lufa. No de Francisco Theodoro não havia paragem. O primeiro caixeiro, _seu_ Joaquim, um homem moreno, picado das bexigas, de olhos fundos e maçãs do rosto salientes, gesticulava em mangas de camisa, apressando os carregadores esbaforidos. Á porta, um capataz de tropa, mulato, furava com um furador tubular de aço e latão todas as saccas que sahiam, para que se escapasse pela abertura uma mancheia de grãos. Os carregadores apenas retardavam os passos nessa operação, e o café cahia cantando na soleira. Ao fundo, um rapazinho magro e amarello, o Ribas, apontava num caderno o numero de saccas que levavam, rente á escada de mão por onde os carregadores subiam para as tirar do alto das pilhas, correndo depois pelo asphalto desgastado e denegrido do solo. Tudo era feito numa urgencia, obrigada a grande movimento. Um sopro ardente de vida, uma lufada de incendio bafejada por cem homens arquejando ao mesmo tempo na febre da ambição, varava todo aquelle extenso porão negro, sem janellas, ladeado de saccos sobrepostos e adornado nas vigas sujas do tecto por infinita quantidade de teias de aranha, enredadas, como longas sanefas viscosas de crépe russo. De vez em quando, um ruido de cascata rolava pelo interior do armazem. Era o café, que ensaccavam na área do fundo, e que na quéda das pás desprendia um pó subtil e um cheiro violento. Fóra, chicotadas cortavam o ar com estalidos, e pragas rompiam alto, no som confuso, em que vozes humanas e rodas de vehiculos se amalgamavam com o estrupido das patas dos animaes. Alguns carregadores exhaustos paravam um pouco, limpando o suor, mas corriam logo, chamados pelos olhos de seu Joaquim, que ia e vinha, muito trefego, sungando as calças que lhe escorregavam pelos quadris magros. --Aviem-se! aviem-se! temos hoje muito que fazer! Era o seu estribilho. E havia sempre muito que fazer naquella casa, uma das mais graúdas no commercio de café. Dir-se-ia que o dinheiro aprendera sózinho o caminho dos seus cofres, correndo para elles sem interrupção. Ao lado do armazem e communicando com elle por uma portinha estreita, havia á esquerda o corredor e a escada, que levava ao escriptorio, acima, no primeiro andar. Em uma sala ampla, quadrada, de madeiras velhas e papel barato, o Senra, guarda-livros, escrevia em pé, junto á escrivaninha collocada ao centro. Em outra carteira trabalhavam os dois ajudantes, um velho, o Motta, de sorriso amavel e modos submissos; e o outro, um moço bilioso de barbinhas pretas, mal plantadas em um queixo quadrado. Nessa sala o trabalho era silencioso. As pennas não paravam, mal dando tempo ás mãos para folhearem os livros e as diversas papeladas. Diziam-se phrases sem se levantar os olhos da escripta, e as perguntas eram apenas respondidas por monosyllabos. A um canto, sobre uma mesinha solida, entre uma das janellas e a parede, estava a prensa de copiar; e no outro canto, em um alto banco de madeira pintada, a talha de philtro já ennegrecida pelo uso. Pelas paredes, pastas de molas, rotuladas, em filas, prenhes de contas, recibos e _cartas a responder_. Ao fundo, entre a talha e o corredor da entrada, abria-se uma janella para o negrume do armazem, sob uma claraboia estreita, de pouca luz. Era em um gabinete, ao lado, com uma janella para a rua e egual avareza de mobilia, que o dono da casa escrevia a sua correspondencia, bem repousado em uma larga cadeira de braços. Elle alli estava, acabando de fechar uma carta. Toda a sua pessoa reçumava fartura e a altivez de quem sae victorioso de teimosa lucta. Gordo, calvo, de barba grisalha rente ao rosto claro, com os olhos garços tranquillos e os dentes brancos e pequeninos, tinha um bello ar de burguez satisfeito. Não era alto e quando andava fazia tremer a casa, tal a firmeza dos seus passos pesados. Um ou outro empregado vinha de vez em quando fazer-lhe uma pergunta, a que elle respondia com paciencia, indicando claramente as cousas, com minucias, para evitar confusões. Francisco Theodoro, á sua larga secretária de peroba, dava a face para o cofre de ferro, de trincos e fechaduras abertas. Tinha elle por habito, tornado já em cacoete, remexer com a mão curta e gorda o dinheiro e as chaves guardados no bolso direito das calças. No começo da sua vida, dura de trabalho e de aspera economia, aquillo seria feito com intenção; agora representava um acto machinal, alheio a qualquer pensamento de avareza ou de orgulho de posse. Depois de muitas horas de trabalho febril, sem repouso, vinha o momento de paragem, a hora do café, que um mulato moço, o Isidoro, levava primeiro ao escriptorio, servindo depois os empregados do armazem. Os degráos já gastos da escada rangiam então ao peso de um commissario visinho, o João Ramos, e do ensaccador Lemos, da rua dos Benedictinos, do Negreiros, da rua das Violas, e do Innocencio Braga, recentemente associado ao grupo. Ás duas horas reuniam-se sempre alli para o cafézinho, descançando o corpo e desannuviando o espirito com palestras de seu interesse e do seu gosto. Nesse dia tinham soado já as duas, quando os negociantes appareceram. Francisco Theodoro levantou-se e bateu com os pés, desenrugando as calças. --Homem! vocês tardaram... --Culpa do Lemos... E depois: --O senhor está com a casa repleta! --Tenho exportado muito café! --Felizardo! aproveite a epocha, que não póde ser melhor! Corria então o anno de 1891 em que o preço do café assumira proporções extraordinarias. O movimento crescia e casas pequenas galgavam aos saltos grandes posições. --O que eu te invejo, disse o Ramos, unico que ousava tratar Theodoro por tu, não é a fortuna, é a mulata que te engomma as camisas! Os outros olharam rindo para o alvo e lustroso peitilho do dono da casa, que saboreava o café, com ar satisfeito, de pé, com o pires muito afastado do corpo, seguro na ponta dos dedos. --Não é má essa, regougou o Lemos, o commendador Lemos, da Beneficencia, franzindo o narizinho, submerso entre duas bochechas, que nem de creança. Depois de um riso fraco e desafinado, ouviu-se a vozinha aflautada do Innocencio, perguntando a Theodoro: --Aqui o seu visinho Gama Torres é que fez um casão de um dia para o outro, hein? --Homem, sempre é verdade aquillo?! --Se é!... tenho provas... Afinal, eu inspirei-o um pouco no negocio... Fixaram todos a vista no Innocencio Braga. Era um homem pequenino, magro, com uns olhinhos negros, febris e um fino bigode castanho, quasi imperceptivel. --Custa-me a crêr nesses milagres ... ponderou Theodoro, pousando a chicara na bandeja que o Isidoro offerecia. --Affirmo; questão de arrojo. Presumiu alta, abarrotou o armazem e esperou a occasião. O sogro ajudou-o, está claro... --Não meditou nas consequencias que poderiam sobrevir se se désse uma baixa. --Quem falla em baixa?! Eu só lhe digo que o commercio do Rio de Janeiro seria o melhor do mundo se tivesse muitos homens como aquelle. Senhores, a audacia ajuda a fortuna. Fiquem certos que o bom negociante não é o que trabalha como um negro, e segue a rotina dos seus antepassados analphabetos. O negociante moderno age mais com o espirito do que com os braços e alarga os seus horizontes pelas conquistas nobres do pensamento e do calculo. O Torres é de bom estofo; é d'estes. Conheço os homens. Olhavam todos para o Innocencio com um certo respeito, reconhecendo-lhe superioridade intellectual. --O Gama Torres teve dedo, teve; sentenciou o Lemos. E logo o Innocencio accrescentou: --Tambem aquelle está destinado a ser o nosso Rottschild! Theodoro contrahiu as sobrancelhas. Ser o primeiro negociante, o mais habil, o mais forte fôra sempre o seu sonho... Voltando-se, inquiriu dos outros explicações meudas acerca d'aquelle negocio fabuloso. O tempo favorecia as especulações, e elle meditava no assumpto, alisando a barba grisalha, rente ás faces gordas e macias. O Negreiros, tendo dado volta á sala e enfiado pela porta do escriptorio o seu enorme nariz de cavallete, virou-se para os outros e disse a meia voz: --Que diabo! não posso acostumar-me a vêr aquelle velho como ajudante de guarda-livros! --Que quer você? murmurou Theodoro; o Mattos empenhou-se por elle e afinal a acquisição foi boa. Precisa mais do que os moços, e como dá boa conta do recado não penso em substituil-o. É assiduo. --Outro exquisitão que você tem cá em casa é lá embaixo o Joaquim ... ninguem dirá que é o mesmo, lá fóra... --Muito carnavalesco e mettido com as damas, hein? Que se divirta, aqui trabalha como nenhum. É uma praça de arromba: descança-me. --Ouvi dizer que elle vae casar com a Delphina do Recreio... --Historias! o rapaz é serio. --Tolo é que elle não é, resmungou o Negreiros, procurando o chapéo. O Innocencio despediu-se tambem; ia num pulo ao Torres. Os affazeres eram tantos, que mal lhe davam tempo para engolir o café. Quando elle sahiu, olharam uns para os outros interrogativamente. O commendador Lemos sentenciou: --Este Innocencio é espertalhão! Está aqui, está director do banco. Não duvido que o Torres tivesse sido empurrado por elle... Tem uma labia! --E sabe encostar-se a boas arvores. O Barros tem-lhe dado boas commissões e não é á toa que elle procura tanto agora o Torres... Mette-se sempre na melhor roda... Aquelle não veio de Portugal como nós, sem bagagem e cheirando a páo de pinheiro; trouxe luvas e meias de seda... O patife! --São os que naufragam... --Quando não vêm á caça e não têm o geitinho que este revela... Canta que nem um passaro, para attrahir a gente! --É uma intelligencia superior! suspirou o Ramos, esticando com ambas as mãos o collete sobre a barriga arredondada. Depois, refestelando-se no sofázinho austriaco, teve uma ponta de censura para as cousas d'esta terra: o governo era fraco, o povo indisciplinado, a cidade infecta. Inda nessa manhã, vendo marchar um pelotão de soldados, sem cadencia nem rhythmo, lembrara-se da maneira por que os soldados da sua patria andavam pelas ruas. As fardas eram mais bonitas, os metaes mais polidos, os passos eguaezinhos, um, dois, um dois; fazia gosto. E assim, em tudo mais aqui, o mesmo relaxamento. A maldita Republica acabaria de escangalhar o resto. Veriam. Só no fim perguntaram pelas familias. --A proposito, perguntou o Ramos a Theodoro, aquella menina que vae tocar violino no concerto dos pobres é sua filha? --Que concerto? --De amanhã, no Cassino. Foi a minha madama que leu isso num jornal... --Póde ser... são cousas lá da mãe ... a pequena tem um talentão; o proprio mestre espanta-se. --E bonita! vi-a um d'estes dias, observou o Lemos. --Não, isso não! por emquanto ainda não se póde comparar com a mãe ... protestou Francisco Theodoro, com sinceridade e um certo orgulho. Os outros sorriram. --Lá isso, você tem um pancadão. Feliz em tudo, este diabo! Houve uma pausa. --Realmente, insistiu Francisco Theodoro, o Gama Torres deu um cheque valente. Pois olhem, eu não dava nada por elle: um brasileirito magro... --E começou outro dia! --De mais a mais, parecia acanhado ... timido... --Qual! isso não! Conheci-o caixeiro, alli do Leite Bastos. Foi sempre um atirado; ahi está a prova: fez um casão de um dia para o outro. Dou razão ao Innocencio; aquelle está talhado para ser o nosso Rottschild... --Vejam lá, rosnou o Lemos com a papada tremula e um brilho de cobiça nos olhinhos pardos, eu quiz fazer o mesmo negocio e lá o meu socio é medroso e: tá, tá, tá, é melhor esperar... Está ahi! --Fez bem, foi prudente! Deixem lá fallar o Innocencio. Senhores, o commercio do Rio de Janeiro é honesto e não se tem dado mal com o seu systema, observou Theodoro. --Sim, o Innocencio aprecia isto de fóra, por isso diz o contrario. Chama o commercio do Rio de Janeiro de ignorante e de porco. --Porco?! bradaram os outros, indignados. --Porco, confirmou o Ramos com solemnidade. --Tudo mais acceito, o porco é que não engulo, observou do seu canto o Lemos, o anafado. Ramos sentiu saltar-lhe na lingua esta resposta: «porque os animaes da mesma especie não se devoram entre si»; mas por consideração ao amigo calou-se. Elle confessava-se seduzido pelas exposições do Innocencio. Que talento! --Mas, afinal de contas, que quer o Innocencio?! perguntou Theodoro de pé, cruzando os braços sobre o fustão alvo do collete. --Queria ... pensava encontrar aqui uma praça mais desenvolvida, maiores transacções, casas de mais vulto. Diz que não temos sabido aproveitar as aragens. Que só trabalhamos com o corpo. Não o ouviu? --Com que diabo quereria elle que trabalhassemos? --Com a intelligencia. Está claro. E elle explicou a cousa bem. O nosso commercio é formado por gente sem escola, vinda de arraiaes... Eu por mim, confesso, mal tive uns mezes magros de collegio! Apanhei muito e não aprendi nada. Houve um curto silencio, em que passou pelos olhos de todos a saudosa visão de uma escola rudimentar, em um recanto placido de aldeia. Depois de um suspiro, Theodoro concluiu: --Que venham para cá os doutores com theorias e modernismos, e veremos o tombo que isto leva! Entreolharam-se. A verdade é que tinham todos elles um soberano desprezo pelas classes intellectuaes. D'ahi um sorrisinho de expressiva intenção. Mais um pouco de palestra sobre cambio, transacções da bolsa e assumptos lidos no _Jornal do Commercio_ do dia encheram um quarto de hora, que passou depressa. Por fim sahiram, fallando alto, dizendo que aquella casa cheirava a dinheiro. Francisco Theodoro foi dar o seu gyro pelo armazem. Vendo-o em baixo, Joaquim acudiu logo, limpando com a lingua o bigode molhado de café, a dar informações. --Estamos esperando o café do Simas. O caminhão já está ahi perto, mas ficou entalado entre os carroções do Gama Torres. Tem sido um despropósito o café que aquelle armazem tem engulido. --Já sei d'isso ... bem. Mandou as contas para cima? O outro disfarçou um movimento de enfado e mal respondeu:--sim, senhor; depois gritou para o fundo: --_Seu_ Ribas! O Ribas cruzou-se com Francisco Theodoro, que seguiu até á área, a ver ensaccar o café. A gente do armazem tinha quisilia á do escriptorio: fazia valer os seus serviços, deprimindo os alheios. _Seu_ Joaquim considerava-se o melhor empregado da casa e gostava de mostrar as suas exigencias. Os caixeiros temiam-n'o; mas o pessoal de cima tratava-o com certa sobranceria, que elle não perdoava. O velho Motta, ajudante de guarda-livros, ainda era o unico que lhe dispensava amabilidades e cortezias; mas, mesmo nisso, _seu_ Joaquim lia uma adulação. Com certeza o velho só pensava em impingir-lhe a filha, que mirrava os seus trinta annos em um sobradinho da rua Funda. Francisco Theodoro demorou-se um bocado na area vendo ensaccar. Passou-lhe pela lembrança o tempo dos escravos, quando esse trabalho era exclusivamente feito pelos negros de nação, com a sua cantilena triste, de africanos. Era mais bonito. As pás iam e vinham cantando, num compasso bem rythmado, sempre seguido da voz: eh, eh! eh, eh! E agora mal se via um preto nesse serviço! E ainda acham que as cousas se alteram de vagar! Rolavam pelo chão grãos de café, como contas de cimento, e na atmosphera carregada mal se podia respirar. Francisco Theodoro voltou. O caminhão estava já á porta e os carregadores andavam nas suas corridas afanosas. Ia subir, quando foi abordado por um dono de trapiche, o Neves, que, vendo-o da rua, entrou para lhe pedir a freguezia, accrescentando para o estimular: --Agora mesmo venho alli do seu visinho, o Gama Torres, que me tem mandado lá para o trapiche um numero assombroso de saccas! O movimento do armazem interrompia-os de instante a instante. Francisco Theodoro, mal respondia, com as idéas desviadas para outro sentido. Pensava no Gama Torres, de quem toda a gente lhe fallava com elogio e pasmo. Aquelle está destinado a ser o primeiro homem da praça, dissera-lhe o Innocencio, e o Innocencio era homem de bom faro e de exito seguro em todas as suas previsões... Mas esse papel, de financeiro e negociante forte entre os mais fortes, fôra o ideal de toda a sua longa vida de trabalhos, de sujeições e de amarguras! Seria justo que o outro, de um pulo, erigisse edificio mais alto e glorioso do que o seu, cimentado com lagrimas, com sacrificios, com tantos annos de esforço e de labor? Francisco Theodoro despediu-se do Neves sem o animar, apertando-lhe a mão frouxamente, e subiu para o escriptorio. Na escada encontrou o mulato, o Isidoro, com uma vassoura na mão. --Cuidado!... não me tirem as teias de aranha do armazem... --Não, senhor! Eu bem sei que aquillo dá felicidade... Francisco Theodoro deteve-se um momento no escriptorio e entrou depois para o seu gabinete. Fóra, o sol avermelhava as fachadas feias e deseguaes das casas fronteiras. Velhas paredes repintadas, outras com falhas de caliça, guardavam os seus segredos e as suas fortunas. Um halito ardente de verão bafejava toda a rua febril. Os armazens, pelas boccas negras das suas portas escancaradas, vomitavam ainda saccas e saccas de café, que as locomotoras e as carroças levavam com fragor de rodas e cascalhar de ferragens para os lados da Prainha e da Saúde, levantando do solo esmagado camadas de pó que espalhavam no ar scintillações de ouro. II Em caminho de casa, Francisco Theodoro, recostado em um bond, persistia em querer ler um jornal da tarde, sentindo que as idéas lhe fugiam para um curso perigoso. O exito do Torres quisilava-o. Parecia-lhe que o outro lhe taparia o caminho, impedindo-o de chegar ao seu ultimo ponto de mira. Galgava-lhe de assalto a deanteira, para se quedar sempre na sua frente, como um obstaculo. Aquella conquista de fortuna, feita de relance, perturbava-o, desmerecia o brilho das suas riquezas, ajuntadas dia a dia na canceira do trabalho. A vida tem ironias: teria elle sido um tolo? Talvez, e para se certificar reviu a sua vida no Rio, desde simples caixeiro, quasi analphabeto, com a cabeça raspada, a jaqueta russa e os sapatões barulhentos. Tinha ainda fresco na memoria o dia do desembarque--estava um calor!--e de como depois rolara aos ponta-pés, mal vestido, mal alimentado, com saudades da brôa negra, das sovas da mãe e das caçadas aos grillos pelas charnecas do seu logar. Pouco a pouco outros grillos cantaram aos seus ouvidos de ambicioso. O som do dinheiro é musica; viera para o ganhar, atirou-se ao seu destino, tolerando todas as oppressões, dobrando-se a todas as exigencias brutaes, numa resignação de cachorro. Assim correram annos, dormindo em esteiras infectas, molhando de lagrimas o travesseiro sem fronha, até que o seu mealheiro se foi enchendo, enchendo avaramente. Aquella infancia de degredo era agora o seu triumpho. Vinha de longe a sua paixão pelo dinheiro; levado por ella, não conhecêra outra na mocidade. Todo o seu tempo, toda a sua vida tinham sido consagrados ao negocio. O negocio era o seu sonho de noite, a sua esperança de dia, o ideal a que atirava a sua alma de adolescente e de moço. Não podia explicar, como, só pelo attrito com pessoas mais cultivadas, elle fôra perdendo, aos poucos, a grossa ignorancia de que viera adornado. A letra desenvolveu-se-lhe, tornou-se firme, e a sua tendencia para contas fez prodigios, aguçada com o sentido na verificação de lucros. Relendo cifras, escrevendo cartas, formulando projectos, e observando attentamente o seu trabalho e o alheio, tornara-se um negociante conhecedor do que tinha sob as mãos, e um homem limpo, a quem a sociedade recebia bem. Não pudera ser menino, não soubera ser moço, dera-se todo á deusa da fortuna, sem perceber que lhe sacrificava a melhor parte da vida. Para elle, o Brasil era o balcão, era o armazem atulhado, onde o esforço de cada individuo tem o seu premio. Fóra do commercio não havia nada que lhe merecesse o desvio de um olhar... Tempos de amargura e de esperança, aquelles! Relembrando o passado, Francisco Theodoro procurava em si mesmo elementos com que pudesse bater influencias e oppôr-se ás especulações de afogadilho; devia encontral-os espalhados pelos dias asperos da incerteza e os macios da prosperidade. Esta rectrospecção agradou-lhe; fixou varios periodos. O tempo em que morara em um sobradinho do becco de Bragança, sombreado pelo beiral muito extendido do telhado coberto de ervagem e pela sacada de rotula de um verde sujo. Embaixo e defronte, caixoteiros martellavam em taboas de pinho, cujo cheiro dava ao becco immundo uma baforada fresca de floresta. E as martelladas que lhe importavam, se poucas horas estava em casa! De dia o trabalho; de noite o theatro ou a casa da Sidonia. Que seria feito da Sidonia? Devia estar p'r'ahi, em qualquer canto ... e velha. Aos domingos na chacara do Mattos, o solo, os jantares á portugueza, e a hospitalidade paciente da boa D. Vica... Tudo lhe gyrava na memoria, suavemente, suavemente. Fôra no conforto d'aquella chacara, vendo-se cercado de considerações, ao lado do amigo repousado e feliz, que elle sentiu a sua importancia e se lembrou que deveria haver na terra outras delicias; mas o seu coração, cançado de um lucta formidavel, negava-lhe novas inclinações. A patria esquecida não lhe acenava com o minimo encanto: a mãe morrera, a sua unica irmã tinha-se recolhido a um convento. Fechara-se uma porta sobre a sua meninice. Sentia-se só; começava a cançar-se e a enjoar as mulheres faceis, com quem convivia em relações momentaneas. Mesmo a Sidonia enervava-o com os seus arrufos ... e as suas denguices. Atirou-se a proteger as instituições do seu paiz, a andar com medalhões e a fazer mordomias na Beneficencia. No fundo, não era só a distracção que elle buscava, nem a caridade que elle exercia; uma outra causa lhe filtrava n'alma aquella vocação para o beneficio... E a commenda chegou. Foi só depois de commendador que Theodoro se sentiu vexado d'aquella habitação e se mudou para um segundo andar da rua da Candelaria, que mobilou a vinhatico, com exuberancia de chromos pelas paredes. Achou, ainda assim, que á sua casa alegre faltava qualquer cousa... Viera-lhe a dyspepsia. Que insomnias! Um medico, consultado, aconselhara-lhe uma viagem á terra ou o casamento, para a regularisação de habitos. Elle achara cedo para a viagem: solidificaria primeiro a fortuna. A idéa do casamento parecia-lhe mais salvadora. Para que lhe serviria o que juntara, se o não compartilhasse com uma esposa dedicada e meia duzia de filhos que lhe herdassem virtudes e haveres? No seu sonho começou a esboçar-se a idéa de um herdeiro. Teria um rapaz, que usasse o seu nome, seguisse as suas tradições e fosse, sobretudo, um continuador d'aquella casa da rua de S. Bento, que engrandeceria com o seu prestigio, a sua mocidade, bem assente no apoio e na experiencia paterna. O filho seria a sua estatua viva, nelle reviveria, mais perfeito e melhor. Esse ao menos teria infancia, seria instruido. E tanto aquella idéa o perseguia, que num domingo de solo abriu-se ao Mattos, que acolheu com ar solemne e discreto as confidencias do amigo. Lembrava-se muito bem da cara com que o outro lhe respondera: --Sei o que você quer. Tivemos aqui na visinhança uma familia que está mesmo ao pintar... Gente pobre, mas de educação. A filha mais velha é a que lhe convém. Bonita e grave. Muito digna. Francisco Theodoro murmurou: --Pois uma mulher assim é que me servia. --O diabo é que ellas vão de mudança para Sergipe... --Então acabou-se. --Não se acabou tal. Por emquanto estão hospedadas em casa de umas tias, no Castello. Ainda é tempo de lá irmos fazer uma visita... O resto fica por minha conta. Foi por uma noite escura que elle, já mais por condescendencia que por curiosidade, entrou com o Mattos na casa das senhoras Rodrigues, no morro do Castello. Fazia frio; na rua um cão uivava longa, doloridamente. Quem abriu a porta foi a mais velha das donas da casa, D. Itelvina, senhora alta e secca, muito nariguda, vestida de lãs pardas. Os outros ainda se cumprimentavam e já ella se sentava, erguendo o joelho agudo sob a costura. Não tinha tempo a perder. A outra senhora da casa andava por fóra; Theodoro conhecera-a depois. Essa era toda confiante e muito religiosa. Tinha ido á novena do Carmo com as duas sobrinhas mais moças e o irmão, o velho Rodrigues. Em uma sala vasta, quasi núa, mal clareada por um lampeão de kerozene, viu Theodoro, pela primeira vez, D. Emilia, uma senhora bonita, de ar magestoso e olhos trefegos, e as suas duas filhas mais velhas--Camilla e Sophia. Camilla fazia _crochet_ perto do lampeão; Sophia refugiara-se para um canto do canapé, queixando-se da cabeça. E a mãe começou a fallar com ar de sinceridade, muito demonstrativa. A cada instante o nome de Camilla sahia-lhe da bocca com um elogio. Era a filha mais velha e a mais instruida: pilhara os tempos das vaccas gordas, quando o pae exercia um cargo lucrativo. Os dedos de Camilla apressavam-se no _crochet_; com certeza ella havia de ter errado os pontos e sentido os olhares de Theodoro queimarem-lhe a pelle, que a tinha linda, de uma alvura azul de camelia. D. Emilia asseverava que a sua _Milla_, como a chamavam em casa, esquecia-se das suas prendas, obrigada pela necessidade a fazer serviços domesticos. Francisco Theodoro commoveu-se com a idéa de que aquella mulher, talhada para rainha, passasse os dias a picar os dedos na agulha ou a callejar as mãos com o uso da vassoura ou do ferro. Trabalhar! trabalhar é bom para os homens, de pelle endurecida e alma feita de coragem. Olhou para a moça com veneração. Era bonita, alta, com grandes olhos avelludados, cabello ondeado preto e uns dentes perfeitos, muito brancos, mas que ella mostrava pouco, sorrindo apenas. Da irmã Sophia, na sombra, mal se adivinhavam as feições. A uma das phrases, em que a abundancia do amor materno lhe debuxava as perfeições, Camilla sahiu de ao pé da luz e foi para a janella olhar para o escuro. Como correu depressa aquella noite! Francisco Theodoro sahiu tonto. O amigo ria-se: não lhe tinha dito? Gabava-se de ser casamenteiro, levaria em breve tudo ao fim. E dias depois o Mattos pedia a mão de Camilla para o amigo. Começou então a serie de presentes e de visitas. Milla tinha sempre o mesmo embaraço e a mesma brandura de sorriso. O que ella ouvia da familia, não o podia adivinhar Francisco Theodoro, que a sentia umas vezes reservada, outras vezes confiante. Adiou-se a partida para Sergipe; houve doenças em casa, prolongação do noivado, peregrinações de Theodoro por aquelle morro do Castello, com raminhos de violetas para a Milla; todas as doçuras de namorado... Casaram-se em um dia lindo. Elle dera grandes esmolas aos pobres da egreja; Milla parecia um anjo entre nuvens brancas... Depois, a familia partiu para Sergipe. O pae era chôcho, mas levava a carteira gorda. A mãe, com o seu modo de rainha desthronada, e as irmãs iam bem enroupadas e todas tranquillas sobre o futuro de Milla e do filho mais velho, o Joca, por quem Theodoro promettera olhar, e que andava por ahi, atôa. A sua maior commoção fôra ao entrarem casa, na rua da Candelaria. Suppuzera sempre que ella apalpasse, com sofreguidão, todo o seu ninho, na alegria de ser a dona, a senhora de tantas cousas compradas para o agasalho do seu amor. Mas não: em vez de ir para o interior, Camilla fôra para a sacada. Elle acompanhou-a. Em frente, os telhados mais baixos succediam-se irregulares, cortando-se em linhas angulosas de um vermelho sujo; as casas, deseguaes, accumulavam-se, paredes ameaçando paredes, janellinhas de sotãos espiando as telhas estriadas de limo, de onde emergiam chaminés negras e curtas, baforando fumo. Camilla murmurára, como quem falla só: --Se ao menos se visse o mar... Disse; e curvava-se para a rua quando a badalada de um sino reboou perto, formidavel, prolongando-se num som que era como um gemido da cidade inteira. Milla ergueu-se com um estremeção e voltou para o perfil da egreja o olhar extatico. Elle sorrira do susto, emquanto ella dizia: --Como é alto! Depois d'esse, vieram dias tranquillos. A mulher bordava almofadas para o sofá e emmoldurava os chromos com musgo e flores seccas. Tinham-se acostumado um ao outro, viviam em paz, quando a Sidonia reappareceu na vida de Theodoro, obrigando-o a desvios e infidelidades. Nem a pobre Camilla desconfiara nunca... Tambem, nada lhe tinha faltado e já devia ser um regalo para ella cobrir de boas roupas o seu corpo de neve, ter mesa farta, e andar pela cidade attrahindo as vistas, no deleite da sua graça... Então iam grandes remessas para Sergipe. Um sorvedouro, aquella familia, sempre exhalando lamurias em todas as cartas, na sêde insaciavel de dinheiro. Por esse tempo o seu grande desgosto era o cunhado, o Joca, que se lhe mettia em casa, com os seus máos costumes de vadio. Elle fôra o causador de tantissimas querellas! E aggressivo na sua indolencia, mal humorado pelas dividas do jogo, e ingrato! Má raça. Além do mais, pespegara-lhe depois com a filha em casa, aquella pobre Nina, tão enfezada nos seus primeiros tempos, fina como um canniço, e com uma tosse de cão, que repercutia pelos corredores. Emfim, essa, ao menos, servira depois para ajudar Camilla a criar as filhas, que o Mario, esse já ella o encontrara forte como um heróe! O Mario... No percurso da Carioca á praia de Botafogo, Theodoro foi assim reconstruindo a sua vida, solidificando-a, pondo-a de pé. Era com essas memorias de familia e de trabalho, que elle se entrincheiraria contra os assaltos das novas ambições. O mar, muito azul, paletado de ouro aqui, desenhava já acolá em grandes sombras negras o perfil dos morros. Uma aragem forte sacudia as arvores, e folhas vinham redemoinhando no ar em vôos tontos. Uns pequenos atiravam um cão da Terra Nova á agua, e as janellas dos palacetes mal se abriam aos esplendores de fóra. Perto do collegio, subiram para o bond duas irmãs de caridade, com ramalhetes de rosas. Theodoro conhecia-as, eram professoras da filha, e distinguiam-no sempre, por sabel-o religioso. Iam levar á ermida da Copacabana aquellas flores, promettidas pela salvação de uma alumna, que estivera ás portas da morte. Uma conversa simples, em dois minutos, foi como balsamo para o espirito fatigado do negociante. Demais, elle achou bonito, commovedor aquillo: uma creança ás portas da morte, duas religiosas, um ramo de flores e a visão de uma ermida sobre o mar... Quando Francisco Theodoro chegou a casa, as suas filhas gemeas, Rachel e Lia, brincavam na chacara. Ao vel-o abrir o portão, as creanças atiraram-se para elle, que mal lhes passou os dedos pelos cabellos; ellas tambem pouco se detiveram e Theodoro atravessou o jardim. O seu palacete era um dos mais lindos de Botafogo. No centro de um parque, elle erguia os seus balcões por entre palmas estrelladas de coqueiros e copas de arvores bem escolhidas. Aquillo não fôra obra sua; tinha comprado a vivenda a um titular de gosto, cuja ruina o obrigara a hypothecal-a quando a construcção ia em meio e a vendel-a logo depois de concluida. Á esquerda, uma escada de pedra, ladeada por uma grade florida, conduzia ao terraço alpendrado do andar superior, onde muitas vezes a familia palestrava, á espera de descer para o jantar. Nessa tarde só estava alli o filho mais velho, o Mario, todo derreado numa cadeira de balanço. O pae foi andando, e elle mal esboçou um movimento para levantar-se e dar-lhe as boas tardes. Era já homem, muito moço ainda, e todo elle revelava preoccupações de luxo e cuidado da sua pessoa. Na sala da frente fallava-se com alegria. --Temos visitas--pensou Theodoro, vendo chapéos de homem no cabide da saleta. Quando elle entrou na sala, a mulher dizia á filha: --Vae ensaiar, Ruth! A seu lado, sentado no mesmo divan, o Dr. Gervasio Gomes desenhava a lapis na carteira qualquer cousa que a fazia sorrir. Elle gabava-se de ter geito para a caricatura. Era um homem magro, nervoso, de quarenta e tres annos, trigueiro, e apurado na _toilette_. Era ligeiramente calvo, tinha um olhar de que as lentes de myope não attenuavam a agudeza, e um sorrisinho ironico, que lhe mostrava os dentes claros e meudos como os dos roedores. Camilla guardava um viço prodigioso de mocidade. Todo o Rio a apontava como mulher formosa. Tinha herdado da mãe aquelle ar de magestade, que tanto impressionara Theodoro na primeira entrevista do Castello, adoçado por uma grande expressão de calma e de bondade. Francisco Theodoro foi direito a elles e cumprimentou-os, sem se atrever a roçar os labios na face da mulher, com todo o escrupuloso pudor das suas acções em familia. Sentava-se já, quando ella lhe disse com leve censura: --Você não cumprimenta o capitão Rino nem o maestro? Os outros estavam ao canto da sala, junto ao piano para onde Ruth se dirigia com o violino na mão. Pedidas as desculpas, Theodoro voltou-se para o capitão Rino: --Muito me alegro de o ver aqui, capitão; quando chegou da sua viagem? --Hontem. --Você não imagina, interrompeu Camilla; o capitão trouxe-me um presente lindissimo! --Que foi? perguntou a meia voz o Dr. Gervasio. Francisco Theodoro enxugava com o lenço a calva rosada e luzidia. Milla, voltando-se para o medico, explicou: --Uma collecção de orchideas do Amazonas; e prometteu mandar vir para o lago uma _Victoria Regia_. O doutor murmurou por entre dentes, em tom que só Camilla pudesse ouvir: --Isso de prometter é que não é bonito... A moça relanceou-lhe um olhar, como a pedir misericordia para o outro, que palestrava agora com o dono da casa.--Não era bonito, por que?! O capitão Rino destacava-se entre todos na sala pelo seu typo de loiro e pela robustez do seu corpo. Era alto, de hombros largos. Tinha as mãos grandes, os olhos claros, de um azul de faiança; o bigode sedoso, como que acabado de nascer, e a pelle queimada pelos ventos do mar. Só se lhe percebia a alvura da tez nos pulsos ou na raiz do pescoço, quando elle atirava a cabeça e os braços nos seus gestos largos e desageitados. Havia qualquer cousa de infantil naquelle homem grande, uma interrogação timida talvez no olhar, e um certo abandono, de pessoa pouco afeita á sociedade. Vestia-se mal, usava gravatas de cores vistosas, abusando do xadrez nos seus casacos de casimira mal feitos. Ruth poz-se em attitude; a mãe gritou-lhe: --Imagina que estás deante do auditorio! Ella pareceu não a ouvir. Em pé, ao lado do piano, alta e espigada, com a cabeça unida ao seu hombro estreito de menina, os cabellos negros, cahindo-lhe em ondas sobre o pescoço moreno, os olhos de um verde limpido, de agua marinha, abertos para o vacuo, tinha um ar de sonnambula perdida em sonhos divinos. As mãos, longas e esguias, moviam-se com segurança; o vestido branco, salpicado de florinhas amarellas, mostrava-lhe um pouco das pernas finas, calçadas a preto. O Lelio Braga, recemchegado da Allemanha, o gordo maestro que só fallava de musica ou de jogo, atacou o teclado vigorosamente. Fez-se o silencio em volta, mas por pouco tempo. Recomeçaram as conversas em tom mais baixo. Ruth não ouvia ninguem; um brilho quente, de sol, sahia-lhe dos olhos verdes, voltados para a luz. Só o capitão Rino parecia escutar a musica, olhando de esguelha para Camilla. Abominava a confiança que ella dava ao outro, ao magro Dr. Gervasio, alli tão agarrado ás suas saias, dizendo-lhe cousas que a faziam sorrir. Tudo naquelle homem o irritava: o seu luxo, o seu typo escanifrado e o seu ar de ironia, ás vezes perversa, outras insulsa. Francisco Theodoro, nunca interessado por cousas de arte, nem mesmo pela musica, quebrava a miude as reflexões do capitão Rino, interrogando-o sobre assumptos do Norte, de puro interesse commercial. Ainda vibrava no ar a ultima nota do violino, quando Nina, sobrinha dos donos da casa, entrou na sala, com o seu modo simples que a tornava sympathica a toda a gente. Não era bonita: tinha o nariz grosso e alguns signaes aloirados na pelle pallida. --Você viu as parasitas? perguntou-lhe Camilla. --Que sim; e, voltando-se para o capitão: Devemos conserval-as ao ar livre ou na estufa? O capitão fez um gesto de ignorancia. Só á hora do jantar, Mario se reuniu á familia. A mesa, cheia de crystaes e de prataria, tinha um aspecto festivo. O dinheiro ganho á custa de trabalho gosta de impor-se á admiração alheia. O dono da casa, refrescado no paletot de brim, não se cançava de elogiar os seus vinhos e alludia a miude á excellencia do cozinheiro. Se alguem se esquivava a um copo de Bordeaux ou a um calice de velho Madeira, elle acudia animadoramente:--Beba, que esse é legitimo; egual não se encontra com facilidade por ahi. Havia sempre excesso de iguarias; voltavam para dentro pratos complicados intactos. A fartura passava ao desperdicio. A copa atulhava-se de peças grandes, em que as folhas de alface e os desenhos a rodas de limão, de ovo, azeitonas e gelatina não disfarçavam a opulencia das carnes. Á cabeceira da mesa, Francisco Theodoro gostava de, espalhando a vista por toda a longa superficie branca da toalha, vêl-a bem coberta de cousas caras e vistosas. Assim comia com appetite, gostosamente. Era o seu triumpho na vida, que todo esse luxo representava, na unica occasião em que lhe sobrava tempo para admiral-o. Os convivas eram instados para que comessem mais, comessem sempre! Com o Dr. Gervasio havia menos instancias: conheciam-lhe os habitos de homem delicado. O capitão Rino era muito mais moço e trazia da sua vida de mar valentias de estomago. As creanças comiam á mesa, dirigidas por Nina, e faziam algazarra e exigencias. Mario reprehendia-as, achando intoleravel que o pae consentisse aquillo! --O nome do seu vapor é...? perguntou ao capitão o Dr. Gervasio, ageitando a luneta no nariz. --_Neptuno._ --Amado de Amphitrite e das nereidas. O patrono deve pôr-lhe em perigo o socego... --Porque? --Porque assim moço, bonito, e com tal suggestão, de forte envergadura precisa o senhor para resistir ás seducções das sereias... --Que ninguem viu nunca em mares brasileiros; respondeu o capitão ingenuamente. --Convirá não affirmar que não as haja tambem em terras do Brasil, sublinhou o doutor com um sorrisinho, descendo o olhar para a pera que descascava. Riram-se do embaraço do capitão, que murmurou, desviando a vista de Camilla: --Os cantos das sereias não me seduziriam... --Pois é pena; sem imaginação a vida do mar não pode ter encantos. Se eu, em vez de medico, obrigado a deter-me com o que ha de mais prosaico na natureza, fosse ... o capitão do navio ... perdão, do vapor _Neptuno_, apegar-me-ia á mythologia, faria dos seus deuses a minha florida e alegre religião, e affirmo que seriam de goso para mim as noitadas no convéz, vendo ao clarão das estrellas Venus surgir das espumas e boiarem á tona da onda negra os dorsos brancos das cincoenta filhas de Nereu. Estou certo de que não sentiria a tal melancholia das aguas, de que ás vezes os senhores se queixam. Um homem de espirito nunca está só... O capitão sorriu e Francisco Theodoro fallou com o seu modo sentencioso: --Elles gosam a seu modo. --Não gosamos, não; a vida do mar é dura. O Dr. Gervasio não póde sentir com sinceridade o que disse... --Assevero-lhe que sim, capitão; e que parti de um principio de que parto para todos os actos da vida, convicto de que está no proprio homem o remedio dos grandes males que o affligem. --Se vae dizer isso ao pé dos seus doentes, ninguem mais o chamará, replicou Camilla. --Chamarão; infelizmente chamam sempre. Ninguem tem absoluta confiança em si. O homem, por mais que digam, ignora a força de que vem revestido para a sua funcção. Para nós, a natureza representa apenas o papel secundario da paizagem; é o accessorio, a _mise-en-scène_ da Vida, em que nos atormentamos mutuamente num alarido de inferno. Não valia a pena crear coisas tão bonitas para serem tão mal aproveitadas. Palavra de honra! se fosse possivel conceber o riso, ou apenas o sorriso, na face tremenda do Omnipotente, eu diria que Elle ás vezes escarnece de nós. Á sua saúde, capitão! --Obrigado... --Um dia metto-me no seu _Neptuno_ e atiro-me para o Norte. Curiosidade, simplesmente; tenho mais vontade de vêr os crocodilos do Amazonas do que ... eu sei lá! as bailarinas da Grande Opera. --Homem, dizem que a carne do crocodilo é boa, disse Francisco Theodoro. --Ha tambem quem affirme que a das bailarinas ainda é melhor! observou o medico. Camilla riu-se; e depois: --E eu que nunca vi um grande vapor por dentro! --Quer ir commigo a Manáos? --Não; mas quero que o capitão Rino nos convide para visitar o _Neptuno_. O moço maritimo balbuciou, corando: --Oh! minha senhora... Interrompeu a phrase, porque ia dizer:--eu não desejo outra cousa! mas achou mais acertado e mais simples accrescentar sómente:--quando quizer. --Será num domingo, para que meu marido vá tambem. E as creanças poderão ir? --Por que não? Lia e Rachel bateram palmas. Ao café, no terraço, Camilla declarou preparar um grande baile para o S. João, quando a Ruth completasse os seus quinze annos. O Dr. Gervasio protestou: que viesse o baile, mas com outro pretexto. --Por que? --Porque a noitada de S. João mette medo ás casacas e assusta os decotes. É um santo que só quer luz de fogueiras, com altas labaredas e crepitações, e ainda ha de ser no campo, entre gente rude que danse em torno ás chammas. É uma festa que me dá ideia de uma cerimonia ritual, de povo primitivo. Deixe o seu baile para outro dia. --Mas depois eu não terei pretexto... --Meu Deus! não é preciso descer uma pessoa a dar explicações aos amigos, quando se trata de os divertir... Francisco Theodoro ouvia o Dr. Gervasio com muito acatamento, reconhecendo-lhe superioridade intellectual. Devia-lhe a vida dos filhos, confessava, e d'essa divida não se cançava de se dizer devedor. Approvou a idéa do baile; fizessem o que quizessem, a bolsa estava aberta. E a proposito, deixando os outros a tagarellar no terraço, elle fechou os olhos e pensou na felicidade do Gama Torres... Quem sabe?... talvez que elle pudesse fazer o mesmo; a epocha era favoravel, o café rendia como nunca e ainda havia esperanças de alta... Se fugisse áquella occasião ... perderia o ensejo de triplicar de um dia para o outro a sua já grande fortuna... Fôra sempre um homem de acção, de recursos, como ficar na retaguarda, imbecilmente, deixando que a outro, novato, se conferisse o titulo de Rottschild brasileiro? O ciume do seu nome de negociante enchia-o até aos olhos. Encadeou e desencadeou pensamentos calculistas. Ter a maior fortuna, tendo partido do nada, era toda a sua ambição. Repetia a qualquer a humildade da sua origem, espreitando o effeito d'essa confissão. Ser o mais poderoso, o mais rico, o mais forte, tendo partido do nada, não seria ter alcançado a suprema gloria na terra? E, alli mesmo, bem recostado na sua cadeira de balanço, com o papo cheio de optimas iguarias, as mãos descançadas nos braços da cadeira, elle insensivelmente passou do sonho ao somno. Na meia sombra do lusco-fusco, os olhos do capitão Rino fulguravam, espiando com raiva os rostos do medico e de Camilla, que se contemplavam. Mario atravessou o terraço de charuto na bocca, em direcção á rua. --Onde vaes? perguntou-lhe a mãe. --Ao theatro; respondeu elle sem se deter, descendo a escada. --Este rapaz ... este rapaz ... resmungou por entre dentes o Dr. Gervasio, em modo de censura. Camilla desculpou-o; o filho tinha genio e era muito independente. Não queria contrarial-o; para que? A vida é curta, cedo viriam as amofinações. O juizo havia de vir com a edade... Em baixo, no jardim, entre os grupos rescendentes de heliotropo e de jasmins do Cabo, as creanças e Ruth faziam roda á Noca, mulata antiga na familia, que lhes contava historias de fadas e de principes encantados. Vendo Mario dirigir-se para o portão, a mulata chamou-o com familiaridade de amiga velha: --Seu Mario, escuta aqui! --Que é, Noca? --Onde é que vae? --Se eu não morrer pelo caminho, hei de chegar ao theatro. --Não morre; eu ainda esta noite sonhei que V. estava amortalhado e que D. Nina chorava sangue... Sonhar com morte é signal de saude. Traga umas balas para mim. --Vá esperando. O capitão Rino despediu-se e desceu tambem para a rua, ouvindo a voz da Noca recomeçar numa melopéa: «Minha varinha de condão, pelo poder que Deus vos deu, fazei...» Nina, encostada á grade, via Mario afastar-se; e lá em cima, no terraço, ao lado do marido adormecido, Camilla curvou-se para o Dr. Gervasio e beijou-o na bocca. III Com preguiça de ir visitar as velhas tias do Castello, Camilla mandava ás vezes as filhas pequenas abraçal-as em seu nome, em companhia da Noca. As senhoras Rodrigues moravam ainda na mesma casa, do alto do morro, muito antiga, com janellas de guilhotina e paredes encardidas. D. Itelvina raramente punha os pés na rua, e era tida como a creatura mais sovina do bairro. A outra, D. Joanna, pouco parava alli, sempre voltada para Deus. Era viuva de um colchoeiro rico, morto de anasarcha, de quem soffrera os máos tratos que, na inconsciencia das bebedeiras, elle lhe ministrava. Viviam as duas, desde creanças, na mesma casa, herança dos paes, conservando os seus habitos de vida mesquinha, amando idéaes diversos: uma concentrando-se, outra expandindo-se, consistindo para uma todo o prazer da vida em aferrolhar, esconder bens que as mãos apalpam, e para a outra só em querer bens do céo, com que a alma sonha. Nada sorria naquella habitação arida e velha. No quintal, nem um canteiro de flores; uma horta rachitica a um canto, algumas laranjeiras e um coradoiro de grama pisada e sem viço, extendendo-se ao lado de um tanque de cimento, coberto por um telheiro de zinco. Dentro, o mesmo desconforto: salas com poucos moveis e esses antiquissimos, alcovas vazias e uma cozinha de tijolos desgastados pelas pancadas do machado na lenha. D. Itelvina percebia bem que para conservação d'aquella casa deveria fazer-lhe grandes concertos; mas queria obter da irmã que os fizesse todos por sua conta, o que lhe parecia mais justo. A irmã é que não olhava para os buracos dos ratos e pouco lhe importava isso, desde que a sua Senhora do Carmo e o Santo Christo do seu oratorio estivessem alumiados, a sua alma em graça, e que ella pudesse fazer todas as semanas as suas confissões aos frades capuchinhos. Esta era, para tudo mais, uma senhora apathica, gorda, de uma brancura anemica, com uns olhos castanhos muito doces e um cabello grisalho, curto, que ella cobria com uma touca preta de folhos encrespados. A saia, redonda e muito franzida, mostrava-lhe os pés largos calçados em duraque, e nas mãos finas e côr de leite tinha, ora o livro de orações, de folhas já denegridas nos angulos, ora um rosario de ambar benzido pelo bispo. D. Itelvina não parecia crente. Ninguem a vira nunca de joelhos em frente ao oratorio da irmã. Nenhum traço commum lembraria a outrem o parentesco entre ambas. Esta era alta, morena, de nariz forte e labios finos. A voz de D. Joanna tinha inflexões brandas, de alma tranquilla; a voz de D. Itelvina tinha sibilações desafinadas, rouquejava ou tinia, como se sahisse de orgãos de bronze. Nem as duas sabiam se se amavam. Os bons dias e as boas noites eram trocados sem o beijo que confraternisa as almas. Toleravam-se, talvez, apenas; apoiavam-se mutuamente, guiadas pelo habito. Quando Noca bateu á porta, ouviu gritos dentro: e calculou logo que haviam de ser da Sancha, a negrinha orphã que D. Itelvina explorava nos arranjos da casa. Abriu-se uma janella com bulha impaciente e appareceu a cara de D. Itelvina, indagando de quem batia. --Ah!... é você, Noca! espere um pouco, eu já vou. Dentro, a mulata explicou: --Nhá Milla mandou fazer uma visita e saber das senhoras como estão ... ella não pôde vir, porque... --Já sei. Isto é muito alto ... se fossem as escadas do Lyrico, muito que bem!... casa de pobres... --Não, senhora! não é por isso, nem as senhoras são pobres! até dizem todos o contrario... --Dizem? mentiras! mentiras só... Como vae seu Theodoro? --Muito bem. --Excellente homem; aquillo é que foi sorte grande, hein Noca? --Foi, sim, senhora; elle é bom ... tem as suas impertinencias ... mas a gente já sabe que é do genio... --Qual o quê! Milla deve adorar o marido de joelhos! Neste tempo já não é facil uma moça pobre e sem protecção encontrar um casamento assim! --Isso é verdade... Ella tambem é muito boa. --Você se lembra de quando elles moravam na Lapa, que até você levava ás vezes comida da casa de pasto para dar ás meninas? A mulata sorriu com ar contrafeito e modesto, lembrando-se que não fôra só da Lapa que ella levava os restos dos jantares da casa de pasto do amigo, mas que subira muitas vezes a ladeira do Castello, com a trouxinha das carnes na mão, para matar a fome de Milla e das irmãs, então hospedadas em casa de D. Itelvina. --De quem é que você matava a fome, Noca? perguntou uma das creanças. --De uma viuva que já morreu, emendou Noca, impellindo as duas creanças para o quintal. Vão ver a vista ... vão ver os signaes dos vapores ... dizia ella. D. Itelvina olhou para as duas meninas e não pôde conter-se que não exclamasse: --Tanta gente com fome e tanto dinheiro esperdiçado em vestidos de creanças! Milla teve sempre propensão para o desperdicio... Bonitos aquelles vestidos! Onde os compraram? --Vieram de Paris... --Uhm ... não haviam de ser baratos ... aquillo é seda, não é? --É, sim, senhora. D. Joanna sahiu? --Já se sabe! anda pelas egrejas... Se não fosse eu, não sei como havia de ser!... Noca reparou, olhando para a alcova do oratorio, aberta para a sala, que a lamparina estava apagada. D. Itelvina continuou: --Joanninha só vem a casa para comer e dormir. Tem quem lhe faça tudo... Ella não tem apparecido por lá? --Não, senhora... --Ruth porque não veio? --Ficou dando licção. Ella tocou no concerto e foi muito festejada. --Ha de lucrar muito com isso... Aposto em como não sabe ainda pregar um remendo ou fazer um vestido. --Graças a Deus, ella não precisa d'isso!... --O futuro o dirá... --Credo! --Pois sim. Cada vez bemdigo mais a educação que minha mãe nos deu. Havia dias, que era desde manhã até de noite a fazer balas... --Tá hi! e D. Joanna não deu p'ra outras coisas? --Ella sempre foi religiosa, mas depois de viuva refinou! E ainda se queixa de doente, que tem faltas de respiração e pernas inchadas! --Coitada! --Minha filha! ella vae d'aqui a pé a São Francisco, ao Carmo, á Penitencia, a S. Bento a qualquer egreja da cidade!... Ás cinco horas já está nos Capuchinhos; e á tarde aqui na egreja do hospital ella canta com as Irmãs e com os soldados. E cada ladainha que Deus nos acuda! Alguem batia á porta, e D. Itelvina, tendo espreitado pela janella, voltou-se apressada e foi reaccender a lamparina do oratorio. Sancha appareceu, com os beiços inchados pelo excesso do choro, e, despendurando a chave da porta da rua, segura pela argola a um prego na sala, olhou com ar de queixa muda para a Noca. A negrinha não teve resposta: a outra disfarçava, contemplando as paredes núas e desbotadas da sala. Pela janella aberta via-se parte de um paredão desmoronado, e lá em baixo, em um fundo largo e fresco, um trecho de mar muito azul. D. Joanna entrou, arfando de cançaço, e sentou-se logo na primeira cadeira, ao pé da porta. Sancha tirou-lhe a touca, guardou-lhe o livro e os rosarios, e sumiu-se, sem ter descerrado os labios nem enxugado os olhos vermelhos e inundados. --Hoje a egreja estava repleta; fallou monsenhor Nuno ... foi um grande sermão, de muito proveito e de muita fé! disse D. Joanna, e depois de uma pausa: Ó Noca! Milla não vae nunca ás solemnidades religiosas? --Vae todos os domingos á missa. --Bem! que não deixe perder a sua alma! Entretanto, eu rezo por todos. A pena que eu tenho é de me custar tanto a ajoelhar ... estou com as pernas cada vez mais inchadas... --Isso é scisma, resmungou D. Itelvina, retirando-se para o interior. Noca aconselhou logo um remedio prodigioso, benzido com cinco cruzes. Ella sabia d'essas coisas. Todos de casa a consultavam. A botica era a chacara, com as suas folhas, cultivadas umas, agrestes outras; conhecia-lhes os segredos, roubava-lhes os filtros mais subtis e applicava-os acompanhando-os com orações especiaes dos santos martyres. Era sempre a Noca quem avisava ás pessoas da familia qual o melhor dia para cortar o cabello, para fazer uma viagem ou para tomar qualquer mezinha. Sabia as voltas da lua, e traduzia os sonhos que lhe contavam, com palavras de convicção inabalaveis. Criara todos os filhos de Milla, desde o Mario até á Bijú, a pequena mais nova, já morta. Quando ella descia o morro, as creanças queixaram-se de fome e confessaram que não queriam voltar a visitar aquellas tias, que não lhes davam nada. Nem um bocadinho de pão! Na praça do Castello, Noca, com pena, entrou numa quitanda, posta de novo, brilhando ainda nas tijellas lavadas e no barro das panellas e das moringas á venda, e comprou fructas para as duas meninas. Portuguezas, de saias curtas e grandes arrecadas de oiro, iam e vinham, parando umas á porta, com pimpolhos ao collo, e outras fallando alto, para dentro. A dona do negocio respondia a todos, conversando em ar de mexerico disfarçado, com a mulata, a quem via pela primeira vez. --A senhora vem morar pr'a qui? --Não; vim fazer uma visita. --A quem, inda que mal pergunte? --Ás senhoras Rodrigues; conhece? --As duas velhotas da travessa de S. Sebastião? --Essas mesmo. --Não conheço outra coisa!... E depois de uma pausa, em que procurou conter-se, abalou a fallar sem interrupção. As senhoras Rodrigues eram muito conhecidas no bairro. Diziam que D. Itelvina passava horas da noite excavando o quintal, á procura dos afamados thesouros guardados pelos jesuitas. Os visinhos viam uma luz de lanterna movendo-se na sombra do pateo, rente do chão, e olhavam-na com desconfiança. A outra era uma beata de egreja e já constava que legaria os seus haveres ao frei Angelo, dos Capuchinhos. A quitandeira affirmava que ellas haviam de passar mal da barriga: decorriam semanas sem que lhe comprassem nem um triste feixe de espinafres ou molho de cenouras! Quando a Noca atravessava o largo, com uma creança por cada mão, para a ladeira do Seminario, sentiu que alguem, que viera correndo, lhe puxava pela saia; voltou-se e viu Sancha, com ar de medo, de quem foge. --Uê! que é que você quer? --Quero pedir um favor, disse a negrinha, meio engasgada, tirando do seio uma nota de quinhentos réis amarrotada e immunda. --Que favor, gente? --Quando voltar cá, traga isto de arsenico, disse ella apontando o dinheiro que offerecia á mulata. --Arsenico ... p'ra que?! você tá doida?!... --P'ra nada! faça esta esmola... E como Noca não extendesse a mão, a negrinha atafulhou-lhe o dinheiro, rapidamente, pela golla aberta do vestido, e voltou como uma setta para casa. As cabritas andavam soltas, pastando nas hervas altas; o sol, muito quente, alvejava roupas extendidas nas ruas, e na torre repintada dos Capuchinhos o sino badalava, convidando á oração. Noca apressava-se, arrastando as duas meninas. Logo que chegaram a baixo, ao largo da Mãe do Bispo, viram Mario passar no seu _phaeton_, que elle mesmo guiava numa posição correcta. O lacaio, sem descruzar os braços, sorriu para as creanças; o moço passou sem reparar nas irmãs, que ficaram com ar despeitado, agarradas á saia da ama. O carro de Mario rodava já pela Guarda Velha, e Noca pensou: --Elle vae alli, vae direitinho p'ra casa da tal Luiza, o diabo da mulher que lhe come os olhos da cara. Uhm! eu gostava de ver só! O Dionysio dizia-lhe que a franceza era bonita e muito _chic_, e ella sentia no fundo uma curiosidade doida de conhecer a amante d'aquelle rapaz que embalara nos braços e cujo corpo redondinho e nú suspendera tantas vezes no ar p'ra o fazer rir. E fôra uma creança alegre; agora não era; pelo menos em casa mostrava-se tão arredio e tão sério... Noca suspirou e, depois de um levantar de hombros, proseguiu nos seus pensamentos: --Afinal de contas, faz elle muito bem: a mocidade passa e o dinheiro foi inventado para se gastar. Elle gosta d'ella, acabou-se! Sabe Deus o que o pae teria pintado tambem; agora falla e quer dar leis ao coração do filho... Está-se ninando! Aquelle! pois sim! Cada um sabe de si... Ao mesmo tempo sentia piedade pela Nina. Em casa a unica pessoa que percebera aquelle segredo fôra ella. Sabia, mas calava-se muito bem calada; para que arranjar barulhos? Era tão boa, a pobre, tão facil de contentar... Bastava vêr os vestidos e os chapéus que ella usava: tudo restos de Milla e de Ruth, que ella fuchicava a seu geito... Nunca pedia nada, nunca se punha em evidencia, ninguem se lembrava até quando ella fazia annos! Talvez houvesse em casa um pouco de ingratidão para com a moça; mas de quem era a culpa? Mario era um rapaz rico e de bom gosto, havia de escolher mulher mais bonita, que fizesse vista numa sala. Noca adorava o Mario; achava-o lindo, com o seu pequeno buço aloirado e os seus olhos negros e pestanudos. A flor da familia. Aquelle sahira á mãe. Passava um electrico. As creanças sacudiram a mulata: --Vamos, Noca! --Vamos mesmo, que hoje de mais a mais é terça-feira... A conselho do Dr. Gervasio Camilla, tinha marcado as terças-feiras para as suas recepções. No começo houve reluctancia em casa. Francisco Theodoro gostava de porta franca em todos os dias da semana; a mulher mesmo, criada em velhos habitos, vexava-se de marcar dia para as suas visitas. Comquanto o novo systema a constrangesse, submetteu-se, porque era da vontade do Dr. Gervasio, e para esse o portão da chacara estava sempre escancarado. Elle não faltava, ia vêl-a todas as manhãs, almoçar no logar de Francisco Theodoro, que almoçava sosinho duas horas antes, a um canto da grande mesa vazia; e alli o medico ensinava áquella gente o meio de se conduzir na sociedade, polindo-lhe o espirito, alterando-lhe os gostos, fazendo-a preferir o queijo que elle preferia, o vinho de que mais gostava, as aves e as caças com molhos delicados, de fino paladar. A docilidade dos ouvintes fazia-o abusar de phrases que elle formava para si, com o pretexto de as dizer aos outros, e que elles todavia acceitavam, com agrado, num sorriso... Nessa manhã de terça-feira estavam ainda ao almoço, quando palmas gordas estrondearam no jardim. --É o Lelio, exclamou Ruth, arrancando o guardanapo do pescoço e correndo para fóra. Era o Lelio; viram-lhe o gordo cachaço, atravéz dos vidros da porta, quando elle passou pelo corredor. Com o pretexto de mostrar ao medico um annel novo, Camilla extendeu-lhe a mão, luminosa de pedrarias. Elle segurou-a, e erguendo-a um pouco, observou: --Tal qual cinco raios de sol... Sim, senhora! é muito perfeito este brilhante ... mas este outro ainda é mais limpido... Ella sorria, e Nina excedeu-se em tratar das creanças, com o proposito de desviar a attenção. --Ponha este annel fóra... É indigno da sua mão. --Brilha tanto! --É do Cabo, muito amarello. --Mas eu estimo-o muito. Foi o primeiro presente de meu marido. --Vá lá, que não são mal escolhidas as suas pedras, precisa ainda de um brilhante negro, para este dedinho que está muito nú. Tenho pena que não goste de perolas; só quer pedras que fulgurem. --Só. --Vamos para a saleta? trouxe-lhe um livro. --Versos? --Não. Um romance. --Ainda bem; eu só gosto de versos quando o senhor m'os lê. Uma monotonia... Na saleta, ella abriu a veneziana e aspirou com força o aroma dos resedás plantados junto á parede. Gostava dos aromas fortes. Que dia maravilhoso! depois, voltando-se: --O livro? --Está aqui. --Já leu? --Já. Trata-se de um amor um pouco parecido com o nosso. --Então não leio. Sei que está cheio de injustiças e de mentiras perversas. Os senhores romancistas não perdoam ás mulheres; fazem-nas responsaveis por tudo--como se não pagassemos caro a felicidade que fruimos! Nesses livros tenho sempre medo do fim; revolto-me contra os castigos que elles infligem ás nossas culpas, e desespero-me por não poder gritar-lhes: hypocritas! hypocritas! Leve o seu livro; não me torne a trazer d'esses romances. Basta-me o nosso, para eu ter medo do fim. --Não tenha remorsos; o nosso não acabará! --Remorsos ... remorsos de que? Pensa, Gervasio, que, desde o primeiro anno de casado, o meu marido não me trahiu tambem? Qual é a mulher, por mais estupida, ou mais indifferente, que não adivinhe, que não sinta o adulterio do marido no proprio dia em que elle é commettido? Ha sempre um vestigio _da outra_, que se mostra em um gesto, em um perfume, em uma palavra, em um carinho... Elles trahem-se com as compensações que nos trazem... --Isso tudo é vago e abstracto. --Não importa. E as denuncias? e as cartas anonymas? e os ditos das amigas? Eu soube de muitas coisas e fingi ignoral-as, todas! Não é isso que a sociedade quer de nós? As mentiras que o meu marido me pregou, deixaram sulco e eu paguei-lh'as com o teu amor, e só pelo amor! E assim mesmo o enganal-o peza-me, peza-me, porque, quanto mais te amo, mais o estimo. É uma tortura, que parece que foi inventada só para mim! Gervasio não respondeu. Tinha o rosto contrahido por uma expressão de ciume. Passado um instante de silencio, murmurou: --É extraordinario! Nunca julguei possivel essa dualidade no amor. Bem, levarei o livro. Adeus. --Não vá... É cedo ... supplicou ella, com o rosto pallido, illuminado de paixão. Fique, é tão bom! Fallarei noutra coisa. Ensine-me a fallar, Gervasio. --Então, diga lá:--amo-te! E ella ia repetir as palavras, quando as gemeas entraram ruidosamente. Lia queria saber se aquelles navios pretos e pequeninos espalhados no jornal eram do capitão Rino. --São; disse a mãe abreviando explicações. Vão brincar. --Ih! então elle é muito rico? --É. Vão brincar. As meninas sahiram e o assumpto voltou-se para o capitão Rino. O medico ridicularisava-o; queria-lhe mal, achava-o medroso, desenxabido, muito branco e muito loiro, mal ageitado nas suas roupas. Faltava-lhe linha, faltava-lhe espirito, faltava-lhe tudo. Camilla negava alguns d'esses defeitos. Não tivesse medo: ella só o amaria a elle, em toda a sua vida. Havia já muito tempo que duravam aquellas conversas na saleta, com a porta escancarada para o corredor, por onde de vez em quando Lia e Rachel passavam á galope, montadas nas bengalas do pae. Era á despedida que o medico e Camilla marcavam, de vez em quando, uma entrevista, longe, em uma casa da Lagôa, conservando o respeito por aquella habitação onde as filhas d'ella viviam soltas, procurando-a a todos os instantes, irrompendo de traz dos reposteiros ou dos moveis quando menos se esperava. Ruth acabara a licção. Sentiram os passos do maestro na escada. Gervasio ergueu-se. --Pois vou-me por ahi abaixo com o Lelio. São horas das moças bonitas na rua do Ouvidor... --Quem me dera que eu fosse uma d'ellas... A velhice aterra-me ... por sua causa! E ella vem perto!... --Tontinha! e não sou eu mais velho? --Sim ... mas os homens! Quando eu tiver os cabellos brancos, você... --Eu já não terei nenhuns; serei calvo como um ovo e viveremos ambos com as doces recordações d'estes dias lindos. O nosso romance não acabará nunca. Dê-me as suas ordens, minha senhora, aqui temos o Lelio. Camilla acompanhou-os ao terraço. --Que me diz da sua discipula? perguntou ao maestro. --Muito bem. Vae muito bem! D'aqui a pouco ensina-me... --Ella é estudiosa... Emquanto os dois conversavam, o medico passeou o olhar pelo jardim; depois disse, voltando-se indignado para Camilla: --O bandido do seu jardineiro está-lhe fazendo bordaduras de horta nos canteiros! Aquelles feitios em gramas são de pessimo gosto. Não tem instincto, o desgraçado! Hei de lhe arranjar outro, um francez acostumado a lidar com as flores de Nice. Verá a differença. Este errou a profissão: nasceu para tosquiador ou barbeiro. Nem faz idéa do que seja a harmonia das cores; veja aquelle canteiro: o rôxo ao pé do escarlate, o amarello ao pé da cor de rosa! Tudo mais, folhagens, folhagens e folhagens! Parece que estes jardineiros fazem guerra ás flores! Pois cá terá o outro amanhã. Vamos, maestro? Elles desceram e Camilla ficou encostada a um pilar, até ver sumir-se o medico; já elle tinha desapparecido e ainda ella olhava, pensativa... Fôra ha annos... Gervasio morava já na mesma casa do Jardim Botanico, bem installado, mas muito mettido comsigo. Uma noite alguem lhe batera á porta com desespero: era Francisco Theodoro, que o chamava como o medico mais proximo, para ver uma filha que ardia em febre. Tinham ido provisoriamente para a sua visinhança, mudando o Mario, que tivera a palustre. O medico não clinicava, mas cedeu á supplica e salvou Ruth de um typho. A doença fôra longa; a menina só acceitava remedios e alimento pela mão do seu amiguinho, que tratou tambem de fortalecer Mario. Camilla dizia então em extase, ao marido: --Devemos ao Dr. Gervasio a vida de nossos filhos! A entrada fôra victoriosa; justificava o ascendente do medico na familia... Nem fôra no começo que elle amara a Camilla. Nesse tempo ella não sabia ataviar-se, nem fazer sentir a sua formosura. Tinha os modos de uma boa mãe tranquilla, muito banal, com discursos longos e choradeiras sobre a morte muito recente de uma filhinha, que a tornavam fastidiosa. As gemeas, então de mezes, andavam sempre pendentes do paletot branco da mãe. Gervasio odiava aquelles casacos e aquellas queixumeiras insipidas. Mas esse tempo de prostração foi passando, e ella ascendeu pouco a pouco, vagarosamente, para a formosura e para a graça. A evolução não foi rapida, mas reflectida e suave, como impellida por sopros delicados. Quando o medico percebeu quanto Camilla mudava, e que essa transformação lenta e visivel se fazia ao influxo dos seus gostos, da sua convivencia e do seu espirito, começou a observal-a com redobrada attenção, cultivando o prazer de a tornar outra, como que uma obra sua. Camilla usava agora as cores claras, que lhe iam bem, e que elle lembrara como mais propicias á sua tez, adquiria expressões novas, inflexões de voz em que nascia uma musica de tons coloridos e harmoniosos, fazia outros gestos, mais graves e adequados, pisava de maneira mais rythmada e linda, deixou os perfumes misturados, sem escolha, por uma essencia branda; e tudo isso o fazia sem esforço, obedecendo á suggestão. O medico via nella um reflexo perfeito da sua alma, sentia-a voltar-se, subir para elle; e absorvido nesse estudo delicado--apaixonou-se por ella. Levada na fascinação, só tarde Camilla percebeu o perigo que a solicitava; então quiz fugir: fechou-se em casa, esquivava-se a vêr o medico; mas, atravéz da distancia e do silencio, elle percebia o amor d'ella a chamal-o, a envolvel-o todo com uma obsessão de loucura. Passaram-se assim longos mezes, de saudades sem remedio, de agonias mudas; até que um dia, cançados de uma resistencia inutil, deixaram-se vencer. Para elle, aquella ligação foi uma victoria; para ella como que uma lei da fatalidade. Era, porque tinha de ser, e a sua culpa salvaguardava-se nessa crença. Havia muito tempo já que o Dr. Gervasio entrara na intimidade da familia: sabia-lhe os segredos, lia todas as cartas vindas de Sergipe, com repetidas supplicas de dinheiro. Conhecia a historia do nascimento de Nina, filha natural do Joca, e da fugida d'elle, compromettido em uma casa de commercio; estava ao facto das doenças de D. Emilia, das habilidades calligraphicas do velho Rodrigues e da já alta somma de dotes dada por Francisco Theodoro ás cunhadas. Tudo isto soubera-o elle naturalmente, sem indagações; vinha na enxurrada dos desabafos, no desafogo da amisade. Com o amor, elle tinha tambem sabido conquistar a estima. Toda a gente em casa o ouvia com attenção. Um pouco d'essas coisas vagou pelo espirito de Camilla, quando, de olhar alongado, seguia ainda a sombra de Gervasio. Dias depois ella dava os últimos retoques á sua _toilette_, em frente ao espelho, quando o marido entrou. Camilla viu-o no crystal e perguntou-lhe, mesmo sem se voltar: --Por que é que você veio tão cedo? --Por duas razões... E, como elle interrompesse a phrase, ella, sobresaltada, acercou-se, indagando com interesse: --Você está doente? Diga! --Não tenho nada filha, descança. Camilla sorriu e voltou tranquilla para defronte do espelho. --Então que motivos são esses? --O primeiro, para pedir ao Gervasio que vá ver o Motta, que quebrou hoje uma perna. --O velho? --Sim. --Coitado! como foi? --Foi no serviço da casa; descendo de um bond. Já está medicado, mas quero que o Gervasio lhe examine o apparelho. O segundo motivo é mais serio. Sem afastar do rosto o _pompon_ do pó de arroz, Camilla interrogou com certa indifferença: --Que é? --Trata-se do senhor seu filho. --Meu só?! tem graça... --Tem graça? Olha, eu é que lhe não acho nenhuma! Está um bilontra, o tal senhor! --Aposto, meu velho, em como você vem por ahi com recriminações?! --Certamente; porque afinal de contas a verdadeira culpada das patifarias do rapaz és tu. Camilla voltou-se indignada, com os olhos chammejantes de colera: --Hein?! --Não dou um passo na rua que não encontre um credor do senhor meu filho! --Ora, logo vi, por causa de dinheiro! murmurou com desprezo Camilla, olhando para o marido de alto. Elle continuou: --É preciso que tu o advirtas hoje mesmo, que isto não póde continuar assim! Elle mantem agora uma mulher: dá-lhe vestidos, carro, casa, e com toda a impudencia faz contas em meu nome! Já se viu coisa egual?! --É a mocidade... --Já me tardava! É a pouca vergonha. Que trabalhe. --Trabalhar! Mario tem só dezenove annos! --Faze mãos de velludo para o acariciar; é o costume! --Mas por que não lhe falla você? --Por que?! Ora essa! porque lhe vou á cara, se elle me retruca com um desafôro!... Esperarei mais alguns dias ... falla-lhe tu primeiro. Não lhe mettas caraminholas na cabeça; dize-lhe que trabalhe, que siga o meu exemplo, e que se deixe de fazer dividas. Isto competiria a mim, bem sei, se não me tirasses toda a força moral. --Eu?! --Sim. Acodes com pannos quentes sempre que o reprehendo, e ahi está o resultado... E viva um homem honrado para isto! Uma vergonha... --Ora! tambem você exaggera. Mario tem boa indole. É incapaz de uma acção má. Descançe; eu fallarei com elle. Quer então que eu o aconselhe a deixar a tal mulher?... --Por força! Uma perua velha, que o ha de comer por uma perna. Não posso estar continuamente a desembolsar contos de réis para os caprichos da tal madama. Podes dizer ao Mario que, ou elle toma caminho, ou o mando para a Marinha. --Já não está em edade disso, nem eu me separo de meu filho! --Temos outra. Faze o que quizeres; hoje falla-lhe tú, e se elle não seguir outro caminho, terá de se haver commigo. Diabo, tenho outros filhos! --Coitado do Mario! tú nunca o amaste muito... --Han! Eu?! eu é que nunca o amei? Oh! senhores ... está bom, está bom, fallemos noutras coisas... Acalma-te ... e veste-te á vontade. As Gomes já estão ahi: vi-as no jardim com a Ruth. --Que me importam a mim as Gomes! Francisco Theodoro chegou-se á janella, afastou a cortina e olhando por entre os vidros, informou com voz amavel: --Lá está tambem o capitão Rino... Ahi estava um bom casamento para a Nina, hein? Gosto d'elle, parece um excellente rapaz ... apezar da procedencia. --Que procedencia? --Homem! a mãe morreu ás mãos do marido, por crime de adulterio... Emfim, isso já foi ha tantos annos, que ninguem se lembrará do caso... --Você lembrou-se. --Ora, porque ainda hontem me fallaram nisso... Bom casamento para a Nina ... bom casamento!... Camilla sorriu com desdem e tratou de abotoar melhor o seu broche de perolas, sobre a escomilha côr de rosa do peitilho. Coitada da Nina ... pois sim! --Muito bem! lá chegam o Lelio e o Gervasio... Sou muito amigo do Gervasio, mas olha que elle tambem é um exquisitão. Não diz nada á gente da sua vida, lá dos seus principios... Com a intimidade que lhe damos era natural que soubessemos mais d'elle que toda a gente; e afinal sabemos só o que todos sabem. Aqui para nós, não sympatisam geralmente com elle por ahi; dizem que elle nunca escreveu uma linha e que vive a criticar livros e auctores... Realmente, elle não perdôa a ninguem. Pois vou fallar-lhe. Até já. Antes de sahir, Theodoro contemplou a mulher, ageitou-lhe os caracóes da nuca e, attrahindo-a, quiz beijal-a; ella porém esquivou-se com um movimento rapido. Francisco Theodoro riu-se e sahiu pensando comsigo: --Todas as mães são assim! Só porque lhe fallei do filho... Em baixo, Ruth colhia flôres para as visitas, que se aggrupavam sob as ramas abundantes da mangueira. As Gomes, a mãe e duas filhas moças, eram indefectiveis: todas as terças-feiras lá iam, houvesse máo ou bom tempo. A velha era uma senhora toda cheia de preconceitos e escrupulos, e com a cabeça recheada de receitas, tanto medicinaes como culinarias, que ella offerecia a toda a gente que lhe ficasse ao alcance da voz. As filhas eram expertas, cantavam ao piano e ao violão e vestiam-se com graça, fazendo valer pannos baratos. O capitão Rino examinava as palmeiras com a attenção de um botanico, emquanto o maestro e o Dr. Gervasio cumprimentavam as senhoras. Francisco Theodoro appareceu risonho, com as duas mãos extendidas para a querida Sra. D. Ignacia Gomes, que se levantou remexendo as sedas farfalhantes do seu vestido cor de pinhão. Que excellente seda aquella! já passara por tres feitios differentes, e ainda era aquillo que se via! --Cara senhora, então, o amigo Gomes? --Vem logo; ah! elle tem muito trabalho, não imagina. --Sei, sei ... a vida foi feita para as mulheres. E ainda ellas se queixam! Só se falla por ahi em emancipação e outras patranhas... A mulher nasceu para mãe de familia. O lar é o seu altar; deslocada d'elle não vale nada! Todos concordaram; e Francisco Theodoro passou adeante, puxando o Dr. Gervasio para uma alléa mais solitaria do jardim: --Vou pedir-lhe um obsequio. Lá um dos meus empregados, um ajudante de guarda-livros, o Motta, quebrou hoje uma perna, ao descer de um bond. O homem foi tratado na pharmacia do Souto, mas ... sabe que esses apparelhos feitos assim á pressa não inspiram confiança; peço agora ao amigo que amanhã vá lá vêl-o. --Perfeitamente. Onde mora? --Na rua Funda, tenho aqui o numero... Francisco Theodoro sacou de um bilhete escripto a lapis. --Rua Funda? Onde é isso? --É no outro mundo, lá para os lados da Saúde. Emquanto Francisco Theodoro conversava com o medico, Camilla desceu a escada exterior do palacete, olhando de relance para todos. As Gomes acharam-n'a muito bonita e, intimamente, espantavam-se de não verem nella nem o menor signal de decadencia. Aquella pelle alva e macia, aquelles cabellos negros sem um fio branco, aquelles dentes perfeitos e brilhantes, sem um toque siquer de ouro que attestasse a passagem dos annos e das mãos dos dentistas, faziam-n'a parecer sempre a mesma Camilla dos tempos da Lapa, em que D. Ignacia a conhecera. Vendo-a descer tão bonita, o capitão Rino corou até á raiz dos cabellos e foi elle o ultimo que se approximou, tocando-lhe de leve nos dedos estrellados de anneis. Nina, que espreitava de cima, achou a occasião opportuna para mandar pelo criado a bandeja de prata com o vermouth. --Por que não subiram? --Estamos bem. A sua Ruth tem feito as honras da casa. E como ella está crescida; já não lhe ficam bem os vestidos curtos... --Não diga isso ao pé d'ella; apezar de que estou certa de que não toleraria as caudas; é muito creança e tem modos de rapaz. Não imagina, D. Ignacia, que phantasia a d'esta menina! Não sei como se arranja, mas a verdade é que se encarrapita nas arvores com o seu violino; e faz gosto ouvil-a tocar lá em cima. Diz que é para fazer concertos com os passarinhos. Veja se eu a posso pôr de vestidos compridos. Que horror! --Ah! mas é preciso perder este costume; ella já tem os seus treze annos... --Quatorze ... quasi quinze! mas não parece. --Isso de trepar nas arvores é para rapazes; uma menina de educação tem deveres... Ruth interrompeu o discurso da velha, trazendo-lhe uma manga-rosa muito perfumada. --Não falle mal de mim, D. Ignacia; aqui tem a senhora uma fructa colhida por mim lá nos cocurutos da arvore. Se eu não tivesse ido buscal-a, a senhora não a teria agora... --Ahi está... D. Ignacia cheirou a fructa, com força, cerrando os olhos papudos; e depois, voltando-se: --Camilla, você já comeu geleia de manga? --Não me lembra... --Pois é gostosa e facil de fazer; olhe... Emquanto a D. Ignacia desfiava a receita do doce, Camilla olhava para ella, ouvindo o murmurio de outras vozes, querendo distinguir as palavras do medico e do capitão, sorrindo imbecilmente, destacando de longe em longe uma ou outra coisa, um elogio ao _Neptuno_, da esquerda, ou um--_expreme-se_ e põe-se na peneira--da direita. Nesse dia Mario não appareceu ao jantar e Francisco Theodoro queixou-se d'elle ao Dr. Gervasio, em um vão de janella, num desabafo de sentimento. Gervasio ouvia-o calado, mordendo o charuto, dando-lhe razão, sem dizer comtudo uma unica palavra. Theodoro assegurava: --A mãe tem um coração de pomba, incapaz de fazer nem pensar no mal. A bondade excessiva leva aos desatinos ... aquelle filho é o mais velho e ella encontrou nelle toda a sua ternura ... não lhe levo a mal,--é mãe. Repare que para com as meninas ella é mais severa! O Dr. já observara isso mesmo; nessa mesma noite elle aconselhou Camilla a que fizesse a vontade ao marido, reprimindo o filho. Elle conhecia a amante de Mario: era uma franceza gananciosa, podre de rica, de cabellos pintados e carne molle. Não valia nada e arruinara muita gente boa. Camilla prometteu que faria valer a sua autoridade materna e envolveu-se na conversação geral, fugindo d'aquelle assumpto irritante. Á noite foram outras visitas, dous negociantes solteiros e duas moças da visinhança, as Bragas. Francisco Theodoro acoroçoava os jogos e as musicas, acolhendo entre os joelhos gordos, ora a filha Rachel, ora a Lia, que se atiravam para elle estonteadas, amarrotando os bordados dos seus vestidos brancos, interrompendo com as suas corridas e risadas a conversa dos grandes. E foi no meio d'aquelle barulho, que um dos negociantes, o Negreiros, da rua das Violas, se lembrou de fallar das operações commerciaes do Gama Torres, com elogio e assombro. Uma das Gomes, a Carlotinha, cantava modinhas ao piano com uma graça picante, que a mãe tolerava a custo e que fazia rir muito as outras. O capitão refugiou-se em uma janella. Ruth foi ter com elle: o moço ao principio não lhe prestou attenção; seguia, atravéz das cortinas, os olhares trocados entre Camilla e Gervasio. Seriam todos cegos, só a elle caberia descortinar aquelle amor, tão evidente? Ruth, derreando a cabeça para traz, olhava para o céo tranquillo. Houve um largo espaço de silencio entre ambos. Ruth disse por fim, sem abaixar os olhos: --Que parecerá a terra, vista de lá...? --Uma gotta de luz... --Ainda bem; alegra-me saber que vivo em uma estrella. E como ellas hoje estão bonitas! Se Deus me désse a escolher uma, eu ficaria embaraçada. Olhe, repare para aquella, como é grande e suave! --É Vesper... --Linda, linda, linda! --Levante mais os olhos, para acolá; repare para o Cruzeiro, como está limpido hoje! Maravilhosa noite! --Sim ... estou vendo ... cinco estrellas brilhantes em um lago negro. Porque é tão escuro aquelle pedaço do céo ao lado do Cruzeiro? --Porque não tem astros. --Deveria ter sido por alli que Lucifer cahiu. --Por que? --Fez um rasgão no filó doirado. Por isso Deus poz alli a cruz, para que o diabo não tornasse a passar pelo buraco. O capitão sorriu. --Se eu fosse passaro, continuou ella, gostaria de voar á noite... --Como as corujas. --Não. As corujas são feias, mettem medo, e eu só gosto do que é bonito. Quereria ser uma ave branca e com azas tão fortes que me levassem até acima das nuvens. Desde pequenina que eu gosto de olhar para o céo e que me desespero por não poder voar... Ás vezes sonho que estou voando ... e é tão bom! O capitão Rino lembrou-lhe que fosse ao Observatorio do Castello, o que lhe seria facil, visto ter lá familia na visinhança. Assim veria bem a lua e a côr das estrellas. Interessado por aquella imaginação ardente, o capitão Rino explicava á menina os nomes das estrellas, sentindo roçar-lhe pelo hombro o cabello d'ella, vendo-lhe na transparencia luminosa do olhar a chamma de uma curiosidade insatisfeita. Elle tinha uma linguagem clara, mas interrompia as phrases de vez em quando, com sobresalto, voltando-se para a sala attrahido pela voz de Camilla. Ruth nem percebia a causa nem reparava mesmo naquelles movimentos e continuava a interrogal-o, com o olhar acceso para o grande céo illuminado. Rebentaram palmas, lá dentro. Carlotinha acabara uma modinha requebrada, e andava muito faceira pela sala, desafiando as Bragas para uma valsa. --Quem toca? Judith foi para o piano, que atacou com força e pedal. Apezar do barulho, Francisco Theodoro discutia com o Negreiros o arrojo do Gama Torres, attribuindo ao acaso o exito da famosa empreza, o que o amigo negava, affirmando o tino especial do outro. Estava calor, os leques de papel adejavam como borboletas nas mãos das moças. Carlotinha não logrando dançar com o Rino nem com o Negreiros, atirou-se aos braços da Therezinha, a mais moça das Bragas. E as duas rodopiaram pela sala. Duas horas depois o negociante acompanhava as visitas até ao portão. D. Ignacia ia desde a porta de braço com o marido, o Gomes, um velhote gordo, de grandes lunetas de tartaruga. As Bragas, muito falladoras, prometteram á Carlotinha e á Judith moldes de casaquinhas modernas, como as que traziam vestidas. Camilla acompanhava-as tambem, retardando o passo, entre o Dr. Gervasio e o capitão Rino, que não dizia nada, recebendo em cheio o effluvio d'aquella noite sem par! Um bond passou e as Gomes partiram. Nina ficara em cima, accommodando a casa, vendo fechar as janellas da sala. O medico chegou-se então para Francisco Theodoro, perto do gradil, á espera de outro bond para o Jardim. Camilla sentou-se em baixo da mangueira e o capitão imitou-a, olhando-lhe para o perfil doce, ensaiando uma confissão que não lhe sahia nunca dos labios tremulos. Camilla abandonava-se, parecia provocar essa grande palavra, como se não bastassem á sua vaidade de mulher os amores do amante e do marido. Assim imaginou o capitão Rino, todo penetrado do aroma e do encanto d'ella. A mão de Camilla pousara no banco, e elle então, com o mesmo gesto esquivo e assustado, apertou-a de leve; ella levantou-se, com modo brusco, sacudida por um arrependimento, culpando-se da sua leviandade, e partiu logo para a luz clara do luar, deixando o capitão na sombra da arvore. O olhar do Gervasio indagou logo de tudo, emquanto o marido fallava em coisas indifferentes. Foi nesse instante que lá em cima, no terraço, toda voltada para a lua branca, Ruth tocou no seu violino uma sonata harmoniosa e larga. Em baixo fizeram pausa na conversa, com as almas suspensas naquella musica e naquella noite. Sentado no mesmo banco, o capitão Rino olhava com desespero para o vulto claro de Camilla, que lhe fugia e se chegava para o seu amor feliz, toda embebida na poesia d'aquelles sons. Fechou os olhos para não ver... A doçura da musica enchia tudo de um sentimento ignoto, prolongado... Uma estrella cadente riscou o espaço com um fugitivo fio luminoso. Camilla apontou-a com o dedo. A sonata abria-se numa harmonia ampla e intensa, quando de repente Theodoro gritou para cima: --Não são horas de musica. Para a cama! Depois, em um murmurio satisfeito: --O diabo da pequena tem sentimento, hein? --Tem mais do que isso, affirmou Gervasio: tem talento, tem inspiração! --Tanto esta é applicada, quanto o irmão... Bem! lá vem o seu bond doutor! O medico, despediu-se á pressa e correu; o capitão Rino vencia a custo a sua commoção e sahiu tambem, descendo a pé pela rua a baixo, apezar dos pedidos de Theodoro, que esperasse alli mesmo outro bond para a cidade. Camilla entrou em casa antes do marido e procurou immediatamente a Noca, que vigiava o somno de Rachel e de Lia. --Mario já entrou, Noca? --Não senhora. Dionysio já veio ha que tempos e disse que seu Mario ficava lá... --Lá?... Em casa da tal Luiza?! --É... --Se meu marido sabe! Olhe ... se elle perguntar, você responda que Mario entrou com enxaqueca, e que por isso não foi á sala. Ouviu? Diga que elle está dormindo. --E se elle amanhã perguntar a Dionysio? --Você previna primeiro o rapaz. --Tambem não sei p'ra que _seu_ Mario faz assim; só p'ra metter a gente em embrulhos... --Tem paciencia, Noca ... elle é creança... Amanhã eu lhe darei conselhos... --Hum... Lia entornou o oleo da lamparina no chão, e eu já fico esperando aborrecimentos. É sabido: azeite entornado, desgosto em casa! --Cala a bocca; lá vem seu Theodoro. Boa noite, Noca! Francisco Theodoro gyrou pela casa, verificou se estava tudo bem fechado e fez á mulata as perguntas previstas pela mulher. Depois, já a caminho do dormitorio, voltou-se e foi dizer-lhe: --Olhe, Noca, se a enxaqueca do Mario augmentar, sempre será bom dar-lhe uma pastilha de antipyrina... --Sim, senhor, eu vou vêr... Francisco Theodoro sahiu, e a criada suspirou, vexada, abaixando a cabeça. IV Era meio-dia, quando o Dr. Gervasio saltou do bond e encaminhou os seus pés bem calçados para a rua dos Benedictinos. Já o trabalho descia torrencialmente por toda a larga rua. Carroções fragorosos abalavam os parallelipipedos, ameaçando esmagar tudo que topassem adeante, numa chocalhada, aos arrancos dos burros alanhados pelas correias dos chicotes. Carroceiros vermelhos, de grenha suja e pés gretados, esbofavam-se, agarrados aos grilhões dos varaes, saltando deante das rodas, na bruteza selvagem da sua lida. Ao alarido das vozes confundidas, misturavam-se o cheiro do café crú e a morrinha do suor de tantos corpos em movimento, como que enchendo a atmosphera de uma substancia gordurosa e fétida, sensivel á pelle pouco afeita a penetrar naquelle ambiente. Atravéz dos crystaes da sua luneta de myope, o Dr. Gervasio olhava para tudo com o seu ar curioso, de cabeça erguida e narinas dilatadas, como se o olfacto o ajudasse tambem um pouco a conhecer o porque e o destino de todas aquellas coisas. Com a bengala suspensa, os dedos das luvas irrompendo-lhe do bolsinho do _veston_, a cartola luzidia, a gravata clara, picada pelo brilho faúlante de um rubim, elle atravessava como um extrangeiro aquellas ruas, só habituadas aos chapéos de côco, ás roupas do trabalho diario, alpacas e brins burguezes, ou aos trapos immundos dos carregadores boçaes. Como tivesse perdido o endereço do velho Motta, teve o Dr. Gervasio de subir ao escriptorio de Francisco Theodoro. No armazem, em baixo, a grita do negocio tocava á loucura: pareciam todos impellidos por molas flexiveis, de movimentos rapidos; eram machinas, não eram homens, aquellas creaturas nunca dobradas ao peso do cançaço... O Dr. Gervasio, presumindo-se de forte pela sua ducha fria e a sua gymnastica de quarto, espantava-se da maneira lépida por que aquelles homens tiravam as saccas do alto das pilhas e as punham aos hombros. O seu braço fino, mas valente, sentia-se humilhado deante d'aquelles biceps de athletas. Francisco Theodoro sorria-se do seu espanto, e para que elle não perdesse de novo o endereço, chamou um rapaz do armazem, o Ribas, e mandou-o acompanhar o medico até á casa do enfermo. --Será melhor assim; disse elle, não haverá perigo de errar o caminho, porque, comquanto você seja carioca, nesta parte da cidade, olhe que é mais extrangeiro do que eu! O Ribas sacudiu a poeira do chapéo, enterrou-o até as orelhas enormes, e, balançando os longos braços sem punhos, dentro d'um casaco enfiado á pressa, caminhou adeante, todo vergado, como um velho. E por toda a rua de S. Bento, elle guardou aquella compostura, sem relentar os passos nem voltar a cabeça. Entrado na da Prainha, modificou a atttitude de caixeiro em serviço, foi-se deixando ficar atráz, até marchar ao lado do medico, morto por lhe pedir um cigarrinho. O Dr. Gervasio percebeu-lhe a vontade. Deu-lhe cigarros. Atravessavam o largo da Prainha; que o sol alcatifava de ouro. Fazia calor. Ribas lembrou: --Se o senhor quizer tomar alguma coisa, aquelle botequim é muito bom. --Não tenho sêde. --É que lá para deante não ha nenhum que preste... «O rapaz quer cerveja, pensou comsigo o medico; pois façamos a vontade ao rapaz.» Entraram no botequim. Em uma salinha estreita, com chromos nas paredes e papeis de cor no lampeão de gaz, havia tres mesinhas vazias e uma occupada por dois ciganos angulosos, que gesticulavam largamente, sacudindo-se nas suas longas sobrecasacas encebadas. Tudo ás moscas. O dono da casa veio, com ar somnolento, pedir as ordens; o Dr. Gervasio deu-lh'as, olhando para um violão pousado no balcão, e de que se dependurava uma larga alça de cadarço vermelho. Aquelle instrumento abandonado suggeriu-lhe a idéa das noitadas de modinhas amorosas pelas estreitas ruas do bairro. Ou na treva, ou á claridade baça do luar, aquelles predios teriam ouvidos com que escutassem musicas vagabundas? Afigurava-se-lhe que não. A fadiga dos seus dias rudes tornaria de chumbo o seu somno, impassivel a sua alma cançada. Por mais que o trovador berrasse, a sua voz chegaria lá dentro como um leve zumbir de abelhas... O dono do botequim julgou vêr no olhar do medico um reparo ao desleixo da sala e arrebatou a viola para dentro. «Foi-se a unica nota pittoresca», pensou Gervasio, atirando os nickeis para a mesa. Continuaram calados o seu caminho. E era um caminho todo novo para o medico, que o achava interessante na sua fealdade, extravagante no seu conjuncto de velharias e sobejidões. A novidade do meio dava-lhe um prazer de viagem: beccos sordidos, marinhando pelo morro; casas acavalladas, de paredes sujas; janellas onde não acenava a graça de uma cortina nem apparecia um busto de mulher; caras preoccupadas, grossos troncos arfantes de homens de grande musculatura, e ruido brutal de vehiculos pesadões, faziam d'aquelle canto da sua cidade, uma cidade alheia, infernal, preoccupada bestialmente pelo pão. Subiam a rua da Saude. Chegando á esquina do becco do Cleto, Dr. Gervasio olhou: ao fundo, no mar muito azul, barrava o horizonte um vapor do Lloyd. Pontas finas de mastros riscavam de escuro o espaço limpido. Em terra vinham marinheiros aos grupos, baloiçando-se nos rins. Portuguezes levavam cargas, em carrinhos de mão, para um trapiche. Foi logo adeante que um grupo de moleques irrompeu furioso, cercando o Ribas, exigindo-lhe os dez tostões do jogo da vespera. Eram quatro: um caboclinho de olhos negros e vivos, um negrinho retinto, um menino loiro, que os outros denominavam o _Bota_--por trazer uma bota velha suspensa de um barbante a tiracollo--, e um italianinho sardento, sem pestanas. --Venham os dez tostões! venham os dez tostões que você ficou devendo hontem no jogo ... reclamavam. E o Ribas defendia-se, hypocritamente: --Que jogo? Eu?! --Sim, senhor, não se faça de engraçado! O menino loiro exigiu a entrada do dinheiro para a bota: elle era o caixa; os companheiros romperam em assobios e chufas. Dr. Gervasio apressou o passo, deixando o Ribas numa roda-viva de provocações. Que se arranjasse. A curiosidade instigava-o a andar para deante; por bom humor talvez, sabia-lhe bem aquella caminhada. Tinha um olhar curioso para cada fachada arruinada, e parou com um sorriso, vendo em uma janella de vidros quebrados um vaso de cravos brancos. As flores trouxeram-lhe á idéa as mulheres. Reparou então que só topava com homens, caixeiros apressados ou embarcadiços de pelle queimada, ou mulatos chinellando nas calçadas, mostrando os calcanhares sem meias, num bate-pés barulhento. Já agora não sentia só o cheiro do café, como em S. Bento, sentia tambem o do assucar ensaccado, o das mantas nauseabundas da carne-secca, o dos jacás de toucinho nos trapiches e nos grandes armazens, e o de sabão das fabricas, numa mistura enjoativa e asphyxiante. Veiu-lhe a impressão de atravessar o ventre repleto da cidade, abarrotado de alimentos brutos, ingeridos com a avidez porca da doidice--e olhou para si, receioso de encontrar nodoas e immundicie por toda a sua pessoa. E assim foi andando até as Docas, já esquecido do Ribas e já esquecido do velho Motta. Ao pé das Docas parou. No chão, perto da porta, saccas de milho sobrepostas exhalavam cheiro de fermento; o caruncho, passando por entre os fios do canhamo, passeava ao sol. Num banquinho de pau, e toda derreada sobre os joelhos, uma bahiana de hombros roliços e dentes sãos, vendia gergelim, mendobi, batata doce e tangerinas aos marinheiros chegados essa manhã do Norte. Pelo grande portão em arco, viam-se lá dentro das docas os caminhões seguirem pelos trilhos para o caes, e as galerias em cima, por cujas rampas as saccas, apenas impellidas, desciam vertiginosamente. Dr. Gervasio olhava interessado para dentro, quando sentiu uns passos arrastados; voltou-se: o Ribas estava a seu lado, tranquillo mas amarfanhado, atando com mãos ligeiramente tremulas a gravata suja. --O senhor já passou a rua Funda! --Nesse caso voltaremos. E voltaram, sem que o medico diminuisse de attenção, achando curioso um ou outro telhado colonial, de beiral estendido, uma ou outra sacada de rotulas, com janellas baixas, de caixilhos meúdos, muito velhinhas, suggerindo lembranças, provocando divagações... Então elle parava, erguendo o queixo bem barbeado, a olhar para aquillo. O Ribas não comprehendia, e ficava á espera, com ar estupido e os braços pendurados. Passavam por um armarinho, quando o Ribas, não se contendo, disse com orgulho: --Esta loja é de minha irmã ... ella está alli ... o senhor dá licença?... --Pode ir. Dr. Gervasio olhou. Em um balcão tôsco e estreito almoçavam um homem macilento e uma mulher moça, gravida, vestida de chita preta, sentada em um banco, com creanças núas agarradas á saia. O almoço parecia parco,--não havia toalha nem vinho; o medico surprehendeu de relance dous copos d'agua e qualquer coisa pallida dentro de um prato. Para não errar o caminho resolveu-se a esperar o guia, olhando entretanto para a meia duzia de objectos expostos, na vidraça modestissima da porta: linhas de rede de _crochet_ e de costura, anzóes e agulhas, cigarros, objectas de pescaria e cartas de A B C. O Ribas não se fez esperar; pareceu ao medico que o não tinham recebido bem... Seguiram d'alli por deante silenciosos, até que o Ribas avisou: --Ahi está a rua Funda. Dr. Gervasio olhou e sorriu a uma observação que as reminiscencias de um quadro lhe suggeriam. Aquella rua Funda, subindo estreita pela encosta do morro da Conceição, ladeada de casas de altura desegual, de onde em varaes espetados pendiam roupas brancas recentemente lavadas, desenhando-se negra no fundo muito azul do céu, lembrava-lhe uma viella de Napoles velha, onde o pittoresco não é por certo maior, e de que elle tinha uma aquarella em casa. --É interessante, murmurou baixo, emquanto o Ribas, na frente, ia galgando a rua e batia á porta do Sr. Motta, um sobradinho amarello, de janellas de guilhotina e flores no peitoril, em latinhas de banha. O velho Motta dormitava no canapé da salinha de visitas, com a perna extendida sob uma colcha de retalhos de chita. Ás palmas do medico a filha acudiu pressurosa, cuidando ter de receber a Deolinda do armarinho, que ficara de ir acompanhar o velho um bocado do dia; vendo o Dr. Gervasio, ella estacou interdicta, com os olhos arregalados e aconchegando com as mãos tontas a golla do paletot de chita. --Quem procura? Dr. Gervasio explicou-se. --Faça o favor de entrar... A filha do Motta caminhou na frente, com ar envergonhado, colhendo as mostras de desmazello da casa: aqui um pé de meia cahido da cesta de costura, acolá um panno de crivo roto, pendurado de um braço de cadeira. O velho, despertado com sobresalto, mal atinava com o que dizer. Sim, elle conhecia o medico, e agradecia o cuidado do patrão. A filha fez sentar a visita e correu a fechar a porta de uma alcova em desordem. Era trintona, picada de bexigas, com as mãos desenvolvidas pelo uso da vassoura e da cozinha. O medico acompanhou-a com a vista, depois apressou-se em examinar o apparelho do doente, achando tudo em ordem, bem prevenido. Ainda bem; elle desacostumara-se dos seus trabalhos profissionaes. A clinica irritava-o, como se tivesse pelos homens um interesse mediocre. Sentindo os dedos do medico percorrerem-lhe a perna, seu Motta descrevia, numa lenga-lenga, a sua queda e a sua falta de recursos. Suppunha fazer falta, cahira exactamente em uma occasião de grande movimento no armazem... A filha trouxe café em chicaras de pó de pedra; Dr. Gervasio bebeu uns goles por gentileza e o velho sorriu, approvando-lhe a amabilidade. O Motta pedia desculpas da casa ... não morava alli por gosto. Oh, se o Dr. Gervasio o tivesse conhecido em Pernambuco, quando a sua velha vivia! Com a morte d'ella tudo desandara... O medico abreviou as lamurias, prognosticando cura rapida, e despediu-se, sem notar que a moça reapparecera na salinha, com outro casaco enfeitado a _crochet_. Embaixo respirou de allivio e começou a descer a rua, por entre o palavreado guttural de papagaios suspensos ás janellas. Sempre as mesmas cantigas, sempre as mesmas cantigas! Era preciso fugir d'aquelles abominaveis bichos; e elle apressou-se; mas logo na esquina pensou em andar por alli e fixar o bairro. Entretanto, desandava pelo mesmo caminho por que viera, quando viu uma rua cortada a pique na rocha e desejou saber que mundo haveria lá era cima. Subiu. Creanças nuas, ainda mal firmes nas perninhas arqueadas, desciam sosinhas, ladeando precipicios. No alto o Dr. Gervasio passou a outra rua, de grandes pedras engorduradas e denegridas, onde mulheres despenteadas fallavam alto e gatos magros se esgueiravam rente ás paredes. Pareceu ao medico que a atmosphera alli era mais fria, de uma humidade penetrante, cheirando a velhice e a hortaliças esmagadas. Mal concebia que se pudesse dormir e amar naquelle canto sinistro da cidade, mais propicio ás minhocas do que á natureza humana, quando reparou para uma mulher moça, que, com uma lata de kerosene, aparava agua em uma bica. Era pallida e linda. Tambem ella olhava para elle com um olhar de velludo, sombrio e fixo, varado de tristeza. Esses encontros fortuitos traziam ás vezes ao medico comparações singulares. Aquella mulher era uma invocação; o seu olhar revelava uma consciencia forte, a sua pelle, cor de luar, uma saudade infinita. Era a Agar da Biblia; uma açucena num canteiro de lodo... Continuando o caminho, via de um lado e de outro casas desconfiadas, corredores soturnos, escadas escorregadias, que faziam lembrar o mysterio e o crime. Assaltou-o a idéa de andar por alli á noite, disfarçado de qualquer maneira. É quando o sol se esconde que o homem se mostra bem. Elle beberia com os marinheiros nas bodegas do bairro e penetraria em um d'aquelles albergues. Aos seus instinctos repugnou logo esse mergulho na lama e rejeitou a lembrança, observando se a rosa da sua lapella ainda estaria fresca. Nem por isso... Foi então obrigado a recuar de um salto; de uma alta trapeira atiravam agua de barrella á rua. A agua corria espumosa, em fios grossos, por entre os pedregulhos deseguaes. --Bonito! D'ahi em deante apressou o passo, sentindo que de todos os lados olhos se fixavam com estupefacção no seu chapéu alto. Tinha a impressão de atravessar por meio de ruinas; parecia-lhe que em toda aquella rua não haveria um unico caixilho com vidros, uma unica chave sem ferrugem, uma unica dobradiça perfeita. Era o resto de uma cidade, tomada de assalto por gente expatriada, resignada a tudo: ao pão duro e á sombra de qualquer telha barata. Uma pobreza avarenta aquella, que formigava por toda a encosta de lagedos brutos, entre ratazanas e aguas servidas. O Dr. Gervasio interrompeu o curso das suas idéas, ao vêr, attonito, D. Joanna sahir de uma casa. Ella vinha cançada, com o largo rosto muito afogueado. Trazia nas mãos curtas uma salva de prata, cheia de esmolas em cobre e em nickeis. Ella não se mostrou menos espantada de o encontrar naquelles sitios e foram andando juntos até ao cimo do morro da Conceição, onde o ar livre varria toda a esplanada em frente ao palacio episcopal, e a luz de um céu muito anillado e puro cahia com todo o brilho. Respondendo a uma pergunta do medico, que aspirava com força o ar do mar, como se quizesse lavar os pulmões do ambiente infecto por que passara, D. Joanna explicou que andava a pedir para a missa cantada. Palmilhava todo o Rio de Janeiro (parecia incrivel!) era sempre nessas ruas de gente meúda, miseravel mesmo, que ella colhia maior numero de esmolas. «A pobreza está mais perto de Deus», dizia ella no seu doce tom de devoção. Depois, alli mesmo ao sol, sem resguardo, queixou-se da sobrinha. Camilla fora sempre uma desviada, nunca tivera propensão para a egreja. Um cego via melhor as coisas da terra do que os olhos d'aquella alma as coisas do céu! Que reparasse para os nomes judaicos que ella puzera nas filhas; Ruth, Lia, Rachel, quando havia tantos nomes de santas no kalendario! As creanças haviam de seguir no mesmo caminho perigoso; e era isso o que a maguava. Precisava salvar as creanças. Francisco Theodoro, sim, esse era bom catholico; gostava de o ver na Candelaria, com a sua opa de irmão. Um santo homem! --Mas D. Milla vae á missa todos os domingos... --Ora, a missa hoje em dia é mais um dever de sociedade que um preceito de religião. Camilla só vae á egreja para se mostrar. Basta ver como ella se enfeita. Eu queria-a mais simples... A Ruth esteve algum tempo no collegio das Irmãs: pois mal sabe o catechismo e ainda não cuidou da primeira communhão! Eu peço a Deus por elles, mas... --Faz bem. --O senhor é dos taes, que não querem crer. --Isso não me impede de lhe dar uma esmola para a sua missa. --Acceito; rezarei nella pela sua conversão. Olhe que bem precisa: o senhor está empurrando Camilla para o inferno... --Eu?! --Quem mais! --Oh, minha senhora, que injustiça... bem pelo contrario... --Sim, vá fallando e não me olhe com esses olhos de motejo. Pensa que eu não sei de tudo? O unico cego alli é o pobre do marido, que não merecia que lhe fizessem isso. Eu estou cá no meu canto, mas sei do que se passa, e toda a gente sabe, infelizmente... Não é por falta de eu pedir a Nossa Senhora do Rosario, minha madrinha ... mas os peccados vêem-se, saltam aos olhos até. Já me aconselhei com o padre Mendes, sem dizer de quem se tratava, está claro, e pedi-lhe que rezasse para que isso acabasse em bem... Elle é um sacerdote, deve ser attendido ... emquanto que eu, pobre peccadora... --Mas a senhora está louca, D. Joanna? balbuciou o medico, mal disfarçando a sua ira; não a entendo! Com medo de uma descarga de censuras, D. Joanna despediu-se. Ia ainda dar uma volta pela Pedra do Sal. O Dr. Gervasio mal a cumprimentou; sentia-se collado de espanto áquelle chão poeirento. Os seus amores, que elle julgava bem occultos, tinham varado as sacristias e ido do Botafogo elegante até aos casebres do Castello e da Conceição! Quiz desmentir a velha; mas os seus olhos claros, de um castanho louro, não o deixaram fallar, cortando-lhe pela raiz qualquer protesto. Ella não fallara só pela bocca, que a tinha sincera; mas tambem pelos olhos, em cuja limpidez apparecera toda a verdade. O medico viu-a, com odio, ir arrastando, na sua peregrinação de fé, as pernas inchadas, rebolando os quadris largos, bem fornidos e que ainda os franzidos da saia exaggeravam. Apressou-se em voltar-lhe as costas, com medo que ella tornasse, para lhe dizer ainda alguma coisa do peccado. O que lhe repugnava, sobretudo, era a solicitada intervenção do padre. Desde então deixou de reparar nas coisas, para pensar em si. E os seus sentimentos eram de especie confusa e tristonha. Em outros tempos, de mais verdes annos, a divulgação de taes amores não o desgostaria, talvez... Ser amante de uma mulher bonita e cobiçada não é coisa que fique mal a um homem... Por ella, sim, devia ter cuidados e mysterio; mas esse mesmo dever de discreção absoluta não seria abafado pela voz do egoismo, sempre a mais imperiosa nos homens, e pela da vaidade, se outras circumstancias não lhe exigissem segredo? As almas fortes dos homens têm d'essas pequenices, e a d'elle, sabia-o bem, era como as dos outros, amigas, sem proposito, de causar inveja aos menos afortunados... Cançado, nervoso, picado pelo sol, o Dr. Gervasio seguiu atôa, desceu o morro, andou pelas ruas, mal respondendo aos comprimentos dos conhecidos, que ia encontrando á proporção que se approximava do seu centro habitual. Já nada do que vira e o impressionara naquelle gyro, se lhe esboçava na lembrança. Aquellas riquezas, aquelle movimento, aquellas casas, aquelle rumor de população atarefada, baixa e mesclada, aquellas altas ruas despenhadas em escadarias immundas e barrancos, tudo se dissipava e se fundia numa impressão de mar e de lixo, de onde surgia a voz melada, unctuosa da tia Joanna, offerecendo promessas, confidenciando com extranhos sobre os seus amores e os seus adorados segredos. Uma raiva surda roncava-lhe no peito, quando chegou á rua do Ouvidor. Veio-lhe então em cheio o aroma das flores frescas, á venda na esquina; e a graça de uma mulher que passava com um chapéu atrevido e um vestido bem feito, distrahiram-n'o um pouco... V Noca foi ao quarto de Mario, avisal-o de que a mãe lhe queria fallar. --Você sabe pr'a que é? perguntou-lhe o moço. --Desconfio: ha de ser por causa da tal franceza... Parece que ainda foi outro dia que você nasceu, e já anda por ahi na extravagancia! --Vae pregar a outra freguezia. --Verdade, verdade, seu pae tem razão... --Eu logo vi que o sermão havia de vir empurrado por papae; disse Mario com ironia, dando o ultimo retoque á _toilette_. Nisso abriram a porta, elle voltou-se; era a mãe. Noca deu uma volta pelo quarto, puxou as cobertas da cama até os travesseiros, sacudiu com a toalha o estofo da poltrona, escancarou a janella e sahiu, deixando uma ponta de ordem no desalinho do quarto. --Eu ia subir; Noca veio chamar-me agora mesmo. --Achei melhor fallarmos aqui. Não seremos interrompidos. --Como quizer. Sente-se, mamãe. Camilla sentou-se e fixou no filho um olhar magoado. Elle, pegando-lhe nas mãos, perguntou-lhe com um sorriso contrafeito: --Então? --Estás nos dando serios desgostos, Mario. --Eu? --Sim; bem sabes de que se trata. --Calculo; mas, francamente, não vejo razão para tamanho alvoroço... --As tuas faltas são muito repetidas. Não te emendas! --As minhas faltas são tributos da mocidade, faceis de perdoar. --Enganas-te. Mario largou as mãos da mãe e tornou-se muito serio. --Então não comprehendo. --Comprehendes. Fallo ... fallo d'essa mulher com quem andas agora ... dizem todos que ella arruinará a tua saúde e a nossa fortuna... --Oh! mamãe... --Não é creatura por quem um rapaz da tua edade se apaixone. Eu quando a encontro na rua nem sei onde ponho os pés. Mario corou, e murmurou qualquer coisa que a mãe não ouviu. --Receio sempre vêr-te apparecer a seu lado; porque eu sei que tens tido a coragem de te apresentar em publico com ella. Vê a que horror expões tua familia, já não digo teu pae, que é um santo, mas que emfim, é homem; mas a tua irmã e a mim. É feio da tua parte sujeitar-nos a uma decepção d'essa ordem... Mario mordia os beiços, brancos de raiva. --Mamãe... --Não me interrompas; já agora direi tudo. É preciso acabar com a exploração d'aquella mulher. Deixa-a quanto antes, hoje mesmo, ouviste? Teu pae exige isso de ti, elle sabe que por causa d'ella tens commettido já indignidades. É uma vergonha, todos os dias são dividas e mais dividas! Mario continha a custo a sua colera, apertando com as mãos, nervosamente, as costas de uma cadeira. --Põe os olhos em teu pae. Segue-lhe o exemplo. Mario sorriu com desdem. --Meu pae está velho; já não se lembra do que fez na mocidade. --Bem sabes que elle nunca teve mocidade; trabalhou sempre como um animal. --Os portuguezes nasceram só para isso; eu tenho outros gostos e outras aspirações. Meu pae não me comprehende. --Mas o dinheiro que esbanjas de quem é?! --Ah, o dinheiro! Logo vi que havia de ser por causa do dinheiro! disse elle com redobrado escarneo. --Por isso e por outras coisas; exclamou Camilla, espicaçada pela ironia do filho. --Mas que outras coisas, mamãe!? retrucou elle, plantando-se deante d'ella, com raiva. --Já te disse, já te disse! não te finjas de surdo! Por causa da tua saude, que é fraca, e da tua reputação. --Reputação! ora, mamãe, e é a senhora quem me falla nisso! Camilla estacou, sem atinar com uma resposta, comprehendendo o alcance das palavras do filho. A surpreza paralysou-lhe a lingua; o sangue arrefeceu-se-lhe nas veias; mas, de repente, a reacção sacudiu-a e então, num desatino, ferida no coração, ella achou para o Mario admoestações mais asperas. Percebia que a lingua dizia mais que a sua vontade; mas não podia contel-a. A dôr atirava-a para deante, contra aquelle filho, até então poupado. Recebendo em cheio a colera materna, Mario julgou perceber nella insinuações de outrem. Havia de andar por alli a intervenção damnada do Dr. Gervasio. Quando Camilla acabou de fallar, elle começou, destacando as palavras, que sahiam pesadas: --A senhora pode censurar-me em nome de meu pae, visto que elle não teve coragem para tanto; mas em seu nome, não! --Mario! --Em seu nome, não! Quem me lançou neste caminho e me fez ter os gostos que eu tenho? --O excesso do meu amor por ti está bem castigado!... Mas não é isso agora que desespera teu pae... --Meu pae é cego para as culpas dos outros; por que não será tambem cego para as do filho? A pessoa que tanto o indigna é menos nociva á familia que... --Basta! --Não basta; a senhora assim o quiz; conhece o meu genio, podia ter evitado esta explicação. Talvez seja melhor assim: afinal eu precisava dizer-lhe alguma coisa, eu tambem. É isto:--odeio o Dr. Gervasio, e dou-lhe a escolher entre mim e elle. Camilla fixou no filho olhos de espanto. Houve um largo silencio. Depois elle repetiu, martellando as palavras: --Ou elle ou eu. A mãe, com uma lividez de morta, não voltava da sua estupefacção. Todo o corpo lhe tremia, e lagrimas vieram pouco a pouco borbulhando, grossas e pesadas, nos seus olhos extaticos. Tentou defender-se, chamar de calumnia áquella idéa; mas as palavras morreram-lhe na garganta, e ella encolheu-se na poltrona, cingindo os braços ao busto, como se tentasse esmagar o coração offendido. Mario caminhou nervosamente pelo quarto; depois, voltando-se para a mãe, ia fallar ainda, mas viu-a de aspecto tão miseravel, que uma subita misericordia se apoderou d'elle. Ella chorava, muito encolhida, fazendo-se pequenina, no desejo de desapparecer. --Perdôe-me, mamãe; mas que queria que eu dissesse?! Camilla levantou para o filho os olhos humilhados, e murmurou quasi imperceptivelmente: --Nada... Mario recomeçou a passear, com as mãos nos bolsos, a cabeça baixa. Camilla, ainda na poltrona, com as costas para a janella, os cotovellos fincados nos joelhos e o queixo nas mãos, procurava uma palavra com que pudesse convencer o filho da sua innocencia. Tudo lhe parecia preferivel áquella humilhação. Daria a luz dos seus olhos,--ah, antes ella fosse cega! para que Mario a julgasse pura, muito digna de todo o respeito das filhas, muito honesta, toda de seu marido e das suas creanças... Comprehendia bem que o sentimento e a imaginação nas mulheres só servem para a dôr. Colhem rosas as insensiveis, que vivem eternamente na doce paz; para as outras ha pedras, duras como aquellas palavras do seu filho adorado. Antes ella fora surda: não as teria ouvido! Quantas vezes o marido teria beijado outras mulheres, amado outros corpos ... e ahi estava como d'elle só se dizia bem! Elle amara outras pela volupia, pelo peccado, pelo crime; ella só se desviara para um homem, depois de luctas redemptoras; e porque fôra arrastada nessa fascinação, e porque não sabia esconder a sua ventura, ahi estava a bocca do filho a dizer-lhe amarguras... Lia e Rachel corriam no jardim, batendo por vezes na venezianna do quarto. Mario aconselhou: --Será bom apparecer; as meninas estão notando a sua ausencia... --Antes eu tivesse morrido no dia em que nasci! pensou Camilla levantando-se. Empurraram a porta. Era o Dionysio que vinha saber se o patrão precisaria do carro. Ouvira fallar na vespera em um almoço na Gavea. Mario respondeu com impaciencia e sem abrir: --Não preciso de nada! Depois voltou-se e foi direito á mãe; puxou-a para si, beijou-a na testa e, com carinho: --Diga a meu pae que hoje mesmo me despedirei d'ella... Quando Camilla sahiu do quarto, sentiu-se agarrada pelas filhas gemeas, que a puxavam para o jardim, gritando com enthusiasmo: --Venha ver, mamãe! --Que coisa linda, mamãe! --O homem disse que foi papae que mandou! --Adivinhe o que é! --Diga; sabe o que é, mamãe? A mãe não respondia; deixava-se levar sem curiosidade, toda tremula ainda, revendo no fundo da sua alma o rosto do filho ao dizer-lhe aquellas palavras terriveis. As creanças riam, e aquellas risadas eram como um clangor de sinos reboando em torno d'ella. Os sons avolumavam-se, repercutiam no seu cerebro dolorido. Elle sabia! Mario sabia! Quem lhe teria dito? que bocca immunda profanara aquelle segredo, em que ha tantos annos se encerrava? Seria a da Noca? E os outros da casa saberiam tambem? --Veja, mamãe, que lindeza! gritou Lia apontando para um grande relvado do jardim onde tinham posto um grupo de bonecos pintados a côres, um menino e uma menina resguardados pelo mesmo chapéo de sol azul. Rachel bateu palmas e deliberou que o menino se chamaria Joãosinho e a menina Maria. --Maria, não! ha de se chamar Cecilia; protestou Lia. --Ha de ser Maria, ha de ser Maria e ha de ser Maria! --É verdade, mamãe, que a menina se ha de chamar Maria? Camilla não respondeu; sentou-se em um banco, e, em vez de olhar para os bonecos, poz-se a olhar para as filhas, muito lindas, com os seus bibes brancos, e os cabellos soltos. --Vocês gostam muito de mim? perguntou-lhes ella de repente, puxando-as para si. --Eu gosto muito! --Eu gosto mais! --Mentira! quem gosta mais sou eu! --Eu acho mamãe muito bonita! --Eu tambem acho. --E se eu fosse feia ... bem feia ... se ... por exemplo, eu tivesse bexigas e ficasse marcada, sem olhos, com a pelle repuxada ... ainda assim vocês gostariam de mim? --Muito, muito! --Se Deus me désse uma doença repugnante ... como aquella doença do Raymundo, sabem? a morphéa, e que todos fugissem de mim com nojo e com medo ... que fariam vocês? --Eu havia de estar sempre ao pé de mamãe! Havia de lhe metter a comida na bocca; mudar-lhe roupa e contar-lhe historias... --E eu havia de dormir na mesma cama que mamãe... --Por que é que a senhora diz isso?! Não chore, mamãe! Camilla beijou as filhas com transporte, e uma grande serenidade cahiu sobre o seu rosto pallido. Poderia contar com alguma coisa, as filhas defendel-a-iam dos maus tratos do mundo. A campainha do almoço repicava no primeiro toque; Ruth fechava o seu violino e Nina descia ao jardim com a Noca, para admirarem tambem o grupo do lago, mandado da cidade por Francisco Theodoro. Nina vinha na frente, com o seu modo tranquillo de _ménagère_, bem penteada, com um vestido escuro, alegrado pela nota branca de um aventalzinho circumdado de rendas. Atraz d'ella, Noca bamboleava o seu corpo cheio, sem collete, vestida de chita clara, rindo alto de uma anecdota do copeiro. Camilla teve um sobresalto. Tambem aquella, a Nina, saberia tudo? Teve impetos de lhe ir ao encontro e perguntar-lho; mas abaixou os olhos para os cabellos negros da Rachel e da Lia, que se cosiam ás suas saias, e passou-lhes as mãos na cabeça, de vagar, numa caricia muda, grata ao seu amor e á sua innocencia. --Que engraçadinho! não acha, tia Milla, que ha de fazer bonita vista depois de collocado no meio do lago? --Acho... --É de muito gosto! Noca tinha pena. Coitadinhas das creanças! haviam de ir assim tão núas para o sereno das noites? Muito _chic_! Uns admiravam a belleza da menina, outros a do menino, e afinal concordavam que o conjuncto é que valia tudo. Ruth veio por ultimo; queixava-se de fome. A campainha vibrava pela segunda vez. Pediram, a opinião d'ella; não era tão bonito, aquillo? --Nunca apreciei bonecos; vocês bem sabem... --Isto é o mesmo que ver gente! exclamou Noca, indignada, isto não é boneco! Você é enjoada! É verdade! Mario ainda não viu... Oh! Dionysio! chama ahi _seu_ Mario! Nina voltou-se, vermelha, para a janella do primo; elle não appareceu, e Ruth, instando pelo almoço: --Que milagre! Dr. Gervasio hoje não appareceu! exclamou sem intenção, colhendo uma _Marechal Neel_ para o peito. Camilla estremeceu e olhou para a filha com curiosidade e mal disfarçado susto. Porque teria ella dito aquillo? Noca abaixou-se na orla do canteiro, procurando com mãos apressadas um trevo de quatro folhas, para dar á pobre da Nina. Oh! se ella encontrasse o trevo, a moça seria correspondida pelo ingrato do primo, e assim o diabo da franceza iria bater a outra porta... Deus fizesse com que ella achasse um trevo de quatro folhas! Meia hora depois estavam todos á mesa, e ainda a mulata procurava com ancia a folhinha fatidica. Mario atravessou o jardim; ella sentiu-lhe os passos e voltando-se chamou-o. --Uê! porque não foi almoçar?! --Preciso ir já para a cidade. Diga isso mesmo a mamãe... --Não foi se despedir d'ella? --Não ... já nos fallámos ... diga isso mesmo. --Hum! ... você hoje não tem boa cara!... Lá dentro não está ninguem de fóra: póde ir. É sua mãe... --Cantigas. Adeus. --Não. Olhe, Mario, lembre-se do que lhe diz esta mulata:--Sua felicidade está aqui... As extrangeiras só gostam de dinheiro... --Adeusinho! --Adeus, meu filho... A mulata foi até o gradil, para olhar ainda para o moço que ella ajudara a criar desde o primeiro dia. Como elle é bonito! pensava ella: as mulheres têm razão de o preferir a todos!... D. Nina não merece aquillo; mas, emfim, antes ella do que a tal sanguesuga... Este mundo é assim mesmo, a gente gosta de quem não deve... Elle morre pela outra e é esta quem morre por elle!... Verdade, verdade, elle é a flor da familia ... em questão de boniteza, garanto que não ha outra pessoa que se eguale a Mario... Eu bem dizia que elle poria as irmãs num chinello! Porque não teria vindo o Dr. Gervasio?... o diabo do feiticeiro deu bruxaria a _nhá_ Milla... Se _seu_ Theodoro sabe da historia!... que estrallada! Mas quem ha de dizer? Bocca, fecha-te! bocca, fecha-te! que não seja por minha culpa... Bem! Mario tomou o bond ... lá vae elle almoçar com a outra... Ora! se isso lhe dá gosto, que aproveite! Com um gesto decidido, ella rematou o seu pensamento egoista e caminhou para a copa, á procura de almoço. VI Numa manhã limpida, côr de saphira, Camilla e Ruth entraram com Theodoro e o Dr. Gervasio na lancha--_Aurora_--em demanda do _Neptuno_. O sol cobria com uma rêde de ouro movediça a superficie das aguas; fazia calor. As senhoras ageitaram os folhos das suas saias de linon no banco da ré, e abriram as sombrinhas claras. --Sempre gostaria que me provassem a serventia d'esses chapéos de sol. Não resguardam nada. São objectos inuteis. Eu se fosse mulher nunca me sujeitaria a modas, disse Theodoro. --Faria mal. Quanto aos chapéos, acho-os bonitos; são muito decorativos. Veja como a côr de rosa da sombrinha de Ruth, e a crême de D. Milla se harmonisam neste fundo azul. Digam o que quizerem; para mim a intuição da arte está na mulher, retrucou Gervasio. --Póde ser. Eu só gosto do que é positivo e pratico. Emfim, nas senhoras ainda eu perdou o certas niquices... Sabia Theodoro que o espirito e a posição de um homem se espelham nas suas roupas; por isso as d'elle eram sempre graves. Para tudo que não fosse o trabalho, envergava a sobrecasaca, bem abotoada sobre o estomago arredondado. A sua cartola luzidia, bem tratada, affirmava ás turbas que ia alli alguem de cortezia e respeito; era como se o seu titulo de commendador tremeluzisse no setim d'aquelle pello. Não sahia de casa sem carregar o guarda-sol de excellente seda portugueza e castão de ouro, traste que o protegeria em um amplo circulo, se acaso chuvas cahissem inesperadamente. Previa tudo; com habilidade, harmonisara á maneira do traje a dos seus discursos, sempre entrecortados de: _taes como_, _de maneiras que_, _porém_, _tal e coisas_... Já a lancha singrava as ondas mansas, quando elle contou ao Dr. Gervasio que ahi uns collegas seus amigos queriam arranjar-lhe um titulo de Portugal; elle fizera constar que não acceitaria a distincção, mas, se a coisa viesse, que havia de fazer? O medico respondeu com um gesto vago, em que perpassou a sombra de um sorriso. --Outros usarão d'esses titulos com menos direito, continuou o negociante, não digo que não; em todo o caso... Milla lembrou que, para justificar essa honraria, bastariam as grandes sommas com que elle entrava nas subscripções. Elle riu-se. --Estou vendo que você quer ser viscondessa, hein? Ella encolheu os hombros. Em verdade, nunca pensara nisso. Gostava de viver bem, á larga, com muito dinheiro. Esse tinha-o, bastava-lhe. Iam todos calados, quando Ruth suspirou: --Tenho pena de não ter trazido o violino! --Que tolice! havia de ter graça! --Mamãe, quando eu me commovo, gósto de tocar. Entendo-me tão bem com a musica! Os paes riram-se da asneira e o Dr. Gervasio fixou o rosto pallido da mocinha. Esse não riu. A lancha _Aurora_, muito faceira, reluzente nos seus metaes, cortava as aguas com rapidez, soltando silvos que assustavam as senhoras. --Este passeio está-me abrindo o appetite para uma viagem... Se as coisas continuarem como até aqui, é facto assentado que levarei a minha gente ainda este anno á Europa, disse Francisco Theodoro. Camilla e o medico trocaram um olhar de susto. Vendo o lindo rosto, sempre tão fresco e tão moço, de Milla, os seus cabellos negros, o seu collo cheio, os seus olhos de velludo, provocantes e apaixonados, toda aquella figura de mulher amorosa, quente e grave, que elle não se cançava de estreitar nos braços, a idéa de uma separação afigurou-se-lhe impossivel e monstruosa. Parecia-lhe que a amava ainda mais nesse dia do que em todos os passados; a doçura da sua convivencia enternecia-o, como se a entrevisse já através da saudade. Ella assegurou-lhe em um sorriso que não partiria. Não haveria forças capazes de a arrancarem do seu amor. Francisco Theodoro mostrava agora á filha o casco branco de um navio de guerra, onde roupas lavadas de marinheiros enfestoavam de azul o castello de proa. No cimo de um mastro, um homem que desatava cordames, tinha, na altura, proporções de boneco. Gaivotas tontas voavam em bandos circulares, pondo grinaldas de azas fugitivas no azul immaculado. Longe, a casaria da cidade, com as suas torres, esfumava-se em uma neblina rosea, esbatida em diaphana violeta. --Como é bonito! exclamou Ruth fulgurante, bebendo o ar que vinha em cheio da barra. Está-me parecendo que, se eu fosse rapaz, seria marinheiro. --Outra tolice. --Mamãe, o azul é uma côr tão bonita! --Se fosses rapaz ... se fosses rapaz ... realmente antes fosses tu o rapaz e Mario a rapariga ... resmungou Theodoro. --Pobre do Mario ... já tardava ... disse Milla. --Isto não é fallar mal; é a verdade. --Não é fallar mal dizer que elle não tem aptidões, que é insignificante? --Eu não disse tal. --Mas deu a entender. Eu nem sei até como elle é tão bom, ouvindo tantas insinuações. Se fosse outro, sabe Deus o que teria acontecido! É porque tem mesmo muito bom coração. Os erros que commette são naturaes da edade... --Senhora! não o defenda. Bem sabe porque é que eu digo as coisas. Não fallo atôa. Não, ella não sabia; o que via era uma grande injustiça, pesando continuamente sobre a cabeça do filho. Que mais queriam que o pobre fizesse? Elle não nascera para os trabalhos brutos, do commercio, era um delicado. Certamente que não tinha edade para se divertir a jogar a bisca em familia; os seus dezenove annos tinham outras exigencias. Reparassem todos que era naturalissimo... --Qual naturalissimo, qual nada! Indecente, sim, é que aquillo era. Um bilontrinha, o tal _seu_ Mario. Ainda na vespera soubera de novas proezas. Elle deixara a franceza, sim, senhores; parecia cederão conselho da mãe; mas para que? Para andar em publico de braço dado com outras, talvez peiores, e entrar em casas de jogo, que a policia ataca! Camilla mostrou Ruth ao marido, com um olhar afflicto, para que moderasse os furores da sua linguagem. Contente por cortar o dialogo, o medico apontou um vapor, que já se via de perto. --O _Neptuno_ ... é bonitinho, reparem. --Não é feio, não ... resmungou Theodoro, já desviado dos seus pensamentos; mas ... esperem! lá no convéz parece estar uma mulher. Que diacho! o capitão Rino será casado? --Se é possivel! se elle fosse casado nós estariamos fartos de o saber. Você diz cada tolice... --Ora tolices! que mal fazia que o homem fosse casado, hein? --A mim? nenhum certamente. Que me importa!... e Milla riu-se, querendo subjugar á força a raiva que lhe ficára da discussão com o marido. O medico tornou-se sombrio. Que mal faria que o outro fosse casado? nenhum!... certamente. E se dissessem d'elle a mesma cousa a Milla, que responderia ella! a mesma cousa? com o mesmo levantar de hombros, com o mesmo desdem? Teve impetos de lh'o perguntar; mas como? Alli era impossivel... Ficava para depois. A lancha atracou ao _Neptuno_, e do portaló desceu o capitão Rino, vestido de flanella branca, com uma bella rosa vermelha na lapella. Extranharam-lhe o porte, acharam-no muito mais elegante; parecia outro. Tinha descido para ajudar as senhoras. Ruth sahiu da lancha num salto, mostrando as pernas finas, contente por aquella novidade, aquelle mar circumdado de montanhas azues, aquellas velas brancas e aquelles cascos alcatroados, fluctuantes, com que se cruzara no caminho. O capitão Rino mal olhou para ella; suspendeu-a, com pulso forte, até o primeiro degrau da escada e voltou-se logo para Camilla, com olhar ancioso, extendendo-lhe os braços. Ella cahiu-lhe em cheio sobre o peito largo e riu-se, pedindo desculpas. Era tão pesada! Elle corou, tonto, tremulo, sem achar uma palavra com que lhe respondesse. Francisco Theodoro, cuidadoso da cartola e das abas da sua ampla sobrecasaca, não prescindiu da mão auxiliadora do capitão; o Dr. Gervasio veiu por fim, tirando num cumprimento o seu chapeu molle. Em cima, no tombadilho, marinheiros passavam vagarosos, indifferentes pelos visitantes. Junto ao portaló, estava uma senhora, a mesma, evidentemente, que elles tinham avistado da lancha. Era uma mulher delgada, branca e loira, com um par de olhos semelhantes aos do capitão Rino, de um azul de faiança, e uma physionomia vaga, de anjo decorativo. Contrastando com o typo, trazia uma _toilette_ escarlate, que lhe dava valor á pelle cor de lirio pallido, e parecia uma offensa ao seu corpo virginal. O capitão apresentou-a logo a todos com duas palavras: --Minha irmã. Foi depois, aos poucos, durante a visita do _Neptuno_, que viram desde o tombadilho até ao porão, que souberam que essa irmã, até alli ignorada, se chamava Catharina, e vivia em companhia da madrasta, senhora viuva, em uma frondosa chacara do Cosme Velho. Catharina ajudava o irmão a mostrar o _Neptuno_, e por vezes as suas explicações tinham maior clareza que as d'elle. Se elle parava, ella tomava-lhe a palavra cortada, completava-a e seguia para deante com todo o desembaraço. Depois de percorrerem o navio, o capitão Rino, convidou todos para um vermouth gelado, na sua camara. O espaço não era grande, Camilla, Ruth e Catharina apertaram-se no mesmo divan, de marroquim cor de azeitona, encaixilhado em cedro; Francisco Theodoro recostou-se em uma poltrona ao pé da mesa, emquanto o medico se arranjava ao lado de uma estante esguia, abarrotada de livros, e o capitão, em pé, narrava ao negociante vários episodios das suas viagens ao norte. --Que paiz! que maravilhoso paiz este nosso! completava elle. --É pena não ter povo. Sentenciou Theodoro. --Não é pena. Todas essas terras, ainda hoje virgens, serão num dia melhor a gloria do mundo, quando elle, exgotado pela exploração das outras, voltar para ellas olhos de amor. Guardam a sua fecundidade para uma outra raça de grandes ideaes, que ainda ha de vir. Tão formosas promessas não se fazem ao vento... --Outra raça ... outra raça ... vinda de onde?! nascida de quem?! --Da nossa, talvez; e das outras. As gerações que definham nos paizes velhos aperfeiçoam-se e revigoram-se nos novos. O futuro do mundo é nosso, e será a coroação das nossas bondades e virtudes, visto que o povo brasileiro é bom. Francisco Theodoro não concordava em absoluto; não podia perdoar a Republica. Aquella revolução fôra uma revelação. Sentia-se engasgado com o exilio do imperador. Torceu assim a conversa para novo assumpto. Dr. Gervasio conhecia as ideias politicas de Francisco Theodoro; ouvia-lhe sempre os mesmos commentarios. Estava inteirado; quanto ás do outro, não lhe parecia que devesse lucrar muito em ouvil-as. Voltou-lhe as costas e poz-se a ler as lombadas dos livros da estante: --_Virgilio_ ... _Homero_ ... _Dante_ ... _Camões_ ... _Gonçalves Dias_ ... _Shakspeare_ ... bravo! Que especie de homem seria então esse capitão Rino? Leria elle effectivamente aquelles poetas?! O medico abriu ao acaso o primeiro livro ao alcance da mão, e observou logo que elle estava annotado, a lapis, com signaes firmes, de uma vontade bem dirigida, perfeitamente consciente do seu claro juizo. Era o _Cid_. Á primeira pagina onde o olhar do Dr. Gervasio cahiu, havia este verso marcado com uma linha gorda: _L'amour n'est qu'un plaisir, l'honneur est un devoir._ Fallava D. Diogo. O medico releu o verso com um sorriso de sarcasmo. _L'amour n'est qu'un plaisir_... Pois sim! bem esquecido estaria o velho pae de D. Rodrigo, ou não chegara na sua juventude a amar com amor! Depois d'aquillo o Dr. Gervasio folheou outros livros litterarios, por curiosidade, desprezando os technicos, e em todos achou vestigios de uma leitura intelligente. Bastava; começava a comprehender o homem. Illudira-se até então, julgando o Rino como um mediocre e um simples. Um simples seria, mas um mediocre, não. Não o temera nunca como rival, apezar de o ver apaixonado por Milla; julgara-o fraco, inferior, sem recursos, falto de elegancia, que é sempre o que seduz as mulheres, physica e intellectualmente; não passara nunca aos seus olhos de um marinheiro rude, ingenuo, sem a graça da palavra a tempo, nem a linha da distincção pessoal. Que conservaria o capitão Rino no cerebro de tanta leitura inquietadora e extraordinaria? Que nervos eram aquelles, tão perfeitos, que apóz tantas torturas e delicias pareciam intactos de commoções artisticas? D'ahi--quem sabe?--toda aquella livralhada que elle marcara com o seu nome, no dominio da posse, viria de algum leilão, de alguma herança, não representando naquelle gabinete mais que um mero adorno. Era o mais certo. Era mesmo a unica hypothese verosimil; não admittia que o capitão Rino fosse amigo de intellectualidades. Aquelle bruto! Fixou-o com attenção. Não! não eram aquelles olhos limpidos, nem aquellas passadas que faziam tremer os rijos assoalhos, que revelariam a ninguem investigações da velha arte, turbadora como a febre ou como um vinho raro. Ninguem acreditaria que aquelle homem grande, de carnes duras, faces rosadas como as de um menino são e modos bonachões, fosse capaz de entender Shakspeare! Ler livros taes, annotal-os, amal-os, deleitar-se na sua convivencia, era obra para outra especie de creaturas. Aquillo era um escarneo, não era outra coisa. Permittia-lhe a leitura de um ou outro classico portuguez de mais calmo estudo e pulsação regular; lembrava-se mesmo agora de lhe ter sorprehendido algumas palavras de sabor antigo e que lhe tinham feito, aos ouvidos delicados, um certo prurido de extranheza. A sensação avivava-se, a reminiscencia induzia-o a estudar o homem. Voltou de novo o olhar para elle e resumiu ainda em um traço o seu juizo: --Um bello animal! A irmã do capitão servia vermouth, mostrando em um sorriso amavel os seus dentinhos bicudos e deseguaes. Ao dirigir-se ao medico, ella obrigou-o a desviar-se da sua observação; e elle, descuidado, reflectindo na phrase uma ideia que lhe atravessava o espirito, agradeceu-lhe em inglez. --Acha-me com ar de _miss_, não é assim? Talvez tenha razão; não é a primeira pessoa que me dá a entender isso mesmo... --Se lhe desagrada... --Absolutamente nada; por que? Houve na nossa familia qualquer antepassado extrangeiro, uma bisavó dinamarqueza, creio eu ... entretanto, affirmo-lhe, somos bem brasileiros, mesmo um pouco nativistas... Já me disseram, a proposito d'isto, que são os descendentes de extrangeiros exactamente os patriotas mais exaltados. Mas não quer gelo? --Obrigado... Ella passou adeante, e o doutor tomou o seu primeiro gole de vermouth. «Uma avó dinamarqueza, creio eu...» Extraordinario, esse desprendimento pela sua origem! Bem lhe certificava esse dito, que aquella gente não era de indagações nem de perder tempo com objectos sem utilidade immediata. A boa pratica era essa: olhar para deante, que é onde se póde encontrar tropeços. Caminho andado, caminho perdido. Adeusinho! Da cadeira de braços, Francisco Theodoro atirava a sua ultima bomba contra a Republica, lamentando este grande paiz, tão digno de melhor sorte... Rino levantou-se; elle tinha outras opiniões e uma fé sincera nos destinos da patria. A alma nova da America só podia agasalhar sentimentos de liberdade. A monarchia era a poeira da tradição accumulada com o correr dos seculos, em velhas terras da Europa. Lá teria a sua razão de ser, talvez; mas não aqui! Concluiu elle. Farfalharam as saias das senhoras, que se punham de pé, já cançadas da discussão, abominando a politica... Fóra, no tombadilho, o sol extendia a sua luz clara, feita de ouro. Seguiram então para debaixo do toldo. Que maravilha! Ruth lançou-se á amurada, agitando o lenço. Passava uma barca de Nitheroy, repleta de passageiros, branca, ligeira, com a sua cauda de espumarada. Toda a superficie do mar, paletada de luzes, tremia como a pelle moça a um afago voluptuoso. Ao longe, a Serra dos Orgãos desenhava no céu os seus contornos de um azul de ardosia. Para os lados da barra havia montes de prata fosca em que o sol, scintillando nas pedras, escorria laivos de prata polida, e rochedos cor de violeta espelhavam-se n'agua, entre montanhas de um verdor intensissimo. Houve uns instantes de pasmo e de concentração, e foi nesse silencio que o medico percebeu um olhar de Camilla para o capitão do _Neptuno_. Aquelle simples movimento bastou para atear no peito do medico o fogaréo da ciumada. Estava feito; o outro venceria; soubera esperar e revelava-se a tempo. Era a primeira vez que sentia zelos da amante, sempre tão sua, tão submissa ás arbitrariedades do seu genio desegual de homem nervoso. Quem pode confiar na lealdade de uma mulher? ninguem, e a justiça era que ella o enganasse e o trahisse, como por elle trahia e enganava o esposo... Percebia bem que o capitão Rino era mais bello, mais moço, e essas duas qualidades só por si bastavam, a seu vêr, para fazer preferido um homem aos olhos de uma mulher de quarenta annos... --O senhor hoje está nos seus dias de _spleen_, doutor? perguntou-lhe de repente Ruth, com o seu modo sacudido e imprudente. Elle deu-lhe o braço e explicou-lhe que não; queria estar calado para ver melhor. Depois perguntou-lhe, sem rodeios, se não achava o capitão Rino muito differente do que lhes parecera sempre, em Botafogo. --Eu já disse isso mesmo a elle, e descobri o motivo; é porque anda sempre de escuro, e hoje está de branco! --E com uma flor ao peito! --É verdade. --Ainda ha outra razão; é que elle está contente. Ruth, a influencia das côres é grande nas creaturas, mas a das impressões ainda é maior. A alegria força a ser-se bonito. O capitão tem hoje a alma vestida de branco e perfumada como a sua rosa vermelha da lapella... Uma bonita flôr!... Não creia que baste um alfaiate para dar a uma cara de páu a expressão que a d'elle hoje tem; a grande influencia do alfaiate pára no pescoço. A cabeça é... --Do cabelleireiro? --Da paixão. Não creio que as mais frivolas mulheres sejam tão frivolas que se contentem com o cheiro de uma pomada, ou o bom corte de um frak... --Mas quem fallou em mulheres!? --Tem razão, ninguem! Veja como aquelle barco de pesca vae bonito... Você gosta d'estas coisas; faz bem. O amor da natureza e o amor da arte são os unicos salvadores e dignos das almas puras. Os outros, pff! A mancha escarlate do vestido de Catharina appareceu deante d'elles; a irmã do capitão convidou-os para o almoço; repararam então que os outros já tinham entrado e logo o medico previu que Milla tivesse ido pelo braço de Rino... E fôra; e lá estavam ambos em pé a um angulo da mesa, em frente a Francisco Theodoro, que gesticulava, no calor de uma discussão ainda politica. Á mesa, sentaram-se ao acaso, á excepção de Camilla e do marido, a quem o capitão designou logares. O medico escolheu assento entre Catharina e Ruth. Havia apettite; os primeiros pratos foram bem acolhidos. Catharina, julgando-se um pouco em sua casa, ajudava o irmão; foi ella quem temperou a salada de camarões e quem polvilhou os morangos de assucar e de gelo; as suas mãos muito brancas mostravam-se bem atiladas no habito de servir. O creado ia e vinha do buffete para a mesa, com a seriedade sobranceira de um ente necessário. Na sala, longa e estreita, elles occupavam uma das mesas compridas, a da esquerda, a mesma occupada sempre em viagem pelo capitão; a outra, vazia e sem toalha, mostrando o verniz negro do oleado, dava um aspecto tristonho ao compartimento. Fallou-se, a proposito de viagens, de quando naquella mesma sala não havia um só logar vazio, e que ao rumor das vozes se juntava o tilintar das loiças e dos talheres... Só nos dias de tempestade, em que o vapor era sacudido pelo furor das ondas, diminuia a affluencia e appareciam, disseminados e tristonhos, só os passageiros fortes, de bom estomago... Francisco Theodoro relembrou os episodios banaes da sua unica viagem, de Portugal para aqui, e olhavam quasi todos para o capitão com certo interesse, como para um heróe. Em casa, nas confortaveis salas de Botafogo, tão ricas e tão burguezas, nunca a sua profissão lhes parecera sympathica; agora comprehendiam-lhe os perigos e observavam-no com respeito. O mar é tão perfido! Qual era o ponto da viagem que mais lhe agradava? perguntou Milla. A entrada no Amazonas, respondeu Rino; e descreveu, commovido, o aspecto formidavel do rio, a grossa corrente das suas aguas profundas, o seu ruido sonoro, de rythmos novos, que nenhuma lingua exprime e nenhum som musical imita; e os cambiantes deslumbrantissimos dos poentes, derramando na agua infinitas ramagens multicores, onde estrellejavam tons nunca d'antes vistos, que appareciam para se apagar, e apagavam-se para reapparecer em outros pontos, egualmente luminosos e fugitivos. --Que esplendor de poentes! Depois as ilhas verdejantes, verdadeiros jardins, trechos de bosques emergindo da agua profunda e reflectindo-se nella. Sinto alli, repetia ainda, um mundo novo, guardando virgindades e mysterios para uma raça de gigantes, ainda não nascida... Ah, as terras ardentes do Norte são um deslumbramento! Havia outro ponto da viagem que lhe fazia ainda maior commoção; era quando, já de volta, entrava na bahia do Rio de Janeiro. A ampla poesia d'esse espectaculo adoçava-lhe o humor estragado pela monotonia do mar alto... Dr. Gervasio punha afinal o dedo na alma do capitão. Era assim mesmo; os livros da estante pertenciam-lhe: havia alli um homem. O embarcadiço mercenario tirava o seu trage de piloto e apparecia cavalheiro e poeta. Porque se havia enganado tanto tempo? A explicação teve-a pouco depois, quando Rino affirmava que apezar das suas queixas, elle só estava bem no _Neptuno_; tanto se afastara da sociedade que se sentia bisonho nella, e que acreditava deixar sempre no seu navio um bocado da sua alma, quando ia para a terra. --Só em terra, disse elle, comprehendo o amor que tenho ao meu barco, aos meus livros, ao meu cachimbo e á minha rêde, a que a solidão e o habito deram foros de amigos; entretanto no mar, tenho saudades de terra, da familia, das distracções, de tudo que conjunctamente a torna deliciosa... Francisco Theodoro, a proposito do Norte, fallou na prosperidade do Pará, no commercio da borracha e discutiu as suas rendas e os seus costumes. Alli, sim, havia gente reflectida, de bons exemplos. Aquillo é que é povo: patriotismo, criterio, boas intenções. Fallem-me d'isso. Concordaram. Houve uma pausa, em que se levaram á bocca os copos cheios. Veio o perú á brasileira provocar elogios ao cozinheiro do _Neptuno_. Magnifico! Francisco Theodoro affirmou logo que aquelle prato parecia feito, de saboroso que estava, por uma mulher. A brasileira tem um geitinho especial para temperar panellas, dizia elle; e verdade, verdade, assim como ella não devia ser chamada para os cargos exercidos por homens, tambem os homens não lhes deviam usurpar os seus. A cozinha devia ser trancada ao sexo feio. Elle dizia isto como pilhéria, por alegria. Catharina, fazendo estalar uma côdea de pão entre os dedos magros, perguntou sorrindo, com ar de curiosidade maldosa: --O senhor é contra a emancipação da mulher, está claro. --Minha senhora, eu sou da opinião de que a mulher nasceu para mãe de familia. Crie os seus filhos, seja fiel ao seu marido, dirija bem a sua casa, e terá cumprido a sua missão. Este foi sempre o meu juizo, e não me dei mal com elle; não quiz casar com mulher sabichona. É nas mediocres que se encontram as Esposas. O Dr. Gervasio e o capitão Rino trocaram um olhar, de relance. --E que são as outras? Mulheres que um homem honrado não deve consentir perto das suas filhas. Camilla fez um signal affirmativo. Ella era da mesma opinião. --Não são sérias, concluiu. --Lá por isso, replicou Catharina, de quantas mulheres se falla na sociedade e que mal sabem ler? --De poucas... --De muitas. Sr. Theodoro, faz favor de me dar o vinho? --Ora, as senhoras não conhecem o mundo! exclamou Theodoro, passando a garrafa ao medico, que encheu o copo de Catharina e disse rindo: --Ellas não conhecerão o mundo e nós, meu amigo, não as conhecemos a ellas! A mulher mais doce e mais honesta, dizem que dissimula e engana com uma arte capaz de endoidecer o proprio Mephistopheles... --Homem, que ideia faz você da honestidade das mulheres! --Faço ideia de que deve ser bem mais difficil de manter do que a nossa. --Bom; eu quando disse honestidade das mulheres, não foi com o pensamento de que houvesse duas honestidades. --Pois se tivesse tido tal pensamento, tel-o-ia com muito acerto. Ha duas. --Temos outra! Se está de maré, explique-nos a differença. --Não estou de maré, mas explicarei: é pequena. Materialisemos as comparações, para as tornarmos bem claras. Supponhamos, por exemplo, que a nossa honestidade é um casaco preto e que a das senhoras é um vestido branco. Tudo é roupa, teem ambos o mesmo destino, mas que aspectos e que responsabilidades differentes! Assim, o nosso casaco, ora o vestimos de um lado, ora de outro, disfarçando as nodoazinhas. O panno é grosso, com uma escovadella vôa para longe toda a poeira da immundicie; e ficamos decentes. A honestidade das senhoras é um vestido de setim branco, sem forro. Um pouco de suor, se faz calor, macula-o; o simples roçar por uma parede, á procura da sombra amavel, macula-o; uma picadella de alfinete, que só teve a intenção de segurar uma violeta cheirosa, toma naquella vasta candidez proporções desagradaveis... Realmente, deve ser bem difficil saber defender um vestido de setim branco que nunca se tire do corpo. Eu não sei como ellas fazem, e, francamente, não me parece que a vida mereça tamanho luxo. --Você é o homem das divagações; tratava-se de uma questão positiva. Dizia eu que as mulheres vulgares são mais sérias do que as outras ... pelo menos parecem... --Porque não lhes esquadrinhamos as nodoas do setim... Passam despercebidas... --Adeus! --Agora é sério; vou repetir-lhe o que disse ha pouco á sua filha, a quem alliás o senhor educa para a arte. Foi mais ou menos isto: Não cabem na alma humana muitas paixões, e as melhores são as que nos desviam dos nossos semelhantes, sempre enganadores. Só os ideaes de arte não pervertem, antes purificam e ensinam o bem. As mulheres devem cultival-os com especial carinho. Acompanho, pois, as opiniões de D. Catharina e bebo á sua saude, Minha Senhora! Emquanto elle bebia, Camilla observou-o com pasmo; sabia que elle não tinha aquellas ideias. Sempre lhe ouvira que a mulher devia conservar-se no seu logar de submissão. --Então, a senhora lamenta não ser eleitora? perguntou Francisco Theodoro á irmã do Rino, com um sorrizinho de mofa. --Eu? Deus me livre! Tomara que me deixem em paz no meu cantinho, com as minhas roseiras e os meus animaes. Nunca fallo por mim, sr. Theodoro. Eu nasci para mulher. --Então, pelas outras? --Pelas outras que tenham actividade e coragem. --E a casa, minha senhora? e os filhos? A este argumento é que ninguem responde! --É velho. --Mas é bom, prova que a mulher nasce com o fim de criar filhos e amar com obediencia e fidelidade a um só homem, o marido. Que diz tambem a isto o nosso doutor? --Que ella talvez tivesse nascido com essas intenções, como o senhor disse, mas que as torceu depois de certa edade. Não seria sem causa que Francisco I disse: _Souvent femme varie._ Francisco Theodoro não entendeu, mas sorriu. O medico dizia aquillo para Camilla, que lhe evitava o olhar agudo, percebendo-lhe a perfidia. --Isto é que se chama fallar para não dizer nada... observou alguem. Catharina serviu o café; quando passava a ultima canequinha, disse: --As mulheres são mal comprehendidas. Vejam aquella gravura. Está alli um homem desafiando o perigo, avançando na treva com a espada em punho, e a mulher mal o allumia com a luz da vela, cosendo-se amedrontada ás suas costas! --O que prova que a mulher é medrosa! exclamou Theodoro com modo triumphante. --Mas, não é verdade; pelo menos no Brasil. Nós não nos escondemos atraz do homem que procura defender-nos. Se elle avança para o inimigo, sentimos não ter azas, e é sempre com impeto que nos lançamos na carreira querendo ajudal-o a vencer ou evitar-lhe a derrota. Este é que é o nosso caracter; que me desminta quem puder! O dr. Gervasio observou Catharina com attenção. Ella estava de pé, com as narinas arfantes, as faces abrasadas. Sim; agora era o sangue caboclo que lhe saltava nas veias: era uma brasileira. A tal avó dinamarqueza dava todo o logar á outra avó indigena, descendente de alguma tribu selvagem. Duas horas depois, os visitantes deixavam o _Neptuno_; o capitão Rino e a irmã conduziram-os até o caes, onde se separaram. Foi então um grande allivio para o dr. Gervasio, a quem a presença do outro irritava terrivelmente. Francisco Theodoro não se cançava de elogiar a ordem e o asseio em que encontrara tudo; começava a venerar o capitão Rino: achava-o eloquente, superior ... lembrava detalhes insignificantes, muito agradecido ás cortezias do moço. Catharina desagradara-lhe, com os seus modos independentes. Achara-a feia. Mulher quer-se com carne,--bons volumes, dizia elle, olhando de esguelha para o vulto redondo da esposa. Á rua 1º de Março despediu-se do grupo. Aproveitava a occasião para visitar um collega doente; e encarregou o doutor de acompanhar a familia. Foram então os tres, Ruth adeante, com o seu modo distrahido, de queixo erguido e passos firmes; Camilla ao lado do medico, atravéz as ruas quasi desertas, de domingo. Ao principio nada se disseram. Camilla adivinhava tempestade proxima, sem lhe atinar com a causa. Extranhara as phrases do Gervasio á mesa; sentia ainda a dôr dos remoques que elle lhe atirara disfarçadamente. Faltava-lhe coragem para uma pergunta; mais por submissão do que por indolencia, ella esperava sempre que elle fôsse o primeiro a fallar e a agir, naquella torturante passividade de escrava, a que o seu amor a lançara. Elle fallou. Disse ter surprehendido a doçura de um amor nascente; que não se espantava da victoria do Rino. Achava que se devia despedir; que a via bem entregue... Camilla comprehendeu tudo, de relance; as lagrimas subiram-lhe aos olhos, sem que ella pudesse responder á brutalidade da offensa. O rosto tingiu-se-lhe de vermelho, numa onda de vergonha que a suffocava; vendo-a calada, elle insistiu baixinho, teimosamente, irritantemente, espaçando as palavras, extravasando todo o ciume contido durante as horas de bordo. Ella murmurou então, vexada, por entre dentes: --Eu não gosto do Rino ... eu não gosto... E para que fallar assim, na rua? É uma imprudencia... --Não tive tempo de escolher logar. Isso é bom para os calmos. Depois, vendo-me ameaçado de abandono, apresso-me em despedir-me. Isto tinha de ser já. --Como os homens são orgulhosos e injustos! --Serão. E as mulheres? voluveis! --Quasi sempre a mulher ainda ama e já é considerada pelo homem como uma importuna!... Está ahi a nossa volubilidade... Calaram-se; passava gente. Depois de uma longa pausa, foi ella quem disse primeiro: --Que me importa a mim o Rino! estou prompta a desfeiteal-o, se com isso... O medico interrompeu-a baixo, mas com vivacidade: --Agora sou eu que lhe lembro que estamos na rua... Ruth, sempre adeantada no caminho e sempre distrahida, não percebia nada; os dois seguiam-na automaticamente. Foi ella que, de repente, vendo uma confeitaria ainda aberta, se lembrou de levar doces á Nina e ás creanças, e parou á porta, á espera do medico e da mãe. No momento em que elles chegavam, saiu da confeitaria uma mulher ainda moça, toda de lucto. Ao vel-a, o medico recuou bruscamente e ella, mal o viu, corou até a raiz dos cabellos e vacillou tambem. O choque foi rude e rapido. Elle ficou firme na calçada, muito pallido, com contracções nas faces, e ella passou séria, numa rigidez contrafeita e torturada. Camilla sentiu roçar pelo seu vestido claro o vestido de lã da outra; aspirou com força o seu aroma violento de uma essencia desconhecida; viu-lhe a alvura da pelle avelludada entre a golla de crepe e a parte da face onde terminava o véozinho do chapéo; apanhou, naquelle gesto de surpresa de ambos, um mysterio qualquer, uma traição, uma infidelidade, uma ignominiosa mentira á sinceridade da sua paixão. --Quem é? ... quem é?! Perguntou ella com avidez phrenetica, puxando imprudentemente pela manga do medico. O Dr. Gervasio, ainda no mesmo logar, olhava para a mulher de lucto que seguia numa pressa de quem foge; á voz de Camilla, voltou-se atarantado, sorriu com esforço evidente e depois, baixo, muito baixo, mas com modo sacudido e nervoso, disse: --Não faças caso: uma mulher que amei e que morreu. Uma nuvem negra toldou a vista de Camilla e o coração apressou a sua marcha num batimento louco. Ruth, com toda a pachorra, escolhia os doces que um caixeiro ia separando para um prato de papelão. O dr. Gervasio pediu á Camilla que serenasse o seu espirito. Elle lhe contaria tudo mais tarde. Descançasse, que aquillo era uma coisa passada, perfeitamente extincta. Ella fingiu acceitar a promessa; no fundo duvidou d'ella; mas para que tentar uma recriminação, se a sua lingua fraca não lhe sabia traduzir os sentimentos fortes? Ficaria no seu papel de mulher: esperaria calada... VII O commercio de café nadava em ouro. Casas pequenas galgavam de assalto posições culminantes; havia por todo o bairro cafezista um perenne rumor de dinheiro. E a maré do ouro subia ainda com a magna abundancia das enchentes que ameaçam inundação. O preço do café chegara a uma altura a que antes nunca tinha attingido. Era um delirio de trabalho por todos aquelles armazens de S. Bento. No de Francisco Theodoro o movimento era enorme. _Seu_ Joaquim não parava um minuto, num vae-vem incessante, realizando milagres de actividade, observando, colhendo, dirigindo, mandando, rapido no expediente, segurissimo nas suas previsões e nas suas ordens. Elle sabia de tudo, adivinhava tudo, sem que ninguem o visse arrancar uma confidencia ou uma denuncia dos seus amigos ou dos seus subordinados. Era nelle que parecia incarnada a alma d'aquelle casarão da rua de S. Bento, por que era o nome d'elle que andava de bocca em bocca, no ar, desde o caminhão, na porta da rua, até o fundo, o pateo dos ensaccadores, onde as pás do café, cahindo em rythmo, davam ao trabalho um acompanhamento de musica. _Seu_ Joaquim, pequeno, com o seu ar atrevido, podia, de um momento para o outro, fazer cessar todo aquelle gyro vertiginoso, armar _grèves_, paralysar a vida, fechar a porta ao dinheiro que quizesse entrar. Era d'elle todo o prestigio á vista dos trabalhadores boçaes, das formigas do armazem que negrejavam por alli num movimento incessante. Francisco Theodoro descançava nelle, deixava-o agir, «conhecia-lhe o pulso», dizia; não fizera elle o mesmo no principio da sua carreira? Agora, bem assente na vida, aristocratisava-se, dava-se ares de grande personagem. Havia uma hora em que o gerente subia ao escriptorio do patrão para alguns esclarecimentos, e nesses curtos minutos, roubados á actividade de baixo, _Seu_ Joaquim achava geito de expôr a situação do dia, dar as notas pedidas e ainda fallar do movimento das grandes casas proximas, fazendo de relance, num quadro comparativo, o realce do armazem de Francisco Theodoro. E, nesses dizeres simples, havia entre os dois homens como que uma chammazinha, brilhando tonta, faisca de ambição assanhada pelos successos proprios e alheios. Ambos amavam a casa, ambos a queriam ver no plano mais alto. _Seu_ Joaquim, lá comsigo, attribuia a prosperidade do negocio ao tino da sua gerencia, experta e positiva. A seu vêr, a gente do escriptorio era inepta e não contribuia em nada para o exito do negocio. Julgava-se figura predominante, indispensavel, e usava por isso de impertinencias, que Theodoro tolerava, em desconto do serviço. Quando o gerente descia a escada do escriptorio e voltava para o armazem, Francisco Theodoro reclinava-se na sua cadeira e ficava pensativo. Na sala proxima as pennas dos empregados rangiam nos livros e o rumor das folhas que viravam era ás vezes o unico que se ouvia. Naquella grande paz da fortuna conquistada, Francisco Theodoro sonhava então com viagens demoradas, largos periodos de abstracção. Vinha-lhe o cançaço. Todavia, se reflectia nisso, recuava, com a certeza de que lhe seriam inaturaveis os dias sem aquella confusão de trabalho, longe d'aquella atmosphera carregada e das tantissimas preoccupações do seu commercio. A esse desejo indeciso, que com tanta justiça o seu corpo e o seu espirito fatigado reclamavam, mesclava-se agora uma febrinha nascente, que o incitava a novas emprezas e que elle combatia com animo e juizo. Oh! se o Mario fosse um homem, se tivesse geito e coragem para aquella vida ... com que satisfação elle o sentaria no seu logar e lhe mostraria o caminho já feito, facil de percorrer! Fôra bem castigado o seu desejo de ter um filho, não pelo filho, mas pelo orgulho da continuação d'aquella casa, que levaria o seu nome a outras gerações. Viera o filho e voltava as costas á fortuna. A casa passaria a mãos extranhas, ou teria de morrer com elle... Era o que lhe custava, deixar a melhor obra da sua vida, em que tinha concentrado tamanhos sacrificios, sonhada nos seus tempos de tropeções pelas ruas, e executada depois aos bocadinhos, no esforço de uma vontade energica, a gente que a pagasse, como uma coisa qualquer, e lhe mudasse o nome. Como era bemsoante aquelle--Casa Theodoro--um rythmo de ouro! Naquella rua, de casas ricas, ella seria a mais rica, se o Gama Torres não se tivesse posto adeante, ajudado pela mão do diabo, que a de Deus só auxilia os homens de longos trabalhos e bellos exemplos. O que dera fortuna ao Torres? O jogo. Sabia-se agora, por toda a cidade, que elle jogava na Bolsa como um doido. O resultado ahi estava--magnifico; mas não poderia ter sido pessimo? Certamente, concluia elle comsigo,--não é a isso que se chama ser bom negociante; obra do acaso, nem mais nem menos... Chegara a hora do café. O primeiro a entrar nesse dia foi o Lemos. As carnes pesavam-lhe; sentou-se logo. --Então como vae isso, Seu Theodoro, han? --Bem... Muito trabalho. --É o que se quer. Eu tambem não paro. Mas quer saber quem vae mesmo de vento em pôpa? O Innocencio; O ladrão tem mão certeira; não erra o tiro! Vi-o hoje fazer grandes transacções com a maior fleugma. O dinheiro não lhe escalda as mãos. Elle vem ahi; deixei-o lá embaixo a conversar com um sujeito. É um finorio de marca. --É experto, é. Minutos depois o Innocencio Braga entrou, trefego e alegre, em companhia do Negreiros, que subira para tratar de um negocio, e, emquanto este se entretinha com Theodoro, o Innocencio dizia, voltando-se para o Lemos: --Hoje é para mim um dos dias mais felizes da minha vida! Imagine que recebi carta do meu procurador, dizendo já ser minha uma quinta lá da minha aldeia, e que eu ambicionava desde rapazinho... --Terras de trigo? --Não é por isso. A propriedade só dará despezas. Comprei-a por vingança. O dono era um fidalgo d'esses velhos, de raros exemplares. Por uma questão estupida maltratou meu pae. Eu era pequeno, mas não me esqueci da offensa. Os dias passaram; o fidalgo arruinou-se, e o filho do meu velho ganhou o bastante para fazel-o assignar, ainda que de cruz, as escripturas que lhe dão direito á posse da sua quinta. Meu pae já se installou no palacio; o diacho é que, pelos modos, elle não se acostuma á ociosidade e vae para o campo mondar o linho com os empregados ... não faz mal, é o dono. --Realmente, foi um acto de amor filial, muito digno ... murmurou o Lemos, assoando-se com estrondo. Isidoro entrou com o café e a conversa generalisou-se. --Então, senhor Theodoro, é verdade que o Joaquim é seu interessado? --É... --Inda bem. Você não parecia portuguez, homem; você parecia inglez! --Porque? --Por não querer socios. Um casão d'estes póde enriquecer muita gente. Olhe que é um erro isto de querer tudo para si. Sim, pensou Francisco Theodoro, a vida é curta, e uma fonte cavada com tanto esforço é justo que dê agua com abundancia para muitas sêdes... Já o Isidoro recolhia as chicaras quando entrou o João Ramos, a bufar de calor. Pediu noticias da saude de todos e mesmo antes de ouvir as respostas vasou quanto sabia acerca dos negocios. Vinha da casa do Lessa, que auferira lucros extraordinarios de uma especulação de café. Elle tambem se mettera em grandes emprezas; sacou papelada que lhe enchia os bolsos e representava muitos contos de réis. Innocencio Braga citava nomes de pobretões tornados em millionarios, com a alta, quando João Ramos o interrompeu, consultando os amigos se deveria acceitar a presidencia de um banco. Elle hesitava... Innocencio aconselhou-o a que accedesse. O cargo era de prestigio. Depois, o tempo effervescente do jogo tinha passado. As transacções agora faziam-se com mais segurança. Tambem elle tinha em formação um grande projecto... Theodoro suffocava; não ouvia fallar noutra coisa. O seu visinho da esquerda e o seu visinho da direita passavam, quantidades fabulosas de libras para a Europa, ganhas no azar do momento. E elle? As suas reflexões tomaram um curso tristonho. Trabalhara tanto, para afinal alcançar o que os outros adquiriam com um gesto! A pouco e pouco os seus amigos mais circumspectos iam-se atirando á voragem da Bolsa. Afortunados, como se mão invisivel os guiasse, ganhavam quasi sempre. Só elle resistira, firme nos seus principios de moral e de economia. Mas o contagio da febre manifestava-se já nos primeiros arrepios da tentação. Francisco Theodoro reflectia... Quando os amigos sahiram, elle caminhou machinalmente para a janella. Olhou: embaixo a pretinha velha varria pressurosa a calçada, ajuntando o café da rua. Carregadores sahiam-lhe da porta, vergados ao peso das saccas. Os carroções passavam cheissimos, com estardalhaço, chocalhando ferragens, e um rumor compacto de vozes levantava-se no ar espesso, engrossado de pó. Era o trabalho, que passava, ardente e esbaforido. D'aquelle esforço surgiria a redempção do povo. É com suor e lagrimas que se fertilisam os melhores campos. Da enxada, que fatiga o braço e rasga o seio do barro, é que deriva o bem da humanidade, a agua que mata a sêde e a arvore que dá sombra e se desmancha em flores. Abençoados os que não fraqueiam e podem ao fim da existencia erguer bem alto a cabeça sem respingos de vicio. Esses não terão patinhado na enxurrada enganadora, esses dirão aos filhos: --Olhem para a minha vida e façam como eu fiz. Era o que pensava Francisco Theodoro, querendo agarrar-se á sua fé antiga, que temia cahisse agora, abalada pela ventania d'aquelles dias de loucura. VIII Na saleta de engommar, Noca, com o ferro na mão, sabia do que se passava em toda a casa. Nesse dia ella trouxera uma braçada de roupas para cima de uma cadeira junto da taboa. Lia e Rachel interromperam-n'a depressa. --Noca, você corta um vestido para a minha boneca? pediu Lia. --E outro para a minha, Noca? --Vão-se embora. Hoje não tenho tempo para conversas. --Um só, Noca, sim? --Não faço nada! Amanhã seu pae está ahi gritando que não tem roupa! Mas as meninas ficaram, trouxeram a rastos uma esteira, sentaram-se nella e a Noca não teve remedio senão cortar os vestidos das bonecas e ainda dar-lhes agulhas, linhas e retalhos. Distribuido o serviço, levantou-se. Nina passava a caminho da despensa e sorriu-lhe; mas a mulata mal correspondeu ao cumprimento, enjoada pela bondade d'aquella creatura. A culpa era do sangue, da sua raça, que menos estima os superiores quanto mais estes a afagam. Por isso ella morria de amores por Mario, um rapazinho atrevido, de genio authoritario e palavras duras. Começava a alisar a primeira camisa do patrão, quando o Dionysio se acercou da taboa. --Agora é que você está chegando, Dionysio?! --É Fui levar um recado de _seu_ Mario... A senhora já sabe que elle deixou a franceza? Esta agora é mais bonita; é uma carioca de se lhe tirar o chapéo! --Ora veja só, como Dionysio está tolo... Ella apontou as creanças, que poderiam ir mexericar lá para dentro. E depois: --É loura ou é morena? --Morena, altinha, muito _chic_. --Bem. Vá arrumar o quarto de Mario, ande. Mal sahiu o Dionysio entrou a criada Orminda, uma caboclinha de olhar sonso. --Olhe aqui, D. Noca, o que eu achei em baixo do travesseiro de D. Nina. --Que é? perguntou a mulata, sem levantar a vista do trabalho. Um retrato. Noca olhou; era um retrato de Mario. Guardou-o, sem dizer nada. Orminda continuou: --Minha ama está escrevendo uma carta, lá no quarto... --É para Sergipe. A cabocla sorriu. --O professor de musica está ahi... --Já sei... Vae pedir ao jardineiro um pouco de hortelã, anda, para eu botar de infusão. Noca tinha ascendencia sobre a criadagem, que a tratava por _dona_. Mesmo entre os brancos a palavra da sua experiencia era ouvida com acatamento. Ella era a mulher desembaraçada, a doceira dos grandes dias de festa, a unica das engommadeiras capaz de satisfazer as impertinencias do dono da casa; ninguem sabia como a Noca preparar um remedio, um suadouro, nem dar um escalda-pés synapisado, nem tão bem escolher o peixe, preparar um pudim ou vestir uma creança. Alegre, forte, falladora e arrogante, com o genio picado e a lingua prompta para a réplica, não admittia admoestações nem conhecia economias. As suas roupas, muito asseadas, cheiravam bem; andava de côres claras e fitas alegres, pizando com todo o peso do seu corpo volumoso e encarando as creaturas de frente, num bom ar de sinceridade. Eximia na traducção e interpretação dos sonhos, era de uma imaginação lentejolada de pequeninas idéas extravagantes e concepções originaes. Para o mais insignificante facto, tinha uma explicação mysteriosa, embrulhada em nevoas e superstições curiosissimas, que sahiam da sua bocca como lemmas fataes, de uma verdade indiscutivel. E aquella influencia extendera-se pela familia toda. Camilla consultava-a; Nina contava-lhe os seus sonhos, pedindo-lhe explicações; Ruth ouvia-a com enorme interesse, de alma aberta para tudo que tivesse ares de phantasia; e a criadagem pedia conselhos, rezas, remedios, palpites de jogo e consolações de desgostos... Noca acudia com promptidão a todos, gabando-se, sem hypocrisia, de gostar de ser util e servir de muito a muita gente... Ella andava agora desconfiada com a tristeza mal disfarçada de Milla. Desde aquelle passeio ao Neptuno deveria haver por alli grande novidade... O Dr. Gervasio, entretanto, desfazia-se em cuidados ... e o pobre do capitão Rino era recebido com certa seccura, que o estupido parecia não comprehender! A Nina, coitada, emmagrecia como um arenque, e só Ruth passava sem ver nada, como se a musica a levasse por outros caminhos... O patrão ... esse tambem ruminava qualquer coisa... Quem provocava confidencias indiscretas da mulata era Nina, que, com o pretexto de passar uma gravata ou alisar uma fita, ia á saleta do engommado logo que d'ella via sahir o Dionisyo. A mulata percebia tudo e não tinha escrupulos em repetir a verdade. Ora, aquillo talvez curasse a moça, pensava comsigo. Se os amores não passassem, que seria da gente? O coração quer-se á larga. Soffrer por causa de um homem? Não vê! Nina, com os olhos humidos, as mãos curtas, de dedos ligeiramente achatados, espalmados na taboa ainda quente do ferro, escutava tudo muito caladinha e, quando a ultima palavra cahia dos beiços grossos da Noca e que a mulata começava a assoprar as brasas, ella voltava para dentro, sentava-se a coser, achando-se mesquinha, feia e muito desgraçada. Todos os esforços que fazia por agradar eram inuteis; Mario nem parecia vêl-a e mal parava em casa... A outra era bonita; morena e altinha. Era pouco o que sabia, mas o bastante para a fazer soffrer. Emquanto, no bulicio da casa, todos se agitavam no trabalho activo, Camilla conservava-se no seu quarto, muda, encolhida em uma poltrona, com as mãos inuteis, o olhar febril. A visão d'aquella mulher de lucto, da manhã do _Neptuno_, não a deixava nunca; sentia-lhe, como um castigo, a formosura, o perfume, e aquelle ar discreto de honestidade e de elegancia. O que a punha doente, e que a atormentava ainda mais, era a obstinação de Gervasio em negar-lhe uma explicação qualquer. Que haveria entre ambos? No seu ciume e resentimento, Camilla esquivava-se agora ao medico; era em vão que elle a chamava para as suas doces e crueis entrevistas. Mas toda a sua força em resistir ia afrouxando, e ella sentia bem que, apezar de tudo, chegaria um dia em que os seus pés a levariam para elle. Foi ainda naquelle canto do quarto que Francisco Theodoro a encontrou, ao voltar da cidade. --Estás doente? Olha que eu trouxe um camarote para a _Aïda_. O Negreiros disse-me que vae muito bem por esta companhia... --Que entende o Negreiros de musica! --Elle tem excellente ouvido. Acho bom desceres. O Gervasio está lá em baixo... Milla desceu, e, ao sahir para o terraço, parou entre portas, escutando o que dizia o Dr. Gervasio. Elle estava sentado, de costas para ella. Em frente d'elle, em pé, Ruth ouvia-o attentamente, com a corda de pular enrolada no braço, e o rosto ainda vermelho pelo exercicio interrompido. --«Você disse que a irmã da Lage é uma moça bem educada, querendo dizer que ella é uma moça instruida. Ha dififerença: educação e instrucção não se confundem. Repare: porque considera você essa moça como bem educada? Porque falla francez, inglez, toca e desenha; não é assim? Pois essas prendas, ainda que adquiridas com esforço, compram-se aos mestres; as outras dão-se ou nascem da boa convivencia. Uma pessoa instruida não será de exterioridade agradavel se não fôr educada. A instrucção nem sempre transparece e nem sempre concorre para a felicidade. A educação prepara-nos para a tolerancia e revela-se em tudo, na maneira por que fazemos um cumprimento, por que andamos na rua, porque nos ajoelhamos em uma egreja, por que comemos a uma mesa, por que fallamos ou por que ouvimos fallar, por que em discussões tonalisamos as nossas opiniões com as opiniões contrarias; por mil effeitos, emfim, que, sendo imperceptiveis, realçam o individuo, porque o pulem e o tornam digno da boa sociedade. A instrucção é a força com que apparelhamos o nosso espirito para a vida, lança e escudo para ataque e defesa; a educação é o perfume que os paes intelligentes derramam na alma dos filhos e que por tal geito se infiltra nelles, que nunca mais se evapora, seja qual fôr o ambiente em que vivam depois. É bom não confundir as duas palavras, Ruth, porque essas confusões, á vista grossa dos indifferentes, não tem importancia; mas alteram a verdade e não escapam aos ouvidos delicados.» --Não tornarei a trocar o sentido d'essas duas palavras... --O Lelio disse-me hontem que lhe tinha trazido uma valsa de Chopin. Ora, você pode tocar, mas não pode interpretar bem semelhante auctor. --Porque? --Porque ainda não tem edade para comprehendel-o. Chopin é um musico perigoso, minha filha; é um torturador, um excitador de almas. Contente-se com os seus classicos, mais sadios e mais frescos. A musica como a leitura, deve ser ministrada com prudencia. Fallarei ao Lelio. Sua mãe já desceu? --Está ahi, atraz do senhor. --Ah... Milla soccorreu-se da filha para não ficar só com o medico, que a via muito esquiva. A pallidez e a tristeza adoçavam-lhe a physionomia, dando-lhe um encanto novo. O Gervasio observava-a calado, indeciso, com medo de resolver de chofre a situação, com uma palavra só... Todos os annos Francisco Theodoro celebrava os anniversarios d'elle, da mulher e dos filhos com banquetes de tres e quatro mesas, vinhos a rôdo e danças até a madrugada. Nesses dias o medico fazia apenas o seu cumprimento, offerecia-as violetas e o brinde do estylo, e retirava-se cedo para a casa silenciosa, lá para os lados do Jardim Botanico, onde ia fazer as suas leituras, commodamente reclinado na sua cadeira de balanço dentro do robe-de-chambre que lhe agazalhava o corpo magro. Camilla conhecia as suas antipathias por essas festas e não se lamentava por isso da ausencia. A immensa casa era então pequena para o numero de amigos. Nos jardins illuminados a _balões_ e a copinhos, nas salas, nos corredores, nos terraços, no buffete, nos quartos, em toda a parte havia povo, rumor de vozes e cheiro abafado de plantas pisadas, flores amornadas por luzes, essencias diversas reunidas ao odor dos molhos e das carnes servidas no banquete. As camas sumiam-se ao peso de capas, mantilhas, chapéus e sobretudos. Os convidados varavam todos os aposentos, como quem anda por sua casa. Nina, as criadas e Noca atiravam para dentro de um quarto, o unico fechado, tudo o que não devia estar embaraçando o caminho: tapetes retirados á pressa para as danças; mesas de centro, almofadões do sofá, que tomavam espaço; floreiras, etc. As creanças corriam pela casa, espalhando passas e migalhas de doces; e um pianista pago dedilhava no Pleyel do salão as polkas e as valsas do seu repertorio. A essas festas iam sempre os collegas e os conhecidos de Francisco Theodoro, o pessoal da sua casa de commercio, gente da visinhança, alguns doutores, um senador do imperio, a quem era dirigida a melhor das attenções, e amigas de Camilla, do tempo do collegio, mulheres de posição e bem apresentáveis, que só com as ricas ella topara depois, na balburdia da vida. Nos intervallos da dança havia sempre quem tocasse difficuldades ao piano, ou cantasse algum romance italiano. Francisco Theodoro, jubiloso e amavel, instava para que comessem, para que bebessem. Não se esquecia de ninguem, punha mancheias de balas nos regaços das creanças, ordenava que se abrisse champagne, conduzia as senhoras edosas ao _buffet_, recommendando á Noca que distribuisse pela criadagem vinhos e doces. Eram festas pantagruelicas, em que o riso se communicava mais pelo barulho que pela intenção. Camilla dançava, roçando os seus maravilhosos braços nús pelas mangas dos commendadores ou dos empregados do marido. Á mesa os brindes succediam-se atropelladamente. Para o fim, havia sempre uma voz alta, pausada, que se erguia á victoria do trabalho honrado e puro, e essa voz lembrava os máos dias de Francisco Theodoro, a sua pobreza, a sua energia e o seu triumpho. O dono da casa respondia com palavras tremulas e olhos humedecidos. Tilintavam as taças e a musica vibrava com força na sala. Voltavam para as danças. Como Ruth não dançasse, o pae chamava-a de--minha estudiosa--gabando-a aos convidados, que olhavam um pouco espantados para ella. Ruth esquivava-se áquella curiosidade e fugia para fora. Iam encontral-a depois no balanço, sósinha, voando á claridade das estrellas... Só no dia seguinte ao do festim é que o Dr. Gervasio ia ao palacete Theodoro saborear o perú quebrado do almoço e os fios de ovos, na quietação cançada da familia. Então eram por toda a parte vestigios da barafunda. Nina contava os talheres, que espalhados entre a loiçaria e os crystaes punham ondas de luz pallida na mesa do jantar; Noca varria as salas, criados lavavam os marmores da escada e do vestibulo e o jardineiro guardava os copinhos e as lanternas disseminadas pelo jardim. Era uma d'essas festas que Francisco Theodoro desejava agora offerecer aos seus amigos. Desceu a consultar a mulher e o medico. Encontrou-os ainda no terraço, ao lado de Ruth, que as mãos da mãe prendiam nervosamente. Milla acolheu á ideia com frieza; o marido insistiu: --Você está molle, anda differente. Reaja, tome remedios. Que diabo! eu tenho obrigação de obsequiar os homens. Elles vêm ahi em nome da colonia. Não quero fazer figura triste. --Alguma manifestação? perguntou Gervasio. --Sim. Uma tolice. Ideias do Braga, do Lemos e de outros. Avisou-me hoje d'isso o Negreiros. Foram até ao ministro, e não sei mais o que! Emfim, já disse, o que eu não quero é fazer figura triste. O engraçado é que minha mulher fallava em dar um grande baile, e agora, que se apresenta a occasião, faz cara feia! Dr. Gervasio acudiu. Achava magnifica a ideia e procuraria auxilial-a na execução. De si para si pensava que esse pretexto traria Milla ao movimento da sua vida habitual; arrancal-a-ia d'aquella obstinação de pensamento, d'aquella apathia physica que o atormentava. Pela primeira vez o viram interessado por uma festa. Francisco Theodoro pediu-lhe que a dirigisse. D'esse dia em deante o medico punha e dispunha do palacete, como senhor absoluto. Determinava como as coisas se fizessem. A ceia seria no terraço, ao fundo, sob una toldo de seda, entre bosquetes de avencas e camelias brancas; desenhava ornamentos, encommendava flores, substituia estofos, harmonisava cores, dava estylo e graça ao que só tinha peso e luxo; idealisava a matéria, arrancava uma alma delicada áquellas salas carregadas e mudas. Milla assistia a tudo silenciosa, abatida pelas suas suspeitas; mas, pouco a pouco, Gervasio convencia-a de que a sua ciumada era uma doidice. Não tivera elle tambem ciumes do capitão Rino? E ahi estava: já nem pensava nisso! Como o coração de Milla não comportasse rigores, affeito á felicidade, ella foi esquecendo. IX Uma tarde, Mario entrava na sala de jantar, quando viu o Dr. Gervasio á mesa; então tornou a sahir, sem dizer uma palavra. Milla sentiu o coração parar-lhe no peito. Theodoro não ligou importancia ao caso; para elle o filho voltara a buscar algum objecto esquecido, e, tão enthusiasmado estava a fallar em negocios, que só para a sobremesa disse espantado: --É verdade, e o Mario? então o Mario não voltou? Nina murmurou, desculpando-o: --Acho que está incommodado... --Vou ver isso. Theodoro levantou-se. Calaram-se todos, como se o mesmo fio de desconfiança os ligasse entre si. Camilla tremeu. Que diria o filho? como o ouviria o pae? No seu amor, de tamanhos supplicios, nenhum egualara nunca ao d'esse instante. Tinha chegado a hora do marido saber tudo, e pelo Mario! Dr. Gervasio comprehendeu-a e tentava socegal-a de longe, com um olhar firme, de confiança, certo de que nada vale antecipar tristezas, que nem por isso as coisas deixam de vir, pelos seus pés ou pelas suas azas, quando têm de vir. Mas tudo o fazia esperar que não viesse a que ella temia... E para afastar preoccupações, fallou de alegrias: annunciavam-se festas; abria-se uma exposição de pintura, excellente; e commentavam-se os brios de um tenor novo para o Lyrico... Elle sentia que a sua voz soava falso; ninguem o ouvia, nem elle mesmo, que apezar da calma apparente dizia aquellas palavras pensando em escutar outras, que viessem de fóra, como raios, fulminando tudo. Milla encostou-se ao espaldar da cadeira, muito pallida, com uma expressão interrogativa no olhar assombrado. Dr. Gervasio fallava, fallava... Entretanto, Theodoro rompeu pelo quarto do filho. --Então, _seu_ Mario? isso faz-se! Entra-se em uma sala para jantar é volta-se para traz sem satisfações, de mais a mais deante de visitas?! --Visitas?... que visitas? o Dr. Gervasio?... Esse é de casa. --Não é; mas que fosse; se não me consideras nem a tua mãe, devias ao menos respeitar o hospede. --Mas se é o hospede que eu detesto! não posso vêr aquelle homem, papae, não posso vêr aquelle homem! --Tu estás doido! porque?! Mario calou-se, de repente, arrependido, de olhar esgazeado. O pãe insistia, furioso: --Essas coisas não se dizem á tôa; responde: porque lhe tens essa raiva? --Não sei ... desde creança que antipathiso com elle ... por instincto... Aborreço aquelle rosto pallido ... aquelle corpo esguio ... aquella voz desegual, aquelle sorrizinho de mófa, embirro com as suas mãos de mulher, com os seus ditos de pedante, com a sua assiduidade, com os seus sapatos, com a côr das suas roupas, com os vidros das suas lunetas, com as suas essencias, com elle e com tudo que é d'elle. Não me pergunte mais; não posso dizer mais nada; talvez lhe pareça pouco. É muito. Por hoje desculpe-me. Estou doente. --Se estás doente, trata-te; só mesmo um delirio de febre explica o que disseste. Fica bom, que temos de ajustar contas! E que o caso não se repita, ouviste? que não se repita!... senão ... olha que eu não sou bom! Francisco Theodoro sahiu ameaçador, mas foi dizer ao medico que effectivamente o Mario estava indisposto... Nessa noite, como nas outras, o moço foi para a rua sem um--até logo! Era preciso ir buscar a felicidade onde a encontrasse; a casa aborrecia-o. A familia andava a passear pela chacara, na doce pasmaceira costumada, vendo regar as plantas e nascer as estrellas. Fazia um calor barbaro. Ruth voava agarrada ás cordas do balanço, cantando alto, e atirando flores de cajazeiro á mãe, cada vez que ella lhe passava por perto. Camilla recebia-as com ambas as mãos e sorvia-lhes o aroma acido e leve, numa deliciosa sensação, afagada pela homenagem. --Cuidado, minha filha! --Ahi vae um beijo, mamãe! O beijo voava com as flores, que se prendiam aos cabellos de Milla. E o passeio continuava, arrastado e feliz. --Um dia esta menina leva um tombo!... Mas eu sei o que faço. Amanhã cedo mando cortar as cordas do balanço. Mais vale prevenir! --Não, Theodoro, não! É o divertimento d'ella; e é tão innocente! --Lá vens tu... Ruth não os ouvia, voava no ar como uma pluma, cerrando os olhos á claridade que se diffundia nas côres gloriosas de um crepusculo ardente. De vez em quando, num impulso mais forte a sua cabeça roçava na rama florida do cajazeiro, e o sussurro das folhas tinha para os seus ouvidos um rumor divino e rythmado, de musica impeccavel. Toda a sua força se concentrava nas mãos, que a aspereza das cordas magoava, unica parte então sensivel do seu corpo, que ia e vinha na luz cambiante da tarde, como uma sombra movediça e impalpavel. Na vertigem do vôo, ella não via, em cima e em roda, senão claridades estonteadoras, onde anjos azues abriam azas esgarçadas de nuvens fugidias, por entre barras de ouro e ennoveladas fogueiras rubras. Em baixo, na terra côr de ambar, o velludo verde das gramas e dos arbustos distendia-se num espreguiçamento voluptuoso e macio, á espera do somno. Ia chegando a hora da consagração purissima da natureza: a hora das estrellas. Não tardou que o alaranjado poente se concentrasse num roxo escuro, bipartido em ilhotas negras, sobre um mar de prata. De repente, a penumbra. O calor augmentava; houve roncar de trovoada ao longe. --Quer Deus Nosso Senhor que eu me vá embora, disse o medico. --Sim, é prudente, nós vamos ter chuva ... respondeu Theodoro, consultando o céu. E chuva de arrazar! Camilla ordenou a Ruth que descesse e fosse dentro buscar o chapéu do medico. Despediram-se. Quando Theodoro entrou em casa, perguntou á Noca: --_Seu_ Mario? --_Seu_ Mario sahiu... --Hum ... eu já esperava isso mesmo... Mas elle paga... Camilla e Nina entreolharam-se com ligeiro susto, seguiram caladas para a saleta, onde costumavam passar o serão. Mal se sentaram, Milla impacientou-se. Formigas de azas voltejavam em nuvem ao redor da luz, e perseguiam-n'a a ella tambem, batendo-lhe no rosto e entrando-lhe pela golla do vestido. --Tudo se junta, quando a gente está aborrecida! disse ella zangada. Nina sacudiu as formigas com o lenço. Pelas dez horas, Francisco Theodoro chamou de novo a mulata. --_Seu_ Mario? --Elle ainda não voltou... --Está direito. Você vá lá embaixo botar a tranca na porta. Quando elle vier, mesmo que bata, não abra. Percebeu? --Percebi, sim, senhor. --Agora chame o Dionysio. E ao Dionysio, como a todos os criados, foi dada a mesma ordem. Milla levantara os olhos do livro que estava lendo. Nina picava os dedos com a agulha, mal acertando com a costura. Theodoro voltou-se para ellas: --Nos tempos antigos não havia chaves de trinco. Os filhos deitavam-se á mesma hora que os paes... --Sahiam pelas janellas ... murmurou Camilla. --Pois sim! --E se chover? A noite está tão feia... --Que volte para traz. Não vem a pé. --Mas como despede o tilbury ao portão, terá de voltar a pé, e debaixo d'agua... --Pois que apanhe chuva, se chover, exclamou Theodoro fóra de si; ou raios, se cahirem raios. Senhora, isto então é vida?! --É a mocidade... --Já me tardava. Muito obrigado! Eu pude passar a minha dobrado em dois ao peso do trabalho, e o senhor meu filho só sabe gastar o que ajuntei com o suor do meu rosto! --Elle não tem a mesma saúde; Mario é fraco. --Mais uma razão. --Qual razão! --Basta; resolvi, acabou-se. D'aqui em deante, ou o rapaz me entra em casa a horas convenientes ou... --Ou?... --Ou que vá dormir para o diabo! Camilla olhou com desprezo para o marido, ennojada d'aquella furia. Quiz replicar, mas veiu-lhe de repente um grande medo de que Francisco Theodoro a fizesse de novo intermediaria das suas ameaças, e fugiu da sala para não responder, batendo com a porta, num desespero. --É por estas e por outras que o Mario está assim ... resmungou o negociante, percorrendo a sala com as mãos nos bolsos, a tilintar as chaves. Fóra, a noite estava negra, abafadissima. Vinha da terra e dos vegetaes um cheiro intenso, morrinha de febre, que engrossava a atmosphera, corporisava-a, tornando-a irrespiravel. Ainda não eram onze horas e já se recolhiam todos para os quartos, amodorrados, bambos. Pouco depois levantou-se a primeira lufada, que veio roncando de longe, soturnamente. Fecharam-se as janellas; a tempestade ahi estava. Quando rezava para dormir, Noca teve um estremecimento: uma coruja passou cantando rente ao beiral do telhado. A mulata persignou-se duas vezes e ficou á escuta. O que passou depois, foi o vento. Ella deitou-se com um suspiro. Quem não se deitou foi a Nina. Sózinha, no seu quarto estreito, abriu a janella e debruçou-se para o jardim, sondando a rua, através do arvoredo. Os lampeões de gaz mal alumiavam as calçadas solitarias, envolvidos pelas nuvens de poeira, que vinham de longe, varridas pela ventania, lambendo tudo. De vez em quando, um bond passava, de oleados corridos, com tilintar de campainhas que vibravam timidamente no vozear medonho da noite. Nina voltou para dentro, desabotoou o corpinho e atirou-o para uma cadeira; sentia-se oppressa. O tufão descançava: ella voltou á janella, curiosa, com anciedade, cosendo o peito nú ao peitoril largo. Não viu nada. A voz arrastada de um bebedo guinchava na esquina, em falsete, acompanhada por outra voz, que fallava na mesma toada. Uma nova lufada veiu forte, terrivel, abalando tudo. A unica janella illuminada da visinhança fechou-se. O bebedo foi arrastado para longe, perderam-se os seus queixumes á distancia, e só ficou o vento, cada vez mais forte, uivando, uivando. Agora não parava; enchia tudo com o seu sopro formidavel. Sentia-se o estalar crepitante das folhas estorricadas pelo sol e o aroma das verdes, que elle ia levando pelo ar em revoada louca. Na inutil resistencia da lucta, as arvores contorciam-se, estalavam; cahiam arbustos arrancados pelas raizes, e fructas verdes despenhavam-se sobre as telhas, com estrondo. Nina expunha a cabeça núa ao açoite da tormenta, ennervada pela fixidez da sua ideia. Entretanto, sabia, o Mario não merecia aquillo, não a amaria nunca. Havia uns quinze annos já que ella morava naquella casa, levada pelo pae, o Joca; era então muito enfezada, apezar dos seus dez annos. Entrara para alli como poderia ter entrado para um asylo qualquer: para ter cama e pão. Não ignorava isso, lembrava-se de tudo. Era obrigada mesmo a meditar no passado mais do que queria. Não conhecêra a mãe, e em frente á mudez da tréva pensava nella, como se a tivera visto. Não comprehendia por que rejeitavam o seu coração amoroso. Nem mãe na infancia, nem noivo na mocidade. Que triumpho! Sabia pelos outros que a mãe fôra uma mulher da má vida e baixa classe; mais nada; e não era pouco. Criara-a desde o primeiro anno a avó paterna, D. Emilia, sem muitos agasalhos, porque o dinheiro era escasso e a paciencia já não era nenhuma. Por causa d'isso aprendera depressa todos os serviços caseiros, era a copeira da familia, e aos nove annos já não se atrapalhava quando tinha de pôr uma panella de arroz ou de feijão no fogo. Lá teria ficado sempre em Sergipe, se o Joca não se tivesse casado com uma viuva carregada de filhos e que não podia vêr a enteada deante de si... Sempre as antipathias! Não era para tornar má uma creatura? Lembrava-se que não fôra tambem acolhida com enthusiasmo na casa de Francisco Theodoro. Ao principio, amedontrada, Nina procurara a companhia dos criados, de preferencia á da familia, habituada aos serviços grosseiros e ás palavras brutas, com o seu ar de cãozinho batido. Toda a gente tomava isso como o mais claro indicio dos instinctos baixos; aquillo era o traço da lama que ella trazia da mãe e que arrastaria pela vida fóra. Habilidosamente, Noca aproveitou-a para entreter Ruth, que dava então os seus primeiros passos. E nesse mister, a menina revelou a doçura do seu caracter e o engenho do seu espirito. Ruth em poucos dias preferia-a aos outros, atirando-lhe ao pescoço magrinho e pallido os seus dois bracinhos redondos. Aquella conquista foi uma gloria para Nina. O amor de alguem nascia para ella, como a luz para um cégo, e sentia nos beijos côr de rosa da creança gorda e bem tratada o aroma da vida, que até então ella só parecia ter espreitado de longe. Mario era nesse tempo um rapazinho de cinco annos, alto e forte para a edade, muito lindo, arrojado e pouco amavel para ella. Abusando da sua força e da sua posição de preferido, trazia-a fascinada, prompta a ceder ás suas vontades absurdas. De todas as pessoas, uma das mais indignadas contra a adopção da Nina em casa de Theodoro fora D. Joanna, para quem a menina cheirava a peccado e era uma blasphemia viva aos preceitos da moral religiosa. Para essa classe ha os asylos, affirmava ella; as plantas damninhas não são para os canteiros de violetas. A caridade faz hospicios, orphanatos, rodas, onde se apuram e aperfeiçoam os filhos da impureza e da vergonha; mas agazalhar no seio honesto um animal desconhecido, era exporem-se a um veneno de effeitos imprevistos. Milla não repellia a ideia, cheia de indignação pela origem da sobrinha; entretanto, a coitada ia pouco a pouco conquistando as boas graças de todos, de vagar, pela sua docilidade e o seu prestimo. Apezar de miuda e de pallida, ninguem a via doente; tinha os musculos flexiveis, como o genio. Aos doze annos conservava o seu ar estupido e humilde; não conhecia uma lettra; mas ensinava as criadas novas a varrerem a casa e a pôrem a mesa com perfeição. Como o Mario lhe batesse um dia com os arreios do seu cavallo de páo, Francisco Theodoro resolveu pôl-a em um collegio, de pensionista, recommendando uma instrucção pratica, nada ornamental. Bem orientado andou. O collegio fôra o seu melhor tempo. Do pae não sabia senão de longe em longe, quando elle participava á irmã o nascimento de mais um filho, com umas lembranças murchas, para ella, no fim da carta. Ao principio, a idéia d'aquelle irmão, que não veria talvez nunca, sensibilisava-a; depois deixou de pensar nisso... Para que? Foi só depois de mulher que Nina começou a amar a mãe; amor ignorado por todos e que ella cultivava como um segredo caro. Sondae bem o coração mais puro, que lá no fundo achareis um mysterio, alguma coisa que existe e que se nega, ou porque faça corar ou porque faça soffrer. Nina tinha vexame de perguntar pela mãe e ardia em desejos de saber d'ella. Onde estaria essa mulher repudiada? Ninguem lh'o dizia; assim, ora a imaginava na sepultura, e era a idéia mais consoladora, ora regenerada, mas sozinha ... ora em um d'esses recantos negros da cidade, já velha e ainda atolada no vicio, batida, escarnecida, miseravel. No meio da treva, que ella interrogava com ancia, pareceu-lhe sentir a alma impenetravel da mãe solicitando-a no agoniado suspiro do vento; então extendeu os braços, soluçando, no desejo da Morte, para o encontro definitivo das duas almas e a fusão de um beijo eterno, que redimisse uma e désse á outra a sua primeira alegria. Reboaram os primeiros trovões, com enorme estampido; um zig-zag de ouro cortou o espaço negro, e á luz branca de um relampago a casaria muda bailou macabramente com o arvoredo escuro. A convulsão passou, para voltar depressa; na phosphorescencia mobil e offuscante da luz, todas as coisas tomavam proporções extraordinarias, mas logo, nos intervallos, a treva da noite mais se condensava. Applacou-se o vento, e então, só de um jacto, a chuva cahiu, pesada, brutal, ensurdecedora. A agua borrifava a janella. Nina procurou um chale, envolveu-se e voltou. Era tempo: através das torrentes da chuva, viu tremeluzir indistincta no véo fosco das aguas, a lanterninha de um tilbury. Debruçada, alongando a cabeça, a moça gritou: --Mario! Mario! Mas a sua voz fraca perdia-se no diluvio. O primo abria o portão; ella tentou ainda dizer-lhe que voltasse, que o pae lhe trancara a porta; mas a lanterninha do carro movia-se já na sombra, ia-se embora. Nina voltou para dentro, accendeu a vela e esgueirou-se para o corredor. Com o coração aos saltos, foi resvalando pela alcatifa do passadiço, com a precaução de quem vae para o crime. Quando chegou a baixo já o Mario sacudia a fechadura com impaciencia, praguejando raivoso. Ella tacteou os ferrolhos e recommendou: --Espere um bocadinho, Mario! --Que estupidez! --Não faça barulho ... já vae! sussurrava ella sem que elle a ouvisse de fóra. Emfim, a porta abriu-se. Mario esperava cosido ao humbral. --Que idéia foi esta de deixarem a chave... E elle interrompeu a phrase e a cólera, ao ver a prima alli. Por que seria ella e não qualquer criado, quem lhe ia abrir a porta? --Foi ordem do tio Francisco. Boa noite. Nina quiz subir logo, mas uma lufada de vento obrigou-a a proteger a chamma da vela com a mão, e com o gesto desprendeu-se-lhe uma ponta do chale que a envolvia. Na meia escuridade do vestibulo, Mario percebeu-lhe a doçura do hombro nú, pequeno, redondo, um pouco de carne virginal guardada até ahi em um recato que nem o baile afugentara nunca. E já elle não viu senão a pureza d'aquelle hombro assetinado, sahindo do meio das lãs, como um desafio aos seus sentidos, num assalto impudico e voluptuoso. Acudiu-lhe então a ideia perversa de haver um proposito malicioso naquella historia. Não lhe affirmara Noca tantas e tantas vezes que a prima o amava? A filha da mulher de má vida ahi estava agora, como devia ser: livre de hypocrisias. Mario extendeu-lhe os braços. Nina comprehendeu. Uma onda de sangue subiu-lhe ao rosto; segurou o chale com força e subiu correndo. A vela apagou-se, os degráos da escada pareciam multiplicar-se debaixo de seus pés. No alvoroço, pisava sem cautela ora no assoalho, ora no passadiço, sentindo as faces abrasadas de vergonha, feliz no seu desespero, suppondo-se ainda perseguida pelos braços do Mario, que se quedara estupefacto no mesmo ponto. Um trovão estalou, como se uma bomba tivesse rebentado em casa. Nina sentiu os joelhos vergarem-se-lhe, mas continuou no seu galope tonto até ao patamar. No corredor, em cima, receou ainda errar de porta. Com as mãos extendidas apalpava a escuridão, ouvindo só o estrondo da chuva, compacta, sempre egual. Temia que o primo a perseguisse e não se atrevia a voltar a cabeça, para não esbarrar com elle, alli mesmo, juncto aos seus calcanhares. Os pés, habituados ao caminho, levaram-na direita ao fim; uma rajada assobiando pelas frinchas de uma porta, fêl-a reconhecer o quarto, de que deixara aberta a janella, e ella entrou arrebatada, forçando a porta, que resistia. Fechou-se logo á chave, collou o ouvido á fechadura. Ninguem; suspirou de allivio, estava só. Um relampago conduziu-a á janella, de que fechou os vidros, alagando-se toda. Despiu-se á pressa, ás escuras, deixando cahir toda a roupa molhada no chão. E foi á luz branca de um outro relampago que ella se viu toda núa, muito pallida, no grande espelho do guarda-vestidos. Escondeu o rosto de repente, como se vira um phantasma, e saltou para a cama, enfiando a camisa de dormir, num movimento de louca, com medo da noite, com medo da sua propria imagem, que se lhe afigurava impressa para todo o sempre no vidro... Envergonhada, prevendo grandes males, em uma angustia em que se fundia um prazer, adivinhando os pensamentos do primo, maldizendo-o e adorando-o, sentindo-se d'elle para a vida e para a morte, quasi que se arrependia de se não ter abandonado, soluçando por aquelles braços de que fugira... Era tal a sua confusão e a vibração dos seus nervos, que não sentiu alguem andar pelo corredor de vela accesa e passos compassados. Mario adormecia feliz, na melhor paz da vida; Francisco Theodoro voltava para o somno interrompido, tendo intimamente perdoado a quem abrira a porta ao seu rapaz, por tão feia noite de trovoada,--e ainda Nina, na estreiteza da sua cama, com os olhos pasmados para o tecto negro, soffria, soffria, soffria... No outro dia, ás oito horas da manhã, quando Francisco Theodoro entrou na sala de jantar para o almoço, comido sempre cedo e á parte da familia, já lá encontrou a sobrinha, retocando os arranjos do copeiro para a sua mesa. --Bons dias, Nina; você passou bem a noite? perguntou-lhe elle, fixando-lhe os olhos pisados. --Eu passo sempre bem ... respondeu ella corando. Elle teve pena; e mais baixo, para que o criado não o ouvisse: --Você fez mal em abrir a porta a meu filho; elle não lhe merece esses sacrificios ... e ... e mesmo isso não lhe fica bem; a sua intenção foi boa; realmente a noite estava pavorosa ... comtudo espero ser esta a ultima vez que sou desobedecido. Nina estava hirta, encostada ao espaldar de uma das cadeiras arrumadas junto á mesa. Um vento de desespero sacudiu-lhe as idéias, sem que ella atinasse com que palavra responder. Francisco Theodoro reclamou então d'ella, mesmo para a tirar do embaraço em que a via, que lhe partisse uma fatia do _roast-beef_ frio e que lhe fosse depois buscar o _Jornal_, esquecido em cima, no quarto de _toilette_. Aquella maneira polida e reservada não era a usada pelo negociante nos seus momentos de censura. Ao contrario, elle abusava dos termos violentos e atroava a casa com as suas mais altas vozes. E era uma d'essas crises que a Nina esperava e que viu mudada num tom em que a admoestação era misericordiosa, e por isso mesmo mais commovedora. Ella não respondeu, e apressou-se em servir o tio. X Raras vezes as tias do Castello appareciam em Botafogo. D. Itelvina não se arredava de casa, espicaçando o serviço da Sancha, arreliada com os desperdicios e a beatice da irmã; esta é que, de longe em longe, ia sentar-se á mesa de Milla para uma palestra curta, no intervallo das suas devoções. Nina, ainda atarantada pela advertencia do tio, punha no terraço a gaiola do cacatuá, quando viu D. Joanna atravessar o jardim com os seus passos vagarosos, de mulher gorda e cançada. --Que milagre! a senhora por aqui! A velha sorriu-lhe e só depois de sentada num banco do terraço é que fallou, com a blandicia costumada, desamarrando com as mãos papudinhas o nó da mantilha preta. --Mal imagina você por onde tenho andado! Olhe: ás cinco horas já eu estava em São Bento, ouvindo a missa de N. S. da Conceição; depois dei muitas voltas pela cidade, angariando esmolas. --Tão cedo? --Nos bairros pobres a vida começa de madrugada. Por fallar em esmolas, hontem estive em casa das Bragas, da rua dos Ourives. Conhece-as? --Não, senhora. --É pena; são umas almas muito tementes a Deus. Achei-as atrapalhadissimas, preparando doces para offerecerem ao vigario Alves, que faz annos hoje. Não imagina como ellas são... --Desculpe, tia Joanna, interrompeu Nina; e voltando-se para dentro: --Ó Dionysio, leve o café ao Sr. Mario, ouviu? --Ainda estão dormindo?! --Tio Francisco já sahiu. --Triste peccado é a preguiça ... emfim, cá estou eu rezando por todos... Pois as Bragas entregaram-me dez cartões para um grande concerto que vae haver no Cassino, em beneficio da egreja do Monte Serrate... Para o fim que é, ninguem se póde negar; Camilla deve levar a Ruth a essas festas de musicos... Eu pago a minha cadeira, mas lá não vou, e as outras nove espero deixal-as aqui. Vocês vão a tantos espectaculos indecentes, que não fazem nada de mais indo a este, que é para bom fim. Canta uma tal ... Marcondes, ou ... não sei quê... --A senhora falle com tia Milla. _Seu_ João! chamou ella interrompendo outra vez a conversa, voltada para o jardineiro que passava: olhe! é preciso fazer um ramo novo para a sala de jantar; como não ha rosas, faça de folhagens... Já reparou para as palmeirinhas da entrada? --A chuva escangalhou-as; desfolhou as flores, e abriu covas nos canteiros, que Deus nos acuda! --Veja se remedeia isso hoje mesmo... O jardineiro passou; D. Joanna disse: --É pena que não haja rosas; eu gostaria de levar algumas ao vigario Alves. Hontem a mulher e as filhas do Dr. Mendes passaram lá o dia, pregando cortinas, tapetes, ajudando D. Maria a enfeitar o quarto do filho... Aquellas são tambem muito boas pessoas... --Quer café, tia Joanna? --Acceito... Você é das taes que nunca vão á missa ... ha de se arrepender... --Não tenho tempo... Quer mais assucar? --Quero... Qual não tem tempo!... pois olhe, você tem peccados atraz de si, que deve purgar, se quer merecer o nome de boa filha... Nina franziu as sobrancelhas e, desviando a vista do rosto branco da tia, olhou para o jardim, ainda empapado d'agua, muito verde, juncado de folhas arremessadas pela ventania. D. Joanna saboreava o café, sem reparar na moça, que continuava em pé, com o rosto contrahido por uma expressão de raiva e de melancholia. Ruth encontrou-as assim. Ella vinha toda fresca do banho, com o seu cabello negro e ondeado solto sobre os hombros estreitos, e o vestido branco, de cinto largo, que lhe tornava a cintura grossa e lhe dava ao corpo um ar de anjo de cathedral. --Como está crescida! exclamou D. Joanna ao vel-a. Ruth mostrou os dentes alvos num sorriso alegre. --Bons dias! Sabe, tia Joanna? ainda hontem pensei na senhora! --Porque?... --Porque ando com muita vontade de ir ao observatorio do Castello ver a lua e as estrellas. --Que lembrança! pensei que fosse para a levar a alguma festa de egreja... --Não; isso cança-me, e, depois, já tenho visto tantas! Naquella da Sé, outro dia, os musicos desafinaram que foi um horror! Se ao menos cantassem bem... Quem me lembrou a ida ao observatorio foi o capitão Rino. Ver bem a luz e a côr das estrellas é o que me preoccupa agora. Leve-me lá, titia, sim? --É melhor que você pense em conhecer o céu por dentro. --Seria querer demais. Você já leu hoje a _Flor de Neve_, Nina? Nina meneou com a cabeça, que não. --Que historia é essa de flor de neve? indagou D. Joanna. --É um romance do _Jornal_, muito bonito. Estou morta por saber se a Magdalena morreu ... tambem se tiver morrido não tornarei a pegar no _Jornal_! D. Joanna ia reprovar a leitura, quando Camilla appareceu no terraço, bonita, de _peignoir_ côr de rosa, toda rescendente, dando as mãos ás duas filhas pequenas. Nina tomou a bençam á tia e, para fugir á presença da velha, que naquelle momento se lhe tornara odiosa, entrou logo para a sala de jantar. --Isto aqui está muito humido; porque não foi lá para dentro, tia Joanna? --Este banco está enxuto. A Nina estava aqui... Camilla, depois de cumprimentar a tia, tirou da gaiola o cacatuá e beijou-o no pennacho. Depois, para a velha: --O que a trouxe tão cedo? D. Joanna voltou á historia das Bragas, da missa em S. Bento, e apresentou á sobrinha as dez cadeiras para o concerto em beneficio da capella do Monte Serrate. --Como é para um motivo de religião, eu fico, do contrario não; porque exactamente no domingo tenho convite para uma festa. --Hoje faz annos o vigario Alves; você não lhe manda um bilhete? --Posso mandar. --Acho bom. Elle reza muito por sua intenção. É um santo padre e um perfeito homem. --Elle é bonito, e trata-se bem. Já tomou café, titia? --Já... Porque é que você deixa Ruth ler jornaes? Ella fallou ahi num folhetim; isso são obras impuras; é preciso zelar pela alma de sua filha. --O pae não se importa, que hei de fazer? --Ainda não fez a primeira communhão? --É cedo. --Não é tal. Ella não quererá? --Se quer! ainda que não fosse senão para pôr corôa e véu... Todas as meninas sonham com a primeira communhão. É um ensaio para o casamento. --Heresias... E o Mario ... como vae o Mario? --Está um moço bonito. --E ... mais ajuizado? Camilla corou levemente, roçou em um disfarce as faces pelas azas brancas do cacatuá, e respondeu com um sorriso: --Como todos os rapazes de vinte annos... Lia e Rachel tinham-se engalfinhado a um canto por causa de um pecego verde, derrubado pela chuva e que ambas disputavam. Milla chamou a Noca, que interviesse e levasse as contendoras para dentro. D. Joanna levantou-se com um gemido e foi sentar-se a um canto da sala de jantar. Estava alquebrada, pezavam-lhe as pernas; soube-lhe bem a flacidez da poltrona, que a envolveu logo numa caricia de somno. Cochilou gostosamente, mal ouvindo as correrias e as gargalhadas das creanças, o tinir das louças que punham na mesa, e os passos da criadagem em movimento. Atravéz do somno tudo aquillo era subtil e bom como uma musica a distancia. Quando despertou, iam servir o almoço. Perto, em um vão de janella, o Dr. Gervasio, com roupa clara e flores na lapella, conversava baixo com a Camilla. D. Joanna tossiu para prevenil-os da sua presença; não se queria aproveitar do momento para indiscreções. Por fortuna, Nina entrou na sala, vinda da cópa, carregando uma cestinha de uvas brancas. Lá em cima Ruth atacava os graves e agudos do violino, com frenesi. «Louvado seja Nosso Senhor Jesus Christo, parece o zurrar de um burro!» pensou comsigo a velha, espreguiçando-se disfarçadamente. Á hora do almoço, o Dionysio trouxe uma bandeija para servir Mario no quarto, visto que este só comparecia á mesa da familia quando o Dr. Gervasio não estava. Camilla mal encobria o seu desespero, velando aquella offensa com desculpas frouxas, só para que o medico não reparasse. E elle nem viu tal coisa; acceitou os pretextos sem desconfiança. Mario merecia-lhe pouca attenção. Entretanto, Nina apartava para o primo o melhor bife, o pedacinho de pão mais fofo e os ovos mais perfeitos. D. Joanna notou aquillo muito calada, com medo de mexer em casa de maribondos, arrancando do peito suspiros curtos, que afogava em _bordeaux_... Dr. Gervasio observava a Ruth, que os exercicios, que lhe ouvira não estavam no andamento justo. Deveria repassal-os, antes da lição; depois aconselhou a Camilla que chamasse uma aia ingleza ou allemã para as gemeas, que perdiam o tempo, pervertendo-se com a linguagem de criadas boçaes. Elle opinava pelas allemãs; são disciplinadoras, risonhas e mais accessiveis que as outras. Depois de dirigir uns dois gracejos a Nina, o medico fixou com attenção o rosto pallido e humilde da D. Joanna, muito calada ao lado de Ruth. Lembrou-se de relance do encontro que tivera com ella no alto da ladeira de João Homem, sobre as pedras gordurosas da calçada, entre magotes de moleques curiosos e paredes sujas de predios velhos. Ficara-lhe no ouvido toda a censura d'ella, e houve então nelle um impeto de agarrar Milla e de beijal-a mesmo alli, deante dos olhos castos e pudibundos da velha. Foi só depois do café, ao accender o charuto, que elle ouviu D. Joanna, com o seu tom assucarado, queixar-se á sobrinha: --Porque é que você não ensina ao menos as suas filhas a se persignarem quando se sentam e se levantam da mesa? Dar graças a Deus pelos bens que recebem não é vergonha nenhuma... A sua consciencia, Milla, está muito perturbada por máus conselhos e exemplos de atheus sem caridade... Eu não queria fallar, mas tenho-lhes muita amisade para ficar impassivel; não lhe parece que está em tempo de ensinar estas meninas a respeitarem a nossa religião? Dr. Gervasio sorriu; comprehendera o remoque; Milla protestou: --Todos em casa eram religiosos, ninguem deixava de ouvir a sua missa ao domingo, excepto a Nina, que nunca tinha horas para coisa nenhuma, e uma ou outra criada mais sobrecarregada de serviço; á noite tambem ninguem adormecia sem ter rezado pelo menos um Padre Nosso. Ella não se esquecia dos seus deveres. Isto foi dito em tom secco, que encrespou um tanto o genio manso da tia; para vingar-se do medico, de quem suppunha emanar toda a alteração d'essa familia tão sua, ella exclamou com ironia, voltando-se para elle: --Aposto em como o doutor tambem reza todas as noites? --Aos meus deuses, respondeu elle com toda a calma, porque não? --Como se chamam os seus deuses? --Camões, Dante, Shakespeare... Nunca adormeço sem ter lido algum poeta, e de alguns recito mentalmente versos divinos. É a razão por que me explico ter tão bellos sonhos, visto que este feio homem que aqui está, excellentissima, tem sonhos que perfumariam a existencia da mais formosa das mulheres. Hontem li Dante. Estive no inferno, D. Joanna, e que inferno bellissimo! --Vá trazendo para cá essas ideias... --Descance; esta religião não se ensina; é para os iniciados. A senhora já ouviu fallar em Byron? --Algum inimigo da nossa Egreja, como o senhor? --Mas eu não quero mal á sua Egreja! acho-a só muito triste, toda voltada para a morte... Não lhe quero mal, porque para sua glorificação ella tem creado cathedraes que são verdadeiras apotheoses da arte. --Só por isso? --É uma das razões, e a unica facil de explicar-lhe. --Julga-me muito bronca. --Ao contrario, estou-lhe fallando como a um litterato! Agora, se quer, discutamos religião e philosophia. Conhece Comte? --Algum damnado. --É o termo. --Eu sei, adoram-no numa Capellinha da rua Benjamin Constant. Que peccado! --Ah! já tem noticias... Estamos bem adeantados. --O senhor é um dos taes que não perdem essas sessões? --Eu nunca lá vou. Já lhe disse, detesto a philosophia. Para enfadar-me basta-me a medicina e para distrahir-me as minhas roseiras. A senhora conhece algum bom remedio para matar pulgões de roseira? Tenho uma _Yellow Persian_ quasi perdida! --A sua medicina nem para as plantas serve? --Nem para as plantas, a miseravel! --Tia Milla! disse Nina apressada, entre as portas do corredor. --Que é? --Estão ahi a baroneza da Lage e a irmã... --Meu Deus! e eu de _peignoir_! Dr. Gervasio voltou-se e disse: --Pois está muito bem; quem procura uma senhora a estas horas, sujeita-se a ser recebido assim. Digo-lhe mais; para mim não ha vestido tão bonito. --Então vou assim mesmo... D. Joanna sorriu com magua; até nisso a opinião do diabo do homem era seguida! --Bem, Milla, ficamos despedidas, disse ella, eu vou-me embora. O dinheiro dos bilhetes? --É verdade! Nina! dá cem mil réis a tia Joanna pelas dez cadeiras. Até outra vez, tia Joanna. Lembranças. --Adeus. A moça sahiu. --Jesus! exclamou logo a velha, já passa de uma hora e Milla esqueceu-se de dar-me o cartão para o vigario Alves! O medico voltou-se rapidamente, com uma curiosidade transparecendo-lhe no rosto. Que desejaria Milla dizer por escripto ao padre Alves? A velha percebeu-lhe a extranheza do gesto e voltou-lhe as costas antes que elle lhe pedisse alguma explicação, afogando o rosto flacido na juba negra de Ruth, com muitos abraços, ternuras e lembranças ao Mario. Quando Camilla entrou no seu salão, a baroneza da Lage, toda de setim preto, estava de pé, contemplando um quadro insignificante, ricamente emmoldurado. A irmã, sentada perto do sofá, com um arzinho enfadado de loira anemica, distrahia-se brincando com os dedos enluvados nos berloques do seu cordão de ouro. A dona da casa desculpou-se logo por se apresentar d'aquelle modo... --Mas está em sua casa, está muito bem. Olha, Paquita, este _peignoir_ é quasi egual áquelle que eu comprei hontem no Raunier, não é? A Paquita meneou languidamente a cabeça, que sim. --Adivinhe agora o motivo da minha visita! disse a baroneza atravéz de um bello sorriso. --É facil. Vem participar-me o seu casamento! --Casar-me, eu? qual! --Porque não? É a viuvinha mais cobiçada d'este Rio de Janeiro. --Infelizmente. Imagine: tenho agora em casa uma senhora, especie de dama de companhia, sabe? só encarregada de receber e despedir os meus pretendentes... Não se ria, saiba que é verdade. Não é verdade, Paquita? Paquita meneou a cabeça, que sim. --Bem vê. Mas onde ouviu dizer que eu estava noiva? --Em um _bond_. --Já me tardava. O _bond_ é o eterno mexeriqueiro d'esta terra. Tambem vocês quando não querem comprometter os seus informantes, attribuem ao pobre _bond_ todas as indiscreções... Por isso o abomino. Só saio de carro... Não! Eu não venho participar coisa nenhuma; venho pedir a sua Ruth para abrilhantar um concerto que nós, protectoras do Sagrado Coração, pretendemos dar no dia quinze. Se não fosse coisa de religião, eu não me metteria nisto. Já me têm pedido para organizar festas em beneficio de escolas e de hospitaes para pobres, como se na nossa America houvesse pobreza... Creia, minha amiga, no Brasil não ha miseraveis, ha atheus. Precisamos de regenerar o povo com exemplos de fé christã. Camilla concordou; Paquita atreveu-se a dar uma sentença. Houve uma pausa. --Paquita deu-me um dia d'estes noticias de seu filho; diz que está muito bonito moço. Paquita atirou á irmã um olhar de reprovação; mas as palavras já tinham sahido, e nenhum poder as faria voltar ao ponto de partida. --Está ... mas um pouco vadio; não gosta de trabalhar... --Oh! nem precisa d'isso! É muito distincto. Eu, no caso d'elle, faria o mesmo. --Sim, mas o pae é que não se resigna a isso. Paquita esboçou um sorriso que não foi notado. A baroneza continuou: --Já recebeu convite para o nosso baile? --Já... --Esperamos que seja Mario quem nos marque o _cotillon_. Papae gosta muito do Mario. O pae da baroneza e da Paquita era um velho portuguez, antigo cavouqueiro, que boas auras de fortuna tinham tornado capitalista. Toda a cidade conhecia as suas anecdotas e simplicidades. Demais, elle gabava-se dos seus principios rudes e pesados. --Nós tambem preparamos um baile; somente a data é ainda incerta, disse Camilla. --Já se falla nisso. A baroneza conversava com volubilidade, mal tocando nos assumptos. Fallou muito e fallaria ainda mais se a Paquita não a interrompesse de repente com uma phrase secca: --Vamo-nos embora. --Sim, vamo-nos embora. Quando ellas se despediram, com a promessa de que Ruth tocaria no concerto, Camilla ficou com as mãos cheias de bilhetes para a _matinée_. A baroneza, no meio da vidrilhada do seu vestido de setim preto, caminhava como se levasse musica comsigo; tinha os passos cadenciados, o busto bem erguido, um calor doce nos seus formosos olhos acastanhados de morena. Paquita seguia-a, com o seu modo vago, em que tudo parecia escapar á observação. Camilla notou, ao apertar-lhe a mão, a magreza do pulso, um pulso alvo, fino, de creança doente, entrevisto entre a luva e a manga. Em baixo, no vestibulo, as moças esbarraram com o Dr. Gervasio, que sahia tambem, cançado de esperar por Camilla. Houve então uma troca de olhares significativos entre a baroneza e a silenciosa Paquita, que fez ao medico um quasi imperceptivel signal de cabeça. A irmã, muito expansiva, reteve-o, fallou-lhe com alegria, achando geito de lhe encher os bolsos com os bilhetes do seu concerto de religião. Nessa tarde o capitão appareceu em Botafogo. Começavam a notar-lhe a ausencia; Lia e Rachel, quando o viram, saltaram-lhe para os joelhos. Ruth veio em alvoroço, chamando-o de ingrato, pedindo noticias do _Neptuno_. Nina acolhia-o sempre com sympathia, achando nelle um ar de bom amigo, a quem num lance de perigo ou de angustia o coração de uma mulher póde vasar uma confidencia e pedir um conforto; Francisco Theodoro abriu-lhe os braços: Porque não apparecia, havia tanto? Só Camilla sorriu com esforço e reserva, extendendo-lhe a ponta dos dedos frios. E era por isso que elle fugia agora d'aquella casa, onde o seu pensamento vivia encurralado, como um animal teimoso. O seu amor por Camilla crescia á proporção que elle se abstinha de a procurar, ou que se via maltratado por ella. Não achava explicação para aquella mudança; não a recebera elle no seu navio como a uma princeza? As creanças abraçavam-n'o com enthusiasmo. --Meninas! que é isso? então! exclamava Francisco Theodoro, rindo, muito fraco pelas denguices das gemeas. Camilla olhou e teve pena. O capitão Rino estava mais magro; toda a sua roupa, escura e desageitada, parecia dançar-lhe no corpo; havia uma tristeza resignada nos seus olhos garços. Ella levantou-se, pretextando dôr de cabeça e subiu para o seu quarto. Rino pensou: «Ella foge-me ... talvez seja melhor assim.» Ouvia-lhe desesperado o rumor dos passos pela escada acima e ninguem percebeu que elle estava com o ouvido á escuta e os labios franzidos por um sorriso amargo. Lia e Rachel balançavam-lhe os braços rindo muito, comparando as suas grandes mãos ás d'ellas, tão mimosas... --Capitão Rino, porque não nos traz nunca sua irmã? perguntou-lhe Ruth. Com toda a calma, como se nenhum desgosto o abalasse, elle respondeu: --Catharina é uma exquisita; ella sae todos os dias, mas para andar lá pelo morro colhendo plantas... Raras vezes vae á cidade ou faz visitas. Somos uns insociaveis, nós dois. Meu pae era maritimo, minha madrasta foi sempre muito doente, e está nisso, julgo eu, a origem do nosso mal ... ou do nosso bem, quem nos dirá? Fazendo uma carinha comica, e apontando para o céu, Ruth respondeu com ar solemne:--Só Deus! XI Era a hora do café no armazem de Francisco Theodoro. O escriptorio estava cheio; o Innocencio, miudo e trefego, retorcendo com mão nervosa o bigodinho aloirado, com os olhos pequenos fulgurando-lhe no rosto pallido, dilatava as narinas, cheirando dinheiro, que lhe parecia andar esparso no ambiente de todo aquelle enorme casarão de S. Bento. Percebia as coisas de relance, e apanhava no ar as que lhe convinham. A seu lado o velho João Ferreira, espadaúdo trigueirão, largo de faces e de gestos, commentava com benevolencia os actos do governo, berrando ás vezes contra a opinião dos outros, que o atacavam por todos os lados em vivas represalias. O Lemos sorria calado, muito estupido para entrar em questões de tal ordem. Que lhe fallassem do preço da carne secca, que importava em grosso, e dos jacás de toicinho, e a sua opinião figuraria logo com todo o peso da autoridade. O Negreiros em pé, com o seu enorme nariz de cavallete, que a mão distrahida acariciava de vez em quando, era o unico republicano naquelle ninho de velhos portuguezes afferrados ás instituições tradicionaes da sua patria e d'esta que o seu amor e o seu bem-estar escolheram. João Ferreira desculpava a fraqueza dos homens; palrador, como todo o minhoto, discursava por gosto, abafando com o seu vozeirão as ironias do Innocencio, um ou outro aparte medroso do Lemos, e os protestos de Francisco Theodoro, que não comprehendia como um tão fiel monarchista pudesse achar desculpas para os desatinos d'esta «Republica de ingratos.» Negreiros sorria com a serenidade de um confiante. Elle fôra sempre um republicano e um extremado e era por isso olhado por alguns dos seus compatriotas com extranheza e susto. Como João Ferreira no maior ardor de seu discurso esbarrasse com a expressão alegre do rosto de Negreiros, e lhe comprehendesse o contentamento de o ter de seu lado, tergiversou e, com maldade alegre, achou logo tambem motivos de aspera censura ao mesmo governo que tinha gabado havia pouco. Não, que elle já estava maduro para dar o seu braço a torcer! Os outros triumpharam, era assim que o queriam; e chegou a vez de Negreiros entrar na discussão. Foi nesse instante, no meio da balburdia de vozes, que o capitão Rino appareceu no limiar da porta, com o chapéu na mão, e uma expressão interrogativa no rosto. A chegada subita d'aquelle extranho, para quem Francisco Theodoro fez logo um logar ao pé da sua secretária, abaixou o calor da conversa. Dividiram-se os grupos; houve risos baixos, pancadinhas nos hombros, de reconciliação e amisade. Só os olhinhos do Innocencio Braga ardiam na mesma febre, e os seus dedos magros torciam com maior nervosismo as pontas do bigode delgado. --Que novidade é esta, o senhor por aqui?! --Não lhe roubarei o tempo; é por curtos instantes. --Ora essa! tenho muito prazer com a sua visita ... dê-me licença de o apresentar aos meus amigos. Feitas as apresentações, o Isidoro entrou com o café em uma grande bandeija e houve uns segundos de silencio. Depois, Francisco Theodoro perguntou baixo ao capitão se lhe quereria fallar reservadamente. --Não, senhor; venho apenas despedir-me e rogar-lhe que apresente os meus cumprimentos á sua familia. Parto para o Pará. --Porque não vae jantar comnosco? o senhor não imagina como é querido lá em casa. A minha gente não lhe perdoaria isso! Bem sabe que não fazemos cerimonias. --Obrigado, mas a minha viagem d'esta vez é mais longa, obriga-me a preparativos que não me deixam tempo para nada. Na volta levarei os meus respeitos a todos. O capitão corava dizendo estas coisas. Todo o seu sangue, agitadissimo, lhe bailava sob a pelle de loiro. --Bem, bem! as obrigações não se deixam por coisa nenhuma ... dou-lhe razão; sou homem de negocios. Darei os seus recados á minha gente. Camilla vae ficar triste ... paciencia... Pois quando quizer lá estamos ás ordens como bons amigos; e Francisco Theodoro extendeu a mão larga ao capitão Rino, que a apertou confuso e alvoroçado. _Seu_ Joaquim appareceu no escriptorio e pousou um maço de papeis na secretária, pedindo a Theodoro que lhe désse prompto expediente. Aquillo equivalia a uma despedida; havia urgencia de recomeçar-se a lida. Levantaram-se todos. Innocencio Braga deixou-se para ultimo e e ao despedir-se do negociante pediu-lhe uma entrevista em sua casa, para negocio urgente, de alta importancia. No olhar de Theodoro houve uma interrogação pasmada. O do Innocencio tinha lampejos de ouro. _Seu_ Joaquim observava em silencio. O capitão Rino, que desceu na frente, topou com o caixeiro Ribas no corredor, junto ás grades do armazem, de orelhas molles e hombros descahidos, ruminando odios em silencio contra o Joaquim, que o deprimia á vista de todos. O capitão levava os olhos cheios de outras imagens, para attentar nelle. O bafo quente da rua, cheia de povo e de sol, acordou-o do sonho. Na calçada, mesmo á porta do armazem, a velha Terentia varria á pressa as pedras com a vassourinha de piassava, e a cabecinha amarrada no lenço branco, pendente para o seu trabalho. Os carregadores iam e vinham, cruzando-se, serpeando entre os vehiculos repletos de café, numa gritaria medonha. O trabalho trombeteava a todos os ventos a sua força poderosissima. O capitão Rino seguiu, abrindo passagem atravéz de grupos compactos e movediços. Aquella multidão aturdia-o. O mar limpo e vasto obrigara-o sempre a viver das suas proprias commoções, a ser um isolado e um melancholico, affeito a amar na natureza o que ella tem de maior e de mais simples. A onda do povo rude com que esbarrava, era bem mais complexa do que a do oceano que elle cortava com a prôa firme do seu _Neptuno_. Talvez tivesse escolhido mal a sua profissão. A vida do homem era aquillo que alli estava: a agitação perenne, o trabalho violento, o amor sem idealisações, o espectaculo renovado de tudo que a terra produz, mata e faz renascer para a fulguração do tempo, que é instantaneo e é eterno. O proprio mar, que escolhera e a que se lançara na phantasia da adolescencia, não era á orla branca da Terra que vinha atirar a sua grande queixa, a sua furia formidavel ou a sua voluptuosidade infinita? A terra pallida dos areaes, a terra côr de sangue das mattas, a terra negra do ouro, a terra rôxa dos cafeeiros, mãe da abundancia, ou a terra clara dos laranjaes, fonte de perfume, não é por ventura a parte do mundo consagrada ao homem, onde o seu suor, em cahindo, se transmuda em orvalho fecundo? O capitão Rino olhava para toda aquella gente, marinheiros, soldados, vadios e trabalhadores braçaes, negros ou portuguezes, uma população de homens apressados, sem lhe fixar o desalinho do gesto ou a preoccupação das vistas abrasadas. Eram homens, passavam em repellões, pensando no ponto da chegada. Elle ouvia-lhes a respiração, a offegancia dos peitos cançados e a cadencia dos passos batendo dominadoramente as pedras duras do chão. Aquelle ruido era sempre para elle uma musica de sonoridade nova. Entrou na rua da Prainha, tomou depois a da Saude, sem notar o aspecto desegual da casaria, os negros trapiches tresandando a cebos de carnes e meladuras de assucar esparramadas no solo, onde moscas zumbiam desde a porta da rua até lá ao fundo do armazem, aberto para um quadro lampejante de mar. Os trapiches succediam-se, repletos de barricas, de saccos, de fardos e de pranchões, enchendo o ar de um cheiro complexo, que a maresia levava de mistura, e de sons asperos dos guindastes, suspensos sobre balanças. Lanchas passavam perto em roncos e silvos entrecortados, e aquella confusão louca de vozes, que lhe era familiar, dava-lhe agora a impressão de que a terra se debatia num delirio de febre. Elle ia ao morro da Conceição, dizer adeus a um antigo companheiro, agora padre. Para isso, enveredou por uma ladeira estreita, talhada sobre rocha branca. A rua serpeava em curvas contrafeitas, elevando-se aqui para se despenhar acolá, acotovellando-se em angulos de um lado para descer ao outro em escadarias toscas. De casas velhas, abertas para a grande luz, sahiam mulheres para extender ao sol blusas de marinheiros, emquanto lá dentro vozes frescas de moças cantavam modinhas ternas. Á beira dos precipicios, creanças, quasi núas, atiravam com os pés, d'entre montes de lixo, latas vazias, que rolavam, tinindo pelas ribanceiras, e velhas, sujas, agachadas em uma ou outra soleira, coziam trapos, entre gatos adormecidos e gallinhas soltas. O dia estava azul, e o ar do mar vinha, em grandes lufadas, acariciar a face quente e robusta da terra. Capitão Rino atravessava uma rua de marinheiros. Ao ver alguns rostos tranquillos e braços grossos de mulheres, trabalhando ao ar livre, pareceu-lhe que o coração d'aquella gente era resignado e sabia esperar. A grande virtude estava com ella, só os simples podem ser fortes. Depois de varias voltas, por caminhos muito accidentados e sujos, elle viu-se na ladeira da Conceição, entre casas baixas, umas com as faces para as outras, mal abertas, de ar desconfiado. Outra gente alli se movia nas ruas. Rolavam no cisco das calçadas velhos botões azinhavrados de fardas. Mulheres de soldados tagarellavam em lingua aspera, com visinhas de má compostura, e um fartum enchia a atmosphera da rua longa, até ás proximidades da velha fortaleza. Em todo o comprimento do seu passeio, foi alli a primeira vez que o capitão Rino ouviu uma voz lamurienta, a pedir-lhe uma esmola. Ahi estava uma coisa que elle não ouvia nunca sobre a onda inconstante... Pouco depois bateu á porta do amigo, mas elle não estava em casa; só voltaria á noite. Rino continuou para cima até o pateo do forte e e ahi sentou-se um bocado na muralha, olhando para baixo. Que via elle? a casaria desegual, feia, derramada, brilhando aqui na telhas novas de reconstrucções, mostrando acolá outras, negras ou esverdinhadas, sobre paredes encardidas? Reparava para o movimento continuo da rua embaixo, cortando com uma linha larga e branca os predios melancholicos? Não. Com os olhos fixos na agua crespa da bahia, coalhada de vapores negros, de navios brancos, de embarcações de todo o feitio, elle só pensava em Camilla, tão rigida para com elle quanto docil e amorosa para com o outro... Fugia. Estava tudo acabado. Era o adeus á sua mocidade, áquelle sonho de amor, que elle dizia atravéz d'aquella infinidade de corações felizes, fortes, que esses telhados abrigavam por certo. Não haveria mais ninguem assim, tão desafortunado. Como seria bom viver, mesmo naquelle immundo bairro de trabalho, com o coração tranquillo, com fé no amor! Para elle, estava escripto: não tornaria a ver Camilla. A humilhação da ultima visita queimára-o como brasas. Ainda se ella o desprezasse, mas não amasse o outro! E toda a causa da sua desventura estava naquella preferencia. Porque havia de ser o outro, e não elle? O sino da Conceição badalou com força. Rino voltou-se; dois padres moços, de batina, atravessavam o largo, como dois pontos pretos de exclamação em um quadro vasto de sol. Nesse instante o moço maritimo teve a visão de que, ao encontro da sua, vinham duas almas eguaes, tristes na sua esterilidade. Ainda aquellas tinham o seu ideal, se guardavam intacto o oleo divino que todas as chagas suavisa e todas as miserias embelleza. E elle? sem fé sem um fito qualquer que explicasse o motivo dos seus dias, com um amor renegado, cavalheiro sem dama e sem sonho, que valia neste mundo, onde o homem merece pelo que pensa, pelo que crêa, pelo que combate ou pelo que amplia? Os padres passaram; elle quiz seguil-os, mas o corpo, cançado, amollecido, ficou ainda. E o pensamento recalcava: por que havia Milla de preferir o outro? parecia-lhe que todo o seu amor seria para sempre doce e platonico, se ella fosse para todos uma mulher austera, bem encerrada no circulo de seus deveres. Esta idéia trouxe a lembrança da mãe, morta a facadas pelo pae, como adultera. A imagem d'ella encheu-lhe o coração; ergueu-se bruscamente e começou a descer a rua, apressado com a ideia de fugir para longe, salvar-se do perigo que o solicitava. Era preciso não tornar a ver Milla; nunca mais! Para algo lhe serviria o seu orgulho de homem. A vontade domaria o coração rebelde. Não tornaria a vel-a. A idéa da mãe lembrou-lhe a irmã; tinha ainda tempo de ir jantar com ella naquella silenciosa casa das Laranjeiras. Só no dia seguinte iria para bordo aprestar o _Neptuno_. Devia pensar noutras coisas; esforçava-se por isso. Desejar Milla, para que? não tornaria a vel-a... Desceu o morro apressado, até á rua dos Ourives e seguiu por ella, sacudindo os hombros no movimento bamboleado do corpo, num andar de quem nada quer ver resoluto acalmado por um esforço em que entrara todo o poder da sua vontade. Fugir de Camilla e para sempre, crear, talvez, lá longe, em terras do norte, uma familia honesta, era o que devia fazer, o que faria, inevitavelmente e bem depressa, como remedio para esquecer... O capitão atravessou ruas, passou por amigos como se ninguem visse, e só ao desembocar na rua do Ouvidor parou de chôfre, com um batimento forte de coração. Deante d'elle, magestosa no seu vestido preto picado apenas no peito por uma rosa escarlate, Camilla sorriu-lhe, extendendo-lhe a mão enluvada. Era uma reconciliação e um appello; elle não atinou com que dissesse. Ao lado da mãe, Ruth fixava nelle aquelle brilhante par de esmeraldas que Deus lhe déra por olhos. Trocados os cumprimentos ellas não se detiveram, e o moço seguiu tambem o seu caminho, enfraquecido, todo embebido no aroma d'ella todo deslumbrado por aquelle ar de deusa inattingivel. D'alli até á Carioca já os seus passos se collavam ás pedras, desejosos de parar para a seguirem depois, quando ella voltasse para o calor da sua casa; mas o capitão Rino obrigou-se a ter juizo e caminhou para um bond das Aguas Ferreas, que era justamente o assaltado nessa occasião. Só depois de sentado reparou que estava juncto da D. Ignacia Gomes e das duas filhas, a Carlotinha e a Judith, ambas muito faceiras e risonhas nas suas _toilettes_ claras. D. Ignacia suspirava, cançada do esforço da tomada de logar, com as mãos carregadas de embrulhos, e o toucado já descahido sobre a orelha esquerda. Não a pilhariam tão cedo na cidade, affirmava. Reconhecendo o capitão Rino, pediram-lhe logo noticias da familia Theodoro, como estava a boa Camilla? Elle disse o que sabia, um pouco atrapalhado, corando. A Carlotinha, sempre trefega, debruçava-se sobre o collo da mãe, dizendo-lhe com a sua voz maliciosa phrases em que entrava mais atrevimento do que espirito. Tinham-se mudado para as Larangeiras e offereciam-lhe a casa. D. Ignacia vinha espantada com os preços dos objectos adquiridos; se não fossem as moças, ella não viria á cidade; gostava do seu canto, da boa paz caseira. --E o Sr. Gomes, como está? perguntou o capitão, menos por interesse do que para dizer alguma coisa. --Coitado, como velho cheio de trabalho. O Sr. não imagina! meu marido sacrifica-se pelos outros e o resultado nós sabemos qual é. Este mundo é de ingratos... --Sim, é de ingratos; confirmou o capitão. Até as Larangeiras D. Ignacia teve tempo de despejar todas as lamentações da sua alma attribulada; fallou de tudo, até das cozinheiras e do máo serviço do açougue. O discurso, interminavel, numa lenga-lenga, ora lamurienta, ora resignada, tornava ao capitão insupportavel a longura da viagem. Carlotinha perguntou pelo Dr. Gervasio. Que era feito d'elle, que ninguem o via, senão no palacete Theodoro? Rino encolheu os hombros; não sabia. Judith debruçou-se por sua vez, e contemplou-o com curiosidade. Tinham chegado ao termo da viagem e desceram com muitos offerecimentos, apontando o portão da sua residencia. O capitão Rino correspondeu ás expansões com amabilidade discreta, admirado da exuberancia d'aquella gente. Que lhe importavam as denguices da Carlotinha, de olhar gaiato e tez de jambo, ou as da Judith, pallida e pequena, se todo o seu pensamento estava na outra, naquella Milla de formosura opulenta, de quem guardava ainda na palma a doçura da mão enluvada? A fatalidade d'aquella paixão bem se revelava em tudo; elle furtava-se a vêl-a, saudoso e afflicto, mas forte na sua resolução, e eis que ella lhe apparecia em uma volta de rua, inesperadamente! O _bond_ parara no ponto e o moço desceu, caminhando para deante até a chacara da madrasta; o portão estava aberto, entrou. Nos largos canteiros touceiras de cannas da India erguiam os seus pennachos de flores vermelhas e amarellas; elle tomou á esquerda, por uma rua ladeada de gyrasóes e de magnolias côr de ouro velho. Era ao fundo d'essa rua que apparecia a casa, de feição antiga, solida e simples, com paredes brancas e largas janellas de guilhotina. Sentindo gente, veio um cão enorme lá de dentro, aos saltos e latidos, e logo apóz appareceu Catharina no patamar de pedra, da escada em semicirculo. Ella desceu ao encontro do irmão, muito risonha. --Estás boa? perguntou-lhe elle, segurando-lhe no queixo forte e ligeiramente quadrado e fixando-lhe de perto os olhos claros. --Estou, D. Mariquinhas é que está doente, com uma das lymphatites do costume. --Chamaste medico? --Chamei, e lá a deixei com a Hermengarda ao pé da cama. --Que Hermengarda? --Aquella enfermeira mulata, do nº 15, mãe do... --Já sei. --D. Mariquinhas gosta muito d'ella. Queres ir vel-a agora? --Depois; fiquemos por aqui. Os teus gyrasóes estão muito lindos. --Não parece um jardim japonez? Repara. Temos chrysanthemos que nem os dos biombos, cannas como as das ventarolas, lirios e gyrasóes... D. Mariquinhas acha detestaveis todas estas flores e falla em mandal-as arrancar... Esta nossa madrasta tem singularidades. Não comprehende o adorno e desconhece a graça das linhas. Só gosta das flores pelo cheiro. --Que tens feito? --Lido, cosido e jardinado; que mais hei de fazer? quem me acompanha se eu quizer sahir? --Effectivamente estás muito só. --Preciso casar-me. --Casa-te. --Tenho medo. --Os homens assustam-te? --Um pouco. São enganosos, e eu sou franca. Imagina o conflicto! Depois, a lembrança da nossa mãe faz-me odiar o casamento. --Sê honesta. --Quem pode saber hoje o que será amanhã? --Tens razão. Fica solteira; serás mais feliz. Tens uma alma indomavel. Conserva-te aqui. Esta casa é tão propicia a uma vida de calma e de reflexão! --Minha madrasta, bem sabes, vive em guerra aberta commigo. Chama-me com malicia--_doutora_. Todos os meus gostos são assumpto de mofa para ella, e todos os seus são para mim de aborrecimento. E ahi tens a calma d'esta casa. Fresca tranquillidade! --Tem paciencia ou, então, dou o dito por não dito. Casa-te! --Com quem? --Commigo não pode ser. --Nem tu quererias. --Porque? --Porque amas a Camilla Theodoro. Tinham-se afastado de casa e seguido para as bandas do pomar. O jardineiro passou com o carro de mão cheio de folhas seccas, e cumprimentou o moço, que não lhe correspondeu á cortezia, tonto, pasmado para a irmã, que estacára tambem ao dizer as ultimas palavras. --Nega, se és capaz; disse ella. --Não nego. Quedaram-se mudos, contemplando-se de face. Pela mente de ambos passou, dolorosissimamente, a lembrança da mãe assassinada pelo marido. Comprehenderam-se atravéz do silencio. Catharina murmurou: --Á proporção que envelheço, mais se vincula em mim a saudade d'ella e não consigo desvanecer o meu rancor por elle. Não lhe perdôo. --Nem eu; mas a sociedade absolveu-o... --Os homens. Ella era tão boa! --Enganou-o. --Que monstruoso castigo! E o resultado, lembras-te? O teu afastamento de casa e o meu odio. Em vão elle se fazia bom para agradar-me; era de uma humildade que commovia a todos, menos a mim. Não tornei a beijar-lhe a mão. --Nem mesmo na hora da morte?! --Nem mesmo na hora da morte. E eu quiz; curvei-me; mas quasi ao encostar a minha bocca á mão d'elle, ergui-me com terror. Elle percebeu tudo. Que morte! --Foste cruel. --Fui humana. Tu o amavas? --Antes? muito! --Depois? --Não. Mas era nosso pae... --E ella era nossa mãe! --Tens razão. Para os filhos a mãe é sempre a melhor e a mais pura entre as mulheres. Um sabiá cantou e elles ficaram a escutar, com os olhos rasos de agua. --Foi no _Neptuno_ que percebeste tudo, não foi? perguntou Rino mudando de tom. --Onde havia de ser? --E só aquella vez bastou? --Só. --Manda calar aquelle sabiá, Catharina! --Deixa lá o passaro; chora. --... Parto depois de amanhã. D'esta vez a viagem será longa... Entrego em Belém o commando do _Neptuno_ a outro. Tenho substituto; está tudo combinado e resolvido. Bem resolvido. Devo fugir-lhe. Não era preciso que evocasses a lembrança do passado para me dissuadir... --Não tive a intenção de te dissuadir; quer-me parecer que o amor não é figura de barro que se amolgue com os dedos. Sómente, como ella ama o Dr. Gervasio... --Por quem soubeste isso? --Por nossa madrasta, que sem sahir d'aqui sabe sempre de tudo, benza-a Deus! --Mas quem lhe diria a ella semelhante coisa?! --Talvez o medico ... talvez a cozinheira... talvez o vento. O vento traz-lhe aos ouvidos coisas que ninguem mais ouve. E é uma espada desembainhada para todas as faltas, aquella mulher! --De mais a mais, é uma calumnia! Camilla é discreta; mesmo que isso assim fosse, quem poderia adivinhar? --João, amores são como luzes atravéz de rendas: apparecem sempre. --Não, não; é preciso convencel-a de que isso é falso. Milla não ama ninguem; não ama ninguem! Catharina fechou os olhos por um segundo, depois recomeçaram a andar, um ao lado do outro, silenciosos, pisando o enorme tapete solferino que as flores dos jambeiros-rosa alastravam no chão. A tarde descia clara e calma, toda azul, com leves tons opalinos. --Catharina? --João? --Precisava ter-te sempre a meu lado... --Pois casa-te e chama-me para a tua companhia. Eu criarei os teus filhos. Procura amar outra mulher. Ha tantas no mundo, ha tantas! --Ha uma só: a que amamos. Só quero aquella. --Soffres muito?... --Horrivelmente, horrivelmente! Este desabafo ha de fazer-me bem. Custa muito guardar um segredo d'estes! E eu guardo o meu ha tanto tempo! --Parecia-te. Bem viste que eu já o tinha commigo. Sorriram ambos, com tristeza. Como tivessem dado volta ao pomar, passaram pelo recanto onde Catharina tinha o viveiro das rosas, mas não se detiveram. Tornaram a cruzar-se com o jardineiro e, tomando a larga rua dos gyrasóes, entraram em casa. Antes de se sentarem á mesa, os dois irmãos foram ao quarto da madrasta, uma senhora muito gorda, que se alastrava pela cama, com um lenço amarrado na cabeça e o rosto polvilhado de amido. A Hermengarda tinha cerrado as janellas e vigiava a doente, na penumbra. Sobre a mesa muitos vidros de remedios, e um cheiro de camphora espalhado em tudo. O leito rangeu, ao movimento do corpo enorme, que se voltava a custo, e a enferma, fazendo uma voz debil, queixou-se de muitas dores e de muito frio. Os enteados disseram-lhe meia duzia de phrases animadoras, recommendaram-lhe paciencia e, sentindo que a importunavam, sahiram em bicos de pés. Antes de se sentarem á mesa, Catharina confessou ao irmão sentir-se alliviada com a ausencia da madrasta. Teriam assim um jantar mais intimo. Elle perguntou: --Afinal, tu a aborreces só por ella ser tua madrasta? --Só. Se a morte de minha mãe tivesse sido natural, eu acceitaria depois a madrasta, senão com ternura, ao menos com respeito. Assim, quero-lhe mal, porque, escolhendo meu pae, ella offendeu minha mãe. Mas o mal está feito e é irremediavel, não fallemos nelle. Suppõe que eu sou uma exquisita, que ella é outra, e não penses mais nisso. Ao jantar fallaram-se baixo para não incommodar a doente, cujo quarto era na visinhança. Quando á noite o capitão Rino se despediu da irmã no jardim, sentiu, ao abraçal-a, que ella chorava. Era a primeira vez, entre tantas de separação, que isso acontecia. Elle beijou-a consolado, certo de que em toda a terra havia um coração que o amava com firmeza, com sinceridade--o d'ella. XII Havia no palacete Theodoro um compartimento que raras vezes se abria: era uma sala, destinada naturalmente na sua origem a bibliotheca, e de que o negociante fizera o seu escriptorio. Ficava embaixo, no rez do chão, ao fundo do vestibulo, toda voltada para o silencio do jardim, que formava perto das suas janellas grupos de plantas sem aroma, dentro de grandes relvados, onde a bulha dos pés morria. Como o negociante não usasse de livros, o seu escriptorio não tinha estantes. A mobilia, de canella e de couro, guardava alli, na sua attitude impassivel, um cunho de austeridade que não desdizia do aposento, vasto e sobrio. Aquellas cadeiras e aquelle sofá de braços extendidos, tinham o ar das coisas a que a intimidade dos seres não deu ainda uma alma. A melhor parede para uma armação era occupada por dous quadros industriaes, de ricas molduras lampejantes, e por um contador veneziano. Sobre esse movel, erguia-se, com ar de desafio, a estatueta de um cavalheiro de capa e espada e grande pluma ao vento. Do lampeão de bronze com _abat-jour_, cahia uma luz bem dirigida, espalhando-se sobre a secretária em um largo circulo tranquillo. Foi para juncto d'essa mesa que Francisco Theodoro levou o amigo, o Innocencio Braga, offerecendo-lhe uma cadeira ao pé da sua. A figura trefega d'aquelle homem miudo, que com os seus quarenta annos não parecia ter mais de vinte e cinco, o brilho movediço dos seus olhinhos, perspicazes e mergulhadores, a sua pallidez baça, os seus movimentos rápidos e incisivos, a febre dos seus gestos, a clareza da sua exposição, punham em evidencia a pacata attitude do dono da casa, a calma dos seus modos, de satisfeito, de burguez que já da vida alcançou tudo, e que se compraz em ver o mundo do alto do seu fastigio. Com as mãos apoiadas na mesa, onde, a par de um vistoso tinteiro de prata massiça, só havia o Codigo Commercial de Orlando, Francisco Theodoro abria os ouvidos ás palavras do outro, em quem presentia o desejo arrojado de grandes vôos. Sabia-o tão intelligente quanto experto, de uma actividade febril e fecunda. Esperava que aquella entrevista fosse para lhe pedir o nome e o capital para qualquer empreza. Tinha-se apparelhado já com algumas evasivas e preparado para uma certa condescendencia, que o valor do homem o obrigava a ter. O seu capital, avolumado, podia com lucro tomar diversas derivações, fertilisando zonas e expandindo a sua força; tudo estava no credito de quem lh'o pedisse, e nas vantagens que lhe offerecessem. E era só em negocio que Francisco Theodoro fazia caso do dinheiro. No mesmo dia em que assignava vinte ou trinta contos para um hospital ou uma egreja, numa pennada rija e franca, recusava emprestar a qualquer pobre diabo cinco ou dez contos para um começo de vida. O seu dinheiro, adquirido com esforço, gostava de mostrar-se em borbotões sonoros, que lampejassem aos olhos de toda a gente. Queria tudo á larga. Era uma casa a sua em que as roupas, as comidas e as bebidas atafulhavam os armarios e a despensa até a brutalidade. Dizia-se que no palacete Theodoro os cozinheiros enriqueciam e que a vigilancia trabalhosa da Nina não conseguia attenuar a impetuosidade do desperdicio. As proprias dividas do Mario faziam vociferar o negociante, não pelo consumo do dinheiro, mas por a perdição d'aquelle filho, que elle não conseguia dirigir a seu modo. Gastar comsigo, com a sua gente, era sempre um motivo de vaidade e de goso; mas gastar mal em negocio, arriscar em commercio problematico, é que lhe parecia uma ignominia. Agora, com este Innocencio Braga, as coisas mudavam. A superioridade do homem obrigava-o a transigir um pouco... Por isso elle fez entrar o Innocencio para o escriptorio, onde mal chegava o echo das correrias das pequenas. Sem preambulos, o outro atacou o assumpto com a altivez de quem não pede, mas offerece favores. Com o seu timbre de voz nazalada como se toda ella só lhe sahisse da cabeça, começou: --Lembrei-me de organizarmos aqui no Rio um grande syndicato de café. O Gama Torres, que, aqui entre nós, deve aos meus conselhos a sua prosperidade, está prompto a entrar com grande parte do capital. Foi elle que me disse que o consultasse tambem. Francisco Theodoro sentiu um arrepio, mas não pestanejou. Os olhos do Braga scintillavam na sombra. Com elogios moderados, mas de infallivel alcance, á argucia e bom criterio do negociante, Innocencio expoz o seu plano, estudando-o, revirando-o por todos os lados, mostrando calculos, em cuja elaboração perdêra noites de somno, assoprando-o de vagar, com eloquencia, fortificando-o com argumentos persuasivos. Tudo aquillo apparecia como a irrefragavel verdade, singelamente. Nenhum artificio de palavras. Termos limpidos como agua da fonte. Francisco Theodoro, empolgado, reclamava repetições. Innocencio prestava-se. Todos os pontos obscuros eram esclarecidos, repetidos, como os compassos difficeis de uma musica, até que se passasse por elles sem tropeço. O tino commercial do Innocencio Braga confirmava-se. Entretanto, Francisco Theodoro hesitava. A sua escola fôra outra, mais rude. O assalto assustava-o. Sentindo-o escorregar medrosamente d'entre os seus dedos nervosos, Innocencio sorria e, com habilidade, sem querer constranger resoluções, retomava o fio d'ouro da sua proposta, e extendia-a seductoramente. Não havia zona caféeira, em Africa, na America ou na Asia, de que elle não fallasse com a autoridade de bom conhecedor. Dir-se-ia que podia contar os grãos de cada arvore. Em algumas colonias o sol mirrava o fructo; noutras, chuvaradas tinham levado colheitas; em certos paizes de café, o café faltava, e só no Brasil, terra da promissão, os cafesaes vergavam ao peso da cereja rubra. Tudo isto era documentado com trechos de jornaes extrangeiros, collados num caderno, annotado nas margens, com lettra miuda. Em toda a exposição não havia calculo sem base, idéas sem argumentos. Tudo era saber aproveitar a occasião propicia, esta incomparavel epocha de negocios, para lançar a rêde... Francisco Theodoro resistia ainda, ou antes, queria resistir, por instincto; mas a verdade é que abria os ouvidos ás palavras do outro, e não achava termos com que defendesse a sua reluctancia. O prestigio de saber traduzir um artigo para jornal vale alguma coisa. Innocencio leu um artigo traduzido por elle do inglez, sobre a propaganda e o futuro do café, obra solida, que Francisco Theodoro approvou. Reconhecia nos inglezes grande capacidade. --Justamente, grande capacidade, atalhou o outro; e sabe o senhor porque? --Superioridade de raça... Sim, é o que dizem. --Não creia o senhor nessas balelas. Qual superioridade de raça! de educação, só de educação. Individualmente, o inglez não é mais forte do que nós, com toda a sua gymnastica, com todas as pipas de oleo de figado que tenha ingerido em pequeno. A vantagem d'elles é outra: vêem melhor e fazem a tempo as suas especulações. Podem ter medo de phantasmas, mas não teem medo de negocios. Especular com intelligencia, ganhar boladas gordas, encher as mãos, que para isso as teem grandes, de libras esterlinas, eis para o que o inglez nasce e se desenvolve. Por isso o commercio d'elles é tão forte. Como os inglezes se ririam de nós, meu amigo, se quizessem perder tempo estudando as timidas especulações do nosso commercio de analphabetos! Não percamos tambem nós o nosso tempo; estudemos este assumpto. Curvaram-se outra vez para a secretária coberta de artigos, tabellas, estatisticas... Francisco Theodoro não se atrevia a uma resposta. Innocencio disse, sem tirar os olhos dos papeis: --Aqui só vejo um homem capaz de entrar nisto sem medo:--o Gama Torres. --É rapaz novo... --E atiladissimo. --Os negocios precisam ser feitos com vagar... --Á moda antiga. --De todos os tempos. --Não. Quando ha febre é preciso saber aproveital-a na subida do thermometro. As occasiões fogem e não se repetem; o senhor reflectirá; esperaremos alguns dias, poucos, bem vê que não devemos adiar isso para outra épocha. Esta é a melhor.--É a unica. Deixo-lhe aqui a minha papelada: consulte-a. Aqui estão coisas melhores e mais convincentes do que palavras:--cifras. Francisco Theodoro, acavallou no nariz a sua luneta de vista cançada e seguiu com o olhar os caracteres cerrados que os dedos do outro apontavam e percorriam rapidamente. Como o rumor da enchente que se approxima e vem até a inundação, assim aquelle amontoado de parcellas ia crescendo e ameaçando de desabar em blocos de ouro. Quando via uma abertazinha, Francisco Theodoro aproveitava-a para uma objecção, que Innocencio repellia sem esforço, com mostras de quem já vinha prevenido para tudo. Á meia-noite ergueu-se, dizendo: --Amanhã é domingo; o senhor fique com estes papeis e leia-os outra vez, com o seu socego. Segunda-feira eu irei procural-os no armazem, das duas para as tres horas. Estude e resolva. Boa noite. Francisco Theodoro acompanhou a visita até o portão do jardim. Em cima, a casa estava toda fechada; a familia dormia. O jardineiro, na soleira, esperava que a visita sahisse para soltar os cães. --Que linda noite, Sr. Theodoro, e como o seu jardim cheira bem! --Sim. Camilla gosta muito de flores. Deve ser das violetas. --É dos jasmins do Cabo, asseverou o jardineiro. --Ou dos jasmins do Cabo. Pois muito boas noites! Nessa noite Francisco Theodoro mal pôde dormir. O seu pensamento gyrava, gyrava. Como os tempos eram outros! Percebia a razão do Innocencio: o commercio do Rio já não tolerava o cançaço das obras lentas. A finura e a astucia valiam mais do que os processos rudes e morosos do systema antigo. Ah! se elle tivesse tido instrucção... Quando no dia seguinte abriu o _Jornal_, na frescura da varanda, percebeu que não supportaria a leitura. Os olhos teimaram, e ficaram-se presos ao papel; mas o pensamento, insubmisso, embarafustou por outros caminhos; foi preciso fazer a vontade ao pensamento. Francisco Theodoro desceu ao escriptorio e engolphou-se na papelada do Innocencio Braga. E lia ainda, meio tonto, quando Ruth entrou, com ar amuado. --Sabe uma coisa, papaezinho? --Não ... não sei nada. Que temos? --Uma desgraça. Francisco Theodoro levantou os olhos, assustado. --Que dizes?! --Digo que a Nina faz annos hoje e que ninguem tem um presente para lhe dar. Demais a mais é domingo: está tudo fechado... --Então a desgraça é essa? --Sim, senhor. Ella não se esquece de ninguem, não é justo que os outros, que podem mais, se esqueçam d'ella... --Ora, não lhe falta nada. --A mim parece-me que lhe falta tudo. Quando qualquer de nós faz annos, o senhor dá uma festa e mamãe arranja surprezas... Ella é como se fosse outra filha. Quando Rachel esteve doente, eu ia dormir para a minha cama e era Nina que fazia de irmã, velando ao pé da doente... Entretanto... Francisco Theodoro contemplou a filha com attenção. --Acaba. --Quando Rachel ficou boa, toda a gente se congratulava com papae, com mamãe, commigo, mesmo com a Noca, e ninguem se lembrou dos sacrificios de Nina. O senhor diz: não lhe falta nada. É o que parece. Basta dizer que se quizer fazer a esmola de um vintem precisa de pedil-o ao senhor ou a mamãe. Foi uma maçada eu não ter-me lembrado hontem! Ella não tem chapéu... --Quem te lembrou isso hoje? --Lembrei-me eu mesma, quando tirei a folhinha... --Bom; promette-lhe o chapéu. --Só? --Parece-te que temos sido ingratos para com ella? --Parece-me que além do chapéu ella precisa de outra coisa... --Que coisa? --Outro dia, quando fomos á cidade, ella gostou muito de uma gravata que viu numa vitrine. Eu perguntei-lhe:--mas porque é que você não compra esta gravata? E ella sorriu. Depois, passámos numa confeitaria e ella manifestou vontade de tomar um sorvete. Eu estava com tosse, não podia tomar gelo, mas perguntei:--porque é que você não toma um sorvete? E ella foi andando. No bond, quando voltámos, o conductor vendo que ella era mais velha pediu-lhe as passagens. Nina ficou que nem uma pitanga e indicou-me com um gesto... Foi então que eu percebi que desde que uma pessoa põe vestido comprido, precisa de usar uma carteirinha no bolso... --Queres então dar-lhe uma carteira? --Não. Eu dou o chapéu; a carteira deve ser dada ou por papae ou por mamãe. --Está dito. Vamos a ver agora se nos dão almoço. Já toda a familia os esperava na sala de jantar. O Dr. Gervasio faltara, por isso o Mario se dignara de apparecer. Foi logo no principio do almoço que Francisco Theodoro, voltando-se para a sobrinha, declarou: --Nina, como eu não entendo de modas, o presente que escolhi hoje para você foi uma casa. Com os alugueis você poderá escolher todos os mezes um vestido a seu gosto. A moça, que fazia nesse momento os pratos de Rachel e de Lia, estacou com os olhos esbugalhados. Riram-se do seu espanto e fizeram-lhe a saude. Ella começou a chorar. --Homem, não foi para a ver chorar que eu disse o que disse. De maneiras que você... Mas, Francisco Theodoro tinha tambem os olhos luminosos. Camilla applaudiu a ideia e tocaram os copos, commovidos. Depois, o negociante disse que levaria a sobrinha no dia seguinte ao tabellião, para a transferencia da propriedade, e accrescentou: --A casa não é grande, mas é nova e bonitinha. --É verdade, Mario, interrompeu Camilla, a baroneza tornou a escrever, insistindo para que você não falte ao baile do pae. Parece que a Paquita está apaixonada! Mario teve um sorriso de desdem; Nina deixou cahir o talher com que recomeçara a partir o _beef_ das primas. --Então convidaram só o Mario?! inquiriu o negociante, espantado. --Não, a todos; vamos todos. Eu já mandei fazer os vestidos, mas do Mario é que fazem questão ... uma insistencia exquisita! Eu só attribuo a querel-o o Meirelles para genro. --Fresco genro, um frangote sem profissão ... deixa-te de asneiras! O Meirelles não é nenhum parvo. Mario fixou o pae com ar atrevido, e disse: --Pois fique o senhor sabendo que mamãe acertou. A Paquita gosta de mim, e já disse ao velho que não se casará com outro. Eu é que não quero. Nina tremia. Francisco Theodoro riu alto. --Ora! a pequena, não duvido ... agora o pae! Ha de casal-a como casou a outra, com um homem de peso... --Pois sim!... --Verás. Bom casamento é ella, lá isso é... Quantas filhas são? --Cinco, parece-me que cinco. --Mesmo assim. O Meirelles está podre de rico. Podre de rico! Tambem nunca vi homem tão agarrado; tinha até a alcunha do _Chora vintens_... D'antes eram muito frequentes as alcunhas ... ahi, no commercio... Alcunhas e bofetões. Hoje está tudo mudado... --Assim mesmo ainda ha muita brutalidade! disse Camilla com um arzinho de nojo. --Que queres? Nem todos nascem para doutores. Não havia allusão. Francisco Theodoro tinha na mulher a fé mais cega; todavia, ella corou e não se atreveu a voltar o rosto para o lado do filho. Findo o almoço, a Noca cercou a Nina na copa para lhe perguntar: --Que foi que eu lhe disse hoje? A moça, aturdida, não se lembrava; a mulata explicou: --Menina, pois eu não lhe disse que ver borboleta azul é signal de boa nova? --Borboleta azul?... --Gente! já se esqueceu que hoje de manhãzinha viu uma borboleta azul? Pois olhe: ella veio lhe avisar que você havia de receber este bonito dote... E ainda ha quem não acredite! --Sim, é verdade, você me disse... E a moça sorriu; mas havia no seu sorriso uma mescla de ironia e de doçura. Na segunda-feira, ás duas horas da tarde o Innocencio Braga apresentou-se á Francisco Theodoro no seu escriptorio da rua de S. Bento para buscar a papelada; mas o negociante esquecera-se d'ella em casa, mostrando-se indeciso, e renovando com disfarce perguntas em que transparecia a mais viva curiosidade. O outro, percebendo tudo, muito correcto, explicou com detalhes todos os pontos, sem insistir com Theodoro para que accedesse. O que tinha de dizer estava dito. Que passasse muito bem. Coube então a Theodoro prometter que iria elle pessoalmente levar os papeis á sua residencia, na rua do Riachuelo, e conversar de novo sobre o assumpto. Nessa tarde o Ribas, balançando os braços molles, entregava ao patrão uma carta manchada pelos seus dedos suados. Era do velho Motta; a perna não o deixava ainda ir ao serviço; pedia desculpas com humildade, tresuando miseria. Era o dia do vencimento do ordenado. Francisco Theodoro deixou cahir a carta na cesta dos papeis rasgados e, cofiando a barba, cogitou na melhor maneira de responder ao Innocencio... XIII O palacete Theodoro preparava-se para o baile. Desde manhã até á tarde era uma invasão de operarios pelas salas e corredores, um continuo martellar nas paredes, bulhas abominaveis de escadas arrastadas, de utensilios atirados ao chão, de laminas raspando _parquets_ e de moveis deslocados. Arrancadas todas as cortinas e reposteiros e atirados em monte para o despreso do porão, o sol e o vento entravam pelas janellas escancaradas, com inteiro desassombro. Varado de ar e de luz, repleto de gente extranha, o interior da casa perdera o aspecto de intimidade e de conforto, que torna o lar amoravel e discreto. Ruth sentia a impressão de estar numa praça publica. O baile não a interessava, e aquelles preparativos irritavam-n'a. Tinha uma salvação: fugir para o fundo da chacara, com o seu violino ou um romance qualquer. A musica inebriava-a; o livro abria-lhe scismas, e não raro ella adormecia estirada no banco do caramanchão, numa das suas longas estiadas de preguiça, entre o violino e o livro abandonados. Os outros da familia preoccupavam-se com a festa. Camilla ideava o esplendor do baile pensando muito em si. Reclamara da modista um vestido com bordaduras luminosas, flores e azas espalmadas sobre _tules_, que dessem ao seu corpo o fulgor de um astro. O bulicio produzia-lhe febre, anceio de chegar ao fim, de ver as suas salas repletas de vestidos de baile e de casacas voejando no redemoinho das dansas. Outras preoccupações iam-se desvanecendo, substituindo, escorregando para o esquecimento. Que valia já a tal mulher de lucto? Gervasio não provava com a sua assiduidade ser só d'ella? Talvez tivesse visto mal, quem sabe? a gente illude-se tantas vezes! E repellia da lembrança as palavras, a meia confissão do medico, que tornavam o facto positivo e doloroso. A visão esgarçava-se. Gervasio não a deixava tomar corpo. Elle agora demorava-se no palacete dias inteiros. Fora elle quem determinara a transformação de duas alcovas inuteis em uma sala de musica, em que essa applicação fosse indicada por pinturas a fresco; foi elle quem contractou artistas, quem escolheu mobilias novas e harmonisou o conjuncto em todas as peças. Tudo que sahia das suas mãos parecia a Camilla perfeito. Nem a Noca, nem a Nina sobrava tempo para descanço. Vigiavam tudo. As gemeas, atiçadas pela balburdia, contentes com a novidade, atiravam-se por entre os utensilios dos enceradores e dos estofadores, rindo-se da desordem que provocavam. Mesmo Francisco Theodoro parecia mais satisfeito. Depois de um exame meditado, elle tinha resolvido: acceitaria a proposta do Innocencio, d'aquelle trefego Innocencio, tão perspicaz. Livre de uma preoccupação que o enervava, tornou-se mais leve e mais risonho. Já tinha determinado as coisas: um mez depois do baile a familia partiria para Petropolis, para o novo palacete que alli estava construindo, e que, como costumava dizer: engulia dinheiro que nem um avestruz. Um bello dia, Ruth atravessava a sala de musica para a escada, afflicta por se ver ao ar livre, quando, relanceando o olhar pelas paredes, estacou surprehendida. De um fundo nebuloso, de brancura opaca, surgiam roseos anjinhos nús, soprando em longos flautins de ouro. A maneira por que nascia da tinta aquella carnação tenra e doce, porque a leveza do pincel chamava á tona aquelle bando de creanças, que vinham de longe, as primeiras ainda mal entrevistas nos vapores da atmosphera densa, as ultimas já batidas de sol, na irradiação limpida da luz, fizeram-na estremecer. Era uma arte que se revelava aos seus olhos, como que um mysterio que se esclarecia ao seu entendimento. Nunca pensara nisso. Os quadros que havia em casa, vinham de fabricas. A machina não produz almas, e só a alma impressiona e acorda instinctos. Em pé, com o violino mal seguro nas mãos, Ruth concebia agora como se podia pintar um quadro. Maravilhava-a, que de uma parede compacta e bruta, o artista fizesse o ether, onde nuvens se baloiçavam e azinhas de filó batiam tremulas. Aquella surpresa dava-lhe a ideia de ter posto os pés em paiz novo, um paiz de sonho. Já não pensava em se arredar d'alli. Cada vez mais curiosa, punha a vista sofrega nas mãos do pintor, tão grandes e tão leves, e nas tintas da paleta, que se desmanchavam noutras tintas mais suaves, ou em flechas de sol. Tão embevecida ficou, que, meia hora depois, quando o Dr. Gervasio entrou e lhe bateu no hombro, ella respondeu, sem desviar a vista da parede: --Estou gostando de vêr... «A quem diabo teria sahido esta pequena?!» pensou comsigo o medico, ao mesmo tempo que examinava com vista curiosa o trabalho do pintor. E não lhe agradou completamente o trabalho; torceu os labios, descontente. Mais tarde, quando Ruth lhe pediu a significação d'aquelle gesto, elle respondeu: --Não tive talvez razão; a minha exigencia torna-me incontentavel e injusto. Eu já sabia que o artista não é genial; portanto, não podia esperar d'elle uma obra perfeita. Que importa que um dos anjos tenha uma perna mais comprida que a outra, e todos tenham o mesmo nariz? Não digamos isso aos outros, que os outros nada verão. A côr é bonita, o effeito é gracioso, basta. Já é uma felicidade haver alguma coisa... --Eu, como não entendo, acho bonito. Estou até com vontade de pedir a mamãe que me mande ensinar pintura... --Não se abstraia do seu violino; mesmo servindo a uma arte só, é raro haver quem a sirva dignamente. Estude só musica, só musica e não pense em mais nada... Passados dias dava-se por finda a decoração da sala e Ruth voltou a não encontrar geito de estar dentro de casa, no meio da balburdia dos trabalhadores. Passava agora outra vez o dia no balanço, ou no caramanchão das rosas amarellas, fazendo do parque o seu salão de musica e de leitura. Ensinava as gemeas a trepar ás arvores ou coroava-as de flores e punha-lhes palmas nas costas, á guiza de azas. Um dia, porém, a confusão chegou ao proprio parque. Abriam um novo lago e alteravam o desenho dos relvados para os effeitos da illuminação. Homens em mangas de camisa iam e vinham por entre os canteiros, fallando alto, gesticulando afanosos e zangados. Não tendo já para onde fugir, Ruth pediu á mãe que a mandasse com a Noca para o Castello. Passaria dois dias com as tias velhas. A tia Joanna promettera-lhe historias de santos e leval-a ás egrejas e ao Observatorio para vêr a lua e as estrellas. Era a occasião. Quando Ruth entrou em casa das tias Rodrigues, D. Itelvina contava, no oratorio, os nickeis arrecadados pela irmã, em esmolas para uma missa rezada. D. Joanna tinha ido á novena do Rosario, nos Capuchinhos, e entoava a essa hora o--_ora pro nobis_ em côro com o povo e os frades. Ruth sentiu frio naquelle casarão do Castello, de largas salas encebadas, sem cortinas, quasi sem mobilia, com papeis sujos nas paredes desguarnecidas; mas a ideia de ir ao observatorio tentava-a, e valia todos os sacrificios. Ficaria. Quem lhe abriu a porta foi a Sancha, sempre de olhos inchados e a roupa em frangalhos. Mal deu com os olhos em Noca, a negrinha sorriu, perguntando pela sua encommenda. --Que encommenda, gente? --A senhora já se esqueceu, tornou a preta a meia voz, o arsenico que eu pedi... --Uê! você está maluca! eu já nem me lembrava d'isso! Tome o seu dinheiro; não foi quinhentos réis que você me deu? --Foi; mas eu não quero o dinheiro, quero a outra coisa... --P'ra quê? ora veja só! olhe que eu conto a D. Itelvina, hein? A negrinha poz as mãos, em um gesto supplice. --Não diga nada... --Você é tola!... A negrinha suspirou baixo e murmurou uma phrase que não pôde ser ouvida, porque D. Itelvina apparecera, de olhar desconfiado e narinas dilatadas farejando mysterios. D'ahi a instantes, no canapé da sala, Ruth respondia ao longo questionario da tia, que lhe apalpava a lã do vestido, achando desperdicio que fosse forrado de seda, censurando-lhe o luxo de um annel de perolas, e a consistencia das fitas de setim do seu chapéu de palha. Das presentes passou ás coisas ausentes, em perguntas miudinhas e torpes: --O Dr. Gervasio ainda vae lá todos os dias? --Vae, sim, senhora. --Hum... Diga-me uma coisa: Mario continua a fazer dividas? --Não sei... --Camilla sae sozinha? --Ás vezes sae. --Porque é que você não vae sempre com ella, hein? --Eu tenho que estudar. --Não fica bem uma senhora sahir só... Ruth contemplou-a, estupefacta. --As más linguas fallam. O palacio de Petropolis está prompto? --Está quasi prompto. Nós vamos para lá este anno. --Em quantos contos está? --Não sei, não, senhora... --O Dr. Gervasio vae tambem? --Acho que não. --Hum... Quando se casa a Nina? ainda não haverá por lá alguem de olho? --P'ra Nina? não, senhora. --Seu pae não ha de gastar pouco, agora, para este baile, hein! Diz que estão reformando tudo! é verdade? Innocentemente, Ruth contou o que se passava em casa; a intervenção do medico na escolha dos apparatos, as cores do toldo de setim do terraço, as pinturas da sala de musica, os lavores dos jarrões para o vestibulo... D. Itelvina ouvia, sem interromper a narração de Ruth, que ella animava a proseguir com um gesto de interesse avido. No fim, concluiu com um sorriso torto: --Teem dinheiro, fazem muito bem em gastar. Nisto bateram á porta. Sancha moveu-se lá dentro e veio pelo corredor. Sentindo-a, D. Itelvina correu para a alcova proxima e accendeu a lamparina do Senhor Santo Christo, que assoprava sempre que a irmã voltava costas. Ruth seguia-lhe os movimentos e foi com espanto que a viu mergulhar os dedos magros no prato das esmolas e sumir, quasi que por encanto, uma meia duzia de moedas no bolso do avental. A velha julgou que a sobrinha nada tivesse percebido, tão rápido e adunco fôra o seu gesto, e voltou dizendo que o vento apagara a lamparina, e que embebida na prosa ella se esquecera de a reaccender... Ruth baixou o rosto, muito corada, arrependida de ter ficado. Noca rodara sobre os calcanhares; se bem andara, onde estaria ella! D. Joanna entrou, gemendo de cançaço. --Olha, maninha, quem está aqui! disse-lhe a irmã. --Que milagre! exclamou D. Joanna, abrindo os braços para Ruth, que se precipitou nelles, morta por se ver livre da seccura aspera da outra tia. --Quem foi que trouxe você? --Noca... ella vem-me buscar depois de amanhã bem cedo ... mamãe não queria dar licença, tinha medo que eu incommodasse; mas tanto pedi, tanto pedi... --Esta casa é muito triste. A alegria passou por aqui ha mais de trinta annos, mas não deixou signal. Sancha! tira as minhas botinas. É muito triste esta casa ... filha... Estamos tão velhas... Sancha ajoelhou-se. D. Joanna extendeu dois pés inchados, calçados a duraque, e quando a negrinha lhe puxou e tirou as botinas, ella gemeu: primeiro de dor, depois de allivio. --Vae buscar as chinellas... Pois você fez muito bem em vir... Amanhã poderá ir commigo á missa, á tarde á novena e... --E á noite ao Observatorio. Foi por causa do Observatorio que eu vim. Dr. Gervasio escreveu ao director, apresentando-nos... Estou com uma curiosidade! --Mas... --Não temos mas, nem pêra mas, titia; faça a vontade á sua sobrinha, sim? Pouco depois, como estivesse escuro, Sancha trouxe um lampeão de kerozene com um fetido horrivel. D. Itelvina sahiu da alcova, atravessou a sala, e sumiu-se na guella negra do corredor. Ruth sentia-se mal naquelle canapé alto, de assento afundado. Foi á janella, voltou; a tia rezava; quando a viu persignar-se, pediu-lhe historias de santos e sentou-se a seu lado. Tia Joanna não se fez de rogada. As mesmas palavras que na alegria da sua casa risonha lhe enfeitiçavam a imaginação, arrepiavam agora Ruth, naquella meia sombra, num ambiente tão diverso do que lhe era habitual. Os cilicios, as caldeiras fumegantes, as fragoas accesas do inferno, a nudez das virgens martyres, as cruzadas para a Terra Santa, lanças flechando o ar abrasado, exercitos comidos pela peste ou esmagando judeus, os grandes votos solemnes, os ritos crueis, as perseguições injustas, os gritos de misericordia, todas as agonias e todos os extasis, que a velha relatava, para a victoria da Fé christã, assombravam Ruth, que toda se cosia á tia, olhando desconfiada para a vastidão sombria do aposento mudo. Na parede do fundo, o bruxolear da luz fraca parecia desenhar formas indecisas de animaes phantasticos; seriam talvez os porcos babosos das lendas satanicas, os dragões flammiferos, ou os magros cães de focinho erguido a uivar... --Tia Joanna, tia Joanna! --Que é isso, minha filha?! --Eu estou com medo ... conte outra historia mais suave... --Não se espante, menina! São as grandes dores, o sangue e a morte que ensinam a Fé. Quem não soffre não comprehende o céo, Ruth! Ainda hontem monsenhor Cordeiro disse estas palavras verdadeiras. --Mas, o céo assim é feio, tia Joanna... --Cale a bocca!... espere ... quero vêr se me lembro de uma lenda muito antiga, que já tem corrido mundo, mas que é bem verdadeira e bem simples. --Em que não haja nem fogueiras nem sangue; sim? --Nem sangue, nem fogueiras:--Foi um dia... XIV «Foi um dia uma freira pallida, muito moça, muito linda, temente a Deus e devotada á Virgem. Vivia na Normandia, em um convento velho, de rigidas penitencias, isolado em cima de um rochedo. Da frecha gradeada da sua cella, a freira só via: em baixo, a pedraria negra, e além charnecas brancacentas a perder de vista. Uma tristeza. No claustro, para onde deitava a sua cella, mesmo no angulo perto da portaria, havia uma imagem de marmore representando Nossa Senhora, tão doce, tão humana, que mais parecia creatura viva. Sempre que soror Pallida deslisava pelo claustro, fazia á Virgem uma reverencia profunda e murmurava: --Ave! E a Virgem sorria-lhe, dentro do seu nicho azul. Uma noite, soror Pallida, depois de rezar o Bemdicto, desabotoava o seu habito branco para dormir um somninho innocente, quando lhe pareceu ouvir o seu nome na janellinha. «Ha de ser o vento...» pensou ella, tirando a cruz e o véu. Não era o vento; a mesma voz, mais distincta agora, repetiu-lhe o nome. Soror Pallida quiz resistir, com medo, mas nunca o seu nome lhe parecera tão doce, nem tão suspirado; assim, levada por curiosidade, ou não sei porquê, foi-se approximando, foi-se approximando... Tão depressa chegou, Jesus! que havia de vêr? Suspenso nos varões de ferro, o capellão do convento olhava para ella, com dois olhos que nem duas estrellas. --Senhor capellão, porque estaes ahi? perguntou ella afflicta, pondo as mãos tremulas. --Senhora freira, porque vos amo! respondeu-lhe elle. E logo de mil modos começou a tental-a. Taes coisas disse, taes coisas fez, que a pobre o escutava embevecida. Chamou-a linda, meiga, angelica, e por fim (vê a perfidia!) pediu-lhe que o beijasse, que o beijasse na bocca ou que elle se despenharia no abysmo... A freira debatia-se: que não!... mas, para não o vêr morrer despedaçado no rochedo, vá lá, condescendeu em beijal-o. Louca! que fizeste? foi a tua perdição! Elle sumiu-se, e ella ficou de joelhos, muito tremula, muito alvoroçada. Em vão coseu cilicios ás suas carnes, em vão se rojou pedindo a Deus que lhe apagasse da memoria aquelle peccado doce e horrendo; em vão! O beijo alli estava sempre nos seus labios, sentia-o quente, perfumado, embriagador. Soror Pallida já não era a mesma; perdia o sentido das rezas, tinha deliquios, abstracções. O moço capellão voltou, mais uma noite, mais outra, induzindo-a a que fugisse: iriam viver bem longe, numa casinha branca, entre pomares cheirosos e aguas crystallinas. Ella recuava, com temor de tamanho crime; mas elle extendia-lhe os labios e convencia-a de que o amor vale mais que o céo, mais que a perpetua bemaventurança, mais que tudo! E tornava a supplicar-lhe que fugisse: elle a esperaria juncto á portaria, com os cavallos promptos, mais rapidos que o vento. Sabe-se como essas coisas são: máo é dar-se ouvidos a primeira vez. A freira já não pensava senão em varar aquellas charnecas longuissimas ao galope de um cavallo ardego, sentindo palpitar o coração do seu cavalleiro enamorado. Mas, sempre que, altas horas da noite, subtil e tremula, deslisava para a portaria com a tenção de fugir, esbarrava com a Virgem, fazia-lhe a sua reverencia profunda, murmurando contrictamente:--Ave!--e passava; mas, oh! surpreza! a grande porta do convento desapparecera, e na portaria, como em todo o claustro, só havia grossas paredes impenetraveis. Soror Pallida voltava attonita, e a Virgem sorria-lhe do seu nicho azul. Por serem sempre as flores presentes de namorados, o moço capellão levava todas as noites rosas á sua eleita. No outro dia toda a communidade entoava: --Milagre! milagre! a Irmã da Virgem recebe rosas do céo. Os anjos trazem-lhe flores do Paraiso, como a Santa Dorothéa! Assim acreditavam, visto que só cardos e espinheiros bravos nasciam em redor, por aquellas penedias. E entoavam hymnos. Cançado de esperar, por uma noite trevosa e triste, o moço capellão aconselhou a freira a que passasse de olhos fechados pela Virgem, rosto voltado para a outra banda. Assim fez a louquinha, mas de coração apertado em muita agonia. D'essa vez achou a porta do convento mal fechada: dir-se-ia que ferrolhos e trancas, (e que taes eram ellas! ) se abriam de per si. Foi por isso que a freira fugiu para a noite negra, com o seu habito branco... Depois... Só no fim de um anno, quando elle se cançara de a amar, foi que a misera percebeu que o seu cavalleiro não era o capellão--mas o diabo em pessoa! Arripiada, transida de medo, fugiu por montes e valles, de cruz alçada, balbuciando preces, com o fito no convento e em redimir-se com arduas disciplinas. Andou assim, noites e dias, leguas e leguas, por mattaria espessa, mal se sustendo nas pernas fracas e nos pés ensanguentados, até que á luz frouxa de uma madrugada viu um dia os penhascos abruptos do convento, e cahiu de joelhos, persignando-se. Finda a oração, ergueu-se. Passava então pela estrada um velho muito velho, de bordão e saccola, e ella perguntou-lhe se não ouvira fallar em uma religiosa fugida do convento um anno antes? --Nenhuma freira fugiu nunca d'aquelle convento, respondeu elle; são todas umas santinhas, louvado seja o Senhor! --_Amen_! Entretanto ... ouvi dizer que uma das irmãs, que recebia rosas... --A do milagre!? ah! essa! É a mais pura... Ide vêl-a, Ide vêl-a se soffreis. Essa até dá vista aos cegos e faz andar os paralyticos. Com vivo espanto, a freira galgou a encosta pedregosa e, toda a tremer, com o coração aos pulos, bateu á porta do convento. --Quem é? perguntou de dentro uma voz dulcissima. --Uma peccadora arrependida, para a penitencia--sussurrou soror Pallida, lavada em pranto. E confessou logo alli os seus desatinos... A porta abriu-se sem fazer barulho: dir-se-ia que os grossos gonzos enferrujados estavam de velludo,--e a rodeira mostrou se com um sorriso á freira apoquentada. Oh! aquelle sorriso, bem o conheceu a religiosa que, vergando os joelhos, na profunda reverencia antiga, murmurou com immensa compuncção e infinita doçura: --Ave! A Irmã rodeira era a Virgem Maria, que, desde a noite da fuga, tomara a fórma da freira e cumpria todos os deveres da regra que lhe competiam: badalando os sinos, varrendo os claustros, accendendo as velas dos altares e arrumando os gavetões da sacristia. --Toma o teu habito, disse-lhe Nossa Senhora, e vae para a tua cella... Descança, que ninguem soube do teu opprobrio, ninguem!... Soror Pallida prostrou-se e uniu humildemente a face á lage fria; depois, erguendo o rosto inundado de lagrimas, perguntou soluçando: --E Vós, Mãe Santissima?! --Eu? Perdoo, respondeu-lhe a Virgem sorrindo, já dentro do seu nicho azul...» Eram nove horas; Sancha veio chamar para a ceia, e levou para a mesa o lampeão fumarento. D. Itelvina só usava mate, que sempre era de maior economia. Sentaram-se. Ruth mal enguliu a sua chicara. Pensava em soror Pallida. Nessa noite teve de sujeitar-se a dormir com a tia Joanna. Lembrando-se das pernas inchadas da velha, teve um arrepio e saudades do seu leito branco coberto de filós delicados. A tia mexia-se, benzia todo o quarto, rezava a meia voz, sacudia a roupa que toda cheirava a incenso, e com a vigilia da velhice perturbava o somno da menina. Foi no meio do silencio da casa, que irromperam de repente, lá do fundo, uns gritos lancinantes. Ruth sentou-se na cama, com os olhos arregalados. --Que é isto, tia Joanna?! --Não é nada ... ha de ser a maninha batendo na Sancha... --Meu Deus! --Não é nada, dorme, minha filha! --Oh!... tia Joanna, vá lá dentro ... peça a titia p'ra não dar na coitada! --Eu?! não ... a negrinha merece ... maninha não gosta de intervenções... Sancha faz espalhafato á tôa. --Vou eu. Ruth, em fraldas de camisa, de pernas núas, saltou para o chão, com um movimento de colera, e sahiu para a sala de jantar; já não havia luz; guiada por uma claridade frouxa, do fim do corredor, correu para a cozinha, onde a D. Itelvina surrava a pequena com uma vara de marmelleiro. A negrinha mal se livrava com os braços, tapando o rosto e abaixando a cabeça. Ruth saltou para o meio do grupo e segurou a vara que ia descahindo sobre a carapinha da outra. --Isso não se faz, tia Itelvina! isso não se faz! gritou ella com impeto, crescendo para a tia, que estacara boquiaberta. --Você não tem nada com o que eu faço. Este diabo botou de proposito gordura na agua do meu banho ... eu sei porque dou. Ella merece. Ruth, vá dormir. --Não vou; mande a Sancha deitar-se primeiro. A senhora não tem coração?! --Ora vá-se ninar! Sancha, p'r'aqui! A negrinha tinha-se refugiado a um canto, perto do fogão, e exaggerava as dôres, torcendo-se toda, amparada pela compaixão da Ruth. D. Itelvina avançou os dedos magros, e, agarrando-a por um braço, puxou-a para si; a sobrinha então abraçou-se á negrinha, unindo a sua carne alva, quasi núa, ao corpo preto e abjecto da Sancha. --Bata agora! tia Itelvina, bata agora! gritava ella, em um desafio nervoso, sacudindo a cabelleira sobre os hombros estreitos. D. Itelvina atirou fóra a vara e disse para a negra: --Vae-te deitar, diabo! foi o que te valeu... Mas nós havemos de ajustar contas... Sancha esgueirou-se para um quarto escuro, onde os ratos faziam bulha, e Ruth, arrepiada, tremula, voltou silenciosa para o quarto da tia Joanna. A velha amarrava um lenço na cabeça. A sobrinha interrogou-a: --É sempre assim? --Não ... uma vez ou outra. --Mas como podem viver neste inferno?! --Ora, você não sabe. A Sancha provoca. Maninha anda desconfiada que ella lhe deita vidro moido na agua, e na panella ... é uma coisa ruim. E ladra, ih! Você sabe o meu genio, não sei guardar chaves... Pois é raro o dia em que a Sancha não me fique com alguns tostões das missas... Maninha corrige-a para bem d'ella. É um sacrifício... Eu não teria paciencia para a aturar. --A Sancha vae amanhã commigo para casa. --Está doida, menina! e quem nos ha de fazer o serviço? --Aluguem uma mulher. --Ruth ... você é muito creança ... não pense na Sancha. Ella faz tudo quanto pode para excitar maninha... Eu se digo, é porque sei. Ainda hontem queimou-lhe de proposito os chinellos novos, com o pretexto de os ir seccar ao fogo. A minha roupa, lava ella; a da maninha deixa-a apodrecer na beirada do tanque. É uma coisa ruim!... não pense mais nella. Durma... Mas Ruth não podia dormir; e quando de madrugada a tia Joanna se levantou para ir á missa das Almas, ella saltou da cama, para ir tambem. Antes de sahirem, foram á cozinha procurar café, e lá encontraram a Sancha a accender o fogo, assoprando com força. Foi então que Ruth se chegou para ella e, pousando-lhe a mão no hombro, disse alto, sem medo que a tia Joanna a ouvisse: --Sancha, porque é que você não foge? A negrinha ergueu o busto e fixou a mocinha com pasmo. --Nhá?! --Fuja! A tia Joanna, entretida a partir o pão da vespera, não percebera nada. Uma esperança vaga tremeluziu no rosto estupido da preta. --E depois? perguntou ella, assustada. --Vá lá para minha casa; eu fallarei a mamãe. --De que serve! me mandarão outra vez para cá... --Não. Titia póde alugar outra criada... papae fallará com ella... A tia Joanna acabara de partir o pão e chamava á sobrinha para o café da vespera, requentado. Quando sahiram era já dia, mas as nevoas da manhã poisavam ainda nos telhados, e nada se via da cidade, em baixo. Pelo caminho do convento cabras saltavam, seguidas dos cabritos de pello espesso e novo, e na grama molhada faziam correrias uns cachorros vadios. Tocou a matinas e a tia Joanna benzeu-se. Ruth, pouco afeita a madrugadas, achava um prazer divino em ir assim rompendo as nevoas com a pelle refrescada pela humidade da atmosphera e os olhos cheios d'aquella luz branca, suave, que subia e se ia extendendo pelo céo todo. Na egreja, a tia fez reverencia a todos os altares, com uma oraçãozinha na ponta da lingua para cada um; Ruth seguiu até o altar-mór e ao ajoelhar-se sentiu como nunca que havia na sua alma uma supplica, um appello para a misericordia de Deus. Entre o altar, onde um ramo de flores esquecidas se ia desfolhando, e os seus olhos sonhadores, foi-se esboçando pouco a pouco a figura angulosa e tosca da Sancha. De mãos postas, Ruth pediu á Virgem uma bençam para a negra, um pouco de piedade, um refugio, uma consolação. Até alli que sabia das miserias do mundo? nada. Aquella noite do Castello, tão simples, tão monotona, fora uma revelação! Era bem certo que a lagrima existia, que irrompiam soluços de peitos opprimidos, que para alguem os dias não tinham côr nem a noite tinha estrellas! Ella, criada entre beijos, no aroma dos seus jardins, com as vontades satisfeitas, o leito fofo, a mesa delicada, sentira sempre no coração um desejo sem nome, um desejo ou uma saudade absurda, a _saudade do céo_, como dizia o Dr. Gervasio, e que não era mais que a doida aspiração da artista incipiente, que germinava no seu peito fraco. E aquella mesma magua parecia-lhe agora doce e embaladora, comparando-se á outra, a Sancha, da sua edade, negra, feia, suja, levada a ponta-pés, dormindo sem lençóes em uma esteira, comendo em pé, apressada, os restos parcos e frios de duas velhas, vestida de algodões rotos, curvada para um trabalho sem descanço nem paga! Porque? Que direito teriam uns a todas as primicias e regalos da vida, se havia outros que nem por uma nesga viam a felicidade? Sabia a historia da Sancha: uma negrinha vinda aos sete annos da roça para a casa das tias, com sentido no pão e no ensino. Era dos ultimos rebentões d'essa raça que vae desapparecendo, como um bando de animaes perseguidos. E tudo d'ella repugnava a Ruth: a estupidez, a humildade, a côr, a fórma, o cheiro; mas percebera que tambem alli havia uma alma e soffrimento, e então, com lagrimas nos olhos, perguntava a Deus, ao grande Pae misericordioso, porque a criara, a ella, tão branca e tão bonita, e fizera com o mesmo sopro aquella carne de trevas, aquelle corpo feio da Sancha immunda? Que reparasse aquella injustiça tremenda e alegrasse em felicidade perfeita o coração da negra. --Sim, o coração d'ella deve ser da mesma côr que o meu, scismava Ruth, confusa, com os olhos no altar. Quando acabou a missa, tia Joanna quiz fazer a sua penitencia, umas corôas de rosario que ella disse a meia voz, de olhos cerrados. Ao sahirem do convento, dois frades retiveram a velha juncto á pia de agua benta, interessados pela sua saude, cobrindo-a de bençams e de boas palavras. Fóra, já o sol irrompêra victorioso, estraçalhando os ultimos farrapos de neblina. A velha lembrou a Ruth que ainda teriam tempo de ir morro abaixo até a egreja do Carmo. Ruth não respondeu; deixou-se levar. Mais valia andar de egreja em egreja do que voltar para o triste casarão da tia Itelvina. --Você conhece a egreja do Carmo? --Não, senhora. Ouço sempre missa na capella do collegio. Não gósto das egrejas grandes. --Porque?! --Não sei... --Ora essa! --Tia Joanna, ha muita coisa que eu sinto e que não sei explicar. Á senhora não acontece o mesmo? --A mim? não; nem a mim nem a ninguem. Quando a gente diz que gosta ou não gosta de uma coisa, sabe sempre o motivo por que o diz. --A senhora reza da mesma maneira em uma egreja grande, sombria e fria, que em uma egrejinha clara e enfeitada de flores? --Certamente. Deus tanto está nas grandes como nas pequenas egrejas. Elle está em toda a parte. --Mas se Deus está em toda a parte, porque abandona certas pessoas? D. Joanna estacou. --Não diga heresias, menina! Deus não desampara ninguem. --E a Sancha? --Hein? --A Sancha. --Lá vem você com a negrinha! --Negra ou branca, é creatura. --Não digo que não. Mas que falta á Sancha? --Oh, tia Joanna! pergunte antes o que lhe sobra... --Você é muito impressionavel. Creia que a pequena não é infeliz. Que seria d'ella, se não estivesse lá em casa... Uma desgraçada, d'essas da rua. Talvez que bebesse, ou que já estivesse com um filho nos braços. --Estar com um filho nos braços! mas isso seria uma fortuna, tia Joanna. Tomara eu. --Menina, que é que você está dizendo! --Gosto tanto de creanças! Olhe, tia Joanna, o meu desejo é ter vinte filhos, vinte! A velha corou. --Perdôo essas palavras, porque você é innocente; mas não torne a repetil-as, ouviu? Ruth scismava em que constituiria peccado o ter vinte filhos, quando D. Joanna exclamou, apontando para duas creanças, carregadas uma com uma harpa, outra com uma rabeca: --Olha, Ruth; aquellas, sim, é que são infelizes: andam ao sol e á chuva, e se não levam dinheiro para casa, ainda apanham por cima. --Não as compare á outra, tia Joanna. Eu preferiria andar sempre ao ar livre, apanhando soes e chuvas, tocando no meu violino, dormindo em qualquer soleira de pedra, do que viver no borralho como a Sancha. Ao menos estes teem a musica. D. Joanna riu-se. --É verdade; quando você toca esquece tudo. Chegaram á egreja; a missa tinha começado. Ruth deixou-se ficar sentada no banco, sem attender aos puxões que a velha lhe dava, para que se ajoelhasse. Para que, se tinha exgottado o ardor da sua alma na primeira missa do convento? Sentia-se agora cançada, apertavam-lhe as saudades da mãe e da alegria da sua casa. Como lhe pareceu interminavel aquella missa, que a velha ouvia toda de joelhos, num extase! Findo o sacrificio, D. Joanna quiz levar esmolas a todas as caixas da egreja. Ruth apressava-a, morta por se ver na rua, mas a tia nem parecia ouvil-a. No adro lembrou ainda: --Já que estamos cá embaixo, vamos a Santa Rita saber noticias do padre Euclydes, que está doente. Ruth objectou: --Mas titia, eu estou com fome... --Tem razão, filhinha; mas é um momento só. O sacristão nos dará informações e seguiremos logo para casa. Em Santa Rita, rezava-se uma missa de setimo dia. Gente de preto cobria as naves como um bando de urubus. O sacristão procurado ajudava á missa, e não havia ninguem na sacristia que soubesse do padre Euclydes. D. Joanna deliberou esperar e empurrou a sobrinha para o corpo da egreja, dizendo: --Rezemos por alma d'este morto, filha. --Mas nós nem o conhecemos, titia! --Não faz mal; foi um peccador, precisamos salval-o. Tia Joanna ajoelhou-se e ergueu o rosto gordo e pallido para o altar. Era tal a fé, a doce piedade que a sua expressão diffundia, que Ruth deixou-se cahir de joelhos e pediu a Deus perdão para a alma d'aquelle desconhecido, por quem tantas mulheres choravam... Que Deus lhe desse abrigo e eternos gosos! Emfim, o sacristão affirmou á senhora do Castello, como muita gente a chamava, que o padre Euclydes entrara em convalescença, e diria no domingo a sua missa. --Bem, titia, chegou a minha vez de lhe pedir tambem uma coisa; disse Ruth. --Peça, filhinha. --Já que estamos tão perto, deixe-me ir tomar a bençam a papae. A estas horas elle está farto de estar no armazem. D. Joanna hesitou: --Olhe que não é tão perto assim... --Parece-me que já estou ha tanto tempo fóra de casa... --Vamos lá... Que pieguice! Tinham andado meia duzia de metros quando esbarraram com Francisco Theodoro, que vinha reçumando saúde e alegria pelas faces coradas, empertigado nos seus linhos e brins brancos, bem engommados, de que um paletot preto fazia resaltar a alvura. Nos seus olhinhos pardos, muito claros, faiscavam lampejos; elle extendeu as mãos á filha, com uma exclamação de alegria: --Senhora fujona, que faz por aqui?! --Já enguli tres missas, papae; mas ainda estou com fome! Iamos agora procural-o ao armazem; eu queria tomar-lhe a bençam, para depois irmos almoçar... Se papae nos levasse a um hotel?... --Não posso. Tenho muito que fazer. Vou agora mesmo procurar o Innocencio Braga, que já deve estar á minha espera... Adeus. E, abreviando, elle metteu na mão da filha uma nota de vinte mil réis, aconselhando ás duas que comessem qualquer coisa em um restaurante. E despediu-se á pressa, mal ouvindo os innumeros recados que a Ruth mandava á mãe. D. Joanna lembrou-se que estavam perto da casa do Dr. Maia, e que mais valeria irem lá papar-lhe o almoço do que entrarem sozinhas em um restaurante. Ruth sorriu-se do escrupulo da velha, já contagiada pelas economias sordidas da irmã. --Tanto me faz, tia Joanna; leve-me onde haja bifes, e eu ficarei contente; respondeu-lhe a menina. Ardiam-lhe os pés; uma fadiga enorme amollecia-lhe o corpo; e entregava-se, inerte, á vontade da velha. Por fortuna, a casa do Dr. Maia era perto do largo, na rua dos Ourives, um sobrado antigo, de rasgados salões arejados, onde velhas mobilias bem espanadas attestavam o escrupulo dos moradores. O Dr. Maia foi o primeiro a recebel-as, no corredor; muito velhinho, arrastando os chinellos bordados pela neta, com a gorra de velludo cobrindo-lhe a calva, e um bom sorriso hospitaleiro illuminando-lhe o rostinho claro e murcho, onde os olhos azues se iam velando da neblina da velhice. D. Joanna era intima da casa, recebida sem cerimonia; e como a Ruth tivesse ar de menina, elle foi empurrando a ambas para a sala de jantar. Só estava em casa a velha, a D. Elisa; a filharada debandara depois do almoço, uns para o emprego, outras para o dentista e as compras. Mas no fundo das cassarolas ainda havia restos de arroz e de ensopado; D. Elisa recommendou que estralassem uns ovos, e em poucos minutos D. Joanna e Ruth almoçavam, ao som de um discurso do Dr. Maia, que ia descrevendo com surprehendente enthusiasmo o seu invento de um balão dirigivel. Elle não pensava em outra coisa; vivia em perpetuo vôo, entre altas camadas de atmosphera. Desde alguns annos se fixara nesses estudos e para elles fazia convergir todos os seus cuidados. A mulher sorria-se com resignação imposta pelos mil desvarios que se acostumara a conhecer no esposo. Desde rapaz que elle fôra assim, mettido a emprezas oppostas á sua competencia. Tinha estudado para medico, e abandonara a clinica para defender réos desamparados, escrever para jornaes e desperdiçar forças e tempo na elaboração de grandes emprehendimentos que não levava a termo. Agora era o balão. Aquelle velho de quasi oitenta annos, achacado de asthma, perdia horas de somno, curvado sobre a mesa, a desenhar, a escrever, a dar forma á sua ideia, em uma palpitação assombrosa de vida. Havia em casa uma certa piedade pelas suas manias, um respeito pela innocencia d'aquelles ideaes. D. Elisa dizia ás vezes que se a alma, no seu ultimo vôo, tomasse fórma visivel, veriam, os que assistissem á morte do marido, que a d'elle lhe voaria do peito como uma borboleta. E toda azul! accrescentava ella, com o seu sorriso sympathico. D. Joanna mal entendia as descripções do Dr. Maia, mastigando com difficuldade a carne um pouco dura, batida á pressa. Ruth abria os ouvidos e via esgarçar-se a neblina que a edade punha nos olhos do medico e ir-lhe apparecendo nas pupillas azues um brando fulgor de primavera. Ella percebia alguma coisa, via já o balão scindindo as nuvens, leve, airoso, vestido de côres luminosas. Como seria bom subir tão alto, tão alto! --O meu balão será de aluminium, um metal levissimo, explicava elle, e todo redondo, gyrará em grandes circulos, como se dansasse uma valsa; percebem? D. Joanna fez que sim com a cabeça, e espetou uma batata. Ruth murmurou: --Assim branco e redondo, será como a lua ... que bonito! Felizmente, uma nova visita veio interromper a exposição do velho, que se despediu das senhoras e lá se foi para a sala pigarreando pelo corredor. D. Elisa desabafou depois com a amiga as suas queixas domesticas. O marido exgottava os minguados recursos em livros e revistas. O que lhe valia era o filho mais velho, o José... A neta andava na Escola Normal e ganhava para os seus alfinetes; as duas filhas solteiras, já trintonas, coitadas, cosiam para fóra... Ahi estava a vida. E é assim, por ahi; toda a gente trabalha; accrescentou ella com um suspiro. Quando D. Joanna e a sobrinha voltaram para o Castello, quem lhes abriu a porta de casa foi a Sancha. Ruth recuou espantada. Que! pois a idiota da negrinha não ouvira o seu conselho? Ao jantar, uma tristeza. D. Itelvina alludia com escarneo mal contido ás grandezas do palacete Theodoro, e lamentava-se de só poder abastecer-se de generos baratos, espremendo-se em lamurias. D. Joanna benzeu o pão, rezou de mãos postas, e sentou-se á mesa com a sua consciencia feliz, e uma doce expressão de conforto. Para ella tudo era bom, estava tudo sempre muito bem. Foi nessa noite que Ruth subiu com ella as escadas do Observatorio, para vêr as estrellas; e quando as viu, a sua commoção foi tamanha e tantas as suas exclamações, que a tia observou: --Você é muito exaggerada, Ruth! Ruth nem a ouviu; olhava embevecida. No céo, de um azul fechado, aquelles pontos de ouro tomavam formas e dimensões excepcionaes. Esta estrella era verde, aquella azul, aquella outra violeta, e uma como um _bouquet_ de variados matizes, e outra pallida, e outra affogueada, e outra diamantina, e todas immensas e luminosissimas. Oh! as estrellas, que belleza de céo! Sobretudo as do Cruzeiro eram formosas, limpidas como o clarão da fé. Depois, aquelles chuveiros de ouro e prata, aquelle fervilhamento multicor da via-lactea, raios de fogo dançando, cruzando-se, chispando em fagulhas de uma pyrotechnia phantastica... Depois a lua... --Nossa Senhora, que immensidade!... Como é bonito! Oh! tia Joanna, como é bonito! --Bom, bom; divirta-se... Ruth não respondia; com o olho collado á lente, esmagada pela poesia d'aquelles esplendores, ficava embevecida, como se dos astros chovessem sobre ella aromas que a embriagassem. --Filhinha, vamo-nos embora... --Mais um bocadinho só ... oh! tia Joanna! Nessa noite, deitada ao lado da tia na alcova mal allumiada e que tresandava a azeite de lamparina, Ruth via na imaginação impressionada as estrellas, globos enormes de crystal cheios de luz e cheios de flores, fulgurando e espargindo aromas. Já ella adormecia e ainda a tia lhe ouviu em um murmurio entrecortado: --Como é bonito! No dia seguinte, quando acordou, era tarde. Tia Joanna sahira sozinha para as devoções; nem a presentira. Tia Itelvina andava aos berros pela casa. Ruth saltou da cama assustada e foi entreabrir a porta: --Que é? A tia respondeu-lhe com mau modo, em uma rebentina: --A Sancha fugiu! Um tremor de febre percorreu o corpo de Ruth. Atirou-se para a cama, puxou os lençóes até a cabeça. Para onde teria ido a pobre, sózinha, sem conhecer ninguem? De quem seria a culpa se lhe acontecesse uma desgraça?... De quem, senão d'ella?... Ora! sempre seria mais feliz lá fora... Quando nesse dia Noca appareceu no Castello, Ruth lançou-lhe os braços ao pescoço. Era a sua libertação. D. Itelvina rabeava pelas salas e corredores, culpando a irmã, que se levantava fora de horas para a carolice e deixava a casa escancarada, provocando a negrinha para o assanhamento da rua. Foi ao fragor d'essas invectivas que Ruth se despediu da velha, deixando-a sozinha no seu casarão, onde as catingas do rato e do mofo vagavam conjunctamente. XV Creanças, venham lanchar! gritava Nina para o jardim, ás gemeas, quando viu entrar a Therezinha Braga. --Você chegou a boa hora, Therezinha, nós vamos tomar café. Entre. --Estou com muita pressa; quero ver se vocês me emprestam o ultimo figurino. --Mas nós não temos d'isso. Tia Milla manda fazer tudo fora... --Manda a Noca pedir alli á casa do Dr. Nuno! Nina vacillava, com vontade de servir a amiga; mas a mulata, que ouvira tudo da janella da copa, interveio com ar peremptorio: --Seu Theodoro não quer que se peça nada á visinhança. --Elle não precisa saber ... insistiu a Therezinha, ainda no jardim. --Oh, xente! Porque é que a senhora não manda pedir os figurinos em seu nome? --Porque estamos mal com o Dr. Nuno ... ora, você bem sabe! --Eu não. Eu só sei que temos ordem de não incommodar a visinhança. Seu Theodoro não é para brincadeiras; quando põe a bocca no mundo vae tudo raso! Creanças! olhe só onde ellas estão! --Vae buscal-as, Noca, que o café arrefece. Entra, Therezinha, talvez se possa arranjar alguma coisa... --Esta D. Nina, não tem emenda! murmurou por entre dentes a mulata. Servindo o café, Nina explicou á Therezinha: --A baroneza da Lage está lá dentro; eu vou pedir-lhe que me mande logo os seus figurinos. --É para o meu vestido de baile. --Você mesma é que o vae fazer? --Que remedio! Sabe de que côr são os das Gomes? --Não... --Amarellos! A Carlotinha pediu á modista que lhe decotasse bem o vestido atraz, para mostrar o signal preto da espadua ... é levada, a Carlotinha! Ninguem dirá, ás vezes, que é uma moça de familia: parece outra coisa... --Está muito bonita, agora, depois que engordou. --Mas cada vez mais maliciosa... Nina não respondeu; mandava o copeiro servir o café á sala. Lia e Rachel entraram arrastadas pela Noca, tentando morder-lhe as mãos, muito pirracentas. --Já viram só estas meninas como estão! Bem, D. Nina! dê todos os sonhos a Ruth. Nina elevou, sorrindo, o prato de sonhos em direcção a Ruth, que se balançava em silencio numa cadeira, e então as creanças avançaram para a mesa, á espera do café. --Ora graças! Engulido o café, Therezinha declarou: --Tenho muito que fazer; adeus, vou-me embora! As gemeas fugiram tambem, com as mãos cheias de sonhos, para o jardim; Nina e Ruth ficaram sós, muito caladas, ouvindo as moscas voejar sobre os restos assucarados dos pratos. De repente, Nina: --Em que é que você está pensando, Ruth? --Na Sancha. --Que ideia! --É que ninguem sabe! fui eu que disse á Sancha que fugisse. Tive tanta pena d'ella! Tia Etelvina é má: batia na negrinha com vara. Eu vi. A Sancha nem parecia gente; suja, desconfiada ... que estupida! Não sei como ella podia aguentar aquella vida. Fui eu que lhe disse que fugisse; e depois que ella fugiu, tenho medo que morra por ahi átoa, que não ache emprego, que se embebede ou fique embaixo de um bond... Até sonho com a Sancha. Que coisa horrivel! Nina consolou-a. A Noca já lhe contara que a pretinha quizera envenenar-se; era menos burra do que parecia. --Você é muito nervosa; deixe lá a Sancha, pense em outra coisa. Tia Milla ainda está no terraço com a baroneza da Lage ... vamos lá? --Para que? --Para fallar nos figurinos... Eu ando um pouco desconfiada com tantas visitas d'aquella senhora ... você tem reparado como ella cochicha com Mario? --Não... --Pois repare... A lesma da Paquita tem bom advogado! --Mario não gosta d'ella. --Quem disse? --Elle mesmo, bem alto, outro dia na mesa. Você não ouviu? --Ouvi... --Então? --Então? Quem sabe o que estará para acontecer! Nessa tarde Camilla participava em segredo ao marido que a baroneza da Lage viera declarar-lhe o amor da irmã por Mario, e lembrar-lhe que o baile seria uma bella occasião para a apresentação dos noivos. O negociante olhou boquiaberto para a mulher. Ella disse: --Elles desejam abreviar essa historia, porque o velho quer ir para a Europa. --Mas é incrivel! --Porque? --Porque! porque o Meirelles é um homem pratico; não ha de querer entregar a filha a um rapaz sem profissão! Isso não pode ser. A Lage está doida. --Você é injusto... Mario não tem profissão, mas pode vir a tel-a. --Lá vêm cantigas! Pois sim! Aqui para nós: o rapaz não vale nada. Quem não trabalha, que garantia pode dar á familia? --Elle é rico, e a Paquita ainda o é mais... --Por esse lado approvo. O dote d'ella é bom, e a familia excellente. Se o Mario soubesse ser o que sempre desejei, pouco me importaria que se casase com mulher pobre. São as melhores; trazem a experiencia da vida. A experiencia da vida é um grande dote. --Você falla com Mario? --Eu?! eu não. Não concorrerei com o meu conselho para semelhante asneira. Arranjem-se; Que diabo! elle ainda não tem vinte annos. Falla-lhe tu ... se quizeres. Francisco Theodoro passeava pelo quarto, com as mãos nos bolsos, fazendo tilintar as chaves. --A Lage disse-me tambem que você entrou em uma grande negociata com o Innocencio... --Como soube ella d'isso?! --Não sei... Diz que a sua casa vae ser uma das mais fortes ahi... --Tenho medo... --Hein? --Não é nada; está feito. Pois senhores, parece incrivel, elles querem mesmo o casamento? --Então? Logo que Mario queira, será coisa para uns quinze dias. O Meirelles deseja levar os noivos comsigo. Bem pensado, Paquita teve bom gosto. --Muito fresco! Olha: eu lavo d'ahi as minhas mãos. --Logo vi... Mario já deve ter chegado; eu vou fallar com elle. Por emquanto é bom não dizer nada a ninguem. --A quem o dizes... Theodoro ficou só no quarto, mudando de casaco e de calçado, vagarosamente, com sentido no negocio que o preoccupava. Como diabo teria a Lage sabido d'aquelle negocio com o Braga? Abriu a janella e encostou-se. De baixo, da sala de jantar e da cozinha subiam o cheiro de gorduras e a musica da crystallaria e da prata movidas pelo copeiro. No grande lago do parque, de aguas renovadas, patos gordos desprezavam as migalhas de pão que a Rachel e a Lia, deitadas de bruços na relva sobre os bordados bem engommados dos vestidos, lhes atiravam ás mancheias. Sob a jaqueira enorme, carregada de fructas grandes como ubres tumidos, o cão de guarda preso á corrente, devorava uma enorme posta de carne em um alguidar. Todas as plantas, bem tratadas, rebentavam em grellos viçosos ou se expandiam em flores, e pela rua de palmeiras, que ia ter á horta, o jardineiro vinha carregado com uma cesta de fructas e frescos pés de alface. A terra suava de farta; não lhe faltava nem o adubo que lhe dá força, nem o ornamento que lhe dá graça. Afigurou-se então a Theodoro, com clareza, que a vida é uma coisa bem boa para quem vence e faz cahir sobre o terreno que o circumda a chuva de ouro fecundante. No seu orgulho de homem sahido do nada, aquelle goso material da riqueza enchia-lhe a alma de uma especie de heroismo. Era como se elle tivesse feito tudo, desde as pedras dos fundos alicerces do seu palacio até as mais exquisitas fructas do seu pomar e as mais divinas flores das suas roseiras. Semente germinada á custa do seu dinheiro, era obra sua, envaidecia-o, como se a suprema perfeição da planta lhe tivesse sahido de entre os dedos poderosos. Em todo esse sentimento de conquista havia, a bondosa ingenuidade de ter sabido crear para os seus uma felicidade perfeita. Nunca os filhos saberiam o que era uma infancia como fôra a sua, desagasalhada, errante; nunca a mulher saberia o que era ter um desejo sem esperança de satisfação, e a todos envolveria sempre o luxo, a abundancia e a alegria. As copas das palmeiras desenhavam-se em fila na atmosphera limpida. Uns passos rangendo na areia chamaram-lhe a attenção para baixo da janella: Camilla e Mario sahiam de casa para o jardim. Ella; alta, bem desenhada no seu vestido claro, andava de vagar; elle, com o peito florido por um fresco _bouquet_ de myosotis, as mãos nos bolsos, parecia ouvir a mãe com attenção a que não era afeito. Seguiram ambos para o jardim da frente e deram volta á casa; quando os perdeu de vista, Francisco Theodoro desceu á sala de jantar; A mesa estava prompta; Nina, com o seu aventalzinho bordado sobre um vestido escuro, dava uns retoques á fructeira. --O Dr. Gervasio almoçou cá? perguntou-lhe o tio. --Como sempre. --Virá jantar? --Creio que não... --É o diacho ... eu precisava fallar-lhe! --O seu empregado está peior? --Parece-me que sim ... coitado... Nina suspirou, e da fructeira passou ás flores da jarra, pensando no velho Motta, que mal conhecia, entretanto. Depois de uma pausa: --Quer que eu mande tocar a sineta? --É bom esperar um pouco; tua tia está em conferencia com o Mario. De maneira que o Gervasio não voltará hoje por aqui? Nina não respondeu, o coração batia-lhe com força. A ideia da Lage deu-lhe o presentimento da verdade. Seria certo, Deus do céo, que Mario se casaria com a outra? Conferencia com elle... para que? Francisco Theodoro recostara-se em uma cadeira do terraço, lendo um jornal da tarde a que pouca attenção prestava. O que estaria a mulher a dizer ao filho? Julgava do seu dever não intervir naquella creançada; se o fizesse, seria para despersuadir a moça de tal casamento: conhecia a frivolidade do filho; o que o espantava era o consentimento do intransigente Meirelles: só explicava aquillo por caduquice; miolo molle.--O homem ensandeceu! Ora, ora! dar a filha ao Mario!--resmungava elle de vez em quando, com estupefacção, como se fizesse um commentario ao artigo acabado de ler. Nina, que se agitava de um lado para o outro, indo de armario a armario, de janella a janella, veio para o terraço e encostou-se á balaustrada, muito abatida. De seus olhos pardos sahia uma luz branca, onde relampejavam fulgores frios. Vira de relance a tia e o primo embaixo dos tamarineiros, e fugira depressa da janella da copa para o terraço, com medo de perceber-lhes nos gestos a expressão exacta das palavras que diziam. Adivinhava a verdade, mas temia ouvil-a, porque essa verdade não a magoaria só, offendel-a-ia tambem. Era como que um ultrage á sua mocidade outomniça, á sua pobreza e á sua fé no amor. Sentia-se predestinada a ser na vida uma espectadora da ventura alheia, e uma revolta de sentimentos dava-lhe desejos máos. A tia, contra o dever, não amava, não era amada, não sacrificava tudo pelo perfume de uma palavra amorosa, pela loucura divina de um beijo? Aquelle livro de paixão, tão imprudentemente aberto deante dos seus olhos, não a fizera por tantas vezes estremecer de inveja e sonhar com as delicias do amor? Até ahi respeitara aquella paixão, sentia-a sincera, fazia-se céga, apiedada d'aquellas almas felizes. Agora tinha impetos de se vingar, de arrancar das mãos do tio o jornal, de gritar-lhe com toda a força a historia d'aquelles amores que a humilhavam, porque entre ella e a tia, não era a outra, casada e mãe, mas sim ella, orphã e virgem, quem tinha direito áquella felicidade de amar e de ser amada... Duas borboletas brancas passaram rente a ella, perseguindo-se. Nina fechou os olhos, mas a visão da felicidade alheia lá estava dentro. Qual seria o interesse da tia em casar o Mario? Lia e Rachel interromperam-n'a; vinham nas bicycletas a toda a força, reclamando o jantar aos brados. O pae sorriu, achando-as lindas, assim rosadas, com os cabellos ao vento. Ellas, já combinadas, atiraram-se para elle, turbulentamente, pedindo-lhe ao mesmo tempo as mesmas coisas. Queriam um carrinho de verdade, puxado a _poneys_, com o cocheiro vestido de azul. Nina aproveitou para mandar servir o jantar, morta por interromper a conferencia da tia. E. quando Camilla e Mario entraram na sala ninguem lhes soube lêr nas physionomias uma sombra sequer da verdade; fallavam ambos do baile, como se de outra coisa não tivessem tractado. Foi só á noite que Milla disse no quarto ao marido: --O Mario acceita o casamento. Assim como assim, elle não tem mesmo gosto para o commercio... XVI Na sua salinha da rua Fundo, extendido no velho canapé empoeirado, _seu_ Motta, emmagrecido, com a barba crescida, as faces chupadas, olhava para as moscas que zumbiam, negrejando na cal da parede encardida. Lá dentro, a filha cortava o silencio de vez em quando com as suas passadas vagarosas, em que se sentia o cançaço. Tinha razão: era só para tudo. O pae, apezar da impertinencia da molestia e das suas exigencias de homem amigo da limpeza, resignava-se quasi sem protestos áquella immundicie em que se ia encharcando. Certo, que isto de se dizer que uma mulher pode fazer todo o serviço sem se enxovalhar, é coisa de romance. A Emilia andava com as mangas e o avental sujos de carvão, tinha as unhas impregnadas do cheiro da cebola e do alho; e as mãos, avermelhadas pelo uso do sabão da terra com que esfregava a roupa, tinham perdido o geito para a caricia doce, macia, tão querida das creanças e dos doentes. A pobre andava escada abaixo e escada acima, do sótam para a cozinha e da cozinha para o sótam, com os hombros vergados ao peso da bacia cheia de roupas ensaboadas ou torcidas, para extender lá em cima no telhado, a um calor de rachar. A paciencia exgottara-se-lhe, ella andava aos suspiros, cada vez mais côr de cidra. Quando se mirava no espelhinho do seu quarto, ella mesma se achava feia. O seu rosto alongava-se, tomava uma expressão de animal. O pae chamou-a: --Emilia, olhe, veja se pode dar uns pontos nestas meias ... estão-me incommodando. O paletot está sem botões. Ella não respondeu, foi dentro e voltou: --Estão aqui outras meias. --Tenha paciencia, minha filha, eu não posso dobrar a perna... Emilia agachou-se e mudou as meias ao pae. Elle continuou: --As minhas calças de brim estão muito encardidas, será bom alvejal-as emquanto eu estou em casa. Vão ser muito precisas. O meu terno de casimira está escovado? Ella mal respondeu com um signal de cabeça. O pae, querendo poupal-a, com remorsos de lhe dar semelhante existencia, atrapalhava-a com exigencias; eram os lenços rotos, as ceroulas sem nastros, ou por que as cadeiras tinham um dedo de pó, ou por que as plantas das latinhas morriam nas janellas á mingua d'agua, torradas de sol. Enfadada, Emilia fazia os reparos exigidos, em silencio, com ar rebarbativo. Então o velho voltava o rosto para a parede e fechava os olhos para reter as lagrimas. Vinham-lhe á mente os seus bons tempos de Pernambuco e a alegria da sua defuncta, tão activa, tão pagodista e festeira. Quem diria que de tal mãe... Á hora do jantar, a filha ajudou-o a ir para a mesa, em um canto da cozinha, ao pé de uma janella com vista para telhados. De enfastiado, elle ás vezes não se continha e suspirava: --Que jantarzinho cangueiro... Emilia não respondia; punha-lhe no prato o feijão e a carne secca, que elle engulia com esforço. Nesse dia a tarde estava quente. O papagaio da visinha arremedava as vozes e as gargalhadas das moradoras de baixo, reunidas no quintal. Motta sentiu vontade de palrar um pouco tambem; mas a companheira voltou-lhe as costas para ir lavar as panellas e o cheiro das banhas frias tornou-se insuportavel. Elle voltou resignado para o canapé da saleta, martellando com a bengala o chão roido pelo caruncho e pelos ratos. O seu sonho era sahir, voltar ao escriptorio, tactear as folhas dos livros, pensar em negocios, deixar de vêr o rosto comprido da filha e de sentir a morrinha da casa suja. Quem de vez em quando cortava aquella pasmaceira com um pouco de alegria, era a bahiana Bertholina que lhes levava um resto de quitanda recambiada, fatias de _Mané-taiado_, ou cocadas com abobora, sujeitas ao azedume. E então era só: --Yoyô! Yayá! e gargalhadas frescas e: É preciso paciencia, atraz dos dias maus vêm os dias bons, não é meu Yoyô? Tenham fé em Deus... E adeus, minha Yayá, e adeus meu Yoyô! Seu Motta sorria lambiscando as cocadas, feliz por vêr alguem rir. Nessa tarde a Bertholina iria a proposito; mas quem appareceu foi o Ribas. _Seu_ Motta contava as moscas da parede, sem querer dar confiança ao rapaz, mas abria os ouvidos. Elle estava mortinho por dizer o que sabia, e logo depois de uma meia duzia de palavras: --Hontem houve um baile em casa de _seu_ Theodoro. Diz que a rua estava cheia de carros. Só o vestido da D. Camilla custou dez contos... --Quem acredita nisso... --O Mario vae casar-se com uma moça que tem para cima de mil contos. Foi ao baile coberta de joias. _Seu_ Guimarães, _seu_ Castro, todos estes turunas do café foram lá. --Como sabe você de tanta coisa? --Foi o Isidoro quem me contou. O Ribas, com os hombros descahidos e um sorriso nos labios molles, fallava em sumptuosidades, com a voz empapada em saliva. O velho tossiu, fingiu querer dormir, negando confiança ao rapaz, sentindo-o abusivo. Vendo que o outro o não entendia, exclamou: --Você não tem que fazer? --Eu ainda não achei emprego... --Veja lá, eu não quero que seu cunhado pense que o retenho em minha casa. --Meu cunhado não me governa. _Seu_ Motta despediu o Ribas, mas logo que o viu descer a escada sentiu-lhe a falta. Ao menos aquillo era alguem, sempre trazia um echo de vida, um zum-zum de fóra. O Ribas desceu, enfarado d'aquelle velho cainha, que não escorrera nem um tostãozinho para o café; se pensava que elle ia levar as novidades só pelo amor dos seus olhos! Burro! Elle ainda haveria de ensinar toda aquella canalha a temel-o e a chover-lhe dinheiro no bolsinho; era só fallar com o _Pirueta_ da Pedra do Sal, que lhe ensinasse a capoeiragem... Na rua da Saúde parou á porta do armarinho da irmã, a Deolinda, que esmiuçava a grenha hirsuta de um filho de tres annos, recostado sobre o seu ventre enorme. Ribas fez-lhe signal da porta, perguntando se podia entrar e observando ao mesmo tempo se o cunhado estaria alli; ella disse-lhe que não entrasse e, sacudindo-se a custo, foi á porta e fallou-lhe em segredo. --Você não tem vergonha? vá-se embora! Ubaldino tá hi... --Queria que você me emprestasse quinhentos réis... --Onde é que eu vou buscar dinheiro, gente! --Na gaveta do balcão. --Na gaveta! por você ter mexido na gaveta do balcão é que aconteceu o que aconteceu; vá-se embora! --Não seja má, Deolinda. --E o seu ordenado? Olhe: nós não fazemos negocio nenhum... Minha creança está para nascer e eu não tenho nem uma camizinha arranjada. Mal dá p'ra comer, sabe Deus como! --Não seja sovina; depois eu pago. --Ubaldino ahi vem ... vá-se embora. --Ora... E com arremesso o Ribas seguiu pela calçada até ás Docas; á porta encheu-se de batata roxa, cozida, que a Bertholina bahiana vendia, tagarellando com uns marinheiros do Lloyd. Depois das batatas o Ribas ainda teve uns tostões para tangerinas. Só bem repleto foi que bateu as solas rotas pelas calçadas, a caminho da rua de S. Bento. Ahi chegado, quiz desafiar a paciencia de _seu_ Joaquim, postando-se como um basbaque á porta do armazem, vendo os trabalhadores na sua faina entrarem e sahirem sem interrupção. Em cima, no escriptorio, Francisco Theodoro, amollecido pela sua noitada de festa, narrava lealmente ao Meirelles, pae da Paquita, a inaptidão do filho para o trabalho. O Meirelles sorria; que descançasse, elle encaminharia tudo,--e accrescentava: --Paquita, com aquelle ar de songa-monga, é de uma energia de homem. Não é de brinquedos. Tem um juizo notavel. Eu agora levo-os para a Europa, faço o Mario observar o movimento das principaes praças e na volta você verá, Theodoro, como o seu filho ha de trabalhar! Será então tempo de você ceder-lhe o campo... --E eu estou morto por isso... --Então? Urge andar depressa, que eu não quero perder a viagem do _Equateur_. Francisco Theodoro começava a comprehender que a Paquita, se era assim, seria a unica mulher capaz de modificar o caracter do filho. Mario seria um instrumento nas suas mãos energicas. Não a suppozera nem a cria ainda tal, tão fragil, tão esbranquiçada e inexpressiva a vira sempre na moldura dos seus cabellos louros. Estava bem; Mario precisava de uma vontade firme, que o dominasse e dirigisse; nem com uma lanterna accesa encontraria coisa tão boa. Paquita seria a salvação do seu filho, a garantia da sua casa commercial, que já não acabaria com elle. Pensando assim, uma ternura desabrochava na sua alma para aquelle filho perdido, que tamanhas desillusões lhe semeara na vida. Começava a sentir que lhe não perdera o amor. Elle continuaria aquella casa, com tanto trabalho nascida, que teria com elle a mesma firma, a mesma tradição... Seria sempre a Casa Theodoro, feita pela sua ambição, perpetuada na sua descendencia... XVII Nina tinha voltado do casamento de Mario e despia-se devagar no seu quarto, com os olhos fixos na luz branca do espelho. Era o fim, e nem por estar tudo consummado se resignava. Para bem d'ella, os noivos iam nesse mesmo dia para Petropolis, e de lá só voltariam para bordo de um transatlantico. Como seria doce á Paquita cruzar os mares nos braços do seu amor... Nina desprendeu do corpete as flores de laranjeira que a noiva lhe dera para casar depressa, e contemplou-as com ironia ... ia atiral-as ao chão, quando alguem bateu á porta. Abriu. Era a Noca, que vinha toda alterada. --Nossa Senhora! quebrou-se o espelho grande do salão! --Quem foi que o quebrou? perguntou Nina, para dizer alguma coisa. --Ninguem sabe. Veja só, que desgraça estará para acontecer! Espelho quebrado: morte ou ruina. --Morte! se fosse a minha... --Cala a bocca, menina, não diga asneiras. Quem é que ama uma vez só na vida? --Muita gente ... eu. --Não acredite, deixe fallar. A senhora é moça, verá. Mas venha ver o espelho; não presta a gente ficar calada quando está afflicta. Parece arte do diabo, cruzes! logo hoje! --Vá andando, eu já vou. Nina mudou de vestido á pressa e desceu. Encontrou dois criados boquiabertos em frente ao espelho, prevendo desgraças, suggestionados pela influencia da Noca. --Que pena! um espelho tão rico ... murmurou Nina machinalmente, pensando na Paquita. --O caso não é o dinheiro. Eu cá não tenho pena, tenho medo. --Agora que se ha de fazer? ter paciencia e esperar, disse Nina com um sorriso pallido. --Esperar! Diz você muito bem. Foi uma vontade mais forte que fez aquillo, temos que esperar grandes coisas. Noca não falla á toa. Vocês verão. É melhor não dizer nada a nhá Milla. --É melhor... No dia seguinte, quando o Dr. Gervasio entrou no jardim de Camilla, encontrou-a no terraço, rescendente e fresca no seu _peignoir_ marfim pontilhado de ouro. --Como estás linda! murmurou elle pegando-lhe na mão, que ella deixou beijar á grande luz, como se a ausencia de Mario cegasse todos de casa. E o casamento de Mario fôra um allivio para ambos. Estavam livres d'aquella testemunha importuna, que tinham de respeitar. Milla bemdizia aquelle casamento, que a libertava de uma humilhação constante, levando-lhe o filho para as terras do luxo e do prazer. Separando-se, elle ia ser feliz. Que mais poderia desejar um coração de mãe? Foi nesse mesmo dia, á tarde, que Francisco Theodoro chegou sombrio a casa e, em vez de subir, como de costume, encerrou-se no escriptorio, em baixo. Camilla entrou da rua mais tarde, sacudindo-se á pressa pela escada acima. Durante o jantar só ella fallava, muito risonha, rescendendo á essencia com que Gervasio a pulverisara pouco antes no chalésinho dá Lagoa, onde escondiam o seu amor. Aquelle perfume era como que a alma d'elle que ella trouxesse comsigo. --Que linda tarde! olhem para o jardim, exclamou ella, apontando para fóra com a mão fulgurante de anneis. Era um pôr-de-sol maravilhoso. --Tudo côr de rosa! Parece-me que o jardim nunca teve tantas flores. Como isto é bonito! E ha quem falle mal da vida; e ha idiotas que se matam! Francisco Theodoro cruzou o talher sem ter comido. --O senhor está doente? perguntou-lhe Nina. --Não tenho vontade de comer, mandem-me o café ao jardim. Camilla contemplou-o com magua e explicou aos outros: --Elle está impressionado com o casamento de Mario. Meninas, vocês procurem entreter e distrahir seu pae. Mande guardar um copo de leite para elle, Nina; seu tio não pode ficar assim. Deus queira que elle não me fique doente... E um véu de tristeza passou pelos olhos, ha pouco risonhos, de Milla. Mas nada houve nessa tarde que entretivesse Francisco Theodoro; elle repellia a companhia de toda a gente para ir passear sózinho lá para o fundo da chacara. Ruth tocou em vão as suas melhores musicas: o pae nem parecia ouvil-as... Na sala de engommar, a Noca commentava a tristeza do patrão, como um facto annunciado pelo desastre do espelho... «A coisa está começando... Eu não dizia?» Á noite, emquanto Francisco Theodoro folheava embaixo a papelada do Innocencio Braga, Milla despia-se em frente do seu psyché, namorando a propria imagem, milagre da juventude, sentindo em um fremito a delicia de bem merecer um grande amor. Como a Sulamita, toda ella era formosa. O peito farto, o pescoço alvo e redondo, as mãos pequenas, os pulsos delicados, e uns olhos negros e pestanudos, de onde jorrava uma luz velludosa e doce que toda a vestia de graça. Ao prender o cabello, lembrou-se de uma comparação de Gervasio; elle dissera uma vez, ao vêl-a pentear-se, que as suas mãos eram como duas aves luminosas esvoaçando na treva. Milla sorriu. Foi só depois das orações, ao espreguiçar-se no seu largo leito, que se lembrou ter de levantar-se cedo no dia seguinte para ir a bordo despedir-se do filho. Tudo era como um sonho. O Mario já casado! Parecia-lhe que ainda o estava a vêr pequenino e gorducho, engatinhando pela casa, aquelle sobrado da rua da Candelaria, onde a sua vida fôra tão differente. E foi com a visão d'aquelle filho em creança, d'aquella carne de rosas, d'aquella bocca innocente que a babava de beijos, que ella adormeceu, sentindo-lhe o peso amado do corpo nos braços saudosos. Quando sôou meia-noite, em toda a casa só havia de pé Francisco Theodoro, que folheava ainda no escriptorio a papelada do Innocencio Braga. Nessa manhã elle tivera o primeiro toque de alarma, num telegramma do Havre para o _Jornal_, que affirmava ter descido o preço do café nos principaes mercados. Afflicto, com a percepção de um desastre imminente e enorme, abalou logo do armazem para o escriptorio do Braga, que o recebeu entre duas risadinhas fanhosas, repimpado na sua cadeira de couro. --Que é isso! o senhor é assustadiço ... pois não percebe que isto tudo é jogo? --Não comprehendo ... balbuciou Francisco Theodoro com um enleio, em que entrava com um amargo desapontamento a doçura de uma vaga esperança. --Não comprehende, porque é um nervoso; não tem a calma dos grandes espiritos emprehendedores. Eu desejaria convencel-o da certeza dos seus lucros; mas na disposição de espirito em que está, vejo que isso é coisa difficil. Verá que amanhã não teremos noticia alguma. Aquillo é feito aqui, homem, garanto-lhe que é feito aqui!... --É impossivel! --Acredite. --Não póde ser. O _Jornal_, tão serio... --Ora, não póde ser!... que ingenuidade! Se eu lhe affirmo, é porque sei. E se não fosse assim eu estaria calmo? Diga, seria posssivel que eu estivesse calmo? --Penso de outro modo; tenho lá grande parte do meu capital! --Ninguem diz o contrario ... sei ... é natural o seu cuidado; sómente, affirmo-lhe que é infundado. Amanhã, ou haverá silencio, ou ha desmentido. Tudo isto é geito. Olhe, o Gama Torres está satisfeitissimo; sahiu ha pouco d'aqui. Está contente; aquelle é um homem do tempo, ha de ir longe... --Pois, eu, confesso-me arrependido. --Ora, não diga tal! que barbaridade! O nosso triumpho é certo. E, já que se mostra assim apprehensivo, façamos uma coisa: telegraphemos ao Lacerda. Eu por mim não telegrapharia, conheço a alma d'estas machinações. Tudo é chimica. Digo-lhe mais: eu estou contente... Olhe, amanhã poderei provar-lhe com documentos irrefutaveis a veracidade das minhas affirmações. Venha cá ás duas horas. Francisco Theodoro sahiu menos torturado; mas, á proporção que as horas avançavam, voltava-lhe a inquietação, a ponto de não poder trabalhar. Fugiu para casa e alli encontrou o mesmo desasocego. Atirou-se aos papeis; leu-os, releu-os, tirou notas e cada vez sentia maior confusão naquelle embrulho de problemas, em que todo o seu bom senso naufragava. Inquietava-se com presentimentos. Era muito d'isso. Afinal, um telegramma isolado, discordando de tudo o que se dizia, podia não ser verdadeiro. Affligiam-n'o certos zums-zums da cidade. Os boatos são como os corvos, apparecem no ar attrahidos pela podridão occulta. Todavia, forcejava por acreditar nas boas previsões do Braga. O homem era honesto e tinha nas mãos habeis o fio da trama; logo, melhor seria esperar pelas taes provas irrefutaveis... Eram seis horas da manhã quando Camilla o chamou para irem ao _Equateur_. Foi um alvoroço em casa. Noca era a mais curiosa; queria ir tambem despedir-se do Mario e vêr por dentro uma d'aquellas casas fluctuantes, onde não viajaria nem á mão de Deus Padre! Apressou-se em vestir as gemeas, que se faziam de tolas, exigindo os vestidos novos e os chapéos côr de rosa. --Não; ponderava ella, deixem os chapéos côr de rosa para passear na cidade ... levem os brancos. --Eu quero levar o chapéo côr de rosa, gritou Lia; e logo Rachel: --Eu tambem quero levar o chapéo côr de rosa. --Que tolice, gente! um chapéo d'aquelles para o mar! As meninas berraram, e Milla interveio: --Pois que levem os chapéos côr de rosa; tambem vocês gostam de aborrecer as creanças. Ás dez horas embarcaram numa lancha. Ruth lembrou-se do passeio ao _Neptuno_, e voltando-se para a mãe, perguntou: --É verdade! nunca mais a gente soube do capitão Rino. Camilla levantou os hombros. --Quando elle voltar, hei de pedir-lhe que nos arranje outro passeio pela bahia. --Por uma noite de luar ... disse Camilla. Ruth accrescentou, para bulir com a Noca, que se agarrava ás bordas da lancha: --Ou mesmo por uma noite de tempestade, com muitos relampagos e trovões. Ainda ha de ser mais bonito. --Uê, que maluquice! exclamou Noca; Nossa Senhora da Penha! eu com este sol todo estou com medo, quanto mais... --É pena que Nina não tivesse vindo... --Para quê? para vêr a outra? Francisco Theodoro não ouvia nada; percorria com a vista anciosa todos os telegrammas dos jornaes. Nada; não vinha nada; e com isso elle não sabia se havia de achar motivo de allivio ou de maiores apprehensões. Quando subiram ao tombadilho, já lá encontraram o Meirelles, mais o Mario e a Paquita. Ella, sempre com o seu arzinho enjoado, contando as palavras que dizia, tractando a familia do marido com cerimonias afastadoras. Mario ia e vinha, solicito, obedecendo com sorrisos ás ordens que ella lhe dava em phrases curtas: --Que fosse ao camarote guardar-lhe a bolsa das joias... Que lhe fosse buscar a capa... Que verificasse quaes as malas que iam para o porão e que mandasse a vermelha para o beliche. Mal elle se lhe approximava, logo ella o incumbia de qualquer coisa que o afastava:--Que contasse os volumes... Que entregasse a cesta das fructas ao _maître d'hotel_, recommendando-lhe que as mettesse na geleira... Que puzesse os seus cartões de visita nas costas das cadeiras, para evitar confusões... Mario girava sobre as solas de borracha dos sapatos claros e lá ia lépido cumprir as ordens. Camilla pasmava. Quem lhe diria que aquelle era o mesmo Mario indomavel, secco, tão imprestavel sempre aos favores pedidos pela mãe e as irmãs? Vendo aquillo, subia-lhe do coração aos olhos uma tristeza ciumenta, magua de alma ferida a que nenhuma razão abafa a queixa. Paquita percebeu tudo e redobrou de frieza, mal respondendo ás perguntas da sogra. Entretanto, Theodoro e o Meirelles passeavam a largas passadas da proa á ré. O velho Meirelles era de opinião que o telegramma do _Jornal_ inserido na vespera era coisa séria, de alarme. Francisco Theodoro engoliu em secco; não teve coragem para lhe dizer que grande parte do seu capital fôra atirado á voragem de uma especulação. Relatou, porém, as palavras do Braga e as suas affirmações. --Não me falle nesse homem, interrompeu o outro com violencia; é um especulador sem escrupulos ... quer mais claro?--é um ladrão! Veio de Portugal, ha coisa de seis annos, sem vintem, e sabe quanto já passou para Inglaterra em bom metal? mais de mil contos! Vi a prova. O patife! Aquillo é lá da minha freguezia ... conheci-lhe o pae, era outro marreco que tal! Homem--não se deixe levar pelas cantigas novas, nós antigos, verdadeiros pés de chumbo, caminhamos devagar e escolhendo terreno. Essas basofias e esses atrevimentos são bons para quem não tem nada a perder... Olhe, lá toca á retirada; avise sua senhora, para descerem sem precipitação... Ao abraçarem Mario, Francisco Theodoro, com a voz estrangulada, recommendou-lhe: --Juizo, meu rapaz! Camilla, branca como marmore, apertou o filho com força ao coração; depois, sentindo-o frio no seu abraço, beijou-o no pescoço e na face e fixou nelle em uma queixa muda os seus grandes olhos maguados. Foi só na lancha, escondendo-se dos olhares da Paquita, que ella desatou em soluços que ninguem tentou reprimir. Havia em todos egual resentimento. Noca chamava mentalmente a Paquita de lambisgoia, percebendo que ella roubava o Mario a toda a familia, absolutamente. Ruth reconhecia que as separações são as reveladoras do amor. Cuidára ella nunca por ventura que um abraço de despedida custasse tanta pena? Lia e Rachel abriam olhares curiosos para tantos rostos preoccupados, e só Francisco Theodoro acenou para o filho com um lenço, pondo naquelle adeus toda a sua ternura. Quem lhe diria? Agora, na possibilidade de um desastre, a unica pessoa da familia que elle via salva era o Mario! Chegando á terra, Camilla e as filhas foram de carro para casa, e Francisco Theodoro, depois de almoçar á pressa num restaurante, seguiu impaciente para o armazem. Á porta d'elle a pretinha Terencia guinchava contra um italianinho que se lhe associara sem licença ao negocio, atirando-se á pilhagem do café da calçada. --Ha alguma novidade? perguntou Theodoro ao gerente. --Não, senhor. Ah! é verdade, o Motta parece que está moribundo. --Pobre homem... --A filha veio hoje procurar o senhor; vinha chorando. --Ha de ser preciso mandar recursos a essa gente... --Arreda d'alli aquelle sacco, João! --Coitado do Motta... O gerente já não o ouvia: determinava serviços. Chegado ao escriptorio, Francisco Theodoro tractou de remetter dinheiro ao Motta e informar-se do seu estado. O portador voltou depressa. O velho tivéra uma syncope mas estava melhor. --Coitado do Motta, murmurou Theodoro, consultando o relogio, morto pelas duas horas. E ás duas horas correu ao escriptorio do Innocencio. Em cima um empregado informou-o de que o Sr. Innocencio partira nessa manhã para Petropolis, a negocio urgente. Deixara dito que na volta iria procural-o. Francisco Theodoro não conteve um movimento de raiva, e sahiu tonto, sem cumprimentar ninguem. O ruido, o trabalho, o movimento alegre da rua fizeram-n'o sentir mais o seu cançaço moral. Ia cabisbaixo, quando encontrou o Negreiros; deteve-lhe os passos e, quasi sem explicação, perguntou-lhe: --Diga-me cá: que opinião faz você do Innocencio Braga? O Negreiros sorriu, coçou o nariz enorme, e sibilou: --Aquillo é um espertalhão; não é bom fiar, não é bom fiar. --E que me diz você d'aquelle telegramma do _Jornal_ de hontem, sobre a baixa do café? --Que hei de dizer? que annuncia catastrophe para muita gente boa. Sabe o que me consola? É que os Estados Unidos ainda levarão um rombo maior do que nós. Não lhe parece? Que importavam a Francisco Theodoro as fallencias dos americanos! elle só tremia pela d'elle, era na sua fortuna que estavam condensados todos os bens do universo. Negreiros sentiu-lhe a mão fria, ao apertar-lh'a, e voltou-se de repente, fixando-o nos olhos: --Homem, querem vêr que você... O negociante não lhe respondeu; simulando pressa passou adeante. Nessa tarde elle encontrou a casa cheia. D. Ignacia espalhava receitas de doces por todos os cantos onde encontrasse dois ouvidos pacientes. A Carlotinha, com o seu ar picante de morena desembaraçada, debicava as Bragas, que riam muito, alludindo aos namorados da Judith e da irmã, piscando para um estudante de medicina, o Oscar Pereira, que ellas apresentavam nesse dia á familia Theodoro, como um excellente recitador de monologos. Mas na casa pouco se apreciavam os versos e ninguem lh'os pediu. O Dr. Gervasio jogava com o Gomes e o Lelio, Camilla gyrava pela casa, esquecendo-se, no meio do ruido, da impressão de abandono d'essa manhã no _Equateur_. Lá dentro, Nina mandava accrescentar mais uma taboa á mesa e descia á adega para determinar ao copeiro os vinhos a servir. Assim, aquelle dia de semana parecia de festa. Francisco Theodoro sentou-se ao pé do piano e olhou para todos como se olhasse para phantasmas. Que quereria dizer tanta alegria? Então toda aquella gente não teria mais que fazer, nem outras coisas em que pensar? Não esteve muito tempo socegado. Lia e Rachel saltaram-lhe para os joelhos, e elle, cançado, deixou-as trepar, e fez de cavallinho durante alguns minutos... XVIII Todos os dias era aquillo: logo pela manhã Francisco Theodoro saltava da cama com sentido nos telegrammas do _Jornal_. D'esta vez, como das outras, soffreu o mesmo desapontamento. Lá vinha a noticia de que o café baixava de preço, pouco a pouco, invariavelmente. Vestiu-se á pressa e desceu ao jardim, taciturno, como se os pezadellos da noite se prolongassem. E o sol estava lindo. As cigarras cantavam pelos tamarineiros. Eram seis horas, e já Lia e Rachel andavam aos saltos, ainda de calções de dormir. Noca perseguia-as, chamando-as para o banho, com os enxugadores no braço e a saboneteira na mão. --Então, creanças; que cacetes! As pequenas, de queixinhos erguidos, sorriam para o pae, tomando-lhe o passo. --Bons dias, papae! --Bons dias, papae! O pae nem sorriu, afastou-as com brandura e disse: --Vão tomar o seu banho. --Eu quero passear com o senhor. --Eu tambem quero... --Não façam esperar a Noca. Vão tomar o seu banho. Logo... As creanças começaram então a desafiar a paciencia da mulata, em correrias e negaças. Francisco Theodoro seguiu sózinho para o fundo da chacara. E por alli andou calado, sem attender aos cumprimentos dos empregados que passavam por elle. Sentia-se oppresso, como se carregasse nos hombros um fardo muito pesado. Era a primeira vez que attentava na pequena duração da mocidade: a falta da energia dos outros tempos doia-lhe na alma. E as cigarras cantavam; felizes, as cigarras, que só teem vida para isso... A Nina foi ter com elle. --O senhor anda muito madrugador... Quer almoçar? Está tudo prompto. Elle puxou pelo relogio. --Sim, posso ir, são quasi nove horas... Entraram. As pequenas puzeram-se aos lados do pae, que lhes mettia na bocca bocadinhos de pão com ovo. --O senhor dá tudo ás meninas e não come nada! observou Nina. --Não tenho fome. --Depois fica doente ... porque não falla com o medico? --Eu?! para quê? --Aqui está o café. Engulido o café, de um trago, Francisco Theodoro sahiu apressado. Noca foi espial-o á janella e veio dizer á Nina que seu Theodoro parecia outro homem; até mudara de andar. Contemplaram-se as duas, e foi ainda a mulata quem murmurou: --Quem sabe se alguem disse de _nhá_ Milla, hein? Ás onze horas, quando se sentaram á mesa do almoço, já a visão de Theodoro se desvanecera. Deveria ser um mal passageiro. A mesa era farta, o sol brilhante punha na sala manchas vermelhas, através do toldo riscado das janellas; sobre a toalha havia os mesmos excellentes vinhos e o mesmo excellente aroma de manacá. Nas jardineiras, os tufos rendados das avencas davam, como em todos os dias, egual aspecto de frescura á sala; as creanças rebentavam de saude... Que mais seria preciso para que as horas voassem na vida como num sonho? Entretanto, o Dr. Gervasio perguntou a Milla. --Seu marido está melhor? --Não sei; anda amofinado... Sentiu muito o casamento de Mario. Elle não quer que se diga que está doente. E effectivamente não está. Não sei o que é aquillo. Gervasio calou-se, pensativo. As gemeas começaram a rir, uma da outra. --Viu que bonito croton está no vaso da entrada, doutor? perguntou Ruth ao medico. --Vi. O croton é bonito, o vaso é que é medonho. Tirem aquelle vaso de alabastro d'alli, ou eu não volto cá. --Acha feio? --Horrivel. Nesse dia, Francisco Theodoro não achou um instante de allivio no trabalho. Foi ao escriptorio do Innocencio e maçou-o com interrogações, percebendo que o achavam fastidioso, e que o evitavam disfarçadamente. Já havia perto de tres mezes que os telegrammas annunciavam regularmente, numa proporção de acinte, a baixa do café no Havre. E ainda o Innocencio conservava o seu risinho zombeteiro, de sentido esgarçado, fugitivo. Francisco Theodoro, mais enfurecido nesse dia que nos outros, teve impetos de bater-lhe, tal foi a raiva de o ver sorrir; todavia, conteve-se, certo de que nada lucraria, e desceu a escada do outro com o protesto de ser a ultima vez. Quando entrou no seu escriptorio, o guarda-livros extendeu-lhe um telegramma: A casa Mendes e Wilson, de Santos, declarava fallencia, arrastando na quéda grandes capitaes de Theodoro. O negociante leu a communicação em silencio e em silencio se conservou por algum tempo, branco como a cal, suando em grossas camarinhas, de olhar parado e o papel aberto nas mãos tremulas. Os empregados do escriptorio assistiam mudos e contrafeitos áquella scena. O Motta já lá estava, muito amarello, de olhos encovados, mal escovado, com a gravata torta num collarinho amarrotado, com o triste ar de pobreza relaxada; tambem elle percebeu que pairava alli uma grande desgraça, e sacudiu piedosamente a cabeça, fixando o rosto transtornado do patrão. Ouviam-se as moscas no ar zumbir com força. Quinze dias mais tarde annunciava-se o fim de tudo,--a grande casa Theodoro teve de declarar fallencia. Na familia nada se sabia; o negociante readquirira nos ultimos tempos uma relativa serenidade. Tinha de se render á praça numa segunda-feira, e exactamente no domingo a sua mesa encheu-se. A familia Gomes chegou cedo. D. Ignacia mudara mais uma vez o feitio ao seu vestido de seda côr de pinhão; que seda aquella! parecia nova, com as rendas pretas do adorno. --Então, como se passa por aqui? disse ella alegremente, repimpando-se na melhor cadeira da sala de jantar. --Assim, assim ... tio Francisco não anda nada bom, está muito abatido, respondeu Nina. --Isso é que é máo. E sua tia? --Está lá em cima, já vem. --Gostaram dos biscoitos que eu mandei? --Muito, são muito bons. --Eu trouxe a receita para Milla. Amanhã, se Deus quizer, hei de experimentar outros. Como a Ruth cresce! Aquelles são de polvilho. Perceberam? --Percebemos. --Com muitos ovos. Nas confeitarias não se fazem assim... --Não... Carlotinha tirava o chapéu em frente ao espelho da _etagère_, cantarolando: «No Brasil é doce d'ovos, Chiquita! Um beijo dado em você.» «Um beijo...» e chilreou um beijo no ar, cumprimentando Ruth, que sorria para ella. Judith, com o seu andarzinho saltado de mulher baixa, rabeou pela sala, sacudiu os braços numa tilintação de pulseiras e roubou Nina á mãe, puxando-a para o terraço: --Você sabe d'uma coisa? Fui pedida em casamento. Ah, como é bom! como eu estou contente! --Foi o Samuel? --Então, quem havia de ser? --Seu pae não queria... --Que remedio teve elle... Custou, hein? Elle ha de passar por aqui... Você vem commigo para o jardim? Pouco depois chegaram as Bragas com o estudante dos monologos O Dr. Gervasio mesmo, que não costumava apparecer aos domingos, lá foi para o joguinno com o Lelio e o Gomes. Francisco Theodoro mandou abrir cerveja. A creançada da visinhança tagarelava pelos corredores. Fazia um sol! --Gostou dos biscoitinhos que eu lhe mandei, Sr. Theodoro? --Muito bons ... a Sra. D. Ignacia é emerita. Sabemos. --São de polvilho... Eu trouxe... Camilla appareceu na sala. Vinha bonita, toda de azul. D. Ignacia remexeu-se nas sedas e levantou-se interrompendo a phrase. Disse outra: --Como ella vem! É um céo! De vez em quando Noca apparecia na porta do corredor, percorria com a vista toda a sala e voltava risonha para dentro, contando aos outros criados, em arremedos alambicados, as pieguices enjoadas da Therezinha Braga com o estudante dos monologos, pelos vãos das janellas. --Credo, um mocinho tão aquelle... Ás dez horas da noite começou a debandada. As primeiras a sahir foram as Bragas, com muitos adeuzinhos e risadas. O Dr. Gervasio carregou com o Lelio, dando-lhe hospedagem com a condição de lhe ouvir Chopin. As Gomes foram as vitimas. As moças sahiram carregadas de flores e mudas de plantas, e D. Ignacia com o braço vergado ao peso da bolsa cheia de pecegos inchados, bons para doce. Com o pretexto da doçaria, ella passava sempre revista ao pomar de Camilla. O marido dava-lhe o braço, com a cabeça erguida, para que não lhe cahisse do nariz o pesado de tartaruga. --Foi um dia bem passado! disse depois Milla á sua gente. Os outros concordaram. Recolheram-se. Quando viu toda a casa silenciosa e fechada, Francisco Theodoro entrou no quarto das creanças. Do gaz em lamparina descia uma luz doce, attenuada por um globo de porcellana. Em duas caminhas eguaes, de ferro branco com varaes dourados, e separadas apenas por um intervallo de um metro, as duas meninas dormiam profundamente, com os lençóes revoltos, as pernas nuas, os cabellos espalhados sobre as almofadas. Por acaso estavam ambas de papinho para o ar e labios entreabertos. Era a primeira vez que as achava semelhantes. Lia, batida de luz, parecia mais clara, tinha um joelho erguido, amparado pela aba da cama; a outra velava-se em uma meia sombra, com as mãos espalmadas no peitinho gordo. Que dormir tão bonito. Quasi que lhes lia os sonhos, atravéz das palpebras mimosas... Francisco Theodoro esteve longo tempo a olhar, ora para uma filha, ora para outra. Como eram bons aquelles leitos, como era espaçoso aquelle quarto, como eram finos aquelles sapatinhos que descançavam vazios sobre o tapete, e como cheiravam bem aquellas saiinhas bordadas e aquelles vestidos brancos que estavam alli atirados para as costas de uma cadeira! E não poderiam crescer assim as suas filhas, com aquelle conforto de luxo! Dias depois sahiriam do seu palacete, e iriam ... para onde? que os esperaria a todos? Francisco Theodoro curvava-se para beijar Rachel, quando sentiu passos; voltou-se assustado. Era Noca que entrava com um copo de leite. A mulata, que vinha deitar-se, recuou espantada. O negociante explicou: --Pareceu-me ouvir gemer: vim ver o que era. --Tão sonhando ... ás vezes basta mudar de posição e ficam logo quietas... --Sim, estarão sonhando ... queira Deus que os sonhos sejam bons... --Ellas não teem nada! Tão frescas ... apalpe só, p'ra vê... --Sim, deixe-as dormir ... olhe por ellas ... olhe por ellas! Francisco Theodoro sahiu do quarto com um nó na garganta. Como seriam educadas aquellas creanças? As pobres ainda não sabiam nada, nem uma lettra ... nem uma! Em vez de subir para o seu quarto, onde Camilla adormecia, elle accendeu uma vela, apagou o gaz da saleta e desceu para o seu escriptorio, no rez do chão. Á uma hora da madrugada, Theodoro escrevia ainda. Do lampeão de bronze descia uma luz calma, fixa, propicia á escripta. A mobilia de canella e de couro lavrado, núa, bem arrumada, tomava uma feição de espanto naquella claridade muda. Sobre o contador, o cavalheiro de capa e espada desenhava na parede côr de avelã a sombra da sua attitude arrogante e viva... Na mesa, ao lado do codigo de Orlando, o tinteiro de prata tinha reflexos brancos; e só das quatro molduras douradas dos quadros saltavam lampejos luminosos que animavam a sala. Francisco Theodoro escrevia cartas: acabada uma, começava outra. Dir-se-ia que as palavras eram em todas eguaes. A penna corria dando as mesmas voltas e rangendo com força, como se fosse calcada por uns dedos de ferro. Terminada a ultima, collocou-as em um maço sobre a pasta e encostou-se na larga cadeira, offegante, com os olhos no vacuo. Esteve largo tempo assim, immovel. Depois, sem que um unico musculo do rosto se lhe contrahisse, abriu uma gaveta da secretária, tirou d'ella um revólver e examinou-o com attenção. Era uma arma nova, reluzindo ainda ás ultimas fricções da camurça; o negociante revirou-a entre os dedos, moveu o gatilho, carregou-a e tornou a guardal-a na mesma gaveta, que fechou á chave. Estava alli dentro o descanço, a eterna paz. Tinha ao alcance da mão o esquecimento de tudo... No dia seguinte, depois de uma terrivel noite de insomnia, Theodoro desceu á hora do costume para a sala de jantar, reluzente de crystaes e prataria, e sentou-se á mesa, em frente ao terraço que todo se via pelas largas portas abertas. Ao centro, uns degráos amplos desciam para o parque de relvas bem tratadas; junto ao ponto terminal dos balaustres irrompiam, de entre tufos de avenca, dous esplendidos pés de manacá em flor. Francisco Theodoro olhava para elles sem os vêr, absorvido no seu desgosto, quando a afilhada o interrompeu: --Bons dias, titio! --Adeus, Nina. --Estava gostando de vêr os manacás? --Sim ... estão bonitos... --Lindos! Sabe? tia Milla vae ter hoje um desgosto! --Hein?! perguntou Francisco Theodoro sobresaltado. --Amanheceu hoje morto o cacatuá, e ninguem sabe porque. Noca já está dizendo que é signal de desastre em uma casa... --Ah! ella disse isso? --Disse. Nós não nos importamos; mas o senhor sabe como tia Milla é impressionavel! --Não lhe digam nada. Quem foi que deu o cacatuá? --O capitão Rino... Quer que eu lhe sirva um pouco de fiambre? --Não... Dê-me uma chicara de chá... --Mas o bife e os ovos ahi vêm... --Não quero nada. Só chá. --Coma então d'estas bolachinhas. Estão muito bem feitas. Nina foi ao armario, de onde retirou a biscoiteira de crystal. Emquanto o tio comia, ella sentou-se a seu lado e pediu-lhe lapis para escrever uma nota, nas costas de um cartão de visita. Ao mesmo tempo ia dizendo: --Deus queira que eu não me esqueça de nada do que tia Milla recommendou... Depois leu alto: --Para o senhor fazer o favor de dizer a Mme. Guimarães que mande trazer hoje os dois vestidos de seda e amostras de velludo turqueza. Dizer ao Bastos que faça, pela medida que tem lá, mais um par de sapatos de setim preto... Ha mais: um kilo de bonbons e... --Não diga mais; hoje não posso fazer nada d'isso. --Então tia Milla irá á cidade... É melhor. --Não! que não vá, atalhou elle nervosamente. Dize-lhe que voltarei cedo. Eu farei tudo ... mandarei vir os vestidos de seda, os sapatos de setim, os doces... Ah! a Noca tinha razão! Sabes tu, Nina? --Eu? murmurou a moça espantada: Eu? repetia ella, com assombro, eu não sei nada! --Tens razão ... cala-te e espera. Expliquem a minha mulher o significado da morte do cacatuá. Não faz mal. Adeus, tenho pressa... Nina ficou pensando: --Tio Francisco estará doido? Um lindo dia, quente e luminoso. Nas copas floridas dos flamboyants, as cigarras cantavam estridulamente. Os bonds vinham cheios, e bandos de creanças passavam nas calçadas a caminho do collegio. Francisco Theodoro é que não caminhava bem: tinha um grande peso derrubando-lhe os hombros, e sentia as pernas amollecidas. Tomou o bond já na praia. Adeante d'elle, no banco da frente, ia um portuguezinho recem-chegado, de jaqueta, chapéo de feltro de abas encebadas e grossos sapatos enlameados. O pequeno volvia para tudo um olhar pasmado, entreabrindo os labios seccos e gretados numa expressão admirativa. Francisco Theodoro não podia desprender a vista d'aquella creança rustica. Veio-lhe á memoria o seu desembarque, a sua pobreza, a crosta da terra patria que trazia presa ás solas brutas dos seus sapatos, e o espanto com que elle, tambem, nos seus primeiros dias, olhava para este céo, e estas arvores, e estas montanhas, em uma interrogação de esperança e de medo; e da saudade que tivera da brôa, da aldeia, das aguas claras d'aquelle rio em que se banhava nas tardes de verão, d'aquellas charnecas onde ia á caça dos grilos, d'aquelles campos de trigos doirados: ao sol, das cerejeiras onde trepava, dos ralhos da mãe, das caminhadas pelas brancas estradas atráz dos burricos do moleiro... E, em um assomo, teve vontade de dizer ao ouvido do rapazinho: «Volta para a tua aldeia, contenta-te com o pão duro, com a sardinha assada, e a agua do bom Deus! «Onde ha uma arvore ha sombra onde um homem se deite. Não queiras a riqueza, que ella engana e mente. Mais vale ser pobre toda a vida! Volve; acostuma tua mulher ao trabalho e os teus filhos a rolarem nús pela terra que um dia os ha de comer... Se bem os vestires a todos ... verás: pesarão ouro e valerão pó...» Eram dez horas quando o negociante entrou no armazem. _Seu_ Joaquim andava azedo e mal humorado, e até mesmo para o patrão tinha um modo rebarbativo e secco. Depois, o trabalho estacionara; não havia nenhum caminhão á porta e os caixeiros pasmavam-se para as rumas de saccos é para as aranhas do tecto. Francisco Theodoro chegou-se á mesa que estava á esquerda da porta de entrada, apanhou ahi a sua correspondencia e girando sobre os calcanhares entrou no corredor ao lado e subiu ao escriptorio. Em cima estavam só o guarda-livros, que escrevia de pé, e o velho Motta, todo embebido no trabalho. Trocaram-se os bons dias. --O Leite Mendes mandou cá? --Não senhor... --Está tudo direito, não? --Tudo. --Escrevi eu mesmo as cartas ... veja se estão em ordem... O guarda-livros fez um gesto de recusa. --Não; já estou desacostumado d'essas coisas ... veja. Depois será bom mandal-as entregar, insistiu Theodoro. --Julgo melhor esperarmos pela resposta do Sidney, de Santos. --Para que? --Adiaremos ao menos a ... a catastrophe. --Ora! o Sidney! ha de dizer o mesmo que os outros! Olhe, tenho aqui justamente uma carta d'elle, que ainda não abri. Vou lel-a agora. Francisco Theodoro sentou-se, muito pallido, e rasgou o sobrescripto com mão tremula. O guarda-livros desviou a vista. Houve depois da leitura uma grande pausa, em que o silencio pesava; ao fim de alguns minutos o negociante ergueu-se e começou a passear nervosamente de um lado para o outro. De vez em quando lançava uma pergunta pueril ou distrahida: --Que dia é mesmo hoje? --29... --Ah!... sim ... 29 ... é isso ... 29 ... 29 ... repetia elle baixo. Os outros calavam-se. O sol entrava com força pela sacada aberta; Francisco Theodoro poz as folhas da janella em fresta e voltando-se atravessou vagarosamente e em diagonal o escriptorio até o canto da talha, cujo barro começou a raspar com a unha. Da rua vinha uma bulha ensurdecedora: rolavam conjunctamente carroças e vozes praguejantes; os chicotes estalavam no ar e, em grossas nuvens de pó, o cheiro do café crú subia na atmosphera quente. Subito, Francisco Theodoro voltou-se para o guarda-livros e disse com voz segura: --Mande as cartas. E entrou para o seu gabinete. O empregado releu os sobrescriptos e chegando-se á janella do fundo, que deitava para o interior do armazem, gritou para baixo: --_Seu_ Augusto! Ninguem lhe respondeu, e como elle repetisse o chamado com mais força, o gerente voltou-se para cima com ar ameaçador e um outro caixeiro gritou: --_Seu_ Augusto ainda não voltou da rua! Fechado o gabinete, Francisco Theodoro escreveu longamente ao Meirelles e ao Mario, relatando-lhes o desastre, sem lamentações. Fechada a carta, lembrou-se que poderia talvez ter recorrido á Lage, mas levantou logo os hombros; era uma mulher, que podia entender de negocios? De mais, as coisas iriam em declive rapido, e um novo emprestimo seria um compromisso irremissivel ... melhor fôra não se ter lembrado d'ella. E as tias do Castello? a essas pediria apoio para a familia; elle já nada queria para si; poucos dias teria de vida: o golpe era muito forte para deixal-o de pé. Mas a mulher?... e as filhas? E, afinal, acreditava elle na fortuna das velhas? onde a escondiam ellas que ninguem a via? Riquezas, riquezas, vá a gente desencantal-as em cofres avaros! As cartas expedidas tinham marcado para o dia seguinte ao meio-dia a reunião dos credores no armazem, para verificação do estado da casa. Francisco Theodoro tinha algumas horas deante de si para avisar a familia, mas faltava-lhe a coragem. Sahiu do escriptorio mais tarde, fugindo do encontro habitual de um ou outro amigo. Logo no primeiro quarteirão teve um sobresalto; á porta da casa Torres estava um dos seus credores, o Serra; mal lhe adivinhou o corpanzil mettido em alvejantes brins, com um frak preto fugindo para trás e grossa corrente de ouro do Porto arqueando-se-lhe sobre o abdomen arredondado. Francisco Theodoro corou, teve desejos de ser engulido pela terra; e tocando com os dedos tremulos na aba do chapéo, esboçou um sorriso e foi andando. Já mal podia caminhar: um peso horrivel nas pernas fazia-o retardar os passos, exactamente quando os queria accelerar; arrimava-se com força ao seu chapéo de chuva e remexia os beiços como se fosse a fallar sózinho; era a seccura, tinha um aperto na garganta, parecia-lhe ter engolido todo o pó das ruas. Já não via ninguem, pouco se importava que o cumprimentassem; ia pensando em tomar o bond na esquina; mas como não o visse alli em toda a extensão da rua, subiu pela calçada, rente aos trilhos. Tinha andado alguns metros quando esbarrou com o Negreiros. --Então? Todos bons? perguntou-lhe o outro com o ar constrangido de quem já fôra informado do desastre e não quizesse alludir a elle. --Todos bons ... estou á espera do _bond_. --Isso ás vezes demora... Eu não tenho paciencia! --Han ... é aborrecido. Pararam ambos, e chegando-se para a parede olharam para um _coupé_ particular que roçou na calçada; dentro ia o Innocencio, que os viu e os cumprimentou com um adeuzinho de mão. Francisco Theodoro nem tocou no chapéo, e murmurou com odio: --Cão! --Vae para a Europa ... segue directamente para Londres, num paquete da Nova Zelandia, amanhã. --Com o meu dinheiro... Negreiros enguliu uma palavra qualquer, afagou o nariz e depois, corando um pouco, approximou-se mais de Theodoro e murmurou: --Se precisar de mim ... os amigos são para as occasiões... Francisco Theodoro estremeceu e apertou-lhe a mão com força; houve nos olhos de ambos como que o brilho passageiro e eloquente de uma lagrima. Vinha um bond; o negociante tornou a sacudir em silencio a mão de Negreiros e partiu. No largo da Carioca, ao esperar outro bond que o levasse á casa, Francisco Theodoro topou com a baroneza da Lage, farfalhante nas suas sedas e vidrilhos; quiz evital-a, não pôde; a moça extendia-lhe a mão enluvada, sorrindo-lhe através do véosinho. --Sabe? Papae escreveu-me. Paquita parece outra, tem engordado muito. Mario está deslumbrado; comprou bellos cavallos de raça em Londres; se não fosse a mulher, diz papae que elle poria em poucos dias todo o dinheiro fóra... --Ah... --Eu tenciono tambem partir em breve; vou ter com elles a Paris... Irei abraçar a nossa Camilla qualquer dia d'estes. Mario escreveu-lhes? --Não... --É noivo ... tem desculpa ... lá está o seu _bond_. --E a senhora? --Eu vou de carro. Saudades a todos. Ella afastou-se ligeira, no _frou-frou_ das saias de seda, e o negociante tomou logar no bond, repetindo mentalmente a phrase da Lage, acerca de Mario: «_Se não fosse mulher, elle poria em poucos dias todo o dinheiro fóra._» Nunca a viagem da cidade á rua dos Voluntarios lhe parecera tão curta. Francisco Theodoro tinha medo de chegar a casa, medo dos beijos das suas gemeas, á espera d'elle no jardim, ambas de branco, risonhas e saltitantes, e de Ruth, no patamar, com os seus olhos de esmeralda, que lhe faziam lembrar os olhos da mãe em uma vaga reminiscencia saudosa; e, em cima, de Camilla, em frente ao espelho, nos ultimos retoques da _toilette_ da tarde, com os braços arqueados e os dedos carregados de anneis, unidos nas ondas negras do penteado... Que lhes diria elle? que lhes diria?! Lembrou-se então do Dr. Gervasio: seria esse amigo quem se encarregasse de dizer tudo a Milla, no dia seguinte, á hora em que elle estivesse com os credores no armazem ... no fim, absolutamente no fim! Essa ideia animou-o. Iria á noite procurar o medico á sua residencia e confessar-lhe-ia tudo. Ao abrir o portão da chacara, viu as suas gemeas voando nas bicycletas pelas ruas do jardim e ouviu os sons do violino de Ruth em uma sonatina fresca. Nina fazia um ramo e Camilla, já prompta, formosa no seu vestido cor de milho maduro, lia no terraço, com o cotovello pousado no jarrão das gardenias. XIX Com um avental atado sobre as rendas do _peignoir_, Camilla executava, com a Noca, uma receita de doce dada por D. Ignacia. Era um pudim, um famoso pudim de nozes, muito apreciado e indefectivel nos jantares de anniversario das Gomes. A mulata pisava as nozes no almofariz. Milla acabava de observar a calda e voltava a consultar o papel, em que a calligraphia desleixada da Judith confundia os _a a_ com os _o o_, quando a Nina appareceu dizendo: --Dr. Gervasio está ahi. Entrou para a saleta. Quer fallar com a senhora. --A estas horas!... Elle não disse porque não veio almoçar?... perguntou ella alvoroçada; e continuou logo: Bem! Desamarrem-me o avental. Escuta, Noca, quando a calda estiver em ponto de espelho, despeja-lhe dentro as nozes ... depois d'estas bem cosidas retira o tacho do fogo e mistura ao doce doze gemmas de ovo ... torna a pôr tudo ao lume... Anda, Nina! desamarra este avental, de uma vez! --Deu nó; tia Milla! Tenha paciencia... --Depois? inquiriu, Noca, emquanto Milla, para não perder tempo, lavava os dedos melosos mesmo na bica da pia da cozinha. --Depois? Espera, deixa-me ver a receita... Ah, depois da massa estar bem cozida, põe-se no forno, em uma fôrma untada com manteiga. Manteiga fresca, ouviu? lembre-se que o Dr. Gervasio não gosta de manteiga salgada... Prompto este avental? Até que emfim! Fica em meu logar, Nina. Nina ficou, e Camilla, tendo enxugado as mãos ao avental, que atirou ao chão, dirigiu-se para a saleta, pondo em ordem as rendas da golla, que as mãos ageis ageitavam mesmo sem espelho. Sentindo-lhe os passos, Gervasio foi-lhe ao encontro, mas com ar tão grave e desusado que ella logo o extranhou. --Está doente?! --Eu, não ... porque? --Você está differente. Que modo! --É que eu tenho uma coisa muito grave para te dizer. --A mim?! --Sim. --Que é? Elle não respondeu immediatamente; contemplava-a em silencio, segurando-lhe nas mãos como se a estudasse, a ver se lhe podia despedir o golpe em cheio. Milla impacientou-se. --Que será, meu Deus! E logo lhe occorreu a ideia de que succedera algum desastre ao filho, um naufragio. Atterrorisada por aquelle pensamento, balbuciou apenas:--Mario? --Não se trata do Mario. É isto: vocês estão pobres... Theodoro falliu. Camilla tornou-se livida. Houve um longo silencio cortado só pelo zumbir de uma vespa no rezedá da janella. Ella não ouvia a vespa, não ouvia nada. O seu rosto, que havia pouco reflectia o fulgor das brasas, estava tão desbotado agora, que o medico, inquieto, com receio de uma syncope, amparou-a, dizendo: --Comprehendo a estupefacção, mas agora, que a verdade está sabida, é preciso coragem... Camilla! Como ella continuasse immovel, elle abalou-a brandamente, repetindo-lhe o nome: Camilla ... Camilla!... julgava-te mais forte, muito mais forte! Olha para mim. Percebe o sentido das minhas palavras--fallir não é morrer. Teu marido não morreu,--falliu. --É impossivel! murmurou ella por fim, com uma voz de somnambula. --Impossivel porque? a quanta gente tem acontecido o mesmo? Vocês mulheres não entendem d'estas coisas. Só conhecem a vida pela superficie, por isso é que teem surprezas com factos naturalissimos. Hoje a fallencia é de Theodoro, amanhã será de outro e depois de outro... A série ha de ser longa. --Que me importam os outros! --Importa como explicação: é uma consequencia do tempo. Mas senta-te, estás muito fria ... queres uma capa? --Não quero nada. E, como elle quizesse retel-a, ella desprendeu-se-lhe bruscamente dos braços. --Descança... --Não posso. Gervasio calou-se, á espera; ella começou a andar com passadas irregulares, como se buscasse uma coisa, uma palavra, uma ideia. A vida, ha pouco suspensa, voltava agora com impeto. A reacção escaldava-lhe o corpo. Ella ia fallando, estraçalhando phrases: --Que horror! como havemos de apparecer deante de toda esta gente... Que insensatez, naquella edade! deixar-se fallir! não comprehendo! Que vergonha, que vergonha! E as creanças?!... Não póde ser! não póde ser. Subitamente parou, com um relampago de esperança. --Se fosse mentira?! --Eu seria um miseravel. --Podiam ter-te enganado. Quem te disse? --Elle. --Burro! Camilla deu um puxão á golla, como se o vestido a suffocasse e recomeçou logo no seu gyro tonto. O medico tentou acalmal-a: --Escuta, Milla, tenho hoje, como direi ... pudor em alludir á nossa felicidade; comtudo é em nome d'ella que te peço que não faças a teu marido recriminações insensatas. Lembra-te que elle é o mais desgraçado. Camilla sentiu as pernas vergarem-se-lhe e murmurou ainda: --A culpa é d'elle... --A culpa é de todos. --Isto não podia ter acontecido de repente, e elle não me disse nada! Os homens pensam que nós não nos interessamos pela sua vida. Teem-nos só para o seu prazer! Só, só, só! --Theodoro está muito acabrunhado... --Quando foi que elle te disse? --Hontem á noite, em minha casa. Chorou. --Chorou? Foi a primeira vez; eu nunca o vi chorar! --A dôr é forte. --Já perdeu uma filha... --Uma creança apenas nascida... Agora perde a sua honra de negociante, que elle préza acima de tudo. --A sua honra! mas Theodoro não roubou nada! --Não, mas empregou capitaes em emprezas de azar. A lei tem severidades. É preciso estar preparada para tudo. --Quer dizer que elle póde ser preso? --Quem sabe, não é provavel, mas... Os olhos de Camilla, até então enxutos, encheram-se de lagrimas e ella disse, com os beiços tremulos: --Não! elle não sahirá de ao pé de mim. Vá buscal-o. --Tu o amas, Camilla! Ella fez que sim com a cabeça e foi sentar-se juncto ao medico, olhando-o de face. Por algum tempo foi só o zumbir da abelha no rezedá o unico rumor que se ouviu na sala. Gervasio desviou os olhos. Camilla vergava-se agora toda para os joelhos e chorava, com o rosto escondido nas mãos. A crise foi longa. Através da porta fechada sentiam-se passinhos indiscretos pelo corredor. Gervasio consultou o relogio. Eram quatro horas. Que se teria passado em S. Bento? Desejava apressar a situação, acabar com aquillo; sentia-se oppresso, levantou-se, foi á janella olhar para o azul macio do céo chamalotado de nuvenzinhas brancas. Um bello dia perdido! Camilla soluçava. Elle voltou-se sem saber como cortar aquella agonia. Nunca o coração d'aquella mulher lhe parecera tão impenetravel, nunca a sua psychologia tão obscura. Esperava vel-a raivosa, assustada pela perspectiva da ruina, reagindo com furia contra aquella decepção tremenda. Era evidente que ella se tinha casado por interesse não seria extraordinario que se julgasse agora roubada... Entretanto, só nos primeiros instantes Camilla tinha pensado em si, no egoismo a que a vida a acostumara; mas a dôr da compaixão viera depressa e manifestava-se mais abundante. Um pouco irritado, sem poder esconder um movimento de ciume, Dr. Gervasio perguntou baixo a Camilla, fixando-lhe o rosto inundado: --Mas sempre o amaste assim?! --Não ... eu comecei a amal-o depois que o enganei... É amisade, é uma amisade muito grande! O medico não respondeu; olhava para ella pensativo, e depois de um largo silencio: --Enxuga os olhos. É tempo de chamar o resto da familia. Ruth e as creanças entraram acompanhadas por Nina e pela Noca, que o Dr. Gervasio quiz associar á familia. E sobre todos elles a porta foi fechada com precauções, para que os creados não percebessem do que se tractava. Dr. Gervasio expoz o facto em poucas palavras, ferindo o assumpto sem rodeios. Lia e Rachel não o entendiam, embasbacadas para a mãe. As palavras para ellas só tinham som, mas não sentido. Ruth ouviu tudo sem pestanejar, depois beijou a mãe, e disse: --Não chore, que isso augmentará a afflicção de papae. O medico olhou para a menina com assombro; e depois voltando-se para Nina: --E você, que diz? --Nada; espero. --E sei que ha de esperar com firmeza. Muito bem. Eram cinco horas da tarde, e ainda Francisco Theodoro expunha com voz tremula os negocios da casa aos credores, reunidos no seu escriptorio. Ouviam-no todos silenciosos, mal se atrevendo, de longe em longe, a uma ou outra pergunta, que a delicada compaixão do momento tornava timida. O proprio Serra, afamado pela sua gordura e pela sua bruteza, fazia-se de leve quando andava, para que o assoalho não gemesse e tinha artes de transformar, para um brando sussurro, o seu vozeirão de trovoada. Em baixo, o armazem parecia outro. _Seu_ Joaquim permanecia sentado ao pé da mesa, emquanto os caixeiros pasmavam, inactivos, para as rumas das saccas e para as aranhas negras do tecto, que se suspendiam de viga para viga em grandes bambinellas de fumo luctuoso. No chão nem um grão de café; tudo varrido como se fôra um dia santificado. Só na rua havia ainda a bulha das ultimas carroças e o ronco de alguns armazens que fechavam cedo e que parecia arrotarem de fartos. Do seu ponto, _seu_ Joaquim não perdia de vista a casa do Gama Torres, agora a mais afortunada da rua. Logo que recebeu o ultimo aperto de mão dos seus credores, Francisco Theodoro refugiou-se no seu gabinete, para que o não vissem chorar; mas as lagrimas que o enchiam não chegaram aos olhos, o coração absorvia-lh'as todas. Envelhecido, exhausto, encostou-se á sua velha secretária, companheira de tantos annos de trabalho, e alli ficou, como um viuvo ao pé da eça em que a amada dorme o ultimo somno. Já os credores estavam longe quando elle, tomando vagarosamente o chapéo, entrou outra vez no escriptorio. O Motta chorava, com os cotovellos fincados na escrivaninha. O guarda-livros levantou-se e disse: --Eu esperava-o para despedir-me. Tenciono partir em breve para o Norte. Vou tentar outra vida... --Faz mal, não devia cortar a sua carreira ... seja feliz! abraçaram-se. Motta approximou-se. --E o senhor? perguntou-lhe Theodoro. O velho fez um gesto de ignorancia; depois suspirou. --Fico p'ra ahi, atôa... --Recommendal-o-ei ao Negreiros. --Será favor... Os outros empregados não estavam; Francisco Theodoro agradeceu áquelles o seu concurso e desceu, olhando para os degráos carcomidos com saudade infinita de todas as vezes que por elles pisara, num longo periodo de trinta annos... No armazem, apertou a mão dos caixeiros, desde o mais infimo, e deteve-se a fallar com o Joaquim. --O senhor que tenciona fazer agora? --Sr. Theodoro, eu fui já ha dias convidado para a casa Gama Torres... Devo entrar para lá amanhã... --Muito bem ... muito bem!... balbuciou em tom frouxo o negociante. E, relanceando o olhar triste pelo armazem, em um ultimo adeus saudosissimo, sahiu para a rua. Na porta visinha a velha Terencia, com a carapinha occulta no lenço branco, e os bracinhos delgados extendidos para deante, sacudia os ultimos grãos de café, peneirando-os na bacia de folha furada a prego. Já a sombra se extendia pelas calçadas, e só lá em cima o sol encarapuçava de ouro as platibandas dos predios. XX Á hora em que Francisco Theodoro entrou em casa, já havia estrellas no céo. O Dr. Gervasio e as meninas esperavam-n'o no portão. Logo no jardim elle sentiu-se abraçado pelas filhas e a Nina com demorada ternura. Desprendendo-se de todos, olhou á roda, procurando alguem. --D. Camilla adormeceu ha pouco, acudiu o medico--Noca está ao pé d'ella. Francisco Theodoro não respondeu; sentou-se em um banco, com ar de extenuado, com a cabeça pendida para o peito; e, depois de uma longa pausa: --Está desesperada, muito contra mim? --Não; respondeu o medico, está resignada. São todos fortes, acredite. --Coitadas... --Não diga assim, papae! exclamou Ruth, não se afflija! Neste mundo então só ha logar para os ricos? --Bom, só... --Qual! havemos de ser muito felizes, descance. --Como recebeu ella a noticia? tornou o negociante, voltando-se para o medico. --Naturalmente, teve um abalo ... não esperava semelhante coisa, mas venceu-se com admiravel coragem. Em todo caso, dei-lhe um calmante para obrigal-a a dormir e repousar os nervos... --Fez bem; obrigado. --Tio Francisco, o senhor deve estar muito fraco; venha tomar sopa, ao menos... --Estou cançado... --Por isso mesmo, tome um caldo e vá-se deitar. Entraram. Na grande sala de jantar havia um certo ar de abandono. Nina esquecera-se de enfeitar a mesa com as flores do costume, e a gaiola vazia do cacatuá punha a um canto uma nota de tristeza e de morte. Francisco Theodoro acceitou a sopa, tomou-a em silencio, e logo depois, deixando todos á mesa, pediu licença para subir. O medico, receioso, acompanhou-o com a vista. Que se iria passar lá em cima? como receberia Camilla o marido? Parecera-lhe ter sentido passos; deveriam ser d'ella, que já estivesse acordada e andasse nervosamente pela casa... Lia e Rachel, tão turbulentas, encolhiam-se uma na outra, observando tudo pasmadamente. Imperturbavel, Nina servia a todos. --Que edade teem mesmo estas meninas? perguntou o medico de repente, apontando para as gemeas. --Seis annos, respondeu Ruth. --É cedo para entrarem para o collegio, balbuciou elle, completando alto um pensamento qualquer. Tinham acabado de jantar, quando Francisco Theodoro desceu. --D. Camilla? --Quando eu subi dormia ainda; mas soluçava de vez em quando. Depois acordou e fez-se de forte para tranquillisar-me. Talvez que ella não tivesse comprehendido todo o alcance da desgraça... --Comprehendeu, mas resignou-se. --Obrigado por todos os seus cuidados, doutor; tenho ainda um favor a pedir-lhe: venha cá amanhã, cedo, ás sete horas da manhã. Será possivel? --Virei. --Obrigado. O medico sahiu, recommendando á Noca mil cuidados com Milla. Duas horas depois, a casa estava em silencio; as creanças dormiam, e Nina, não vendo Ruth nas salas, julgou-a recolhida e desceu devagar ao escriptorio do tio, que achou escrevendo na sua larga secretária. --Dá licença, tio Francisco? O negociante encobriu depressa com o braço o papel em que escrevia, e respondeu: --Póde entrar. E Nina entrou, embaraçada, percebendo o movimento do tio. --Que quer você? --Quero pedir-lhe um favor... --Eu ainda os poderei prestar?! --Oh! tio Francisco! --Diga lá. --Tenho vergonha ... eu... --Diga, diga. Nina sentiu impaciencia na voz do tio, e resolveu-se: --Quero pôr em nome de suas filhas a casa que o senhor me deu. Ella é pequena, mas caberemos todos lá, se... Nina corou; o tio contemplou-a em silencio, depois, sentindo que as lagrimas lhe corriam em fio pelo rosto, disse: --Fez você muito bem em dizer-me isso; eu precisava de chorar. Bem vejo que não ha só ingratos no mundo; você é um anjo. Acceito o seu agasalho; olhe por minhas filhas. As gemeas são muito pequenas, não teem educação ... é o que mais me pesa! Ruth, essa tem talento e um recurso. Tenha tambem paciencia com sua tia, é quem vae soffrer mais... --O senhor ha de lhe dar o exemplo de resignação. --Sim. Você que entende d'isso? Vá dormir. --Mas... --Vá dormir. Nina murmurou, muito embaraçada: --Boa noite. --Adeus, minha filha. Que Deus a faça feliz. Ella sahiu sem comprehender bem os gestos desencontrados nem o sentido das palavras do tio. Elle queria estar só. A dôr fazia-o desconfiado, temia que o amor da familia não subsistisse á catastrophe. Em que fizera elle até então consistir a felicidade e o seu merecimento aos olhos d'ella? No dinheiro, só no dinheiro. Elle era bom porque sabia cavar a fortuna, encher a casa de joias, de fartura e de conforto. Elle era bom, porque, tendo partido de coisa nenhuma, chegara a tudo, visto que o dinheiro é o dominador do mundo e elle tinha dinheiro. Ainda não comprehendia como tendo trabalhado tanto, junctado com tão tremendo esforço em tão largo periodo de sacrificios, deixara agora ir tudo por agua abaixo, em tão curtos dias. Desfazer é facil! Revoltado contra si, Francisco Theodoro cravou as unhas na calva, chamando-se de leviano e de miseravel. Como toda a gente se riria da sua falta de senso. A culpa era d'elle. Deixar-se levar por cantigas com a sua edade e a sua experiencia! Sentia ferver-lhe o odio por todos os amigos que o tinham inebriado com palavras perigosas e futeis. Então todos chamavam o Innocencio Braga de honrado, perspicaz e arguto. Agora, depois de tudo feito e perdido, é que o diziam um especulador sem consciencia. Mas agora era tarde; estava tudo perdido. Recomeçar a vida? como? Já nem o proprio exemplo da coragem antiga lhe valia de nada. A energia gastara-se-lhe. Nem o corpo nem o espirito resistiriam á lucta tremenda de recomeçar. Pela primeira vez Francisco Theodoro percebeu que ha na vida uma coisa melhor do que o dinheiro--a mocidade. Com o corpo vergado, o espirito amortecido, elle era o homem extincto, o phantasma do outro, que ficava boiando no passado, desconhecido por todos, só amado pela sua lembrança. «Velho ... estou velho! pensava elle, já não sirvo para nada. E agora? Para onde ha de ir esta gente, que eu mesmo habituei a grandezas? Para o sobradinho da rua da Candelaria? Nem isso... Camilla naquelle tempo contentava-se ... agora já se afez a outra coisa. Camilla! Camilla sem sedas? não, não se pode comprehender Camilla sem sedas. Onde tinha eu a cabeça? Miseravel! Eu sou um ladrão, roubei a meus filhos. Eu sou um ladrão!» Como se quizesse fugir das proprias ideias, começou a andar pelo escriptorio, com ar desvairado. Vingava-o a sensação de que tudo agonisava com elle. A especulação, a fraude, a ganancia, a traição e a mentira, iriam roendo e corrompendo fortunas e caracteres. Enganados e enganadores seriam todos engulidos conjunctamente pela outra fallencia, de que a sua era uma das precursoras. No fim, havia de apparecer a justiça punindo as ambições e as vaidades d'estes tempos e d'estes homens doidos, quando, depois de tudo consummado não houvesse nada a refazer, mas tudo a crear. A pulsação do seu sangue alvoroçado dava-lhe a percepção phantastica de que o Brasil seria arrastado vertiginosamente pela maldade de uns, a ignorancia de outros e a ambição de todos, em voragens abertas pela politica amaldiçoada. Já não culpava o patricio, o Innocencio Braga, como causa directa da sua ruina. A responsabilidade da sua perda cahia em cheio sobre a Republica, que elle invectivava de criminosa, na allucinação do desespero. Toda a sua vida de trabalho rotineiro, material, sem ideaes, mas cançativa na sua brutalidade mesmo, parecia-lhe agora como um rio caudaloso que tivesse vencido a nado e de que, só depois de transposto, percebesse o volume e os perigos. Entretanto, talvez não tivesse sido difficil percorrer aquillo de outra maneira e melhor... Não fosse elle um ignorante e não se teria deixado enfeitiçar por palavras! Era pois tambem certo que a intelligencia e a instrucção valiam alguma coisa... Resumindo os seus pensamentos de vencido, Francisco Theodoro disse alto, num suspiro: --Trabalhei, trabalhei, trabalhei, e aqui estou como Job! Mas o som da sua propria voz assustou-o. Espreitou a vêr se o viam. Foi á porta; não havia ninguem. Lembrou-se depois dos seus projectos de viagem: idas á Europa, regalados descanços. Era de justiça, diziam todos, e a justiça fizera-a elle por suas mãos; o homem nasceu para o trabalho, elle devia voltar para o trabalho. E as forças? Onde estavam ellas, que as não sentia? Ah! corpo miseravel! corpo miseravel. Affogueado, como se tivesse brasas na cabeça, Theodoro procurou a frescura do ar livre e foi encostar-se ao humbral da janella. Fôra numa noite assim, de lua clara, que o avô se enforcara numa amendoeira, fugindo, no seu delirio de perseguição, a um inimigo que lhe ia no encalço. Era um camponez rude, o avô; havia muitos mezes antes d'esse acto que elle andava taciturno, agitado; depois, que tranquillidade! Francisco Theodoro olhou para a noite: O luar estava lindo, boiava no ar morno o aroma das esponjas e dos manacás, que a luz cobria de uma brancura sedosa e doce. O aroma das plantas avivou-lhe tambem a sensação dos seus triumphos de outr'ora. Aquella essencia divina nascia da fertilidade das suas terras, trabalhadas por homens pagos por elle. A criadagem! Como os seus creados, menos feliz do que elles, precisava tambem agora do salario de um patrão, com que matasse a fome á mulher e aos filhos... --Como Job! repetiu elle furioso, arrancando as barbas e unhando as faces. Não lhe bastava o arrependimento, a dor moral, queria o castigo physico, a maceração da carne, para completa punição da sua inepcia. Não saber guardar a felicidade, depois de ter sabido adquiril-a, é signal de loucura. Elle era um doido? Sim, elle era um doido. Tal qual o avô! Riu alto; elle era um doido! Foi então que do fundo do jardim vieram os sons de um violino tocado em surdina. Francisco Theodoro estremeceu, as pernas vergaram-se-lhe, olhou pasmado para o grande céo tranquillo, onde as estrellas palpitavam, Comprehendeu; Ruth não quizera perturbar a tristeza da familia e fugira com a sua musica para fóra! Aquella era uma forte, amava o seu idéal mais do que tudo, mais do que a vida! Que reservaria Deus áquella alma de extase e de sonho? Os gemidos da musica vagavam na noite clara como queixas de anjos invisiveis. Não pareciam vibradas por mãos humanas aquellas notas suavissimas e repassadas de doçura. Tremulo, vencido pela commoção, Francisco Theodoro ajoelhou-se e chorou copiosamente. O ultimo beneficio era-lhe ministrado pela filha, como um sacramento. Nem elle soube quanto tempo durou aquella crise de pranto que o suffocava. Quando Ruth acabou a sua musica e elle lhe sentiu os passos leves e apressados na areia, teve impetos de chamal-a e cobril-a de beijos. Mais forte, porém, do que o seu amor e a sua ternura, foi o medo de enfraquecer. Elle fugiu para dentro; tinha tomado a sua resolução. Cada homem é creado para um fim. O d'elle tinha sido o de ganhar dinheiro; ganhara-o, cumprira o seu destino. Não podendo recomeçar, inutilisado para a acção, devia acabar de uma vez. Toda a energia da sua vida se concentraria num movimento unico e decisivo. Ruth subia a escada. Elle foi collar o ouvido á porta para escutar-lhe os passos. Beijaria o logar em que ella punha os pés... Esteve assim longo tempo, depois voltou-se e foi sentar-se a um canto, esperando... Pouco a pouco a casa adormecia, até que se encheu toda do pesado silencio do somno. Á uma hora Francisco Theodoro levantou-se muito pallido, persignou-se e rezou, alli mesmo, entre o lampejar das molduras e o ar atrevido do cavalheiro de bronze. Finda a oração, caminhou resolutamente para a sua secretária. A bulha dos seus passos firmes abafou um sussurro leve de saias que deslisavam pela escada abaixo. Francisco Theodoro tirou da gaveta o seu revólver, olhou-o um instante e encostava-o no ouvido quando a mulher appareceu na porta, muda de terror, extendendo-lhe as mãos. Elle cerrou logo os olhos á tentação da vida e apressou o tiro. E toda a casa acordou aos gritos de Camilla, que, com os braços no ar, clamava por soccorro. XXI A morte de Francisco Theodoro fez sensação. Amigos e conhecidos acudiram pressurosos á casa da familia. Negreiros levou a carteira cheia, pensando em fazer o enterro; a baroneza da Lage offereceu-se para educar as gemeas. Chamado de madrugada pelo jardineiro, Dr. Gervasio determinara tudo: o enterro seria conforme disposições do finado, a expensas da sua Irmandade. Toda a familia soluçava á roda do cadaver. Camilla tinha no olhar uma fixidez de loucura. A scena da morte reproduzia-se deante d'ella, como se uma infinita successão de espelhos a reflectisse consecutivamente. Culpava-se de ter chegado tarde. Esperara o marido em cima por mais de duas horas, cuidosa, com medo que elle fizesse uma loucura, morta por encostar-lhe a cabeça aturdida ao seu peito de mulher enternecida, sentindo que o amava na sua dôr, mais do que o tinha amado na sua felicidade. Entretanto, porque só obedecera ao desejo de o ver e só viera procural-o no momento justo e inevitavel da morte? Se ella tivesse adivinhado! E a sua obrigação não era ter adivinhado? Por que não tinha ella obedecido logo ao primeiro impulso de suspeita? O descuido do presentimento é uma falta que a consciencia não perdoa. Sentia-o; revolvia-se em um grande remorso. Oh, se tivesse descido uma hora antes! Um minuto antes! E agora, como caminharia na vida sem aquelle companheiro de tantos annos? Que fariam todos alli, sem elle? Seus olhos eram duas nascentes de agonia, choravam sem cessar. No meio de tanta gente, só o Dr. Gervasio a comprehendia. Os outros mal acreditavam na sua sinceridade. As maiores condolencias voltavam-se para os filhos, e só por etiqueta e dever de apparencia cumprimentavam a viuva. As Bragas tinham sido as primeiras, como visinhas, a invadir a casa, e tomaram conta d'ella, affectando grandes intimidades, dispondo, ordenando, mostrando aos extranhos a sua interferencia. D. Ignacia Gomes foi tambem, muito chorosa, pelo braço do seu velho. Repetia a todos que a Judith ficara em casa com ataques; Carlotinha tambem tivera uma syncope. Eram muito amigas... Pudera não! Era só gente e mais gente a entrar e a sahir, pessoas curiosas da visinhança, que aproveitavam o ensejo para varar os jardins d'aquella casa de luxo, onde nunca tinham entrado; ondas negras de povo, cruzando-se nas portas, escoando-se pelos corredores, num sussurro de passos e de vozes abafadas... D. Joanna conseguira, pelos seus merecimentos, um padre para a encommendação do suicida. Com o rosario nas mãos tremulas, os olhos inundados, ella não sahia de ao pé do cadaver, defendendo-o do inferno na fé ardente e pura da sua prece. Quem lhe diria! um homem tão temente a Deus ... tão digno do Paraizo! E toda se debulhava em prantos por aquella alma perdida. Por seu lado, sentada num canto, com as grandes mãos pousadas na seda russa do seu vestido preto, D. Itelvina considerava na fragilidade humana. Porque morrera aquelle homem? Por não ter sabido guardar. O instincto da vida é o egoismo. Julgara-o mais precavido e mais forte; afinal era um bôbo. Se tivesse o seu dinheiro aferrolhado, acontecer-lhe-ia aquillo? não. Morreria de velho, deixando testamento. Sempre pensara que elle havia de deixar testamento; seria então uma cerimonia completa e bonita, bem certo é que o dinheiro dá prestigio a tudo. Empobrecer ... suicidar-se, quem diria? Um portuguez, um homem conservador e acostumado ao trabalho! Ainda o maior crime não estava em suicidar-se, estava em empobrecer, em deixar a familia na miseria. Na sociedade ha só uma coisa ridicula: a pobreza. Vejam se os jornaes inscrevem o nome dos miseraveis que vão para a valla. Pois sim! Dizem que o dinheiro não vale nada, mas só dão noticia dos mendigos que deixam moedas de ouro entre as palhas podres do colchão... D. Itelvina relanceou os olhos pela sala e considerou-lhe o luxo, com asco. A seu lado cahiam as dobras fartas de um reposteiro de velludo lavrado; ella apalpou-o, sentindo com um arrepio o pello do setim do forro agarrar-se-lhe á pelle aspera dos dedos. --Foi por estas e por outras! murmurou ella de si para si. Que fará agora esta gente toda? Talvez conte commigo... Ah, mas eu não posso ... eu não posso. Que trabalhem! para isso Deus lhes deu cinco dedos em cada mão. No meio d'essas considerações acudia-lhe de vez em quando á lembrança o que estaria fazendo em casa a criada ... não fosse ella dar entrada a alguem! Ruth soluçou alto; D. Itelvina não se mexeu, mas disse comsigo: --Coitadinha... E comsigo ficou no canto da sala, recebendo em cheio a onda dos soluços, que ora decrescia pelo extenuamento, ora redobrava pela violencia da commoção. O cheiro da cêra, a chamma tremula das tochas, faziam-lhe mal á cabeça. Desculpou-se com isso, de não ajudar ninguem; parecia-lhe que a hora do enterro tardava; mas devia chegar, e emfim chegou. Paravam carros á porta, a sala encheu-se de gente. O Lemos e o Negreiros choravam. Cresceu o sussurro de vozes e de passos, era preciso fechar o caixão. Ruth desmaiou; as gemeas bradaram pelo pae, Nina acudiu a todos, com os olhos em sangue, e Camilla, tirando o lenço da face do morto, beijou-o tres vezes. De volta do cemiterio, Dr. Gervasio entrou no palacete Theodoro. O gaz da sala de jantar estava em lamparina, elle mal distinguiu uns vultos a um canto; approximou-se. Era Camilla sentada no divan, entre as gemeas adormecidas. Ella, muito pallida, com uma brancura que sahia do negror das roupas, num polimento de marmore, interrogou-o com o olhar. Calado, o medico entregou-lhe a chave do esquife. Evitaram o contacto das mãos: ella encolheu-se, elle recuou e foi sentar-se ao pé da mesa. Era a primeira vez que se repelliam. Milla sentia na palma da mão a friagem d'aquella chave pequenina e pesada, sem saber onde guardal-a, com medo de a pôr no seio, achando irreverente guardal-a no bolso. Gervasio considerava na dolorosa delicadeza d'aquella situação, que o obrigara a elle a trazer do cemiterio a chave da prisão perpetua do outro. Apoquentou-o a ideia de o terem escolhido por ironia, e, olhando para a Milla, pareceu-lhe que nunca mais poderia beijar sem arrepios aquella bocca, que tão repetidos beijos dera num cadaver... A unica voz na sala era a do relogio; mal se ouvia a respiração das creanças bem accommodadas. Gervasio quiz fallar, dar alguns conselhos a Camilla; sabia-a muito inexperiente, mas conteve-se, sem atinar como tractal-a. A lingua negava-lhe o tu, a que o seu amor o acostumara. Ella suspirava baixinho, de queixo cahido para o peito. Uns passos e um roçar de saias pela escada fizeram-a voltar a cabeça. Era a Noca. Vinha buscar as meninas. Tomou Lia nos braços. --Como está Ruth? perguntou Milla. --Tá com febre... D. Nina ficou perto d'ella... Camilla voltou-se para o medico: --Vá vel-a ... sim? Elle fez um gesto de assentimento e acompanhou a mulata. XXII Só no fim de um mez foi que a familia Theodoro tractou de mudar-se. Nina despediu os criados, montou a casa nova com mobilias baratas, leitos de ferro, louças brancas, sem douraduras. Pensava em tudo, traçava planos, sacudia o torpor e a apathia dos que a rodeavam, indagava preços e discutia o valor dos objectos que adquiria. --Você dá á propria dor uma fórma de felicidade, disse-lhe um dia o medico; é a mulher mais compenetrada dos seus deveres de mulher que eu tenho conhecido. --De que serve?!... --Para fazer os outros felizes. A sua influencia e a sua actividade teem realizado prodigios. E eu que já não acreditava em prodigios! --Bem vê que fazia mal... --Bem vejo. Nina sorriu; e depois continuou: --Fallando serio: tenho medo da responsabilidade que vou assumindo, sem saber como. Tia Milla não está era edade de acceitar habitos novos sem grande sacrificio; Ruth só ha de querer saber do seu violino; para tudo mais foi sempre... --Preguiçosa. --Sim... As outras são tão pequenas! --Eu estarei a seu lado. Nina corou, e não respondeu. Dias depois Noca foi ao quarto da ama avisal-a de que iriam almoçar já na outra casa. Milla apertou as palpebras. --A senhora torna a adormecer! Eu vou abrir a janella ... abro? Camilla não respondeu; sentiu o corpo pesar-lhe na cama e espalmou as mãos no seu largo colchão de clina. Como era bom! O ocio tinha-lhe infiltrado no sangue a voluptuosidade, que embellezava a sua carne de pecego maduro, colhido ao sol de outomno. O seu corpo redondo e roseo tinha o aroma expansivo da flor aberta, e a maciez da fructa polpuda e delicada que não pode soffrer nem grandes baques, nem grandes ventanias. Noca insistiu: --Abro a janella? Camilla calou-se ainda, procurando gosar mais um minuto o conforto do seu quarto cheiroso. Tinha creado fundas raizes no luxo, não se podia desprender por si, seria preciso que a arrancassem. A culpa não fôra sua... Seria a ultima vez, essa, que se extendia sob um docel assim de rendas e de setins? Só agora comprehendia o valor das minimas coisas na harmonia do conjuncto. Alli tudo era bom. A ideia da necessidade, do tacão acalcanhado, do chapéu feito em casa, do vestido forrado de algodão, irritavam-n'a até á doença. A pobreza tem morrinha; é suja. Quiz lembrar-se do seu quarto de solteira, buscando na humilhação do passado a resignação do futuro; dormira na mesma alcova que a irmã Sophia. Mal pôde reconstruir na memoria o mobiliario barato d'esse aposento, em que havia roupas pelas paredes... Noca andava pelo quarto; Camilla olhou: Era em frente áquelles grandes espelhos que o marido a encontrava quando voltava do trabalho, satisfeito dos seus negocios, pisando e fallando alto, com as mãos carregadas de embrulhos de guloseimas e de jornaes da tarde. E não era para elle que ella picava nos seus vestidos claros uma flor, ou uma joia discreta. Era para o Gervasio que adoçava a sua belleza e se agarrava tanto á mocidade. A mocidade! Vendo-a abstracta, com os olhos humidos, cheios de tristeza, Noca avisou, já impaciente: --Olhe, _nhá_ Milla, a gente não deve ir tarde; o carro d'aqui a pouco está ahi. --Ajuda-me a vestir... --E as meninas, lá embaixo? Lia e Rachel agora é que vão tomar banho... --Você tem razão ... eu estou mal acostumada... Vá, eu me arranjarei sozinha. Tambem, para este vestuario... Que saudade, Noca! --Que se ha de fazer?! Agora é ter coragem! Duas horas depois Nina passava a ultima revista á casa, abria as gavetas verificando se todos os moveis estavam vazios e limpos, e percorria tudo, do salão á cozinha, da cozinha ao fundo do quintal; Noca ajudava-a na inquirição, remexendo as prateleiras e fechando as janellas e as portas. No escriptorio, por mais que tivessem lavado, lá ficava indelevel, em uma sombra, no assoalho, a mancha do sangue de Francisco Theodoro. Nina ia passar por cima d'ella, quando Noca deu um grito. A moça recuou, olhando atterrorisada para o chão: --Pisei?! --Quasi... --Meu Deus! Contemplaram-se as duas por entre lagrimas. --Foi uma grande desgraça, Noca! --Se foi! Ainda me parece mentira... --A mim tambem. Ás vezes julgo mesmo que elle vem da cidade e que vou vêl-o abrir o portão... Pobre tio Francisco! Pela primeira vez, pareceu-lhes que aquella mobilia impassivel lhes extendia os braços numa supplica. Na secretaria, ao lado do codigo de Orlando, o tinteiro de prata já vazio e em que a canneta sem penna pesava num abandono de corpo morto, havia scintillações frias. Nas paredes, chispavam as molduras dos quadros, e desenhava-se a figura atrevida do cavalheiro de bronze, de chapéo emplumado na mão, em um aceno arrogante de adeus. Disseram-lhe o ultimo, e fecharam a porta. Na limpeza da casa, Nina encontrara em um caixote, no porão, entre um sem numero de objectos mutilados e antiquissimos, o chicotinho com que Mario a zurzia nos dias de colera, quando, pequena e magra, ella fazia reboar pelos corredores a sua tosse de cão, que elle abafava gritando-lhe: --Cala a bocca! cala a bocca! Calar a bocca tinha sido todo o seu trabalho na vida. Com um triste sorriso desbotado, Nina separou de todos os objectos destinados para a fogueira, aquelle chicotinho revelador e prophetico, e guardou-o como reliquia. Para que nascera ella, senão para ser batida? Depois de toda a casa fechada, foram para o jardim. Camilla e as duas gemeas esperavam-nas sentadas no banco, em baixo da mangueira. Atraz d'ellas, muito magrinha e pallida, Ruth mal sustentava a caixa do seu violino, pasmando para as arvores amadas um olhar dolorido e longo. Um minuto depois accommodavam-se no carro. Noca fechava o portão do jardim, entregava as chaves ao criado do Dr. Gervasio, que esperava alli, na rua, para ir leval-as ao patrão. Subiu por ultimo para a caleça. Ao primeiro arranco do carro, de todos os peitos sahiu um suspiro e todos os olhares se voltaram para a casa. Ruth chorou; parecia-lhe que deixava alli o pae, o seu querido papae... Só Lia e Rachel gorgearam uma risadinha.--Emfim, iam para a casa nova! Durante a viagem ninguem mais fallou. Para que? Diriam todas a mesma coisa. Abafavam gemidos, disfarçavam lagrimas, e iam assim, de negro, começar vida nova. Eram dez horas quando o carro parou em frente á casa de Nina. Na visinhança, tocavam exercicios num piano desafinado. O sol irradiava com força no cascalho branco do chão. A casa era pequena, em um trecho socegado da rua de D. Luiza, disfarçada por um jardinzinho mal cultivado. Dentro sentiram-se todos oppressos; habituados á largueza de um palacio, parecia-lhes que aquelles tectos e que aquellas paredes se apertariam de repente, esmagando-os a todos. O melhor quarto fôra arranjado para Milla e as gemeas; Ruth e Nina dormiriam na mesma alcova, Noca num quarto ao fundo. A sala de jantar, forrada de novo com ventarolas e japonezes no papel, abria para uma nesga de quintal por um patamarzinho de ladrilho que a desafogava. Tinham-n'a alegrado com um par de cortinas de cretone claro e uns vasos de flores na janella. Nina explicava á tia como determinara as coisas, sujeitando-se a mudal-as, se lhe não agradasse a posição d'ellas. Suppuzera melhor supprimir a sala de visitas, e fazer d'ella, que era ampla e clara, a sala de trabalho. Em vez do sofá, do dunkerke inutil, de uma ou outra cadeira preguiçosa, estavam alli a machina de costura, cadeiras fortes, uma estante para musicas, um armario, uma mesa e uma taboa de engommar. --Aquella taboa faz tão máu effeito aqui ... murmurou Milla numa censura leve, sentando-se, muito abatida. A sobrinha explicou: --A saleta lá dentro é muito pequenina, ficou vazia, para as creanças brincarem nos dias de chuva. Se a senhora quer, põe-se lá a taboa. --Depois... Quando acabaram de percorrer tudo, Lia e Rachel pediram para ver o resto. Onde estava a sala do piano? e o escriptorio? Onde guardariam as suas _bicyclettes_? A cosinha então era aquelle cochicholo? A mãe anediava-lhes os cabellos, sem responder, com os olhos parados. Tinham arranjado para cosinheira uma preta velha, de trinta mil réis mensaes. Milla achou-a repugnante e disse a Nina que lhe puzesse ao menos um avental. E á hora do almoço não comeu; olhava para as gemeas que iam devorando os bifes e o arroz da cosinheira nova. Nina offereceu Collares á tia, que bebeu pouco, sem nem ao menos indagar a proveniencia d'aquelle vinho, tambem, soube-lhe mal, bebido por um copo de vidro, e lembrou-se com pena das suas garrafas de crystal lapidado que atiravam sobre a toalha _bouquets_ iriados e tremeluzentes. Eram como violetas e botões de ouro que nascessem da luz e se espalhassem sobre o adamascado do linho. O vinho viera da adega do Dr. Gervasio; ninguem mais o bebeu. Lia pediu repetição do bife, Rachel exigiu batatas, e Nina, diminuindo a sua ração, encheu os pratos das primas. O sol entrava pela janella numa larga toalha de ouro, rebrilhando no verniz novo dos moveis e nas roupas vermelhas dos japonezes retorcidos do papel. A preta velha trouxe o café numa bandeijinha, mal arrumada, que pousou brutalmente em um canto da mesa. Camilla fechou os olhos para não ver; quando os abriu, a sobrinha extendia-lhe uma canequinha delicada, do ultimo apparelho do palacete. Mexendo o café, vagarosamente, a tia perguntou-lhe: --Só veio esta canequinha? --E uma chicara de chá; nós bebemos bem nas outras. Veio tambem um copo de crystal. Esqueci-me de o pôr na mesa... Quer mais assucar? --Não quero differenças para mim. Depois:--Realmente, custa muito a beber num vidro grosso!... --Eu não acho... --Ah, você! Nina sorriu e foi abrir a porta ao criado do Dr. Gervasio, que entrou trazendo a correspondencia, jornaes e uma carta para Francisco Theodoro, que o carteiro levara ainda á rua dos Voluntarios da Patria. --Você esteve lá em casa outra vez?! perguntou Milla admirada. --Sim, senhora. Fui lá com seu doutor, um homem gordo, seu Serra e mais o leiloeiro. --Já! Andaram depressa!... Olhe, é bom avisar o carteiro. --Seu doutor já avisou. --Bem; póde ir... A carta era de Sergipe. O pae de Camilla queixava-se de doenças e de atrazos; estava muito velho, pedia recursos ao genro. D. Emilia andava ameaçada de congestão; o Joca internara-se com a familia para o interior, por mingua de empregos, a Sophia fôra pedir-lhe agazalho por ter brigado com o marido e as outras duas filhas iam indo. Desde a primeira até a ultima palavra arrastava-se um suspiro lamentoso de pobreza e de inercia. Quando Camilla acabou de lêr a carta, deixou-a cahir aberta sobre os joelhos e calou-se muito pallida. Ruth soluçava com a cabeça deitada na mesa. Ouvira as supplicas, mas o que a alterava não eram os cuidados do avô, era o destino d'aquelle sobrescripto que ella tinha deante dos olhos, com o nome do pae, que, na illusão da vida, viera de longe, impellido por varias mãos desconhecidas e que, chegando ao final, não encontrava ninguem! Releram a carta; vinha atrazada. Já por lá deviam estar fartos de saber a verdade. Como teriam recebido a noticia? Camilla cerrou as palpebras; viu a mãe, tal qual era na primeira visita de Theodoro ao Castello: falladora, animada, com aquelles grandes olhos trefegos sempre reluzindo de esperança ... deveriam estar bem amortecidos agora, aquelles olhos, bem cançados de chorar... E, como nunca, Milla sentiu saudades do carinho e do consolo materno. Estava tudo acabado! Que ventura, se pudesse voltar a ser pequenina, innocente e adormecer no collo da mãe! Seria tão dôce... tão dôce... Os rigores do lucto trariam a todos reclusos se a estreiteza da casa e o bom senso de Nina não reagissem contra as praxes. Depois, não bastava a economia, era preciso trabalhar, fazer pela vida. Conheceram-se, pela primeira vez na familia, as agruras do calculo, o dever das restricções. Mario escreveu lamentando ter de demorar-se em Paris, retido por uma doença de Paquita, cujo nome repetia em todos os periodos. A verdade é que na familia ninguem contava com elle, e que todos dissimulavam resentimentos, fugindo de aggravar tristezas. Noca, prompta em expedientes, arranjou depressa freguezia para engommados. Aquillo aborrecia Camilla, que não gostava de vêr trouxas de roupa atravancando a casa. O ferro, a fumaça, os peitilhos das camisas alvejando ao sol augmentavam-lhe o tedio e o mal estar. A vida pesava-lhe. Uma tarde a mulata entrou com uma novidade: tinha encontrado uma discipula de violino para Ruth, a filha de um empregado publico da visinhança. Camilla oppôz-se. Vêr a sua pobre filha andar na rua angariando dinheiro alheio? nunca. Não tinham ainda chegado a tal extremo... --Mas tia Milla, a não ser que Mario lhe dê uma mezada, com que devemos contar? perguntou Nina, estupefacta d'aquella affirmativa e accrescentou: o que nós trouxemos, mesmo com economia, não dará para mais de dois mezes... Camilla arregalou os olhos, como se só então tivesse a percepção da sua desgraça... Aproveitando a perplexidade da mãe, Ruth convenceu-a de que as lições seriam um meio de a distrahir; já não aguentava aquelles dias sem fim. Só a Nina não sobravam horas para trabalhos de interesse; precisava dividir-se em todos os misteres domesticos; as cosinheiras não paravam, umas porque bebiam, outras porque achavam o ordenado mesquinho... Era um vae-vem cançativo, e ella sujeitava-se a tudo, pondo o encanto da sua paciencia nos trabalhos mais rudes e pesados. Cumpria a sua missão de mulher, adoçando soffrimentos, serenando tempestades e conservando-se na meia sombra de um papel secundario. Corriam assim os mezes. Os amigos escasseavam, mais pelo retrahimento da familia que pela sua mudança de fortuna. Os infelizes julgam os homens peiores do que elles são, e nunca vêem em si a causa justificada de certos abandonos. Camilla queixava-se ás vezes das relações antigas, sem cogitar que quem mais fugia era ella, envergonhada da sua nova situação. Levado talvez mais pelo habito que por outra causa, o Dr. Gervasio continuava na assiduidade antiga; as suas visitas eram mais curtas, feitas de passagem; evitava, com escrupulosa discreção, os almoços naquelle lar pobre e simples. Demais a mais, não podia fallar nunca a sós com Milla, naquella casa estreita; encontrava-a rodeada sempre da familia, fechada no seu rigoroso vestido de viuva, muito arredia. Aquellas esquivanças não o atormentavam, elle sentia que a ia amando com menos amor e mais amizade; era como uma irmã, necessitada do seu amparo e do seu conselho, que elle não podia deixar de vêr todos os dias; o calôr da sua mão e o som da sua voz já não lhe alvoroçavam os sentidos adormecidos; e bem percebia que no coração d'ella a paixão estava tambem apaziguada, e que para Camilla elle ia já sendo apenas o amigo. E assim se passaram poucos mezes, até que chegou um dia em que o olhar de Camilla, irradiando, se trocou com o d'elle num fulgor de desejo. O fogo abafado pelas cinzas da tristeza irrompia subitamente, como uma labareda de fragoa. Elle espantou-se, ella conteve-se envergonhada, e separaram-se ambos inquietos e torturados. XXIII Adeus, mamãe! nós vamos levar estas sobras do jantar ás creanças da Jacintha, ouviu? Nina disse que não vale a pena guardar para amanhã; é pouco e póde azedar. --Mas que creanças são essas? perguntou Camilla ás duas gemeas, que lhe fallavam do quintal com a trouxinha da comida num guardanapo. --São as netas da Jacintha... Ruth appareceu atraz das irmãs. --Mamãe não conhece... Jacintha é uma velha paralytica que mora na visinhança da minha discipula. Sempre que passamos por lá nos pede esmola... É tão velhinha que faz pena. Combinámos com a Nina que sempre que sobrasse alguma coisa do jantar fossemos levar a ella. Quando me lembro do que se desperdiçava lá em casa! Por um lado, mais vale a gente ser pobre... Os ricos, não é por mal, mas como não conhecem a necessidade dos outros não consolam ninguem... --Falla baixo! Bem, meus amores, vão, antes que seja noite. --Anda depressa, Noca. --Mamãe, como nós vamos acompanhadas, podemos depois fazer um passeiozinho? --Sim... As creanças sahiram com a mulata. Camilla sorriu. A Providencia não a desamparava. Ainda na sua casa havia sobras para dar... A tarde cahia com lentidão; a viuva, derreada na cadeira de balanço da sala de jantar, olhava pela janella aberta para a grande amendoeira do quintal, cujas folhas côr de ferrugem cahiam espaçadamente, com um rumor timido. Invadia-a uma grande tristeza, um desejo vago de fugir, de sumir-se na transformação de uma essencia diversa. A sua alma amorosa crescia-lhe dentro do peito na ancia do calor do abraço e do sabor do beijo. Não podia mais, as roupas negras suffocavam-na, lembravam-lhe a todos os instantes aquelle minuto inolvidavel, que se lhe fixara na vida, que se repetia sessenta vezes em todas as horas e de que ella não se libertaria nunca! Nunca? Quem sabe? a sua carne forte acordava de um longo lethargo com fremitos de mocidade, capaz de todos os prodigios. Se a paixão que ella via arrefecer nos olhos de Gervasio se reaccendesse! Se elle voltasse a amal-a com aquelle amor antigo, todo de extremos... Se elle voltasse! Na pallidez da tarde moribunda, a grande amendoeira desnudava-se, tranquillamente. Camilla olhava para ella, invejando-lhe a serenidade, quando sentiu passos. Voltou-se. Gervasio sorria-lhe da porta. --Vem! murmurou ella então, num triumpho, extendendo-lhe os braços. Elle precipitou-se. --Emfim, voltas a ser minha! a ser minha! --Espera ... socega ... a Nina está em casa... --Que importa a Nina? --Cala-te! Oh, eu já não posso mais! Muito junctos, com as boccas quasi unidas, elles repetiam as mesmas palavras de outr'ora, que soavam agora aos ouvidos de Milla como novas. O céo ia mudando de côr; as folhas da amendoeira desprendiam-se celeres e com frequencia; dir-se-ia uma tarde de outomno, e era apenas começo de verão. Camilla, reentrada no seu sonho maravilhoso, parecia illuminada. O medico puxou-a para si, ia beijal-a, quando a Nina appareceu na sala, com modo disfarçado. --Querem luz? Como as meninas estão tardando! Gervasio não respondeu; achou-a importuna. Camilla disse com meiguice: --É cedo, minha filha... Ficou depois por muito tempo calada, recolhida na sua alegria. Era como se a tivessem encerrado em uma redoma luminosa e cheia de perfumes, em que houvesse outra atmosphera que lhe alterasse a natureza, isolando-a de tudo o mais. As roupas do lucto não lhe pesavam, semelhavam rendas levissimas; pela primeira vez a imagem do marido no ultimo momento se lhe apagou na memoria... Era já noite quando ella acompanhou Gervasio ao jardinzinho da entrada. Elle sentia-a tremula, numa commoção de virgem, como se aquelle velho amor peccaminoso fosse um amor nascente. A sua voz, lenta e grave, tinha inflexões timidas, e a brancura da sua carne, tantas vezes beijada por dois homens, parecia-lhe, na sombra, de uma immaterialidade purissima. --Agora és só minha, só minha! dizia Gervasio, apertando-lhe as mãos com força, quando um homem se approximou do portão e o empurrou. Olharam, com espanto, mas logo Camilla deu um grito: reconhecera o filho e correu para elle. Mario olhou para o medico com aborrecimento não disfarçado e recuou, dando logar a que elle passasse para a rua, como a despedil-o. Trocaram um cumprimento rapido e cruzaram-se. Foi só depois do portão fechado sobre as costas do outro que o Mario se voltou para a mãe com uma expressão que significava--ainda?! Camilla rompeu em soluços e então o filho abraçou-a docemente, e foi-a levando para dentro. Nina accendeu o gaz, batendo os dentes, num accesso nervoso; depois contemplaram-se todos, em silencio. Foi ainda soluçante, que Milla perguntou afinal: --A Paquita? --Está muito pesada, por isso não veio. Camilla sentiu o sangue sumir-se-lhe. Que! um neto! o seu Mario ia ter um filho! --Demorei-me mais na Europa por esse motivo: os medicos acharam imprudente que a Paquita se mettesse em viagens... --Fizeram bem. Por aqui soffreu-se tanto!... Quando chegaram? --Esta madrugada. Desembarcámos ás nove horas... Outra decepção: todo o dia no Rio, e só á noite o filho a procurava! Elle explicou: tivera muito trabalho, idas á alfandega, uma trapalhada! E as irmãs? onde estavam as irmãs? --Já vêm, andam ahi pela calçada. Vae avisai-as, Nina. A moça sahiu. Mario continuou: --Porque não as entregou á minha cunhada? Ella escreveu-nos fallando nisso... --Tive pena ... não me quero separar d'ellas. --Sim, concordo que é penoso; mas é para o bem d'ellas, e esta situação não póde continuar. Paquita é uma mulher sensata, mesmo a bordo determinou tudo da melhor maneira: Lia e Rachel vão para a casa de minha cunhada; Ruth irá morar comnosco, isto até lhe facilitará um casamento, coisa sempre difficil para uma moça pobre, e Nina tem o recurso de ir para a casa do pae... --E ... eu?! --A senhora, visto que agora é livre ... porque não se ha de casar? Camilla tornou-se rubra e escondeu o rosto nas mãos. Mario não soubera reprimir-se, e já agora proseguia: --Acho preferivel o casamento á continuação d'esta vida. Perdôe-me que lhe diga, mas suas filhas merecem outros exemplos... As mãos de Milla, geladas, apertaram com mais força o rosto em fogo. Mario fallou ainda. Elle premeditara o seu discurso, ao lado da previdente Paquita; mas a lingua recusava-se a repetil-o inteirinho, no seu rigor de fórma decisiva. Vinha como uma espada, cortando todos os nós. Prevalecia-se da sua autoridade de homem. A mãe teve nojo, e num só grito explodiram-lhe todas as queixas. As faces, de vermelhas tornaram-se lividas, as mãos e os beiços tremiam-lhe; avançou: --Vá dizer á Paquita, á sua pratica e sensata Paquita, que eu não preciso do dinheiro d'ella, ouviu? Não se demore, que ella é capaz de bater em você! --Mamãe! --Perversos! vir de tão longe, o meu filho, para me dizer isto. O meu filho! e eu que tinha tantas saudades! --Mamãe, a senhora é injusta... --Injusta é ella, que me quer separar de todos os filhos e te ensina a faltar-me ao respeito. Acham que tenho soffrido pouco?! --Acalme-se e reconhecerá que temos razão. Paquita é um anjo. --Um diabo do inferno! --A senhora está-me offendendo. --E ninguem me offendeu? Diga! ninguem me offendeu?! --Socegue: tudo se ha de arranjar; bem sabe que eu não tenho nada; a fortuna é de minha mulher, mas nós lhe daremos uma mezada, visto que... --Recuso; não quero nada d'essas mãos. O meu filho morreu no dia em que se casou. Se o envergonho, é melhor fingir que não me conhece. Vá-se embora. --Mamãe... --Vá-se embora! Eu não preciso de nada. Suas irmãs sahiram para dar uma esmola. Temos sobras em casa. Que castigo, meu Deus! --Não tive a intenção de a offender. Se eu não tivesse encontrado aqui aquelle maldicto homem, as coisas teriam caminhado de outra maneira. Compete agora a mim o dever de zelar pela sua honra. A senhora é viuva, o Dr. Gervasio é solteiro, amam-se, casem-se. É logico. --Pelo amor de Deus! Mario! --A senhora não é creança, deve perceber que d'esse modo compromette o futuro das meninas. O tempo lhe dirá se tenho razão... --Que insistencia! uma vez por todas: basta, basta, basta! --Bem, mamãe, calo-me. --Emfim! Era opportuno o ponto. As meninas entravam em tropel pelo jardim, gritando: --Mario, Mario! Elle chegou á porta, agitadissimo e extendeu os braços a Ruth, que lhe pareceu muito magrinha, já de vestido comprido, como uma senhora. O abraço evocou em ambos a lembrança do pae. Mario semeou beijos e lagrimas nos cabellos da irmã, na sua primeira effusão de ternura. Foi só depois de tudo acabado, que a Noca, contemplando o moço de frente, murmurou: --Gentes! reparem como o bigode de Mario cresceu, e como elle está bonito! XXIV Domingo de verão: as cigarras chiavam estridulamente no flamboyant da rua. Grande socego em tudo. Fechada no seu quarto, Camilla tentava ler, mas os olhos fugiam-lhe da leitura para as caminhas vazias das gemeas, entregues desde a vespera á baroneza da Lage. Cumpriam-se as ordens de Mario. A familia espalhava-se ao bruto ponta-pé da pobreza: uns para aqui, outros para acolá... Que imprevistas soluções tem a vida! Numa persistencia cruel, o conselho do filho fincava-se-lhe no cerebro. Exangue e dolorida, ella não luctava; a fatalidade faria d'ella o que quizesse... O que a atormentava sobretudo era a saudade das gemeas, que tinham levado comsigo toda a sua alegria e que, ausentes d'ella, iriam dispensando á outra os afagos que deveriam ser só seus! Pobres innocentes, lá viria um dia em que o preconceito da honra se levantasse no seu caminho, como um rochedo em cujas arestas lhes ficassem o sangue e a carne. Via já a outra como uma inimiga. Fôra ella quem lhe tirara o filho para a irmã; era ella quem lhe tirava as filhas para si. O pretexto humilhava-a, achava-se indigna por não ter tido forças de defender as creanças, arrancadas de casa pela pressão da necessidade. Olhou para as mãos: eram bonitas, mas não sabiam fazer nada. Camilla escondeu-as depressa, arrepiada, nas dobras do casaco. E o conselho do filho não a deixava, numa fixidex allucinadora. Sim, só Gervasio poderia salval-a, se quizesse dizer primeiro a palavra que ella não tinha coragem de pronunciar. Camilla fechava os olhos, tapava os ouvidos e sempre, continuamente, entre o seu orgulho de mulher e os seus extremos de mãe, badalavam as palavras do filho: --Case-se, case-se, case-se! E elle tinha razão; só assim ella tornaria a ter um lar onde aninhasse as filhas; cessariam os sacrificios de Nina e de Ruth, a Noca trabalharia só para si, e o Mario... O resentimento que lhe ficára d'aquelle filho, que viera de longe para lhe dizer amarguras, avolumou-lhe as lagrimas que chorava. Tinha-se humilhado, havia de humilhar-se até ao fim. Fallaria a Gervasio. Devia fazer-se isso depressa, a tempo de salvar toda a gente e reunir as creanças antes do desapêgo completo. Francisco Theodoro assim quizera, furtando-se á responsabilidade da familia, fugindo da vida desde que a vida, em vez de presenteal-o, lhe pedia favores. Era o abandono; pois bem, ella reconstituiria o lar que elle desmanchara; o seu velho amor, purificado por tantos sobresaltos, por tantas agonias, resurgiria, como um dia de luz apóz outros de negrume, para a felicidade de todos! O coração faz pagar caro ás mulheres a sua gloria, bem o sabia. Dera tudo, certa de que não era a honra do marido que sacrificava mas a sua propria. Elle não era auctor nem cumplice, não podia ser arguido pela sociedade hypocrita. Por fortuna, tinha-se empenhado com um homem de bem: Gervasio salval-a-ia. Mario dissera um dia: --Escolha entre mim e o Dr. Gervasio--Ahi estava ella agora radiante, escolhendo a ambos, porque adorava um, porque era mãe do outro. As horas passavam devagar. Num piano visinho rompeu uma polka faceira; resoavam gargalhadas na rua. Que dia lindo e como havia gente alegre na vida! Camilla foi á janella; vacillava ainda. Nem uma nuvem no céu; voltou para dentro e esbarrou com as caminhas vazias. Numa imposição de vontade, despiu-se á pressa e enfiou o vestido de sahir; os dedos mal atinavam com os colchetes; nem olhou para o espelho, na anciedade de partir, de correr para o futuro... Eram quatro horas quando entrou no bond que a levaria á casa do Dr. Gervasio. Colheu a cauda do vestido, dobrou sobre o rosto o seu véo de viuva, ciosa de que lhe não lessem os pensamentos na alteração do rosto. Dobrava-se, emfim, á vontade da nora, aquella creatura implacavel, que nunca a procurava, conservando-se a distancia, com medo do contacto. Camilla sorria d'aquelles grandes escrupulos, tão tardiamente acordados... Para melhor evitar a sogra, Paquita mudara-se para Petropolis; e o Mario, sempre com medo de perder a barca, mal visitava a familia, carregado de encommendas para a mulher e o filho, um rapagão nascido longe da avó. Camilla esquecia-se de tudo isso, abrindo os olhos para as imagens exteriores. Era como se tivesse sahido de um carcere: tudo lhe parecia differente e mais bonito. Começavam já a apparecer as chacaras de Botafogo, grandes relvados, altas palmeiras, frescuras de agua e de sombras macias. Em quantas d'aquellas casas, ella fizera brilhar as suas joias, rugir as suas sedas, vagar o perfume do seu lenço de rendas e dos seus vestidos! Bons tempos ... ah! mas elles voltariam, quando a fortuna e a lealdade de Gervasio a repuzessem no logar de que a ambição do marido a tinha arrancado. Ia leve. Como é bonito e curto o caminho da felicidade! O bond dobrou a rua dos Voluntarios; e uma subita angustia cahiu no coração de Camilla. Ia passar pelo palacete Theodoro como uma extranha. Por um grande trecho da rua, ella esperava esse momento com curiosidade e terror; e quando o momento chegou, quiz abranger tudo com a vista, adivinhar até o que se passava dentro d'aquellas grossas paredes. Na fugacidade do instante só pôde perceber que a janella do seu quarto estava aberta e que tinham substituido por areia preta a antiga areia branca do jardim. Teve impetos de mandar parar o bond, de entrar pela casa, ir até á sua saleta, continuar o bordado ou a leitura interrompida e beijar as duas filhinhas, coradas, offegantes pelas ultimas corridas da bicycleta, que lá deviam estar dentro, ao pé da Noca, na sala de engommar, sobraçando as suas grandes bonecas de olhos azues... O bond passou, e Milla, toda voltada no banco, olhava para a _sua_ casa, depois para o _seu_ jardim, e ainda, emquanto a viu, para a alta copa ramalhuda da _sua_ mangueira... Sentiu então como que um desdobramento de personalidade. Ella que passava, sózinha, vestida da lã negra, com um véo de crepe pela cara, mal arranjada, abotoada á pressa, não era a Camilla dos vestidos claros e das mãos luminosas; essa estaria lá dentro do palacete no seu eterno sonho de mocidade, de amor e de belleza... Quando entrou em casa de Gervasio, teve um impeto de voltar para traz. Todos os seus escrupulos se levantaram em revoada. Feriu-a então a ideia de que já era avó, e que esse titulo devia ser um ridiculo algemando-a ao silencio. O filho de seu filho seria tambem um inimigo? Tão pequenino, apenas nascido, e já teria força para se interpor entre ella e a felicidade? Um criado abriu o guarda-vento; ella entrou indecisa para o vestibulo. Nunca se encontrara alli sozinha: Gervasio não quizera expol-a aos commentarios dos seus criados; preferira ter um canto obscuro, todo destinado a ella e que nenhuma outra mulher maculasse com a sua presença ou a sua indagação curiosa. O mesmo criado conduziu-a por um corredor atapetado, ornado de plantas, até uma sala do mesmo pavimento terreo, abrindo sobre um jardinzinho interior, onde as dracenas se empennachavam de flores. Pediu-lhe que esperasse alli. O senhor doutor conferenciava com um individuo no escriptorio, mas ia avisal-o. Ella respondeu-lhe que não, não tinha pressa; ficaria até que o outro sahisse... Quando se viu só, Milla levantou o véo com um suspiro de allivio. Olhou amorosamente para tudo: nas paredes alguns quadros; uma certa sobriedade nos arranjos e nos moveis. Reconheceu numa cadeira uma almofada bordada por ella, e, a um canto, um jarrão chinez com que Francisco Theodoro presenteara o medico, após uma doença grave do Mario. O marido! o Mario! como elles lhe fugiam para o horisonte da vida... Aquelle jarrão evocava uma epocha feliz. O filho era então já um rapazinho atrevido, mas tão meigo, tão lindo! o marido era forte, fallador, arrebatado, ameaçando fazer cahir a casa ao furor das suas rebentinas. E ella? Ella bem differente: caseira, mal vestida, egoista e muito severa para as faltas alheias... Prodigalisava-se pouco, o proprio marido não obtinha d'ella mais do que o carinho frio, de condescendencia; não por mal, não por proposito, nem sabia porque... Fôra Gervasio que lhe ensinara a enternecer-se, a reprimir as suas coleras, a perdoar as fraquezas dos outros, a embellezar a sua casa, a sua pessoa, a sua vida, a querer bem a todos, com intelligencia e com consciencia. Antes não o houvera conhecido; ella talvez não tivesse sido boa para ninguem, mas teria sido honesta e não conheceria o soffrimento. Com os olhos parados nas figuras polychromas do jarrão, Camilla relembrava todo o martyrio do seu amor, nascido pouco a pouco da intimidade... O tal individuo demorava-se no escriptorio. Ella levantou-se, foi á janella olhar para o jardim. As plantas eram finas; como no interior da casa, havia tambem alli uma tranquillidade distincta. Sentia-se que os gostos e os instinctos do dono sabiam subordinar-se a uma vontade forte. Camilla olhava abstractamente para as flores, quando ouviu passos no corredor. Voltou-se; Gervasio appareceu no limiar da porta. --Que é isso, Milla?! --Nada ... eu... --Por que vieste?! Camilla avançou timidamente. Elle continuou: Por que não me mandaste chamar logo que entraste? Estás tão pallida!... tão fria... Foi uma imprudencia vir aqui, a esta hora!... Mas por que?! --Lá eu não poderia fallar... --Tens razão, aquella casa é tão pequena! está-se tão perto de todos! Senta-te, meu amor. --Contrario-te? --Nunca! estamos junctos! Falla. --Eu... Mal pronunciou a primeira palavra, Camilla arrependeu-se da sua resolução. Era quasi velha, já era avó! Áquelle pensamento toda se enrubeceu; calou-se de novo, com os olhos razos de agua. --Não te comprehendo ... assustas-me! Tens segredos para mim? Olha que me zango! Vamos, que aconteceu? --Amas-me sempre? --Sempre! --Como ... no principio? --Mais. Então baixinho, num sussurro, com o rosto unido ao rosto d'elle, Camilla disse tudo. Levada pelo seu sonho, ella não percebia quanto as mãos d'elle tremiam nas suas mãos e que sombras lhe passavam pelo rosto transtornado. Quando ella acabou, elle não respondeu; ficou por largo tempo immovel, como se ainda esperasse a ultima palavra. A viração da tarde encheu a sala com o aroma das dracenas; Camilla sorveu-o com deleite, como se fôra um afago do céu. Emfim, fallara, tinha-se dissipado a nuvem e já sorridente, instou pela resposta: --Queres?... O medico ergueu-se de chofre, e com voz metalica e dura disse rapidamente: --Não pode ser. Camilla moveu os labios, numa agonia de morte. O que ella temia alli estava. Elle tinha razão, era bem feito, casar, para que? Fôra a nora que a obrigara a tamanha humilhação! Atraz d'aquella mascara de seriedade, Gervasio havia de se estar rindo d'ella, da pretenção d'aquelle miseravel corpo de avó a um noivado de amor! Teve a impressão dolorosissima de estar coberta de rugas e de cabellos brancos; olhou para as mãos com medo; não comprehendeu bem o motivo porque continuava alli e levantou-se com esforço, para se ir embora. O seu destino estava escripto: via todo o futuro tapado pelo corpo pequenino do neto. Gervasio, pondo-lhe as mãos nos hombros, fêl-a sentar-se outra vez, com brandura. --Para que? perguntou-lhe ella, quasi chorando. --Para te dizer tudo: eu sou casado. Camilla abafou um grito, tapando a bocca com a mão. Elle dissera aquillo num desabafo, na ancia do golpe inevitavel, com uma voz cortante como a de um machado lanhando um tronco verde. Rôto o segredo, apiedou-se logo e fallou com humildade, muito chegado a ella. Tambem pensara nisso, elle, tambem a quereria fazer sua aos olhos de toda a gente, mas estava preso a outra mulher, até que a morte... --A morte! suspirou Camilla. E elle continuou, muito commovido: --Viste-a uma vez, lembras-te? era aquella mulher de lucto que encontrámos na volta do _Neptuno_. Achaste-a bonita ... percebeste a nossa impressão e tiveste ciumes... Eu não queria que soubesses ... mas agora a explicação deve ser completa, dir-te-ei toda a verdade. Meu pobre amor, perdôa-me... Gervasio segurou nas mãos de Camilla; ella retirou-as devagar e fixou-o com um olhar de tão clara interrogação, que elle continuou mais baixo, mastigando as palavras: --Sim, amei-a muito! casei-me por amor; mas no dia em que percebi que ella me enganava, deixei-a... Moravamos no Rio Grande, ella ficou lá com a mãe, eu voltei para aqui. Quiz divorciar-me ... ella oppôz-se; oppõe-se ainda; quer ter-me acorrentado como um cão: consegue-o. É tudo. Era tudo. Camilla percebeu o melindre do segredo, mantido para evitar-lhe uma offensa. A razão illuminava-se-lhe; ella não podia ser aos olhos d'aquelle homem nem melhor nem mais digna do que a outra que elle desprezara; a mesma culpa as nivelava, e se elle não encontrara perdão para a esposa, como encontraria respeito para ella? Sempre calada, puxou o seu véo de viuva para o rosto e levantou-se. O aroma das dracenas invadia tudo, numa exhalação suffocante. Gervasio beijava-lhe as mãos, supplicando-lhe que lhe perdoasse; fôra por amor de ambos. Porque não continuariam a viver como até então? Camilla não respondia, e como elle instasse, ella pediu: --Deixa-me ir embora! --Tens razão; precisas descançar. Mas não podes ir assim, deixa-me ao menos mandar buscar-te um carro! Camilla desprendeu-se, já muito impaciente; queria ir sozinha, andar a pé, ao ar livre. Elle consentiu, adivinhando que a perdia para sempre. Talvez fosse melhor assim... Ella colheu a cauda da saia e sahiu tiritando de frio, por aquella luminosa tarde de verão. Encontrara fechada a porta do futuro; voltava para traz, aturdida, como se sentisse dentro da cabeça um sino doido, badalando furiosamente. Elle era casado! Elle mentira-lhe! Tantos annos de mentira, tantos annos de mentira! Era já noite quando Camilla entrou no seu jardinzinho da rua de D. Luiza. A casa estava ainda ás escuras, mas Ruth tocava lá dentro um adagio de Mendelssohn. Extenuada, Camilla sentou-se nos degráus de pedra, como uma mendiga á espera da esmola. As luzes dispersas dos lampiões semeavam de pontos de ouro a curva negra do morro; a ultima cigarra adormecia nas flores abertas do flamboyant, e a alma dos seres invisiveis erguia-se na noite, enchendo-a de impenetravel e sagrado mysterio... Camilla, com o olhar aberto para o velludo macio da sombra, percebia que estava tudo perdido, irremissivelmente. No outro dia escreveria uma carta a Gervasio, com a sua ultima palavra. O adeus definitivo. As lagrimas rolavam-lhe em fio pelo rosto abrasado; estava bem certa de que aquelle era o dia da sua segunda viuvez. Perdera na primeira o aconchego, as honras da sociedade, a fortuna e um amigo calmo, que não a repudiaria nunca... Na segunda, perdia a illusão no amor, a fé divina na felicidade duradoura, o melhor bem da terra! Chegara ao fim de tudo, á hora tremenda da expiação. Mas fôra ella, por ventura, uma criminosa? Maldizia-se, fôra uma confiante, dera-se toda com os seus devaneios, os seus desesperos; dera-se completamente, absolutamente, e aquelle a quem tudo sacrificara tinha-a deixado do lado de fóra da sua vida, como a uma extranha. Elle mentira-lhe, elle mentira-lhe! Era casado, e desprezara a mulher pela mesma culpa! Que seria ella tambem aos olhos d'elle? Oh! ser honesta, viver honesta, morrer honesta, que felicidade! Se pudesse voltar atraz, desfazer todos aquelles dias de sonho e de ebriedade, recomeçar os labores antigos na insossa domesticidade de esposa obediente, sem imaginação, sem vontade, feliz em ser sujeita, em bem servir a um só homem, com que pressa voltaria para evitar esta humilhação, peior que todas as mortes, porque vinha d'elle, que ella amava tanto! Amava ainda. Ainda! Olhou com desprezo para o seu bello corpo de mulher ardente. Era um despojo, de que valia? Lembrou-se com terror das filhas, aquellas creanças nascidas d'ella, predestinadas para o Soffrimento. Caminhariam alegremente para o Amor, e o Amor só lhes daria decepção e miseria. Numa angustia, Camilla interrogou com olhar ancioso a treva muda: Senhor, que haveria no mundo para salvação das almas doloridas?! Alguma coisa fallou-lhe no ar, em um rasgo de poesia, que subia ás estrellas: a musica de Ruth. A essencia da lagrima purificava-se no som, com um poder de infinita pacificação. Então a viuva teve inveja da filha, d'aquelle ideal purissimo, que não lhe traria nunca o travo de um desengano. A arte a consolaria do homem, pensou, quando chegasse o dia de o amar e de o servir... Maldicta a natureza, que a fizera, a ella, só para o amor! Ás onze horas da manhã seguinte, Camilla sentou-se a um canto da sala de trabalho. O sol entrava pela janella, extendendo no chão uma toalha de ouro. Debruçada sobre a mesa, Ruth escrevia em papel de pauta, preparando lições para duas discipulas novas. Toda a sua indolencia antiga se transformara em actividade; Nina cosia á machina e, no meio da casa, Noca burrifava a roupa para o engommado. Ella olhou para todos. Ruth estava feiosa, muito magrinha; mas a sua coragem illuminava-lhe a fronte, uma fronte de homem, vasta e pensadora; as outras pareciam até mais bonitas naquelle afan. Estavam na sua atmosphera. Com voz pausada e clara, Camilla pediu que lhe dessem trabalho. Olharam-na com espanto. --Mamãe quer mesmo fazer alguma coisa?! --Sim, minha filha... Tudo acabou, devo começar vida nova! --Então mande buscar as meninas e ensine-as a ler! exclamou Ruth. Um grito irrompeu de todos os peitos. Noca saltou: --Vou já me vestir! Credo! não sei o que parece isto da gente dar os filhos. Deixe Mario fallar, afinal aqui ninguem ha de morrer de fome... Vou buscar as creanças?! Vou, ou não vou? --Vae, respondeu Camilla muito excitada: mas olha, não offendas a baroneza. Basta dizer ... que eu não tenho nada no mundo senão as minhas filhas! --Bem que eu ouvi a senhora chorar toda a santa noite... Até estive quasi... --Basta de palavriado, Noca! interrompeu Nina; e accrescentou: --Vá descançada, eu acabarei de burrifar a roupa. E depois, para a tia: --Faz bem, tia Milla. O trabalho distrae. XXV Depois de dois annos de viagens pelos Estados Unidos, o capitão Rino desembarcou no Rio de Janeiro. Vinha outro, remoçado, lepido, despido do seu ar de ingenua rudeza. Havia agora no seu sorriso a mesclazinha de ironia que a perversidade do mundo ensina aos homens. Catharina notou-lhe logo a differença, ao conduzil-o alegremente por entre os gyrasóes do seu jardim. Comprehendeu a serenidade do irmão. Vinha salvo. Na manhã seguinte elle lia alto um jornal, quando esbarrou com um annuncio para um concerto de Ruth. Parou; elle soubera de tudo pelas cartas de Catharina, e, voltando-se, fixou nella os seus olhos claros. Houve uma troca de confidencias entre os dois rostos mudos; depois, curvando-se um pouco para o irmão, a moça perguntou em voz baixa: --Vaes visital-a agora? Rino hesitou, e depois, com o tom mais natural do mundo, respondeu com outra pergunta: --Para que?... FIM *** End of this LibraryBlog Digital Book "A fallencia" *** Copyright 2023 LibraryBlog. All rights reserved.